Fala da Magna Mater

 

AMADEU BAPTISTA


EDITORIAL

Por Maria Estela Guedes

 

Conta Leonardo Boff, numa das suas crónicas (1), que se desfez em lágrimas ao penetrar na selva amazónica, no curso de uma missão relacionada com os seringueiros. Chico Mendes, seringueiro e ambientalista, seu companheiro de viagem, perguntou o que se passava, ao que ele respondeu que sentira ali, na selva, a presença viva da mãe, falecida havia mais de quarenta anos, e de quem sentia muita saudade. Ao que o seringueiro assentiu, declarando que a floresta é mãe, e, como mãe, trouxera a Leonardo Boff a lembrança da dele.

Isto para dizer que a poesia de Amadeu Baptista, ligada à floresta apenas pelo suporte de papel, também a mim traz a lembrança da minha mãe. O que sentia e sinto ainda pela minha mãe, postos de lado os sentimentos usuais? Anos passados sobre a perda, vejo com admiração e respeito o que até há pouco não tinha visto, e creio ser o que diagnostica toda a mãe, todas as mães: abundância, alegria por oferecer aos filhos, mesmo quando pouco tem para lhes dar. A mãe dá de comer, ela é como a Cibele que em Roma veio a chamar-se Magna Mater, ela é como Artemísia, representada por vezes com vários seios, alusões à fertilidade própria de deusas agrárias e da caça, resumindo, relacionadas com a fartura de alimento. No nosso tempo, a Magna Mater é Gaia, a Terra, como aliás reconhece Leonardo Boff na referida crónica.

Abundância de alimento, aconchego de braços, abrigo na casa, junto ao fogo, eis o que a meu ver define a mãe. A nossa mãe, que pode ser pobre, mas a imagem que temos dela é a do que nunca acaba no frigorífico, da muita e diversa coisa boa para comer nos armários, da fruta sobre a mesa, de toda a sorte de utensílios e panelas, e dos jogos infinitos de mantas, cobertores e lençóis nos gavetões das cómodas e no profundo mistério das arcas. Nunca nada se esgota, ela é inesgotável, fértil, tudo sabe fazer, desembaraça as mais difíceis situações, ela, a nossa Grande Mãe.

Retrato de Amadeu Baptista por Margarida Santos. In: Danos patrimoniais.

Magna Mater é a poesia de Amadeu Baptista, fértil, inesgotável, luxuriante, diversa – é muito importante a diversidade, o conseguir avançar do grande para o pequeno, do autobiográfico para o social, do altamente metafórico para o realismo de uma descrição chã. Porém chã, também a terra o é, a Grande Mãe, Gaia, Magna Mater, Cibele ou Deméter, ela tem muitos nomes porque são muitas as nossas mães e todos os povos cultuam a imagem da deles.

Não vale a pena querer provar as minhas afirmações com a citação de versos ou enumeração das obras, isso fazem, e muito bem, os autores convocados para este tomo da Revista Triplov. Apenas repetiria as suas ideias, descobertas e palavras, e decerto com menos propriedade. Faz parte deste tomo de Amadeu Baptista uma antologia que, no original que recebi, em Word, contava com 200 páginas. Ela é suficientemente generosa para nos dar uma ideia correta da magnitude da sua poesia.

Anoto entretanto que até no comentário à sua obra Amadeu Baptista mergulha na abundância e fertilidade, bastando atentar no aconhego dos ensaios e notas de leitura que constam do índice deste tomo da Revista Triplov.

Um dos comentadores de Danos patrimoniais, Rui Almeida, regista numericamente  uma das provas de fecundidade dessa obra. Com efeito, conta perto de mil páginas a sua antologia pessoal, saída nas Edições Afrontamento em 2023, com centenas de poemas, nos géneros e formas mais variados, tocando inúmeros temas. A quantidade não é irrelevante, se for divertida, entendamo-nos: se cobrir uma ampla panóplia de géneros e espécies, tal como a sobrevivência de Gaia (nossa) depende da biodiversidade.

Não nos resta senão concluir o que tantos críticos concluiram: que Amadeu Baptista é um grande poeta, seja qual for o prisma pelo qual o observemos, e eu limitei-me aqui a assinalar os atributos de uma poesia plural e poderosa como a Magna Mater, com as suas cheias e secas, os seus rios e plainos, as suas searas ondulantes como os versos, crepitando como cascatas pelas encostas dos poemas.

Se por distraída leitura alguém interpretar as minhas palavras como atribuição de carateres maternos ao poeta, quando eu os atribuí, sim, à sua poesia, bom, é possível que esteja certa a errada interpretação.

Amadeu Baptista é  mais um fator de enriquecimento da plataforma Triplov, que já conta com o contributo de alguns dos maiores valores em língua portuguesa, sem distinção de nacionalidades nem de géneros.

 

(1) A ternura da Magna Mater – Leonardo Boff


Revista Triplov . Dezembro de 2024

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