BREVE PANORAMA DO SURREALISMO EM PORTUGAL
Direção e organização de Rui Sousa
MIGUEL FILIPE MOCHILA
É sabido como os autores da órbita surrealista construíram uma linhagem precedente, em que se inscrevem nomes como os de Raul Brandão, Gomes Leal, Ângelo de Lima, mas também os de Cesário Verde ou Teixeira de Pascoaes, Mário de Sá-Carneiro, Raul Leal, Mário Saa e, mais directamente, Vitorino Nemésio, Edmundo de Bettencourt e Adolfo Casais Monteiro. Ora a omissão de Eugénio de Castro (1869-1944) como referente explícito, no seio do nosso surrealismo (mesmo considerando as já referendadas relações, desde logo, com alguns dos mencionados pré-surrealistas, nomeadamente com Gomes Leal, Raul Brandão, Cesário Verde ou Sá-Carneiro), é bastante sugestiva no que respeita à evolução da nossa modernidade literária. Por um lado, estamos perante um autor cuja dimensão fracturante no seio da história literária nacional é facilmente reconhecível,como precursor de um novismo situado entre o decadentismo e o simbolismo, o que poderia granjear só por si a simpatia dos grupos surrealistas.
Uma visita ao percurso e aos livros de Eugénio de Castro mostrar-nos-ia a configuração de uma propensão polemista, a influência de um horizonte de internacionalismo poético e cultural consolidado, a apologia da marginalidade em relação aos cânones vigentes por parte de uma produção jovem que se encerrou em círculos configurados como antagónicos face à ordem dominante, a tentação da libertação da palavra no ensejo do versilibrismo, de dinamitação dos princípios composicionais configurados anteriormente, a defesa da relação entre a poesia e as outras artes.
São apenas alguns aspectos que decerto colocariam Castro na precedência directa ou indirecta das tendências surrealizantes de gerações vindouras. Acontece, no entanto, que uma outra série de características causaria a desconfiança das mesmas: a sua defesa de um aristocracismo artístico, de uma literatura para os raros apenas, da autonomia da arte em relação à vida, enfim, princípios que lhe permitiam ser tão conservador política e sociologicamente quanto revolucionário em termos estéticos, seguramente não colheriam a simpatia de autores que, naquilo a que se deu em chamar vanguardismo, viriam a recusar justamente o isolamento exclusivista da arte como domínio à margem da vida. Além disso, a própria evolução interna da obra de Castro, que erroneamente cristalizaria nos termos da nossa crítica como revelando um “simbolismo escolar”, um “fundo parnasiano absorvente”, um “sincero academicismo”, que abandonaria a propensão revolucionária e polemista dos seus livros oitocentistas para regressar a um certo convencionalismo formal, sempre insuficientemente estudado e taxativamente rotulado como sendo uma “involução”, acabariam por bloquear uma mais atenta aproximação dos nossos surrealistas.
Todo um condicionamento biográfico que subjaz ao perfil conservador de Eugénio de Castro, bem como a sua progressiva consolidação como figura institucional (viria a ser sócio correspondente da Academia das Ciências de Lisboa, da Real Academia Espanhola, da Real Academia de Belas Letras de S. Fernando e da Academia Brasileira de Letras, Doutor honoris causa das universidade de Lyon, Strasbourg e Salamanca, membro estrangeiro da Academia Real da Língua e Literatura Francesas da Bélgica, etc.), perante a qual decerto fomentaria a desconfiança dos surrealistas, nem por isso devem fazer-nos ignorar a preponderância do autor na configuração de uma modernidade estética de que o surrealismo é porventura o elo culminante, se resgatarmos a visão da modernidade como um continuum de rupturas, como propôs Octavio Paz.
