JOSÉ EMÍLIO-NELSON
José Emílio-Nelson é escritor e editor do CEJMS. Nasceu em Espinho, 1948. Licenciado em Economia pela Faculdade de Economia da Universidade do Porto. Publicou poemas e ensaios em revistas literárias portuguesas e estrangeiras. Prepara a reunião da sua colaboração crítica em jornais e revistas literárias e ensaios sob o título: MAIS DO QUE LER.
Por Luís Adriano Carlos
Introdução ao livro A Alegria do Mal: Obra Poética I: 1979-2004, de José Emílio-Nelson, publicado pelas Quasi Edições, PT, em 2004. Redigido há exactamente vinte anos, em Agosto de 2004, o texto é aqui reproduzido conforme a edição original.
Milhor he esprimentalo que julgalo,
Mas julgue o quem nam pode esprimentalo.
Camões
Nada melhor do que a poesia de José Emílio-Nelson para sujeitarmos às mais duras provas a boa ou má consciência do gosto literário. Poesia do feio e do mal, ela tem sido, desde Polifonia e Penis, Penis, livros de 1979 e 1980, um atentado constante às normas do bom senso e do bom gosto, só ilusoriamente banidas da República literária com a iconoclastia dos modernistas. Os seus poemas atormentados e contorcidos são a prova flagrante de que o gosto, bom ou mau, é uma hidra de mil cabeças com a aparência do diabo nos seus mil e um disfarces. Por isso, o maior louvor que alguém pode prestar-lhes é a censura e o desdém que confirmam a sua inconfundível vitalidade, é a proposição de um juízo de gosto negativo que os atire para os subterrâneos do sistema literário em vigor. Nesta perspectiva, sou tentado a suspeitar que a presente edição e o meu texto introdutório encobrem uma maldade perversa: a da institucionalização de uma aventura poética que pertence ao tremendo domínio das trevas e que aí devia permanecer ad omnem aeternitatem. Confesso que ficaria decepcionado se o poeta ficasse decepcionado com esta última frase. Penso realmente que o juízo de dégoût é a melhor maneira de degustar a sua poesia, uma vez que a escolha de uma estética do feio e de uma ética do mal merece uma infinita saison en Enfer. Mas tamanho juízo em forma sumária, de certo modo especioso, seria uma capitulação pusilânime perante as máquinas do gosto que censuram o feio e o mal em nome do belo e do bem, da conveniência, da insipidez e da mediocridade, eternos cavalos de Tróia que Emílio-Nelson enfrenta com indomável dignidade poética.
Apesar das lições da história literária, continua muito viva a ideia consensual, formulada há muito tempo pelo moralista La Bruyère, de que o bom gosto não é senão o bom senso na sua função crítica. Desde Boileau, Lord Shaftesbury e Jean-Pierre de Crousaz, o bom gosto foi caracterizado como expressão do senso comum que traduz a harmonia do sentimento e da objectividade unitária da beleza. Por conseguinte, só o sentimento aprovado pela razão moral é aceitável, já que o gosto representa, nos termos das reflexões de Lodovico Muratori sobre a perfetta poesia, a soberana perfeição do juízo. Este fundamento moral, de raízes platónicas, é responsável pelo entendimento generalizado do gosto artístico, a despeito da crítica kantiana, como mera faculdade de julgar o que agrada ou desagrada às maiorias, em função dos padrões dominantes. Deste ponto de vista, o gosto é bom ou mau consoante resulte ou não do concurso dos gostos gerais com efectivo poder de soberania nos seus vários níveis sociológicos, fazendo jus ao corolário melancólico de Francis Bacon nos Essays: o costume é o principal magistrado da vida humana. Confirmada pelo empirismo de David Hume, para quem só o hábito determina o gosto e a avaliação do belo, esta verdade é todavia o cavalo de batalha da modernidade mais resistente ao canto de sereia da beleza que promete a vida harmoniosa e indolor. Para Emílio-Nelson, ela é mesmo o asno de ouro da poesia.
Lord Kames, um dos raros autores citados por Kant na terceira Crítica, adaptou à literatura com extrema clareza, em Elements of Criticism, os princípios da escola do senso comum. Um dos seus postulados mais notáveis considera que as preferências individuais estão longe de ser matéria de gosto, manifestando tão-só peculiaridades como o hábito e a imitação, dentro da natureza comum que cria as consistências de classe de que derivam os modelos de engendramento e os padrões de apreciação. É o desvio estatístico relativamente a estes quadros que produz as impressões de perfeição e imperfeição, ordem e desordem, beleza e fealdade, mas também as reacções de aprovação e rejeição. Ora, se assimilarmos as noções psico-sociológicas de modelo e padrão às noções histórico-literárias de época, período, escola ou corrente, teremos um esboço sugestivo da gramática do gosto literário. Um poeta como Emílio-Nelson, estranho a classes literárias dominantes, produtor de objectos desagradáveis, embaraçosos e até repulsivos, orgulhosamente partidário do mau gosto à boa maneira de Diógenes de Sinope, desde o priapismo libidinal de Penis, Penis até ao misticismo excrementício de Sodoma Sacrílega e Poesia Vária, só pode ser condenado como um monstro virulento na fisiologia salubre da bela literatura. Porém, esta honra inestimável tem a virtude de denunciar que a uniformidade moral do gosto, na dupla vertente da criação e do consumo, faz tábua rasa de uma das maiores lições da história da arte: o padrão do gosto, ele próprio variável e contraditório no tempo e no espaço, é em última análise completamente livre de princípios de autoridade. Eis a condição sine qua non do vitalismo orgânico da poesia, independentemente de bons ou maus sentimentos, até porque não ignoramos que a má literatura é feita com bons sentimentos, embora os maus sentimentos não garantam a boa literatura, como sublinhou Gide, e que o bom senso está longe de ser a coisa mais partilhada do mundo, ao contrário do que pensava Descartes.
Não faltam autores de vulto a demonstrar a existência de uma via paralela à tradição clássica, muito anterior à modernidade romântica que contestou os preceitos morais da sua estética. Cingindo-nos à genealogia grotesco-satírica de Emílio-Nelson, basta nomear Aristófanes, Petrónio, Marcial, Luciano de Samosata, Apuleio, os trovadores medievais, Villon, Rabelais ou Quevedo. Na pintura, Bosch, Mantegna, Brueghel ou Caravaggio. Em obras de poderosa concepção estética, sem receio de comparações com as suas contrapartidas clássicas, estes monstros sagrados relativizam a suposta razão universal que priva de valor artístico toda a representação que atente contra a natureza ideal e os bons costumes. Quem conheça esta tradição paralela, escamoteada pela mentalidade classicocêntrica da nossa cultura, e leia com atenção a obra de Emílio-Nelson, facilmente compreenderá o arcaísmo anémico da recepção crítica do poeta mais perturbador do último quartel do século XX: um arcaísmo devotado ao código penal da estética, incapaz de reconhecer uma natureza visceralmente criadora à revelia de critérios normativos (the local flavour de T. S. Eliot) como a beleza ideal, o lirismo pancálico e adocicado, a conveniência e o decoro, ou mesmo a famosa «musicalidade», esse delicado Ersatz do belo melodioso sem aplicação à imensa galeria de autores cimeiros cujas asperezas expressivas não comprovam o universalismo da «essência musical» da poesia, um longo equívoco alimentado por Verlaine que a candura letrista de Isidore Isou há muito se encarregou de arruinar.
Dir-se-á que hoje em dia não tem sentido falar de «bom gosto» porque o paradigma dominante é o relativismo «pós-moderno». Na verdade, a arte contemporânea tem sido climatizada pelo relativismo hedonista e analítico-institucional que metaboliza ou domestica todo o tipo de resistência crítica da função estética. O tema favorito deste discurso consiste na inexistência de critérios válidos, glosando até à náusea o motivo da «des-esteticização» da arte proposto por Harold Rosenberg. Numa espécie de amputação do subjectivismo kantiano, segundo o qual todo o juízo de gosto se refere ao estado do sujeito, a posição relativista suprime o estado crítico da questão ao rasurar o efeito trans-subjectivo do sensus communis, que fixa parâmetros determinados e que pode mesmo reencontrar-se com o fantasma do bom gosto, logo que o prazer da fruição se torne comunicável e seja aceite pela instância comunitária, esta ou aquela comunidade de gosto, que a retransmite através dos meios ao seu dispor gerando uma hipersubjectividade consensual. Trata-se pois de um novo tipo de bom gosto, difuso e inominável, titular de um pacto discreto entre as velhas doutrinas normativas e as novas teorias da relatividade constante. Ora, este aparente relativismo pressupõe que não existem senão duas possibilidades: a dos critérios normativos e dos juízos de valor conexos, a bem dizer dogmáticos; e ele próprio, dividido entre o eclectismo profuso e o cepticismo absoluto. Assim, em nome da liberalidade magnânima, postula um bazar dos gostos individuais (o bom gosto é o meu gosto) que transforma a ofensa estética numa estética do inofensivo caucionada pelo valor de uso: a transição da hipersubjectividade do gosto ao hipermercado do gosto é um deslizamento insensível que confirma a fluidez do sistema. Como na comédia de Calderón, gustos y disgustos son no más que imaginación.
