Extremo poema

 

 

 

 

 


JOSÉ EMÍLIO-NELSON


 José Emílio-Nelson é escritor e editor do CEJMS. Nasceu em  Espinho, 1948. Licenciado em Economia pela Faculdade de Economia da Universidade do Porto. Publicou poemas e ensaios em revistas literárias portuguesas e estrangeiras. Prepara a reunião da sua colaboração crítica em jornais e revistas literárias e ensaios sob o título: MAIS DO QUE LER.


Por Maurício Salles Vasconcelos

 

O poema transborda sua pauta. O que ali flui não indica a naturação da verbalidade musicalizada exercida em um espaço ideal ao virtuosismo demiúrgico de um artista. Como também, a figuração decorrida em diferente andadura rítmica da sintaxe corrente não emoldura uma súmula culminadora da tradição com a clave conciliadora da arte reverente ao fluxo presentificador do tempo.

Algo se esbate, extravasa, à medida que configura a precisão da espacialidade e do timing poemático. Para melhor desmedi-lo – poema que nunca cessa. Engata o próximo ciclo, o novo livro (em época visualizada para datar o volume, o acervo, o peso e a pátina do transcorrido a serviço da agilização de dados, da formatação do referendum, por meio de arquivos tão recorríveis quanto imateriais).

Vivo fica o cortejo denso, não-reconciliado (citando-se o belo filme de Straub), do Theatrum Philosophicum projetado por Foucault quando de sua análise do deleuzeano Différence et Répétion – Uma mascarada de conceitos-nomes se desenrola em mútua confrontação por veios não categorizados do repto sempre iminente de extemporaneidade que perpassa o âmbito da filosofia. Uma disciplina, um saber, transcorridos na história “inexoravelmente em retorno” enquanto “máscaras de máscaras (…) (Foucault, 1970: 908).

Da mesma forma, não se encerra a escrita em urna bem trabalhada – assim nomeou a autoridade da assinatura do poema moderno o estudioso Steven Connor em sua análise do pós-modernismo na literatura –, quando se lida com repertório de vasta gradação culturalizada. Nunca se nega a proveniência do que se lê nas páginas de Emílio-Nelson em igual medida da refiguração da referência através de rubricas (não configuradas necessariamente como citações), por seu caráter de marcação. Para mais intensificadamente transpô-las a uma realidade experimental de cortejo – encenação – agonística – baile em que não se ocultam as máscaras sobre máscaras. Entre a apresentação dos rostos (rubrico Helder como matrix lusa de uma contemporaneidade apreendida de forma extremamente diferencial por Emílio-Nelson) e o inevitável discursar da boca bilíngue (aludo aqui à outra via poética de Portugal, Ruy Belo; de maneira a pontilhar o campo e o contexto em que se movimenta a Beleza Tocada 1).

 

Rubricas (mesmo sem parêntesis). Logo tomam a cena (quer dizer, a leitura desentranhada, transportada, para lá do referendo, aqui/ato recorrente)

 

A língua mede insuflando ardor.

Antes do verso, é o grego perverso.         (Emílio-Nelson, 2016: 53)

 

Importante é destacar num poema, que lida com a proveniência do poético e a primordialidade da Grécia, mencionando mesmo a estrofe sáfica, seu desalinhamento de um propósito recriador de padrões culturais.

Sem compor “A visita” dentro do padrão métrico que tornou notável Safo, como também praticaram poetas latinos da Antiguidade, Emílio-Nelson se atém, na remissão ao que há de fundante no gênero de literatura em que realiza seu projeto de escrita, à ótica revirada com que o traço de origem se enlaça com aqueles de língua e linguagem, numa vasta história de signos em desabrida circulação. Assim, atualiza a tradição numa tradução propiciadora de aportes nada reverentes à manutenção das primícias, unicamente como baliza retórica, histórica. Ao dessacralizar tal culto, o poeta não deixará de potenciar a antecedência sáfica no universo escritural em outra acepção. Embora, seja imprescindível o desmonte das postulações altaneiras do cultismo, do culturalismo, com foco na revivência da corporalidade subjacente à decantação da Grécia.

Um dos infantes, atraente, imberbe,

        (As mãos no lume da paixão extinta)

        (Regozijo-me pela narração)

        Revela segredos desses contactos na penumbra

        Dos comentários a versos generosamente gabados

        Pelo sisudo poeta que visita incrédulo

        Gaba-lhe a estrofe sáfica e até a rima

        Imperfecta que nas calças encontra sempre

        Que a timidez o procura e a métrica empolada

        A língua mede insuflando ardor.