Cabe começar, nesse sentido, por recordar as condições concretas que marcaram a sua produção oitocentista, que nos traria uma sucessão de livros determinantes para a configuração de uma literatura em que colheremos alguns dos referentes, quer institucionais quer temáticos, do que viria a ser a nossa modernidade estética e, muito em particular, o surrealismo. Quando, por volta de 1888, e depois de ter já publicado livros de uma juvenilidade convencional, na retórica enfatuada de um certo neo-ultra-romantismo ainda determinante nas produções “novas”, assume a corajosa destruição dessa mesma produção, ao cancelar a publicação de Novas Poesias, não obstante conter este livro as assinaturas laudatórias de João de Deus e Columbano, o jovem Eugénio de Castro revela, como observou a este propósito José Carlos Seabra Pereira, uma invulgar determinação e honestidade de propósitos. Estas qualidades dão-se na proporção exacta de um risco que, desde o prólogo de Oaristos (1890), assume a ruptura com a tradição literária portuguesa, a contrapelo dos poderes literários instituídos, o que lhe valeria enormíssimas resistências e, estamos em crer, se tão bem compreendido por eles como foi por Ana Hatherly em O espaço crítico – do simbolismo à vanguarda (1979), a simpatia dos nossos surrealistas.
Esta coragem institucional, essa marginalidade auto-propugnada e efectivamente exercida, inscrevem Castro como fundador de um princípio de ruptura que viria a dar o tom, pelo culto da originalidade e pela crítica das convenções, aos movimentos subsequentes. A recusa de cristalização de fórmulas composicionais expressa em Oaristos e Horas (1891) faria com que o autor permanentemente inovasse no seu percurso literário, recusando rótulos e defendendo o individualismo, contra a literatura de escola, recusando ser apelidado de simbolista ou de instrumentista (à René Ghil), fazendo da modernidade mais uma atitude que uma corrente estética delimitada, num princípio tão afim da posição surrealista.
Assim, podemos começar por compreender que Eugénio de Castro se adiantaria ao nosso surrealismo na relação confitiva com uma literatura convencional, canónica e instituída, exercendo um princípio ruptural fortemente activo, sobretudo na sua produção da primeira metade da década de 1890, com os já mencionados Oaristos e Horas, mas também com Silva, Belkiss, Interlúnio, todos de 1894, e ainda Sagramor, de 1895, recusando o estigma da cristalização da escrita como receituário, defendendo uma libertação da palavra que seria determinante para a nossa modernidade estética. A ele, não exclusivamente mas em larga medida, devemos por isso a determinação de processos estilísticos com fortuna futura, através da defesa de uma poética unitiva de matéria-forma, de uma concepção oficinal da linguagem poética, da valorização da componente semântica e material do texto literário, da valorização da literariedade e do estranhamento, de uma estética do vago e da sugestão, da heterometria, da incorporação da tradição na modernidade, mediante recuperação das raízes parnasianas e dos modelos clássicos, entre outros rasgos fecundos.
Ora, à mencionada comunidade de posicionamento em face do sistema literário, em relação às propostas das dissidências surrealistas, que lhe permitiria um tal capital de assumida e consciente inovação, cabe acrescentar ainda uma sincronia no que respeita a certas temáticas e problemáticas de fundo. Sob o signo genérico do pessimismo que diversas vezes reconheceu dar o tom à sua obra, e que associa ao seu interesse por Schopenhauer, o novismo de Castro é, como é próprio da modernidade literária de que foi propulsor, um projecto de resistência à modernidade civilizacional cujo colapso diagnosticava. Contrao tecnocratismo e o convencionalismo moral da sociedade burguesa, o positivismo e o cientismo, o naturalismo e o parnasianismo, a sua produção decadentista assume, portanto, um proto-abjeccionismo (plasmado pelo estranhamento veiculado pela imagística do insolitamente repulsivo, macabro e disforme) que trilha a sua proximidade à experiência surrealista portuguesa, a qual resulta da disforia face a uma realidade estrangulada pelos paradigmas civilizacionais industrializados, contra os quais se instaura a faculdade contraditória da arte da palavra como autêntico movimento contra-cultural.
Renova-se a especulação metafísica, advinda de um idealismo alicerçado nas figuras tutelares do romantismo alemão, com destaque para Hegel, influído agora por Schopenhauer e Hartmann e pelo intuicionismo de Bergson, não sem a influência de Freud, a qual une assim directamente à experiência surrealista, na condenação do olhar laboratorial e documental, da literatura jornalística do naturalismo. Enfim, toda uma experiência que tem o seu paralelo evidente na recusa que o surrealismo faz de um contexto opressor e ditatorial, tanto em matéria política, pelo censório Estado Novo, quanto estética, pelo exercício do formulário neo-realista.