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A doutrina do gosto está comprometida, desde Sócrates e Platão, com a estética do belo ideal. Quando Baumgarten lança as fundações da Estética, em meados do século XVIII, o fim do conhecimento reside na perfeição do sensível (da aisthesis), identificada com a beleza. Portanto, a Estética deve evitar a imperfeição do conhecimento sensível enquanto tal, a fealdade. Isto significa que a legitimação do sensível, proscrito do conhecimento oficial durante cerca de dois milénios, continua a subordinar o fenómeno estético exclusivamente à metafísica clássica do belo ideal e às ideias de clareza, proporção, simetria e perfeição harmoniosa. Na linha de Platão e Leibniz, a beleza constitui, para Baumgarten, uma lente correctiva que elimina as imperfeições da vida natural. É nesse sentido que Hegel atribui ao belo artístico o papel purgativo de libertar a verdade das imperfeições da natureza e da ambiência temporal das coisas finitas. O belo é pois uma garantia de felicidade que emancipa o Homem da angústia existencial: um pharmakon lenitivo, um paraíso artificial, uma ilusão de eternidade.
No entanto, o poeta e o artista da modernidade, prisioneiros da consciência infeliz e enfermos da angústia existencial, seguiram um caminho tortuoso completamente distinto, de tal maneira que hoje o belo não sobrevive senão nas imagens anémicas de uma arte ortopédica que digeriu o pior da eloquência clássica. Por este motivo evidente, não será exagero afirmar que o belo ideal, na modernidade, ficou a cargo da arte de qualidade inferior. Nos tempos «pós-modernos», tornou-se a imagem de marca do Kitsch, o engodo resplandecente da publicidade, a mais refinada expressão do mau gosto: um Ersatz do feio absoluto desprovido de autonomia ontológica, a frígida alergia do mal, a astenia do lugar-comum e a insipidez langorosa, a passividade sem vida, o insignificante. É de resto esta forma bastarda da beleza ideal que espreita em muita poesia contemporânea, alimentando as apreciações críticas fundadas no critério da bela imagem.
Com semelhante má vizinhança, a poesia de Emílio-Nelson ocupa o território tenebroso do feio expressivo, princípio estético da intensidade realista que organiza a experiência existencial. O poeta não deixa de prever e desafiar, desde o «Imundo texto» de Penis, Penis, as resistências do «sanhudo / leitor em desacordo» e do «ortodoxo / a vasculhar na morgue dos clássicos». Mas remete estes dois tipos cómicos de leitor para as «capas das revistas» onde triunfa o belo ideal das figuras femininas «Sempre do mesmo acastanhado liso» e para a mortuária e «Untuosa / Grinalda / Retórica» da literatice sisuda, em Penis, Penis e Noite Poeira Negra. O seu campo estético é claramente demarcado em abundantes passagens que fulminam com olhar crítico, cínico e clínico, «a glória da cosmética», em Humoresca, e «a sempre ligeira beleza / das Cariátides», em «As Ruínas de Atenas», de O Anjo Relicário. No aspecto deslavado e sensaborão desta imagética sem fermento dialéctico, refugia-se uma visão do mundo imobilizado e uma irremediável petrificação da vida que o poeta parece abominar ao longo da obra. Doença da abominação que radica, em primeira análise, numa etiologia baudelairiana: o que não é ligeiramente disforme tem um ar insensível, curiosité esthétique portadora de uma vontade de exprimir o sabor e a paixão da vida. Denominada bizarria por Baudelaire e pela crítica, a doença do sensível consiste, todavia, na vibração realista da existência que a tradição medicinal do belo platónico, o to kalon, categorizou como enfermidade fisiológica e mentira ontológica. O feio é um veneno e o belo é um tranquilizante, eis a metafísica impregnada como um narcótico na fisiologia do gosto e no sentimento estético do mundo.
Também a Estética, reino das aparências, padece das ilusões mais insustentáveis. Uma delas é a crença no primado histórico da beleza, que a própria história das representações está longe de confirmar. No princípio era o feio. Nas artes primitivas e nas mitologias antigas, o domínio da fealdade e do terror é um dado indiscutível. Harpias, Quimeras, Górgones, Graias, Parcas, Grifos, Sátiros, Centauros, Cíclopes, o Minotauro, Cérbero e Hércules, deuses infernais como Perséfone, Plutão, Hécate, o deus coxo e disforme amado e traído pela deusa da beleza, Hefesto, são apenas alguns exemplos da teratologia medusiana que precedeu a invenção do belo ideal. A literatura grega oferece-nos ainda um catálogo interminável de paixões violentas e sanguinárias na epopeia, de horrores criminosos na tragédia, de vícios e depravações na comédia. Por seu lado, a face latina da literatura clássica pode exibir os seus Sades e Kafkas no Satíricon de Petrónio, no Tiestes de Séneca, no Lúcio ou o Asno de Luciano de Samosata, nas Metamorfoses de Apuleio e de Ovídio, nos epigramas de Marcial. Dante, Rabelais, Shakespeare, Milton, Goethe, Hoffmann, Hugo, Poe, Baudelaire, Dostoievski, Rimbaud, por exemplo, tal como os expressionistas e os surrealistas, limitam-se a dar continuidade e consistência a uma tradição do feio e do mal muito mais antiga e poderosa do que a tradição clássica do belo ideal.
O feio é pois o princípio fundador da representação, a partir do qual o platonismo descobre a ideia do belo. Nas reflexões de Sócrates sobre a beleza metafísica, há uma raiz espetada como um espinho dilacerante: Empédocles e a fealdade monstruosa do caos originário que inspira o artista-demiurgo na criação de mundos alternativos. Os fragmentos de Empédocles, Sobre a Natureza e Purificações, reflectem um momento da civilização em que a aliança da poesia e da física integra os princípios contraditórios do bem e do mal numa visão sistemática do cosmos. Entretanto, é conhecida a conspiração de Sócrates contra a energia discordante do sensível, em nome de uma ordem lógica e moral temperada pela beleza do bem e da verdade. A expulsão dos poetas, na República, não é outra coisa senão a censura da imperfeição humana, do Eros, das paixões, do sonho e do delírio, do feio e do mal. A dado passo do diálogo Parménides, o fervor higiénico de Sócrates não hesita em recusar às matérias indignas e desprezíveis uma participação no Uno. O cabelo, a lama e o lixo são matérias desprovidas de forma e, por conseguinte, desligadas da Ideia e da unidade do Ser. Mas, subjacente às interpelações de Parménides, circula um argumento que Sócrates é incapaz de contrariar: ser e pensar são a mesma coisa e tudo o que é está cheio do que é, num contínuo sem interrupção; portanto, o que é é, o que é não pode ser menos do que é ou deixar de ser, porque o que é pensado é uma necessidade que é necessariamente, como a «lama do parque» no poemeto de Emílio-Nelson «A Alma», da série «A Alma a Lama», pórtico do livro Queda do Homem. Pergunta Sartre, no monumental Saint Genet, se é legítimo recusar uma beleza incarnada nas matérias imundas e se não possuímos, todos nós, uma Ideia de imundície. Temos de admitir que existe de facto uma Ideia de fealdade, cujo recalcamento estético radica na assimilação do feio ao mal e do mal a uma ideia de privação postulada pela censura platónica e agostiniana, que determinou o moralismo poetológico do decorum e da electio alegadamente extinto desde a ruptura romântica.
