NICOLAU SAIÃO
Tributo
Pórtico
Com uma vistosa mestria na prosa, a lembrar os mestres da língua que chegaram depois dos diamantes lapidados de José Agostinho de Macedo, Nicolau Saião usa neste seu livro o verso de forma muito mais reservada e lírica, num registo pessoal, delicado e intimista, que lhe serve para amar o mundo a sós através do canto e sem necessitar das palavras que são justificações. António Cândido Franco, 16-5-2019
E DEPOIS EU ESCREVI
Por Jules Morot
Trad. JOÃO GARÇÃO
Às vezes é fácil olhar em volta e ver o quê? Talvez tudo, talvez nada. O grande e sonoro mundo das existências desesperadas, prazenteiras ou sujeitas à confirmação dos momentos de angústia. Aquilo que, não sem certa dose de ingenuidade, se costuma convocar sob o nome de quotidiano.
Então, por vezes, aparece a escrita. As escritas, porque aqui trata-se de existir em diversos tons.
Mas de que falo eu? Desse excelente amigo um pouco amável, um pouco cínico, que nos conta histórias para rir ou para chorar? Ou da senhora amargurada que nos revela histórias íntimas e muito cómicas à força de serem trágicas? Não, seria demasiado simples, demasiado irrisório virem desinquietar-nos com semelhantes ninharias. As nossas não são épocas amenas, o próprio ambiente nos prega partidas inesperadas, uma parede que cai, um braço ensanguentado no vão duma porta, um vulto inquietante lá no princípio do bosque, aí mesmo, no sítio onde um renque de dálias nos chama à beleza de um fortuito momento de plenitude.
E depois há o cansaço. O desapego de muitas deambulações. Algumas figuras mortas que de súbito nos pesam como montes de cinza, nos estorvam como matagais insustentáveis.
E então, de repente, há a poesia.
Não a que se consegue depois de um paciente exercício de interiores bem habitados, nem sequer a que nos aparece, sem que a esperemos, convocada por indizíveis rituais de amorosa persistência, mas a que de repente explode e nos aguarda e nos atira um olhar de viés e se cola aos nossos passos como se daí dependesse tudo, a nossa vida, a nossa morte, todo um conjunto de poderosas nostalgias em que nos sentimos senhores e servos, o mar e a estepe, a certeza de que tocámos muitas coisas proibidas. Por exemplo, a sageza. Ou, o que é o mesmo, a rota que nos leva do riso desgarrador ao silêncio mais melancólico.
Nestes poemas coexistem uma raiva e uma ternura muito peculiares. Elas são feitas de ritmos em que se misturam coisas grandes e coisas pequenas, a amargura, a alegria, os desencontros, a devastação de um mundo, o medo e a surpresa indemne, o conhecimento que bem pode por vezes visitar-nos. Mas nunca o desencanto. E nunca a indiferença.
Mas também o amor. Se não em existência, pelo menos em potência. Ou em expectativa.
Ou em perfil, ainda que feito só de penumbra ou, até, de irrisão. Porque somos feitos de muitas ausências, será bom que nos precatemos. À solta, muitos animais incoerentes arrastam-se dissimuladamente na nossa direcção. Há que responder-lhes, não deixando para trás numerosas e sólidas figurações com que nos possam fixar. Neste terreno de suspeitas e escaramuças, conservemos a nossa boa estrela.
Porque o silêncio vazio tenta por vezes situar-nos e nós fomos feitos para as vozes. Ainda que tenuemente, ou melhor, sem vermos que rente ao nosso corpo corre já uma outra luz, ou outro sopro de vento que nos dará, compassivamente, alguns minutos mais para nos acrescentarmos à existência. Porque se trata de existir tanto quanto possível em plenitude.
E ela, acreditai-me, significa.
La Jolle (Toulouse), Junho de 2008
Introdução
PORTALEGRE
A cidade, com o tamanho que lhe é próprio, cresce na noite até ao alvorecer. Os sonhos dos habitantes das casas imersas na escuridão que pouco a pouco se desvanece, vão apanhar o dia pela sua cabeleira de claridade. As cidades têm nome. Secreto ou simbólico, ele é contudo o nome que as caracteriza, dado pelos séculos ou pela inspiração do Mundo.