Também a literatura decadentista é, antes de mais, e exactamente onde resvala para o gosto do abjecto e da nevropatia, como no primeiro Castro, proto-abjeccionista, uma arte que aponta directamente ao coração de trevas que é o real finissecular e que, com ele rompendo umbilicalmente, assume um manifesto precário, instintivo e até ingénuo, da recusa de uma realidade decadente, perante a qual se assume como prática de libertação. Tudo se joga então em termos derivativos, donde a sedução pelos exotismos, pelo sonho como plano não de revelação da verdade do real, mas como irrealidade ensimesmadamente verdadeira, pelo cenário medievo e profusamente exótico, pelas raras jóias, perfumes e ervas que resultam quase numa espécie de alucinogénico excitante, de visões do hashish que um seu título precoce preconizava. Tudo varia, pois, em face do real e origina um estado, de doença ou alucinação, transgressoramente diverso de um mundo em colapso.
A propensão para o imoralismo e para a perversão – que Breton celebra ainda no seu Manifesto Surrealista e que em Castro emerge de modo premente em Oaristos, Horas, Belkiss ou Interlúnio – assume-se como sinal do papel libertário da arte por via da imaginação, essa rainha das faculdades, segundo Baudelaire. A propensão libertária da poética simbolista pode ser assim entendida à luz daquela estética da negatividade defendida por autores como Adorno ou Marcuse, afirmando-se, como foi caro ao surrealismo, o texto literário no seu dom corrosivo e subversor.
O próprio estetismo com que se tem chutado para canto grande parte da poesia finissecular portuguesa, e a de Castro em particular, é na verdade o sintoma de um novo paradigma de relações entre a arte e a vida, que se formula em termos muito semelhantes àqueles que Manuel da Silva Gaio utilizaria em prefácio a Poesias Escolhidas (1889-1900) de Eugénio de Castro para descrever a poética do autor de Oaristos: arte e vida são entendidas como campos mutuamente implicados, sendo no entanto o culto da beleza que na primeira se joga valor primordial ao qual a própria vida, sancionada na sua precariedade, se deve submeter.
Além disso, não podemos esquecer que, como observava já Gourmont, há uma comum influência de Freud, a partir do papel do inconsciente, na produção da obra simbolista, tal como sucederia com o surrealismo. Quando lemos um texto como «Um cacto no pólo» (Horas), de Eugénio de Castro, não podemos deixar de reconhecer nele uma certa presciência desse surrealismo:
Julguei que se tinha levantado um obelisco no meio da praça; e que o obelisco dava uma sombra azul; e que tinham acendido um fogão no quarto húmido; e que tinham dado alta ao doente.
Julguei que nascia o sol à meia-noite; e que uma boca muda me falava; e que esfolhavam lírios sobre o meu peito; e que havia uma novena ao pé do jardim da Aclimação.
Uma boca muda me falou; mas o obelisco, de ténue que era, não deu sombra; e o fogão não aqueceu o quarto húmido; e o doente teve uma recaída.
E o clawn entrou, folião, na Igreja; fez jogos malabares com os cibórios e os turíbulos; e tornou a nevar; e após os brancos etésios, soprou o mistral forte.
E na alcova branca entrou a Dama expulsa, cujo corpo é d´âmbar e cera e todo recendente de um matrimónio aromal de mirra e valeriana, a Dama dos flexuosos e vertiginosos dedos rosados.
E seus cabelos de czarina eram claros como a estopa e finos como as teias de aranha; e seu ventre alvo, de estéril, era todo azul, todo azul de tatuagens.
E a Educanda fugiu do Recolhimento; e com a Dama expulsa passei a noite em branco; e a noite foi toda escarlate.
E no dia seguinte, em vez dos sacros livros, que de ordinário me deleitam, li Schopenhauer, e achei Arthur Schopenhauer setecentas vezes superior a todos os doutores da Igreja.