Irmão gémeo do mal, o feio tem a virtude do escândalo. Acantonado na esfera do Não-Ser, ostenta a força de uma resistência moral a toda e qualquer sublimação. Ele é a estrutura fugitiva que faz fracassar as máquinas sociais que tudo metabolizam e domesticam. Ignoro se Emílio-Nelson convive bem, no seu íntimo, com a ideia de praticar uma estética do feio sem sentir o aniquilamento moral e ontológico que o conceito representa no senso comum. Mas sei, por experiência própria, que muitos escritores, enquanto aceitam de bom grado a descrição, rejeitam a palavra com escândalo, refugiando-se numa ronda de eufemismos e perífrases. Têm com certeza as suas razões, dado que o feio cobre qualquer escritor com o manto de uma moral depreciativa, tal como sucedia há não muito tempo relativamente ao barroco. Uma das razões reside, sem dúvida, na influência profunda do platonismo sobre as categorizações estéticas. Outra decorre da própria língua, em perfeita sintonia com Sócrates, o grande pensador do belo cuja fealdade fisionómica, ironicamente, era tudo menos repugnante. A palavra grega que designa o feio, to aischron, participa simultaneamente das semânticas da fealdade e do vergonhoso, do torpe e do ignóbil, da ignomínia e da desgraça. O foedu latino, signo do feio e do horrível, é o centro de uma constelação de sentidos que compreende o sujo e o fétido, o imundo repugnante e insuportável, o que desfigura e mutila, o ferimento e a ferida, o ultraje e a desonra, sendo mesmo parónimo da família sexual e escatológica fodio, fodis, fodi, fossum, fodere. Ora, o feio preenche um território ontológico original e reveste-se de um carácter de necessidade que está muito longe de se confundir com o meramente acidental e aleatório, mas do seu princípio de violência orgânica emerge um paroxismo do sensível que exprime o dissonante e o inacabado, assim flagelando o sentimento racional da perfeita harmonia.
Não admira que a um escritor, ou a um crítico, repugne de alguma maneira comprometer-se com um conceito de comprovada má reputação, provavelmente sem igualha. Seria porém uma injustiça, talvez uma calúnia, recusar a Emílio-Nelson, no âmbito estrito da sua poesia, uma ligação tão comprometedora. Tenhamos em mente um poema de referência, «Pasticho da Ostentação do Escárnio» (Penis, Penis), cujo programa temático e estético será reforçado ao longo da obra: «Que a mim ninguém atrai tanto como a mulher feia / Ou até nem será mulher / Mas feia será sempre». É muito claro o programa de afirmação da autonomia radical do sensível orgânico, relativamente às abstracções da beleza racional, como ponto de partida para a constituição de uma moral estética presidida pela virtude da fealdade e pela plenitude do Ser desentranhado do Não-Ser. Mas também é notório que o poeta diz o indizível na pena de um poeta que se preze à luz dos padrões convencionais: uma coisa é dizer, lírica ou satiricamente, que esta mulher é feia e feia há-de continuar, outra é dizer que o que nela mais o atrai é não a mulher, supérflua e desnecessária, mas a fealdade que a torna característica e inquietante. Invertendo Sócrates, a contra-estética de Emílio-Nelson oferece-nos o feio como Ideia que dá forma ao Ser agitado e intensamente vivo, em contraste com a rígida sensaboria do belo ideal. Mas a ostensividade desta proposição é igualmente um libelo contra o escamoteamento crítico do feio enquanto categoria estética original. Ela dirige-se com estrépito preventivo ao leitor que expele para o limbo do Não-Ser literário representações da estirpe do «Imundo texto» Penis, Penis, subalternizando os discursos com íntimas ligações ao feio e ao mal, mormente o satírico e o burlesco, a favor de uma concepção totalitária, a todos os títulos insustentável, da poesia como «lirismo». Além disso, acentua que a poesia só se justifica na condição de burlar a moral da língua e das suas representações ideológicas, nunca recuando perante as paixões mais penosas da experiência humana, que a ética, domadora incansável das estéticas deboli, suaviza e escamoteia com os seus bálsamos miraculosos.
Não faltam motivos que justifiquem o desinteresse teórico pela estética do feio até à segunda metade do século XVIII. Entre as raras excepções, destaca-se o tímido reconhecimento positivo do feio artístico na Poética de Aristóteles, que não podia ficar indiferente ao to aischron na comédia e na tragédia. Com efeito, o estagirita esboça em breves palavras os rudimentos de uma teoria estética que só terão consequências nos séculos XVIII e XIX: «nós temos prazer em contemplar as imagens mais cuidadas das coisas que olhamos com repugnância na realidade, por exemplo as representações de animais ignóbeis ou de cadáveres». No entanto, esta volúpia da experiência estética será depreciada como mera curiosidade pecaminosa por Santo Agostinho, refractário ao gosto pela contemplação de um cadáver dilacerado a que se tem horror, aliás em absoluta coerência com a sua desclassificação ontológica do feio e do mal. Só treze séculos depois, no fim do ciclo clássico, terá início a reabilitação teórica da voluptas produzida pela fenomenologia da fealdade, graças aos sensualistas britânicos ocupados com o estudo do sublime e do pitoresco, de Edmund Burke a Uvedale Price. Mas a emancipação do conceito de feio artístico deve-se antes de mais aos germânicos Lessing, Kant, Friedrich Schlegel e Jean Paul. Com o estudo do grotesco escultórico Laocoonte, em 1766, Lessing surpreende a presença ameaçadora do feio na representação da dor como fractura da harmonia estóica. O esgar doloroso contrasta com o sorriso de Mona Lisa, assim abrindo caminho a uma nova perspectiva cuja melhor síntese encontraremos no postulado kantiano, proposto em 1790 na terceira Crítica, segundo o qual a arte é não uma representação de coisas belas mas uma bela representação das coisas, o que confere direitos de cidadania estética às mais diversas categorias, o belo e o feio, o trágico e o sublime, o cómico e o fantástico, o pitoresco e o grotesco. A concepção monista de Baumgarten, traduzida na restrição do campo estético ao império do belo, chega assim a um desfecho que o romantismo não tarda a confirmar. Em 1797, num estudo sobre a poesia grega, Friedrich Schlegel estabelece uma nítida oposição entre, por um lado, a beleza objectiva e finita das representações antigas e, por outro, a fealdade subjectiva, característica, excitante e inacabada das produções românticas. A partir daqui, o juízo de gosto com base em critérios de perfeição e beleza torna-se inteiramente desajustado ao humorismo grotesco e aniquilador das criações modernas, que Jean Paul explica no seu exaustivo curso de estética em 1804. Sob a atmosfera favorável do romantismo, o feio é rapidamente consagrado como categoria estética de pleno direito, primeiro nas lições de Karl Ferdinand Solger, Vorlesungen über Ästhetik, de 1829, e, por fim, no decisivo estudo de Karl Rosenkranz Ästhetik des Hässlichen [Estética do Feio], vindo a público em 1853 e precedendo em quatro anos a publicação de Les Fleurs du Mal, de Baudelaire.
Se a poesia de Emílio-Nelson mergulha profundamente nesta tradição, tal como as criações mais significativas da modernidade, a sua differentia specifica repousa em dois fundamentos gerais da maior importância. Primeiro, a interpretação da estética do feio sem aspirações consoladoras a um estado de beleza, ao invés do que sucede com Baudelaire e os surrealistas, testemunhas da feiura da realidade votadas à destilação da essência eterna do belo (a beleza do feio), a partir da alquimia do efémero ou do seu repúdio pela via do sonho, privilegiando a palavra beauté, infernal ou convulsiva, em detrimento da laideur. Segundo, a criação de uma poesia tonal de grande amplitude polifónica que desdobra o feio característico em sucessivas dissonâncias e reverberações, quer na sátira realista, quer na melancolia grotesca, quer na sondagem de uma teodiceia negativa sem paralelo nas letras portuguesas. Estes fundamentos gerais, adiante analisados, unificam-se no princípio da variedade do feio, a categoria da experiência estética que melhor apreende os mil e um aspectos de um mundo sempre novo que nos escapa, como observou com inexcedível argúcia, em 1827, no prefácio a Cromwell, o autor de L’Homme qui Rit.
