AMADEU BAPTISTA
Por Luís Aguiar
Sei que perdoar-me-ão, mas não irei dissertar sobre este livro, ou fazer qualquer tipo de análise literária sobre esta obra poética que, na minha opinião, está entre o sublime e outro grau de perfeição que eu, humildemente, não sei classificar. O poeta, ensaísta e crítico literário António Carlos Cortez já o fez de uma forma muito apurada e que poderão comprovar no prefácio deste livro.
O próprio Amadeu Baptista, na cerimónia de entrega do «Prémio Literário Maria Amália Vaz de Carvalho 2020/2021», instituído pela Câmara Municipal de Loures e que distinguiu esta obra, entre muitas a concurso, fez um discurso muitíssimo clarividente sobre a construção deste trabalho. Permitam-me corrigir, não foi um discurso, antes um ensaio, e que ensaio sobre os meandros da construção poética, sobre os passos e a dor da criatividade, sobre a majestosa condição que é a de suportar as raízes da poesia na própria carne, e não é por acaso, que certa vez o autor de «Um dia na Eternidade» afirmou, numa conversa de café, que «a poesia é algo sério, demasiado sério, há quem morra por ela». De acordo, Amadeu, creio que este pensamento, que também é um sentimento transversal a muitos poetas, está perfeitamente visível no poema «Dafne» desta Grécia escrita, permite o trocadilho, na página 32, onde se lê: «Depois da sombra, a luz./ Depois de Dafne, o loureiro sagrado.»
«Escrito na Grécia», é um trabalho poético, como o próprio título sugere, alusivo à Grécia, onde podemos contemplar poemas sobre alguns dos seus poetas, deuses, filósofos ou até de algumas ilhas. Até aqui tudo bem, o problema surge noutro contexto, Amadeu Baptista tem em si mesmo as raízes e a seiva dos poetas gregos, de poema em poema atravessamos a história, o suor dos escritores gregos, a maresia das ilhas, a viagem que nunca mais termina e que o próprio poeta também não quer que termine e talvez por isso, quando este visitou a Grécia, apenas escreveu com os olhos, e fê-lo com o propósito de não perder um único detalhe, uma só gota de sol, fosse qual fosse a circunstância. Tudo isto faz-me recordar uma frase de Balthus, onde este afirma que «é preciso desenhar, desenhar sempre, desenhar com os olhos, quando não se tem um lápis.» Por vezes, as mãos não são necessárias à construção poética. Há um livro, entre muitos de Amadeu Baptista, visto que o mesmo é um escritor profícuo, que me toca sem que para isso sejam precisos dedos, falo da obra «Paixão», trabalho poético que o autor ditou e não escreveu, por razões que apenas a ele dizem respeito. É essa a génese deste poeta, a de ditar o que vem do que é divino, tendo sempre presente a fragilidade da condição humana.
Amadeu Baptista nasceu no Porto em 1953, vive há vários anos em Mafamude, gosta do café Angola – eu também gosto, sobretudo quando o vou visitar –, e tem um novo livro para me oferecer, e fá-lo como se me mostrasse um novo filho, que a vida, muitas vezes astuta e maldosa, ofereceu-lhe com uma certa lucidez (lê-se gravidez) no sangue e na alma.
Amadeu Baptista é um poeta dos anos 80, «As Passagens Secretas», o seu primeiro livro, data de 1982. Na minha opinião, o autor faz parte da última geração de ouro. É, indubitavelmente, um poeta que ainda produz com uma qualidade intensa, singular, que lê vorazmente, que se rodeia por uma biblioteca ímpar, com livros raríssimos, com edições que consolam o tacto, a visão e os demais sentidos. Mas tudo isto não lhe chega, escrever é apenas uma das suas manifestações poéticas, o Amadeu também pinta e fotografa como só um poeta sabe fotografar, com metáforas implícitas nas imagens, sem estar preocupado com edições ou outro tipo de intervenções na fotografia.
A poesia e a arte não são meros objectos decorativos, não tenhamos ilusões.
Há um poema de Yannis Ritsos, traduzido por Eugénio de Andrade, presente no livro «Trocar de Rosa», publicado em 1981, pela extinta editora Limiar, na pág. 99, em que o poeta grego afirma o seguinte:
«Há certos versos – às vezes poemas inteiros –
que eu próprio não sei o que querem dizer. O que
ignoro
retém-me ainda. E tu, tu tens razão em interrogar.
Não interrogues.
Já te disse que não sei.»
Regressando ao «Escrito na Grécia», confesso que há versos, poemas inteiros, que eu próprio não sei o que querem dizer e que me levam a interrogar, não o poeta, mas o próprio poema. Amadeu Baptista demonstra-o muitíssimo bem no poema intitulado, curiosamente, «Ritsos», página 89, talvez um dos melhores deste livro, e que me fez perceber que apesar das dificuldades temporais, há poetas que estarão sempre ligados por algo inexplicável, metafísico ou simplesmente porque essa ligação tem o respeito, a admiração e o amor na sua construção mais primária, mais pura:
«RITSOS
Importa a tesoura das unhas que está perdida
e iremos encontrar enferrujada
enterrada no quintal. O botão
da camisa, também perdido,
também importa, esse que por descuido
foi parar ao lixo e nunca mais
há-de ser visto. Importa a caneca
partida e a panela furada de que os camaradas
beberam sopa, uma água esverdeada
que três feijões compunham. Importa
a estátua nua e importam as cabeças
duras que uivam aos ventos desviantes
e as ameaças à nossa humanidade.
Importa a erva daninha, o sanatório,
os loucos, os ossos brancos
dos cavalos de Aquiles. Importa
o espinho cravado na garganta
que nos faz abrir muito a boca
para cantar.»
E por falar sobre o autor de «Helena» e «Orestes», este defende que «se a vida é mentira,/ a morte também o é».
Deixo o desafio, que é antes uma provocação – tive o cuidado e o discernimento de ir ver a lista dos autores galardoados com o Prémio Camões e não compreendo, com a maior das honestidades, qual a razão do nome de Amadeu Baptista não figurar nessa lista. O prémio em questão explica, de forma breve, que o mesmo serve para consagrar anualmente “um autor de língua portuguesa que, pelo valor intrínseco da sua obra, tenha contribuído para o enriquecimento do património literário e cultural da língua comum”.
Muitos dos que estão aqui presentes conhecem a obra e o património literário e cultural que Amadeu Baptista produziu nos últimos 40 anos. A riqueza do seu legado é inquestionável. É imperativo valorizar quem merece ser valorizado. No tempo correcto. No momento oportuno. Esse momento é agora.
Luís Aguiar .
30 de Setembro de 2022
Revista Triplov . Dezembro de 2024