        Antes do verso, é o grego perverso. (Idem)

O que resta da lírica de Safo, reconstituída por fragmentos, se encaminha no presente pela sintonia com suas convocações, seus chamamentos e renominações de um concerto cosmológico depois da épica. Ao compasso do corpo, não mais instalando o sentido heroico desbravador das odisseias consonante com a palavra primordial (tese de Auerbach, em Mimesis) restituída enquanto ordenação civilizatória, fundadora da territorialidade grega. Ainda que se desmontem a aura, o decoro, favoráveis à corroboração representativa da ideia e do cenário clássicos, para o autor de “A visita” perdura do lastro arcaizante, intensamente pontuado em sua criação, o que de Safo, por exemplo, comparece como ativação de um circuito em que se adensam emanações e polarizações dos afetos, tal como especula Anne Carson, em seu estudo Eros the Bittersweet.

A distância da pessoa amada é invocada na mesma intensidade com que se apreende a destruição do desejo, simultânea à amplidão condutora dos apelos a uma equivalência espiritualizante guiada pelos choques/contatos entre corpos e cosmos. O legado de uma mítica se refaz no torvelinho das sensações afloradas em primeiro plano. Não sem razão, um conhecedor da civilização e da cultura gregas como André Bonnard realça uma poética centrada nos “efeitos físicos do desejo”, ao produzir uma “arte de coisas e acontecimentos” (Bonnard, 1970: 99).

Importa ver e vivenciar as potências e as partilhas da poesia sáfica, num momento da Antiguidade em que a cosmicidade se redesigna a partir dos sentidos desabridos numa expansão plurificadora de enlaces e transportes entre muitos planos relativos à escrita na Grécia (depois da cíclica oralidade com seus odisseus, aedos, corifeus cantantes, fundantes vaticinadores de terras e céus). Perduram os efebos, os vestígios infantes – tal como apropria José Emílio-Nelson – enquanto regozijo para outra narração (não-mais epicizante) no instante mesmo em que as mãos tocam o lume “da paixão entinta)”

Parêntesis para o que escapa ao encapsulamento na culturalização da poesia. Porque a morte do desejo na cultura predomina como um vetor subreptício, contudo inflamante. Torna-se gradativamente descortinadora do corpus multivariado e concêntrico de certa cena tão expositiva quanto exploratória dos regramentos líricos (de “A Átis” a “As catadoras de piolho”, de Rimbaud, mais contemporaneamente de “21 de fevereiro”, de Ana Cristina César, a “A visita” de José Emílio-Nelson). Sem que haja supressão do cerne emissor e contendor de forças sempre atualizadas em campos de linguagem que os versos de J.E-N testemunham e tensionam. Versos indagadores da verbalidade (com sua metafísica de sopro e substância), mais e mais tornados linhas, rumo a proseamentos e contornos fabulativos diversos – na sequência da produção do poeta, como ocorrem em Putrefacção e Fósforo; Caridade romana; A Abelha e as Aranhas de Swift, entre outros. Pois recepcionam no interior de seu processar criativo os trâmites e códigos do literário como problematização producente. Até ser formada uma espécie de central exterior/extrema aos incursos feitos como premência – em tempo – de uma revisitação dos motivos definidores de várias épocas, inerente ao fazer poesia.

Não há, ao acaso, a visível ênfase nas variáveis das origens do que se lê como dado instantâneo de uma arte sempre celebradora de sua contingência – do estado dos signos e das coisas (poderia acrescentar Foucault, em “Linguagem e Literatura”) – A poiesis se presentifica enquanto faz desenrolar seu potencial de canto (“canto de si mesma”, da celebração em se processar/produzir linguagem, aponta “A consagração do instante”, de Octavio Paz). Ou senão, Geoffrey Hartman, em “A voz da lançadeira”: a língua a partir da qual a poesia move sintaxe e compasso, na realidade de sua laboração, se encontra emudecida – por força da mímica de um outro dizer, de maneira a fazer emergir a maquinaria plurilinguística (rumor de uma multiplicativa engrenagem) em que entretece sua fiação. Encontra-se no ponto mutuamente imbricado de lançamento/enlace engenhado por tal maquinismo o que se nomeia como poesia.

 

1       Este é o título da Poesia Completa do autor, tal como se configurou e foi reunida em 2016.

 

In EM TEMPO/EXTREMO POEMA (JOSÉ EMÍLIO-NELSON)  Mauricio Salles Luís, Edições Esgotadas, 2022

 


Revista Triplov

Setembro de 2024

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