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A poesia do feio é uma poesia do tempo. O tempo é o mal que desfeia, o monstro que ri dentro de «Nós, a fealdade», na expressão lapidar de Emílio-Nelson em «Burlesca», do livro Humoresca. O feio permite sentir fisicamente a acção destrutiva do tempo e o destino trágico do Homem, a sua dispersão ruinosa, a usura que corrompe a rosa de Ronsard evocada em O Anjo Relicário. Ele é toda uma fisiologia sentimental, a paixão das coisas que devoramos pelas sensações e que pelas sensações nos devoram. A Natureza está longe de ser uma paisagem imobilizada como uma eternidade florescente: ela é o alimento que comemos e que de nós se alimenta. Nada mais natural do que o feio, porque nele se exprime com fidelidade o movimento da Queda do Homem. O Homem é uma obra do tempo que obra dentro do Homem. Eis o feio como verdade da existência, a mais extrema e inconsolável condenação: «o tempo atroz, acre melancolia», a «habilidosa insensatez do repouso», diz-se em Sodoma Sacrílega e Poesia Vária. Melancolia, a nossa fealdade existencial, observa Michel Ribon em Archipel de la Laideur. Podemos olhar para os céus e voltar-lhe as costas com desprezo, mas continuará a infligir-nos feridas na carne, como as flechas do tempo na tela de Mantegna evocada em «San Sebastiano», de A Visão do Antigo. A força maléfica do feio é uma lepra que transforma o tempo na única eternidade que podemos viver. Por isso, neste litígio insanável, o feio confronta-nos com os mais árduos problemas da metafísica, conforme salientou Michelle Gagnebin em Fascination de la Laideur, ao evocar o Ser na sua fraqueza irremediável mas com a grandeza de enfrentar o destino absurdo da morte. O Ser é o Homem criado à imagem e semelhança de Deus mas desfigurado pela Queda, um Prometeu traído em luta com o belo eterno, a efervescência da alegria do mal devorando as miragens do bem: «A esvair-se, Prometeu suporta a idade do tempo», ainda em Sodoma. É este o universo de Emílio-Nelson, um mundo alimentar que o tempo deglute e que o Homem evacua eternamente.
A miséria do tempo está inscrita na epígrafe de Marx que serve de mote a «Rhetorica Christiana», de A Coroa de Espinhos: «O Tempo é tudo». Tudo em face do Nada que é o Homem, mera carcaça do tempo, acrescenta Marx na Miséria da Filosofia. Mas tempo humano, sugere o poema mais adiante, «o Tempo que se nega ao falso esplendor / Que é de Deus», a rebelião da criatura contra um criador imperfeito, a felix culpa recalcitrante, a prova escandalosa sem contraprova possível no julgamento universal do delito divino: «Desde o princípio que morre o amigo», acusa «Juízo Universal (Delictum)», de Queda do Homem, livro inspirado no Paradise Lost de Milton. O tempo é uma ferida cuja cicatriz permanece aberta indefinidamente, cobrindo a terra de sangue. Esta imagem poética, die Narbe der Zeit, importada do livro Von Schwelle zu Schwelle, de Paul Celan, justapõe-se à imagem plástica do tempo como matéria mole num dos mais conhecidos quadros de Dalí: «O tempo procriou a morte. / O relógio outrora, sobressai, demorado, escorre. / E goteja o que me dói. Ou sucumbe. Ou pairando, a repensar, / O que é paisagem do destino sempre ungida pela guerra, / Decaiu, refaz-se. / Relógio atravessando / Que ao corpo deixa, / Imoderado, a mortificação» («La Persistencia de la Memoria», in A Cicatriz do Tempo). No livro hamletiano A Palidez do Pensamento, a contemplação da alma devolve uma imagem em distorção semelhante aos relógios de Dalí, uma anamorfose, um anagrama ou menos que isso, uma reles metátese, a lama, metástase lamacenta dos elementos, la boue mais l’âme de Victor Hugo em Les Misérables, ignóbil empaste da matéria resistindo à criação, lodaçal do tempo que instiga o poeta a defenestrar as falsas promessas do belo, disfarce estético de Deus, para se ungir nos abismos da carne que escondem uma alma espinosiana: «Não beijei, por isso, a beleza, mas o castanho profundo das cicatrizes». The time is out of joint, constata Hamlet em exergo, no poema «Modulable-Mahler», de A Coroa de Espinhos, e o poeta glosa o tema do desconcerto do tempo ao som da musica coelestis da terceira sinfonia de Mahler, com Zaratustra e o coro dos meninos a entoar o triunfo da alegria sobre o sofrimento terrestre, numa espécie de recriação dos Trionfi em profunda dissonância humoresca com a tragédia humana vivida pelo herói shakespeariano: «Dobradiça, o Tempo / Desconjuntou-se. / Tempo de desordens. / Desconcertou-se. // Fora dos gonzos. / Que vê do Alto / Entrançando atordoadamente na sombra coalhada dos dejectos / A réstia de luz / Coada / Pelo branco de / Lírio. […] Tempo fora dos seus gonzos, pregueados, / Franqueando o Inferno».
Lá em cima está tudo deserto, cá em baixo moramos nós, a fealdade, repelidos pelo espelho da vida que desfigura a imagem e semelhança em que fomos criados. Mas há imagens semelhantes em nós, a fealdade, e é para elas que o poeta orienta a câmara ocular. Daí advém a sua propensão satírica para a captação das espessas camadas de tempo que esfoliam e laceram as imagens passageiras das coisas, dos seres ou dos espectros, e sobretudo aquelas em que rebrilham os fulgores da pompa ou as irisações da trampa. É quase sempre a função decapante do tempo que sentimos ganhar vida no poema, com inúmeras sugestões de mutilação e restauro das peças artísticas e humanas. A «absorção da luz», tópico que intitula um dos livros, descreve por meio de uma metáfora física a tela da vida rasgada pelos elementos sujeitos à acção do tempo. Não há imagem mais expressiva do que «A paisagem que se perde numa parede húmida» («Paisagem Bucólica»), desaparecendo e reaparecendo como um moribundo mutante, primeiro em Extrema Paixão, «Sou uma paisagem arrancada de velha à parede», e, depois, no incipit de «Rhetorica Christiana», intacta na sua ressurreição triunfalmente burlesca: «A paisagem que se perde numa parede húmida».
Esta paisagem é uma physis contagiosa. Voltamos a encontrá-la numa lixeira de Queda do Homem, onde uma mulher vagueia, rodeada por cães que «Lambem a urina no caco de vidro». Em certo sentido, esta mulher vagueia pela poesia do autor em mutações sucessivas que desmancham a compostura da vida penteada como as elegias latinas: «Debruçada sobre si mesma (medita, pensei edificante). Afinal, depilava-se», escreve o poeta voyeur em «Esplanada Algarvia, Anotações», de Vida Quotidiana e Arte Menor. Aviltada pelo lixo ou pelas pilosidades que Sócrates expeliu da ordem do Ser, esta mulher é um grotesco de mil formas com a doença incurável da disformidade progressiva e do envelhecimento tenaz. Ela está viva, palpita nas pupilas do nosso espírito, mas tudo nela nos promete a morte, em traço carcomido que parece sair dos versos de Quevedo e das imagens de Goya, ou das páginas de Les 120 Journées de Sodome, onde Sade associa a mulher velha, feia e malcheirosa ao horror agitado e à comoção degradante como princípios motores do desejo sexual. Seja como for, destinada a Eros ou a Thanatos, ela é uma Eva à la corne, um ogre libidinoso prestes a ser retalhado pela tesoura de Átropos, um atropismo hirsuto que ofende a retórica convencional e um bom motivo grotesco para uma piedosa oração de graças em Penis, Penis: «Bem haja, meu Deus, a mulher, / Baixa de gorda, chupada e alta, / Boa de tetas ou seca, / Ossos sem tutano, / Asmáticas, de pernas umas canas. / Bem haja, toda retraída ou pouco casta, / De pele parda, mão azulada, meu Deus, a mulher / Mesmo esmaltada, no broche».
O que agride nesta poesia é a extrema paixão da sensibilidade, nas notações do monstruoso quotidiano, sem os espelhos correctivos que tornam invisíveis as partes malditas do real. Toda a visão da fealdade é uma fidelidade da visão: quando o feio está invisível, encontra-se algures escondido atrás de uma aparência de beleza. Ver o feio é ver a nudez em toda a sua pureza, por mais impura que aparente ser. Mergulhar no quotidiano sem espelhos correctivos é tocar a essência passional do feio, a dimensão não sublimável da existência: elevando os olhos para o Céu com o natural «sentimento áspero pelas coisas» e vendo «Um céu rente ao chão» que se confunde com o Inferno, sugere-nos o poemeto «Consternação», de Vida Quotidiana e Arte Menor. É aí que o quotidiano mecânico revela o seu verdadeiro rosto, flagelado de cicatrizes e inquietações. Dar expressão a essas manchas dispersas pela banal insignificância das cenas quotidianas é a finalidade da «arte menor»: uma arte de tons dissonantes que faz subir e descer à terra as pequenas e as grandes coisas, fundindo-as dramaticamente no mesmo plano de meditação poética, tal como Espinosa fundiu o corpo e o espírito numa só realidade.