Encontramos aqui o reconhecimento de uma espécie de sono da razão, em que as pulsões emergem a partir da recaída do doente. O texto está eivado dos fundos das secretas confissões de um sonho do inconsciente individual plasmado numa espécie de cruento e voluptuoso delírio, impregnado de sugestão de êxtases eróticos, de instintos libertos, com uma inversão total da realidade, por um sub ou sobre-real (com um sol de meia-noite, uma boca muda falando), projecções do desejo (com fálicos obeliscos em praças projectando sombras azuis, lírios desfolhados sobre o peito, predadores cabelos como teias de aranha) das figuras interditas (a Dama expulsa, recendente de aromas, de vertiginosos dedos rosados, ventre alvo, estéril e azul de tatuagens; a Educanda em fuga entregue ao êxtase passional, de uma noite em branco toda escarlate), da rasura das convenções e do cumprimento dos interditos (o clawn invadindo a Igreja, brincando com o sagrado, instaurando um novo princípio – veja-se a simbologia do tornar a nevar como apocalipse/instauração de uma era –, bem como a blasfema defesa de Schopenhauer por sobre os doutores da Igreja).
Esta representação do subliminar surge, com efeito, como observou José Carlos Seabra Pereira, a partir de uma poética carregada de imagens preciosistas ou execráveis, do grotesco e do ritualismo fetichista, em poemas como «A Cisterna Fiel», «Pelas Landes, à noite» ou «Balada» (de Oaristos e Horas), «Asilo», «Baile de Máscaras», «Nocturno», «Semper Eadem», «Os Tísicos», «Superbia», «Interlúnio» (de Silva e Interlúnio), ou no surgimento de imagens do interdito de um fantástico terrorífico e espectral em Belkiss, do delírio sonhado em Constança (1900), etc. É em larga medida por esta pista que se desenhará, em termos temáticos, a história da relação de Eugénio de Castro com as tendências surrealizantes. Da configuração de uma poética da ruptura em face, quer dos modelos precedentes, quer da realidade circundante, sob o signo da abjecção, à afinidade temática em torno do universo subliminar e pulsional, há já na literatura de Eugénio de Castro sinais do que viria a ser a experiência dos futuros Abjeccionismo e Surrealismo.
REVISTA TRIPLOV
série gótica
Miguel Filipe Mochila
É sabido como os autores da órbita surrealista construíram uma linhagem precedente, em que se inscrevem nomes como os de Raul Brandão, Gomes Leal, Ângelo de Lima, mas também os de Cesário Verde ou Teixeira de Pascoaes, Mário de Sá-Carneiro, Raul Leal, Mário Saa e, mais directamente, Vitorino Nemésio, Edmundo de Bettencourt e Adolfo Casais Monteiro. Ora a omissão de Eugénio de Castro (1869-1944) como referente explícito, no seio do nosso surrealismo (mesmo considerando as já referendadas relações, desde logo, com alguns dos mencionados pré-surrealistas, nomeadamente com Gomes Leal, Raul Brandão, Cesário Verde ou Sá-Carneiro), é bastante sugestiva no que respeita à evolução da nossa modernidade literária. Por um lado, estamos perante um autor cuja dimensão fracturante no seio da história literária nacional é facilmente reconhecível,como precursor de um novismo situado entre o decadentismo e o simbolismo, o que poderia granjear só por si a simpatia dos grupos surrealistas.
Uma visita ao percurso e aos livros de Eugénio de Castro mostrar-nos-ia a configuração de uma propensão polemista, a influência de um horizonte de internacionalismo poético e cultural consolidado, a apologia da marginalidade em relação aos cânones vigentes por parte de uma produção jovem que se encerrou em círculos configurados como antagónicos face à ordem dominante, a tentação da libertação da palavra no ensejo do versilibrismo, de dinamitação dos princípios composicionais configurados anteriormente, a defesa da relação entre a poesia e as outras artes.