O poeta deambula pela cidade infeliz travestido na figura inquietante do sátiro: «Sou um sátiro», assim se apresenta em Noite Poeira Negra. Os seus pés de cabra trotam pelas ruas arrombando as portas da fealdade. Sofre de satiríase, doença priápica que infecta o final de Penis, Penis e não pára de contaminar as ninfas da vida. Mas há doenças que dão saúde. Por exemplo, esta obra-prima do epigramatismo marcialesco, da série «Vida Quotidiana em Tablóide» (O Anjo Relicário), que envergonha os epigramas encarquilhados dos poetas do amor: «Primeiro passa a mulher empinando de grávida, com toucado. / Depois uma criança rosa, que é da melhor carne da perna. / Por fim, muito estafado, franzino e roxo de ferrugem, / um homem que se senta e pede um copo de café e leite. / Desejo-os a todos. / À mulher prazenteira pelos filhinhos, a ele / como a um brinquedo». É um epidíctico que, no seu expressionismo fisiológico, enjeita a função magnificante do elogio. A palavra crua exprime a carne crua, a melhor carne da perna, contaminada pelas radiações da ferrugem durante o parto das imagens sobrepostas. Pensamos na comicidade da poesia e nas imposturas da palavra poética. A satiríase satura a imaginação, fazendo explodir a comicidade à contrecoeur da dita poesia séria tão apreciada pelo gosto melífluo do «sanhudo leitor». Ela é, no fim de contas, uma doença da linguagem, um incontrolável mot d’esprit que, segundo as categorias de Freud, hesita entre o tipo obsceno e o tipo cínico. De facto, o sarcasmo burlesco desta letrilha sem estribilho fornece uma amostra significativa da perversão do lirismo pelo cinismo, com ou sem obsceno, na poesia de Emílio-Nelson.
Há dois tipos de cinismo em confronto, como mostrou Peter Sloterdijk na sua crítica da razão cínica: o verdadeiro, com cartas de nobreza filosófica, e o falsificado, invenção do racionalismo democrático. O cinismo moderno pertence ao segundo tipo, caído nos braços da falsa consciência que cura os sintomas depressivos tomando pílulas de sucesso consolador. Pelo contrário, o cinismo crítico, cuja etimologia grega reenvia para a ideia de cão, persegue a mentira que veste a verdade, digamos o belo que disfarça o feio, por meio da palavra que morde e do riso que infecta. É claro, a poesia melíflua aproxima-se do segundo tipo. Naturalmente, Emílio-Nelson segue acompanhado por dois cães de raça, Diógenes de Sinope e Rabelais, substâncias fundamentais da sua poética fisiológica. Daí que os seus versos e prosímetros sejam latidos e uivos, parrésias cáusticas da linguagem franca e do sermo quotidianus, profissões de derrisão e impudência contra o farisaísmo literário. Tal como Diógenes em Atenas, o poeta anda durante o dia pela cidade com a lanterna acesa na mão à procura do homem desnudo. Bufão: «De cão para homem, literalmente, de cão para homem». Um Sócrates enlouquecido pela sua eleutéria, sem dúvida. Prova-o a dispensa da mulher enquanto se satisfaz com a Ideia da fealdade que lhe castiga o corpo.
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Mescla de sátiro e canídeo, o poeta cínico fareja as entranhas da realidade em busca das sobras do tempo que alimentam um furioso pastiche textual de livro para livro. Mastigação e insalivação, nos seus rangidos casquinados, são máquinas retóricas transformando as sobras em metáboles digestivas que congestionam o trânsito hermenêutico. Eis a sátira do sátiro canino regressada às suas origens fisiológicas: a satura, o pot-pourri, a iguaria miscelânica servida por um gourmet que pratica a arte insaciável do pasticcio com uma originalidade sem igual. Avatar literário do gastrónomo Brillat-Savarin, autor oitocentista de Physiologie du Goût ou Méditations de Gastronomie Transcendante, promove uma arte poética dos paladares fortes, das matérias sápidas e da gustatio que glorifica as coisas e os seres — não pelo canto distanciado e higiénico, mas pelo contacto papilar e diogénico, sempre no encalço de um estado de osmose entre as paixões do espírito subjectivo e a objectividade fisiológica da Natureza, lá onde todo o elemento é um alimento e uma afirmação da vida contra as forças mortíferas do tempo. O gosto é pois uma paixão directamente imprimida pelos corpos tangíveis, uma energia fisiológica e uma sensibilidade táctil que discrimina os sabores sápidos e insípidos. Ora, quase tudo nesta poesia está impregnado de sapidez, mas de uma sapidez que exclui a doçura do sistema dos sabores elementares, porque o doce é o sabor fisiológico que sustenta a metáfora moral e estética do belo, o paladar mais primário da Natureza, o gosto característico da poesia melíflua e delambida. É manifesta a preferência pelos sabores salgados, amargos e ácidos — o «fervor ácido» de Polifonia entranhando «a maestria das formas» —, com modulações adstringentes e picantes que dão um travo bilioso à substância satírica e humoresca das imagens. Na arte como na vida, a predilecção por estes sabores representa uma prova de maturidade do gosto. Ela traduz uma abordagem voluptuosa das matérias orgânicas, que vitaliza a experiência do sensível e intensifica a fenomenologia da aisthesis.
Visto que o sabor extrai a sensação directa das coisas tangíveis na sua realidade viva, o gosto é a medida do Ser, uma fisiologia ontológica em que ser é comer, como no verbo latino esse, que agrega as duas significações. Neste sentido, a criação de Emílio-Nelson propicia a vivência linguística e poética de uma ontologia da degustação: a língua é o órgão superior do conhecimento, assessorado pelo aparelho fisiológico da digestão e da excreção, que dirige as suas operações gnosiológicas para a revelação de uma alma gástrica, a mais radical interioridade do Ser. Mas comer é aqui um conhecimento insaciável, submetido ao princípio do prazer libidinoso. Cedo se perverte em gula, o pecado mortal da alimentação, responsável pela Queda do Homem. Com efeito, o diferendo entre Deus e o Homem radica numa distinção alimentar, como assinalou Julia Kristeva em Pouvoirs de l’Horreur. Palavra de Deus: comer é conhecer, mas comer bem é comer só o bem e comer mal é comer o bem e o mal. Eva à la pomme é a heroína da rebelião humana e a inventora do gosto mais apaladado, a Musa de Emílio-Nelson figurando entre as árvores de um «florestal barroco» no limiar de Polifonia: «Maceração feculenta. Oleoso aroma. Ar acídulo». O gosto acidulado é o mal; saborear a malus pumila e comer a Natureza interdita é conhecer o pecado e a flagelação do tempo. Logo, o mal é a fonte da fealdade, tal como o bem é a fonte da felicidade. Não imites o mal, recomenda São João na terceira epístola, porque quem pratica o bem nasceu de Deus e quem pratica o mal não viu a Deus. Nascida do osso e da carne, Eva não pode senão praticar o mal, a sua natureza e vocação. O castigo divino é pois um contra-senso que não ilustra tão grande inteligência.
Se viver é engolir a natureza do mal, morrer é ser engolido pelo mal da Natureza. Da boca às entranhas, a metáfora canina da devoração estrutura uma topografia infernal que descreve a Queda do Homem pelas tubagens digestivas de uma mulher. A gula é de resto um dos tópicos da série «Tampo de Mesa (Bosch. Brueghel)», em A Coroa de Espinhos, composta a partir da Mesa dos Sete Pecados Mortais de Bosch, patente no Museu do Prado (que o poeta visitou várias vezes desde criança), com o contraponto hipergrotesco das gravuras de Brueghel sobre o mesmo tema. Pejada de vómitos e excrementos, a grotesquerie rabelaisiana de «Gluttony» representa a gula no extremo da sua paixão canibalesca, o que não deixa de evocar a tragédia sádica Tiestes, de Séneca (com menções pontuais em «Bufão» e «Evangelho de Hamlet»), onde Atreu se vinga do irmão Tiestes servindo-lhe como iguaria festiva pedaços culinários dos seus três filhos. Esta ideia do canibalismo sentimental reincide no poema «Avarice», com a justaposição blasfémica dos tópicos medievais do «Sagrado Coração» de Jesus e do «Coeur Mangé». Aqui, como em tantos outros momentos desta poesia, o efeito de horror não passa de um efeito intelectual que reclama uma leitura na posse de mediações culturais. O segundo tópico, Lo Cor Manjat em langue d’Oc, evocado por Boccaccio no Decameron, provém da lenda do trovador provençal Guilhem de Cabestanh, assassinado pelo marido da sua amante, Saurimonda, que comeu sem saber, tão deliciada quanto Tiestes, o coração poético do amado.
Apesar de tudo, Emílio-Nelson não é um poeta do coração. Poeta do sentimento na profunda acepção sensualista do termo, ele move-se de costas voltadas para a tradição da poesia sentimental. Poeta do entendimento na profunda acepção kantiana do termo, ele mantém relações de inimizade filosófica com a tradição da poesia cerebral. Talvez a sua essência resida na mistura explosiva de um Kant e um Sade, como gostaria o seu estimado Lacan: o entendimento ao serviço da constituição libidinal do mundo, a vontade como imperativo categórico de uma moral do prazer, o juízo de gosto devotado à finalidade sem fim de atingir o sujeito no gozo mais interior das suas faculdades sensíveis. O produto da mistura fundamenta uma arte poética da interioridade humana já não psicológica mas radicalmente fisiológica, lugar constitutivo de um humanismo fisiológico, orgânico e visceral, de uma complexidade nunca vista em poesia portuguesa, que reconcilia precariamente o homo higienicus e as suas matérias malditas. Mas o homo aestheticus está longe de ser um mero especialista em endoscopia; pelo contrário, é a bem dizer um Lúcifer iluminando a intimidade da matéria, com a missão de revelar a malícia dos objectos interiores em pinturas manchadas de morbidezza. Evidentemente, o homo diabolicus consiste na pura negação do artista de naturezas mortas que reduz as figuras repulsivas a uma paisagem sem ameaças. Por estas razões, o que torna Emílio-Nelson um poeta ímpar e singular é a sua resistência ofegante à sublimação do visceral e do nauseabundo, mesmo quando dá golpes de rins como um místico espinosiano para sorver os odores santificados do numinoso, sempre movido pela fascinação táctil da matéria nervosa do real e pela compenetração glandular do insuportável metafísico. Inundados de humores hipocráticos, os seus poemas são, deste ponto de vista, exutórios e emunctórios isentos da imagética artificiosa que caracteriza as metástases do decadentismo literário. O incipit do «Epitáfio» de Extrema Paixão, «Poeta excremental numinoso undir», condensa cripticamente toda a sua poemosfera. Indo por partes, vejamos de que maneira o escritor é um excretor, suspenso do seu complexo de Laocoonte, esmagado entre a repugnância e a fascinação.
Em divergência com as mitologias literárias, a cosmogonia de Emílio-Nelson começa na urina, a água da vida segundo a tradição medicinal. «Por mim bebo o meu vaso de urina», eis a uroterapia de Penis, Penis, no poema «O Festim». Buena orina y buen color, diz a letrilha gongórica, ainda que esta matéria da intimidade esteja associada ao simbolismo do mal como aqua imunda e humos obscenus. Nenhuma água limpa, nenhuma água fresca, nenhuma água benta divisamos na poesia do autor, porque tudo nela procura a purificação do bem farisaico, o pior dos males, a vergonha do próprio mal. Daí que o instrumento purificador por excelência seja um Ersatz blasfémico do hissope, um penis, penis aspergindo a matéria hidráulica sobre as ilusões da vida, num sonho de urofilia e ondinismo em que a ficção assume o aspecto de uma interminável micção. Com inteira evidência, as excreções renais constituem a matéria do riso nesta poesia diurética, tal como as lágrimas são a matéria do desespero na poesia sentimental. Mas convém desconstruir a aparência: as imagens urológicas não exprimem senão a alegria do mal, evocando as lágrimas de urina como matéria do riso desesperado que conhecemos da Histoire de l’Oeil de Bataille. Assim, ao incorporar a matéria aquática do riso, a satiríase burlesca perfuma a atmosfera com a catarse das suas substâncias tóxicas: o «ar acídulo» cobre a cidade e mistura-se com a graça do «Espírito de Deus» (série poemática de Queda do Homem) que paira sobre as misérias da terra quotidiana, por exemplo em «Domingo no Bairro»: «Passeia perto de casa o cão. / Encontro-o há anos no parque. / Num canteiro / Talvez culpa das rosas / O ar é todo urina».
O erotismo uretral reveste-se de uma ambivalência consagrada pela própria língua: uron designa a urina e o líquido seminal, objectos da ciência urológica. Nesta perspectiva, o hissope de Emílio-Nelson também representa um instrumento de disseminação das excreções espermáticas, entendidas como spiritus ou sopro cálido que vivifica a matéria. O «espírito de Deus» é o corpo pneumático que atravessa as coisas, o logos spermatikos dos estóicos, a razão seminal do Verbo que inspira a palavra com a lei da energia. Costuma-se colar o rótulo de libertino ao poeta enlouquecido pela razão espermática, mas hoje em dia, no tempo pascal dos ovos de Colombo, o conceito encontra-se assimilado numa espécie de inoculação moral que o relega para uma condição de inocuidade. Também sabemos que a personagem literária do libertino só raramente não esconde um puritano dentro de si, submerso numa aventura que mal se distingue de um Ersatz da realidade sonhada. Aplicar o conceito a Emílio-Nelson, neste contexto, seria porventura um anacronismo ridículo e um abuso de linguagem completamente inoperante. Em todo o caso, é de poesia que aqui se trata, importando antes de mais o modo como a matéria temática, cristalizada nas redomas da história da linguagem, adquire inauditas possibilidades de existência expressiva. É essa, bem entendido, a justificação da poética e da estética em todas as suas formas através dos tempos. Com maior ou menor consciência, qualquer criador esbarra no grande princípio da fecundidade, de que nenhum tema se livra impunemente: já tudo foi dito, o que importa é voltar a dizê-lo como se nunca tivesse sido dito. É essa maturidade fecunda que respira neste poeta da luxúria e do deboche, avesso à delicadeza sentimental dos cisnes como um sátiro em cio atraído pelo «grasnido do corvo» que atormenta «Os Céus e a Terra de Mantegna» em Sodoma Sacrílega e Poesia Vária.
«Belo é o estupro», escreve Emílio-Nelson em «Lechery», do citado «Tampo de Mesa». Com efeito, a sua carta de nobreza é um verso de Verlaine saído directamente de «O Mes Amants» para «Bufão»: «Ne métaphorons pas, foutons». Aquele poema é por sinal uma das suas bíblias poéticas, pela altíssima concentração dos seus temas predilectos e, sobretudo, pela atitude escabrosa e blasfematória que liberta a poesia dos compromissos morais e estéticos em que mergulham os discípulos do mesmo Verlaine rendidos ao verso «De la musique avant toute chose» e aos mandamentos de «Art Poétique». Não metaforizemos, pois, disseminemos o logos spermatikos pela noite que «vomita a metáfora da noite» (Noite Poeira Negra), bem longe da rhetorica christiana de Valadés que passa e repassa sobre o dorso da poesia «Um verniz de Metáfora / De tom suspenso, enlutado, / Reconfortando a Morte com o espírito de Deus que a sustém» (A Coroa de Espinhos). Chamar as coisas pelos nomes, restituindo a matéria fisiológica à imaterialidade do signo depurado, por meio de turpilóquios pitorescos e odoríferos, é meter em cena o que a lei moral da própria poesia acomoda fora de cena ou tolera com condições, o obsceno pornográfico que flagela a religião do sexo e a respectiva estética puritana do belo ideal. Hostil ao código débil das licenças poéticas, a turpitude séptica de Emílio-Nelson corrompe as delicadas regras da licenciosidade brejeira e a pulcritude asséptica da língua. Ela viola sem ponta de pudor todos os artigos do código penal da estética em nome da própria estética. Ela sugere que a estética não é uma cosmética, mas o seu contrário absoluto, e que a língua só é bela porque os próprios escritores se encarregam de a lavar e maquilhar. Por isso o poeta prefere, como declara na correspondência que trocámos, a «escabrosidade (de estilo, também sintáctica, de recônditos sentidos)» com o propósito de «celebrar o que de animal permanece no humano, por exemplo, os seus fluidos que até a publicidade humilha: ‘sentes-te suja?, usa…’». Mesmo se tais fluidos, e excrementos de toda a ordem, são utilizados nos produtos de beleza.