São apenas alguns aspectos que decerto colocariam Castro na precedência directa ou indirecta das tendências surrealizantes de gerações vindouras. Acontece, no entanto, que uma outra série de características causaria a desconfiança das mesmas: a sua defesa de um aristocracismo artístico, de uma literatura para os raros apenas, da autonomia da arte em relação à vida, enfim, princípios que lhe permitiam ser tão conservador política e sociologicamente quanto revolucionário em termos estéticos, seguramente não colheriam a simpatia de autores que, naquilo a que se deu em chamar vanguardismo, viriam a recusar justamente o isolamento exclusivista da arte como domínio à margem da vida. Além disso, a própria evolução interna da obra de Castro, que erroneamente cristalizaria nos termos da nossa crítica como revelando um “simbolismo escolar”, um “fundo parnasiano absorvente”, um “sincero academicismo”, que abandonaria a propensão revolucionária e polemista dos seus livros oitocentistas para regressar a um certo convencionalismo formal, sempre insuficientemente estudado e taxativamente rotulado como sendo uma “involução”, acabariam por bloquear uma mais atenta aproximação dos nossos surrealistas.
Todo um condicionamento biográfico que subjaz ao perfil conservador de Eugénio de Castro, bem como a sua progressiva consolidação como figura institucional (viria a ser sócio correspondente da Academia das Ciências de Lisboa, da Real Academia Espanhola, da Real Academia de Belas Letras de S. Fernando e da Academia Brasileira de Letras, Doutor honoris causa das universidade de Lyon, Strasbourg e Salamanca, membro estrangeiro da Academia Real da Língua e Literatura Francesas da Bélgica, etc.), perante a qual decerto fomentaria a desconfiança dos surrealistas, nem por isso devem fazer-nos ignorar a preponderância do autor na configuração de uma modernidade estética de que o surrealismo é porventura o elo culminante, se resgatarmos a visão da modernidade como um continuum de rupturas, como propôs Octavio Paz.
Cabe começar, nesse sentido, por recordar as condições concretas que marcaram a sua produção oitocentista, que nos traria uma sucessão de livros determinantes para a configuração de uma literatura em que colheremos alguns dos referentes, quer institucionais quer temáticos, do que viria a ser a nossa modernidade estética e, muito em particular, o surrealismo. Quando, por volta de 1888, e depois de ter já publicado livros de uma juvenilidade convencional, na retórica enfatuada de um certo neo-ultra-romantismo ainda determinante nas produções “novas”, assume a corajosa destruição dessa mesma produção, ao cancelar a publicação de Novas Poesias, não obstante conter este livro as assinaturas laudatórias de João de Deus e Columbano, o jovem Eugénio de Castro revela, como observou a este propósito José Carlos Seabra Pereira, uma invulgar determinação e honestidade de propósitos. Estas qualidades dão-se na proporção exacta de um risco que, desde o prólogo de Oaristos (1890), assume a ruptura com a tradição literária portuguesa, a contrapelo dos poderes literários instituídos, o que lhe valeria enormíssimas resistências e, estamos em crer, se tão bem compreendido por eles como foi por Ana Hatherly em O espaço crítico – do simbolismo à vanguarda (1979), a simpatia dos nossos surrealistas.
Esta coragem institucional, essa marginalidade auto-propugnada e efectivamente exercida, inscrevem Castro como fundador de um princípio de ruptura que viria a dar o tom, pelo culto da originalidade e pela crítica das convenções, aos movimentos subsequentes. A recusa de cristalização de fórmulas composicionais expressa em Oaristos e Horas (1891) faria com que o autor permanentemente inovasse no seu percurso literário, recusando rótulos e defendendo o individualismo, contra a literatura de escola, recusando ser apelidado de simbolista ou de instrumentista (à René Ghil), fazendo da modernidade mais uma atitude que uma corrente estética delimitada, num princípio tão afim da posição surrealista.
Assim, podemos começar por compreender que Eugénio de Castro se adiantaria ao nosso surrealismo na relação confitiva com uma literatura convencional, canónica e instituída, exercendo um princípio ruptural fortemente activo, sobretudo na sua produção da primeira metade da década de 1890, com os já mencionados Oaristos e Horas, mas também com Silva, Belkiss, Interlúnio, todos de 1894, e ainda Sagramor, de 1895, recusando o estigma da cristalização da escrita como receituário, defendendo uma libertação da palavra que seria determinante para a nossa modernidade estética. A ele, não exclusivamente mas em larga medida, devemos por isso a determinação de processos estilísticos com fortuna futura, através da defesa de uma poética unitiva de matéria-forma, de uma concepção oficinal da linguagem poética, da valorização da componente semântica e material do texto literário, da valorização da literariedade e do estranhamento, de uma estética do vago e da sugestão, da heterometria, da incorporação da tradição na modernidade, mediante recuperação das raízes parnasianas e dos modelos clássicos, entre outros rasgos fecundos.