No bref langage das Ballades en Argot Homosexuel, de Villon, e do Pantagruel, de Rabelais, o pénis é designado por mal, instrumento de transmissão do prazer e da enfermidade. Esta ambivalência está presente na poesia de Emílio-Nelson. No pénis aloja-se um espírito de duas faces, erecto sobre os princípios do bem e do mal, simultaneamente catarse e catárase, purgativo e maldito. Semelhante ambivalência chega ao ponto de projectar uma telescopagem dos dois princípios sexuais, em «Sol Negro», de O Anjo Relicário, a partir de colagens vocabulares sugeridas pela ambiguidade andrógina dos Pistils de Mapplethorpe: «tulipaglande, de jarrão erecto e íntimo, / de uma flor distendida, de tufos, a / florpúbis, a pénisflor (de prepúcio, / de pistilos)». Entretanto, não podemos confundir o penis com o pénis. O penis de Penis, Penis, livro imprescindível na Priapeia portuguesa, é o penis latino, que representa ao mesmo tempo, além do pénis, a brocha, o pincel e a cauda dos quadrúpedes, numa amplitude que abrange as esferas do trabalho, da arte, do sexo e da fecalidade. É com ele que o poeta faz a lavoura da poesia, lavrando, estrumando, regando, sonhando e semeando a língua. As matérias do cosmos organizam-se numa poética profunda, não numa cosmética de superfície. Fiel à origem antropológica do conceito, o poeta cria o seu poiein, triunfalmente e a céu aberto, na terra fértil da Natureza.
Como bom agricultor da língua, Emílio-Nelson troca de bom grado o belo bouquet de flores, símbolo da poesia desde Meléagro de Gádaros, pelo burlesco «bouquet de couves» que aparece em «Opera Commedia», de Bufão. Fascina-o a morte minuciosa da beleza às mãos inclementes do tempo. Por exemplo, na série «De tal Modo Olhámos», de O Anjo Relicário: «A rosa de / Ronsard, / Retiro-a do soneto. / Murcho-a nas mãos». Ou na série «A Pompa da Morte», de Claro-Escuro ou a Nefasta Aurora: «Rosa intocável / De orvalho / E pus. / Sangrando. / No suporte desabrochado / A mão é a rosa que uiva. / Entontece impiedosa / Em decomposição». Na cruel meditação de Bataille, as flores envelhecem sem honestidade como velhas mulheres excessivamente pintadas. Com raízes no mau cheiro do estrume, vivem um leve idílio perfumado, mas cedo acabam por regressar às suas origens estercorárias, como as couves, assim exprimindo o escárnio do mundo natural em relação às sublimações da beleza e aos valores da elevação. É graças a essa natureza sacrílega que elas merecem o fascínio do poeta, «carregador de estrume» ornado «de trampa na lapela» em Penis, Penis. Mas o mundo natural e nauseabundo não se confina ao reino do stercus sedimentado. Quando a focalização enunciativa se concentra nos excreta intestinais, a sua escatologia glorifica o «obreiro, intestino por inteiro» de «Tampo de Mesa», liquefeito na viscosa histeria da matéria fisiológica.
Numa leitura psicanalítica, os caprichos coprofílicos constituiriam regressões a um estado de indistinção entre o sexual e o excrementício. Ou, então, o fascínio do feio teria correspondência numa espécie de nostalgia da infância manifesta em coprofagias como a deste verso de Vida Quotidiana e Arte Menor, extraído do sintomático «Autobiografia»: «Em vez de um lírio, as minhas fezes na boca». Mas esta leitura resultaria empobrecedora, porque absorta nas imediações de uma obra complexa de forma alguma assimilável in toto a uma noção de poesia latrinesca. Na sua dinâmica retórica de sátira do quotidiano em contraponto com o drama existencial e religioso, os confeitos excrementícios, aparentemente sem conceito, são as fundações de uma grotescomaquia presidida pelo princípio da vida material e corporal, no sentido de Bakhtine, que no rebaixamento dos valores espirituais persegue a vivência epifânica da divindade afinal nascida no meio das palhas e do estrume. Inter faeces et urinam nascimur, nascemos entre fezes e urina, dizia Santo Agostinho, apesar da pompa com que nos cobrimos, acrescentava Voltaire. Eis a verdade moral, aplicável a todo o Filho do Homem, que contesta a mentira da representação clássica por intermédio do realismo grotesco. Neste tipo de código estético, a corporalidade raramente é exposta num estado de prontidão sempre disponível para o congresso galante. Tudo nela é fisiologismo repulsivo e drama realista que, se não convida às idealizações assépticas da religião do sexo e da sociedade do belo, serve porém de suporte a uma poesia das forças vitais e da vida escondida dos corpos que figura entre as mais importantes ocupações da realidade quotidiana. Portanto, em coerência com os vários níveis já analisados, prefiro de longe a leitura estética de uma regressão da percepção à sensação, dispositivo intensificador do sentimento absurdo da existência pela mimese sem atenuantes do que ela tem de mais verosímil e insuportável: a pura exposição do negativo como exterioridade sensível que faz ressoar a verdade do Ser. Humores, urinas e fezes fundamentam uma experiência ontológica radical que dá acesso directo, na expressão do autor de La Nausée em L’Être et le Néant, à qualidade reveladora do Ser. Um odor ontológico que Artaud explicou com simplicidade no poema «La Recherche de la Fécalité», do livro Pour en Finir avec le Jugement de Dieu: «Là où ça sent la merde / ça sent l’être». Não é outro o motivo filosófico que justifica a jubilação de Emílio-Nelson em Penis, Penis: «Bendita seja! A merda. Ânus».
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Também os habitantes do numinoso jogam com confeitos excrementícios. No Livro de Ezequiel, o Senhor impõe ao Filho do Homem, recluso da iniquidade do mal, uma dieta de tortas de cevada cozidas em fogo de excrementos humanos. Emílio-Nelson devolve à divindade o código sagrado do gosto como ultima ratio da injúria em Sodoma Sacrílega e Poesia Vária, um novo Penis, Penis, a meu ver uma obra-prima que leva a histeria sexual e excrementícia aos mais altos cumes poéticos do paroxismo blasfémico. Cristo, «dejecto de Deus», é aclimatado às ambiências sodomíticas em «El Grand Masturbador», pleno de reverberações dalinianas, e surge travestido de cordeiro analiticamente decomposto na justaposição paronomástica «ânus-Agnus» de «Esfíncter», a partir de um efeito silogístico que podemos associar, com maior ou menor consonância, não só a Sade mas também ao Livro de Ezequiel: «Na relação anal a merda é o castigo de Deus». Mas é no desconcertante «Ícone, Excremento» que descobrimos o centro aglutinador da mística excrementícia, retomando o postulado inscrito no verso «Poeta excremental numinoso undir» (o hápax resulta da aférese de «fundir»): «A luz do ícone pestilento aparenta a reverberação. O excremento sobrepõe-se à cabeça maciça do oiro». Oiro e excremento, fé e fezes — ou faeces, na versão culta ou eufemística de Bufão —, convergem para um estado fusível e dissipativo em que vida e morte deixam de se distinguir: «Vida morta, procuro-a na luminosidade do excremento (da fé)». O gosto alcança aqui o limite do dégoût, um desgosto estético carregado de positividade espectral. Nos objectos abjectos, a mística do gosto parece tocar uma promessa de infinitude pela mortificação dos sentidos. O poeta acerca-se enfim do seu centro nervoso, dividido entre o cálculo racional e o espasmo febril. Antiplatónico, mas incapaz de resistir ao fascínio da iconologia cristã, ele representa o Homem dilacerado até às vísceras pelo desacordo insolúvel entre a razão e a sensibilidade. Nele assistimos ao drama do Ser desgostado com o mundo e com o fantasma da hierarquia celeste, respondendo ao flagelo da lei moral com a revolta dos sentidos por meio da crueldade transformada em imperativo categórico. O gosto apura-se no limite do desgosto, lá onde a physis desperta como critério de verdade. O gosto, na fórmula aguda de Valéry, é feito de mil desgostos.
E no entanto o poeta não pára de cismar. Um Hamlet enfermo da «palidez do pensamento», the pale cast of thought: «Quando li Hamlet a palidez do pensamento despojou-me de todo o orgulho. Sou agora cruel, Deus sabe, prostrado, lavado em lágrimas, de joelhos, cruel» (A Palidez do Pensamento). Mas abrem-se fendas no mundo, imperceptíveis, com acesso aparente ao numinoso. É o milagre da presentificação artística, um pacto estético com o diabo. Tudo se envolve, desde Polifonia, numa atmosfera teológica anticlerical com ressaibos baudelairianos e regianos, mas com raízes genuínas no Adolescente Agrilhoado de José Marmelo e Silva, lido na primeira juventude. Uma atmosfera litúrgica e ecfrástica, impregnada de matérias sujas do tempo, poluída pela ignomínia deliciosa da profanação e da blasfémia. Templos, capelas e criptas, altares e relicários, molduras e entalhes, restauros e caliças, tudo isto é uma imensa iconografia luzindo nas manchas douradas uma promessa de excremento. Paradoxo sensível habitado pelo mal, a arte do bem é portanto o subsolo da poesia de Emílio-Nelson, a estesia sinestésica de uma contradição apaixonada. Odi et amo.
São as figurações do feio que mais seduzem o poeta na arte cristã. Com efeito, sabemos desde Wackenroder que o cristianismo cultivou maciçamente, depois dos gregos e antes dos românticos, as representações do doloroso e do horrível, com uma finalidade pedagógica que ensina a reconhecer as raízes do mal pela contemplação dos martírios, do massacre dos inocentes, das punições infernais e, sobretudo, do flagelo de Cristo coberto de escárnio. Inocência e brutalidade constituem os pólos éticos que organizam uma estética fundada no contraste violento e no pathos destruidor. Tais representações comprovam que Cristo veio à terra para incarnar a fealdade mórbida da paixão. O que nelas se glorifica é o caos e a morte, as chagas e as escoriações, a pose do torturado, o sofrimento poluidor, a estase do cadáver emagrecido gerando uma infinita estesia, as cicatrizes do tempo eternamente abertas. Enfim, a expressão sensível da Ideia do mal que tanto indigna o platonismo estético de Hegel e que faz as delícias do Marquês de Sade. Mas toda a tragédia se repete como farsa, no conhecido aforismo de Marx. Com o culto romântico do feio, a expressão estética do mal não tarda a converter-se em paródia virtuosa do bem. Direi mesmo, com o Oscar Wilde de The Picture of Dorian Gray, que o feio se transforma numa das sete virtudes mortais. Ora, é justamente neste clima tremendum et fascinans que nasce e amadurece a sensibilidade estética de Emílio-Nelson. Como na contemplação da rosa de Ronsard, o seu olhar clínico, enquanto órgão da consciência cínica, apaixona-se profundamente pela «beleza que sofre», frase feliz que descreve as lacerações sanguinolentas do «cadáver nu» em «San Sebastiano».
Cristo é o nu inclinado descendo da cruz ou estendido sobre a pedra sepulcral. No quadro de Mantegna Cristo Morto, imitado por Il Sodoma e evocado em A Cicatriz do Tempo, A Visão do Antigo e Sodoma Sacrílega e Poesia Vária, um cadáver nu de feições grosseiras e plebeias, com um leve sudário sobre as pernas, dispõe-se a meio da tela em contre-plongée, de baixo para cima, exibindo em primeiro plano as plantas dos pés perfuradas. Esta imagem sem precedentes viola os princípios estéticos do decoro e da conveniência ao tratar um tema nobre em ângulo inferior, tal como sucede na Camera degli Sposi do mesmo Mantegna, coroada de anjinhos impúdicos, que o poeta elegeu para ilustração da capa de Humoresca. Mas o aspecto fisiológico, quotidiano e estremecedor das imagens de Cristo maculadas de serosidades exprime-se de forma incomparável nas pinturas de Grünewald e Caravaggio. O pintor italiano motiva, aliás, um poemeto de celebração da estética barroca do feio na série «Cristo Morto», do livro A Cicatriz do Tempo: «Em Caravaggio o nu dá a Deus / Um molde canhestro e / De amargor. / Brutal o rosto do homem, hirto, / A ofender».
Dificilmente poderíamos esperar de Emílio-Nelson uma poesia do Natal, da Quaresma, da Aleluia, da Ressurreição. Toda a iconologia cristã se concentra no drama da Paixão e na Sexta-Feira Santa, dia da morte e do jejum que a gula carnavalesca sistematicamente transgride. A parodia sacra converte o riso de Diógenes em risus pascalis, adicionando um elemento burlesco ao homem que não ri. Por exemplo, em «Bufão»: «De pernas e nariz arqueado, braços retorcidos, / Boca babada de gordura, gracejos, / Queixo pesado pelo marfim dos dentes, / Corcunda mais parecida com abóbora. / […] / E todo ele, buffone, e toda a Coroa à volta dele». A Coroa de Espinhos é prefigurada desde cedo, num crescendo que culminará no «Evangelho de Hamlet», em contre-plongée comediante, com o príncipe na pele de «Cristo escarnecido, supliciado». Em sucessivas modulações que prolongam vias abertas nos primeiros livros, Emílio-Nelson evolui no sentido de uma apurada dramatização do lirismo satírico, pondo ao serviço da entoação coreográfica uma vasta gama de recursos característicos da sua escrita em mosaico: justaposições elípticas, desfechos abruptos, síncopes anacolúticas, embutidos parentéticos e apartes maliciosos. Esta evolução reformula-se, com «Opera Commedia» e «Evangelho de Hamlet», numa dramaturgia bufa e cocasse, descarnada e escarninha, extenuada até à lividez pelo jogo polifónico de prótases, acmes e apódoses que suporta uma entoação sarcástica e uma taquicardia turbulenta inconfundíveis. Daí que o processador central das operações poéticas seja exactamente a polifonia de tons descontínuos e subtons alucinogénios, estruturada numa espécie de pontilhismo distorcido que a todo o instante sujeita a composição a uma ameaça de decomposição. Do ponto de vista retórico e estético, trata-se do regime burlesco como operador da incongruência discursiva entre as naturezas do estilo e do assunto. À imagem de Mantegna na tela Cristo Morto, o poeta cria de livro para livro efeitos subversivos de dissonância entre valores nobres e valores baixos, com correspondência directa nas colisões, em contre-plongée, entre bem e mal, belo e feio, sublime e grotesco, angelismo e satanismo, numinoso e excrementício, louvor espirituoso e injúria sexual. O título remático da primeira recolha, Polifonia, é de facto a chave desta poética lúdrica, prometida ao estado estético como gozo livre da sensação e da ideia, em aglomerações furiosas e empastes tonais, não raro fora de tom, que se comprazem num festim dionisíaco religiosamente devotado à degradação das axiologias dominantes.
Teatro do riso, do «riso como raiz da tristeza», da tristeza como raiz da alegria e da alegria como raiz do mal, eis o que pode ser dito da poesia de Emílio-Nelson, girando à volta de um verso de «Segunda Arte Poética» e de A Visão do Antigo. Como Rollinat, o poeta poderia responder-nos: «Je ris du mal qui me dévore». O mal que o devora é o «mal absoluto» (título de um poema do mesmo livro), o mal radical de Kant que assombra Cristo e Hamlet, porque a natureza do Homem não é senão o mal sem alegria. Não há poesia sem esta intuição arcaica, mas é impensável uma poesia do mal que não se despenhe nos abismos de uma teodiceia negativa. Conhecer o mal sem alegria, ser o insecto da alergia do mal, redundará sempre no maior mal de não poder agir sobre ele, com ele ou contra ele. Todo o conhecimento, ensina-nos Hamlet, acabará por se perder sem que o mundo se agite por um segundo. A vida é uma natureza morta excessivamente pensada, e só nos resta modular a inacção transformando a tragédia na comédia monstruosa que desconcerte o próprio desconcerto. O riso é a alegria do mal porque representa, nas palavras de Kant, a súbita transformação em nada de uma tensa expectativa. Um «nada todo» grávido de matéria explosiva, como num poema de A Coroa de Espinhos. Não o tudo-nada da «alegria do mal» de Aristóteles e Santo Agostinho, a inveja do alheio e a satisfação no pecado, mas a «alegria ignorada» de Emílio-Nelson no disperso «A Alegria do Mal» (Saudade, 4, Amarante, Junho de 2003). Uma alegria ignorada que a si mesma se ignora, passando ligeira como leves sombras pelo teatro do mundo, talvez a alma fisiológica de que se anima a existência.
Que fazer do hino à alegria do bem, tumor do tempo, senão a sátira à alegria do mal, humor do tempo? Bem e mal são pensamentos que conspiram contra a tristeza e a alegria, e só a alegria do mal e a tristeza do bem podem afrontar o Ser na transparência da sua obscuridade. Para além do bem e do mal, existe uma alegre tristeza que brota do gosto pela matéria explodindo na alma, uma gula engolida pelo jejum da paixão, uma vingança do mal contra o tempo e do bem contra o eterno, um Cristo mutante que finalmente ri da sua desgraça. E o nada devora tudo quanto passa e o todo passa o nada em tudo quanto devora. E assim nasce uma das poéticas mais originais da poesia portuguesa. E assim se inventa a poesia dos anos oitenta que nunca existiu segundo as mais abalizadas autoridades. E assim termina o meu José Emílio-Nelson explicado às crianças.
Luís Adriano Carlos
Revista Triplov
Setembro de 2024