Ora, à mencionada comunidade de posicionamento em face do sistema literário, em relação às propostas das dissidências surrealistas, que lhe permitiria um tal capital de assumida e consciente inovação, cabe acrescentar ainda uma sincronia no que respeita a certas temáticas e problemáticas de fundo. Sob o signo genérico do pessimismo que diversas vezes reconheceu dar o tom à sua obra, e que associa ao seu interesse por Schopenhauer, o novismo de Castro é, como é próprio da modernidade literária de que foi propulsor, um projecto de resistência à modernidade civilizacional cujo colapso diagnosticava. Contrao tecnocratismo e o convencionalismo moral da sociedade burguesa, o positivismo e o cientismo, o naturalismo e o parnasianismo, a sua produção decadentista assume, portanto, um proto-abjeccionismo (plasmado pelo estranhamento veiculado pela imagística do insolitamente repulsivo, macabro e disforme) que trilha a sua proximidade à experiência surrealista portuguesa, a qual resulta da disforia face a uma realidade estrangulada pelos paradigmas civilizacionais industrializados, contra os quais se instaura a faculdade contraditória da arte da palavra como autêntico movimento contra-cultural.
Renova-se a especulação metafísica, advinda de um idealismo alicerçado nas figuras tutelares do romantismo alemão, com destaque para Hegel, influído agora por Schopenhauer e Hartmann e pelo intuicionismo de Bergson, não sem a influência de Freud, a qual une assim directamente à experiência surrealista, na condenação do olhar laboratorial e documental, da literatura jornalística do naturalismo. Enfim, toda uma experiência que tem o seu paralelo evidente na recusa que o surrealismo faz de um contexto opressor e ditatorial, tanto em matéria política, pelo censório Estado Novo, quanto estética, pelo exercício do formulário neo-realista.
Também a literatura decadentista é, antes de mais, e exactamente onde resvala para o gosto do abjecto e da nevropatia, como no primeiro Castro, proto-abjeccionista, uma arte que aponta directamente ao coração de trevas que é o real finissecular e que, com ele rompendo umbilicalmente, assume um manifesto precário, instintivo e até ingénuo, da recusa de uma realidade decadente, perante a qual se assume como prática de libertação. Tudo se joga então em termos derivativos, donde a sedução pelos exotismos, pelo sonho como plano não de revelação da verdade do real, mas como irrealidade ensimesmadamente verdadeira, pelo cenário medievo e profusamente exótico, pelas raras jóias, perfumes e ervas que resultam quase numa espécie de alucinogénico excitante, de visões do hashish que um seu título precoce preconizava. Tudo varia, pois, em face do real e origina um estado, de doença ou alucinação, transgressoramente diverso de um mundo em colapso.
A propensão para o imoralismo e para a perversão – que Breton celebra ainda no seu Manifesto Surrealista e que em Castro emerge de modo premente em Oaristos, Horas, Belkiss ou Interlúnio – assume-se como sinal do papel libertário da arte por via da imaginação, essa rainha das faculdades, segundo Baudelaire. A propensão libertária da poética simbolista pode ser assim entendida à luz daquela estética da negatividade defendida por autores como Adorno ou Marcuse, afirmando-se, como foi caro ao surrealismo, o texto literário no seu dom corrosivo e subversor.
O próprio estetismo com que se tem chutado para canto grande parte da poesia finissecular portuguesa, e a de Castro em particular, é na verdade o sintoma de um novo paradigma de relações entre a arte e a vida, que se formula em termos muito semelhantes àqueles que Manuel da Silva Gaio utilizaria em prefácio a Poesias Escolhidas (1889-1900) de Eugénio de Castro para descrever a poética do autor de Oaristos: arte e vida são entendidas como campos mutuamente implicados, sendo no entanto o culto da beleza que na primeira se joga valor primordial ao qual a própria vida, sancionada na sua precariedade, se deve submeter.
Além disso, não podemos esquecer que, como observava já Gourmont, há uma comum influência de Freud, a partir do papel do inconsciente, na produção da obra simbolista, tal como sucederia com o surrealismo. Quando lemos um texto como «Um cacto no pólo» (Horas), de Eugénio de Castro, não podemos deixar de reconhecer nele uma certa presciência desse surrealismo:
Julguei que se tinha levantado um obelisco no meio da praça; e que o obelisco dava uma sombra azul; e que tinham acendido um fogão no quarto húmido; e que tinham dado alta ao doente.
Julguei que nascia o sol à meia-noite; e que uma boca muda me falava; e que esfolhavam lírios sobre o meu peito; e que havia uma novena ao pé do jardim da Aclimação.
Uma boca muda me falou; mas o obelisco, de ténue que era, não deu sombra; e o fogão não aqueceu o quarto húmido; e o doente teve uma recaída.
E o clawn entrou, folião, na Igreja; fez jogos malabares com os cibórios e os turíbulos; e tornou a nevar; e após os brancos etésios, soprou o mistral forte.
E na alcova branca entrou a Dama expulsa, cujo corpo é d´âmbar e cera e todo recendente de um matrimónio aromal de mirra e valeriana, a Dama dos flexuosos e vertiginosos dedos rosados.
E seus cabelos de czarina eram claros como a estopa e finos como as teias de aranha; e seu ventre alvo, de estéril, era todo azul, todo azul de tatuagens.
E a Educanda fugiu do Recolhimento; e com a Dama expulsa passei a noite em branco; e a noite foi toda escarlate.
E no dia seguinte, em vez dos sacros livros, que de ordinário me deleitam, li Schopenhauer, e achei Arthur Schopenhauer setecentas vezes superior a todos os doutores da Igreja.
Encontramos aqui o reconhecimento de uma espécie de sono da razão, em que as pulsões emergem a partir da recaída do doente. O texto está eivado dos fundos das secretas confissões de um sonho do inconsciente individual plasmado numa espécie de cruento e voluptuoso delírio, impregnado de sugestão de êxtases eróticos, de instintos libertos, com uma inversão total da realidade, por um sub ou sobre-real (com um sol de meia-noite, uma boca muda falando), projecções do desejo (com fálicos obeliscos em praças projectando sombras azuis, lírios desfolhados sobre o peito, predadores cabelos como teias de aranha) das figuras interditas (a Dama expulsa, recendente de aromas, de vertiginosos dedos rosados, ventre alvo, estéril e azul de tatuagens; a Educanda em fuga entregue ao êxtase passional, de uma noite em branco toda escarlate), da rasura das convenções e do cumprimento dos interditos (o clawn invadindo a Igreja, brincando com o sagrado, instaurando um novo princípio – veja-se a simbologia do tornar a nevar como apocalipse/instauração de uma era –, bem como a blasfema defesa de Schopenhauer por sobre os doutores da Igreja).
Esta representação do subliminar surge, com efeito, como observou José Carlos Seabra Pereira, a partir de uma poética carregada de imagens preciosistas ou execráveis, do grotesco e do ritualismo fetichista, em poemas como «A Cisterna Fiel», «Pelas Landes, à noite» ou «Balada» (de Oaristos e Horas), «Asilo», «Baile de Máscaras», «Nocturno», «Semper Eadem», «Os Tísicos», «Superbia», «Interlúnio» (de Silva e Interlúnio), ou no surgimento de imagens do interdito de um fantástico terrorífico e espectral em Belkiss, do delírio sonhado em Constança (1900), etc. É em larga medida por esta pista que se desenhará, em termos temáticos, a história da relação de Eugénio de Castro com as tendências surrealizantes. Da configuração de uma poética da ruptura em face, quer dos modelos precedentes, quer da realidade circundante, sob o signo da abjecção, à afinidade temática em torno do universo subliminar e pulsional, há já na literatura de Eugénio de Castro sinais do que viria a ser a experiência dos futuros Abjeccionismo e Surrealismo.