A cidade… Como um pássaro numa árvore da aba da Serra a vejo agora, a podemos ver agora. Cidade de ruas estreitas onde os desejos e os sentimentos, as amarguras e os dias felizes, os antigos passos cadenciados de carruagens desaparecidas, hábitos desaparecidos, rostos e figuras desaparecidas, deixaram uma sombra de nostalgia. Cidade de coisas novas envolta em passado e ruídos novos, cidade de monumentos onde o espírito cruzou o espírito, onde a grandeza se fixou em pedra, em madeira, em arabescos, em cores indistintas. Cidade que roda como um rosto amado num espelho de casas e nuvens rumorosas. Cidade de torres, cidade de vistas largas onde por vezes a paisagem alarga as vistas curtas. Por estas ruas és feita de passos cadenciados, estas ruas que circundam o teu corpo cravejado de portas, de lugares fecundos, de ausências, de desejos e espantos, de naturalidade e fé, de bondade e de maldade, do sereno existir duma cidade. Povoação de telhados confusos, cruzados, de chaminés com seus fumos, com seus lutos, com seu adivinhar de varandas e ninhos de gente. Cidade das ruas velhas e sonolentas, ásperas, doces e pérfidas, ruas quotidianas sempre diferentes, sempre abertas aos ventos, ao sol, ao revoar das lembranças daqueles que te sentiram com eles dando a volta ao mundo em que existes e te perpetuas. A velha rua dos Potes, do Comércio, a Corredoura, a rua dos Canastreiros, os teus largos diversos – numa casa só se podem adivinhar. Perene regra de vida que é esta em que me é definido o teu povo anónimo e mulheril, viril e pobre, rico de semelhanças com o povo de outrora, de outras terras, da terra mãe que é a terra do homem do dia-a-dia, eterno no seu rumorejar cordial e absorto, com bocas abertas para o riso e a maledicência, para os nomes da ironia e da piedade. Cidade de árvores citadinas, civilizadas, mas que não perderam ainda o seu ar de mistério natural. Cidade de portas vermelhas, de gaiolas e engaiolados, de roupas e gente pendurada, de frutos e de tostões, de igrejas e misericórdias, de impiedade e destino certo, cidade audaz e nobre, loquaz e linguareira, cidade de nomes de gente que a gente inventou, cidade onde os quartéis se entrecruzam com a memória do passado, heroicidade e frustres vivências. Cidade de santos e cruzes para os sete reinos de santidade e perdão, cidade que ao trabalho consagra os dias da sua viagem rotineira, cidade de brazões, de motas, de carroças no mercado, de automóveis e operários, de arte e de artistas, de pessoas que comem e que procuram comer, cidade de contrastes e proibições, cidade melancólica, soturna, alegre, robusta e mercantil, de cabritos e veterinários, de coisas de barro e do barro das coisas que se multiplicam, cidade de brinhol e café, de poeira e polícias, de legumes dentro do desejo incompleto dos nostálgicos do Oceano, pois a fauna do mar das cidades é inconfessável. Se dos teus monumentos me aparto à realidade os concedo: cidade de palácios e azulejos, cidade de pedra e cal onde as fontes iluminadas de figuras e estátuas, de relevos e volutas, de tradição e lenda desenham nas casas senhoriais um segmento de realidade temporal. Cidade das janelas e dos longes do além, a voz que de ti me chega é dolente como o ruído das praças por onde se expande a vida dos que te habitam e te visitam. Cidade de jardins onde o amor se acolhe e surge. Cidade de jardins suspensa no fremir dos cafés, dos cantinhos da má-língua, da gente que toda a gente conhece, da gente que não se sabe se é realidade ou hábito, gente de nomes sonoros, de tradição sabida, nomes que estalam na língua como um pregão, cidade justa e injusta, atenta e desastrada, nobre cidade onde por vezes os homens não se medem aos palmos. Cidade prenhe de velhos, vasos a caminho de outra vida cidadã, plantas que o tempo vai lançar noutra floresta, cidade de árvores e arbustos sob as estrelas e a lua, no suor dos Verões, no pó da velhice que é humana e perdura. Cidade onde à juventude se pode dizer que um lugar será diferente se o olharmos com olhos intactos, generosos. Cidade de lagos domesticados e serenos, cidade que se vê e se apalpa, se passeia e se canta, cidade sentada no jardim e sobre os seus pensamentos. Cidade onde há sempre uma flor à entrada dos sonhos dos poetas de bronze e de carne palpitante, onde as flores podem ser de ferro para as estátuas amarguradas. Cidade dos castelos entre entontecidos e maravilhados, cidade que agrada às crianças, cidade da chuva e das vielas, das serras azuladas ao crepúsculo do cantar dos campos, do casario, dos miradouros e das sombras, cidade de linhas trémulas na noite que se expande contra o seu rosto pouco a pouco diluído, pouco a pouco sumindo-se numa outra viagem para o sono dos homens, do mundo, das cidades onde a frescura corre já anoitecida, inocente e imutável, cidade que se conserva desenhada, fantástica, harmoniosa e prudente no coração das casas e dos que a habitam com o seu indistinto e saudoso aceno de despedida.
OMNIA IN UNO
RETÁBULO DA ALEGRIA (de Juan Solano)
Do lado esquerdo o tom é de azul escuro com
pequenas recorrências de negro sfumato e leves
pontos de branco de zinco: como pombos ou
cegonhas passando na noite simplesmente
aflorando o seu primeiro sinal de céu ou
madrugada.
Depois, no centro, uma figura cerrando sua
dimensão seu único e secreto
perfil de traços marcados os traços mais pesados
de vermelho sanguíneo onde
o amarelo de espanha, o terra de siena se confrontam
com rasgões simulados de tinta desfeita.
Essa a alegria, o quadrado
de cartão ardente acinzentado um pouco nas
pontas a penumbra
que com as mãos se edificou e
freme estremece e se une ao que criado foi seu
transfigurado rosto para séculos e séculos de piedade.
EFEMERIDADE
Pequena pousada sobre
um muro
um silencio de água
de vidro fosco
de risco de unha
de sopro nessa manhã
de amor
ou de viagem
voltando
sem ódio ou
mágoa
Apenas gesto
contra a luz
Apenas um dedo
correndo sobre a
pele
minuto
hora enorme
de caminho e
regresso
tão distante.
Afago nem sequer
esboçado
mas tão cheio.
E tão sem nada.
VOAR
Não o vôo mas a
sombra
O sinal posto sobre o ar
a dor do vento naquela voz
que cresce
nessas nuvens perdendo-se na terra.
Não a
súbita asa de um
rosto
erguido entre árvores
e montes
como figuras agora contra o tempo
que adeja sobre os ramos
– essa febre como uma chuva errante –
mão que não paira
mas se recorda e vibra
num esvoaçar
tenaz
Ave exacta no mundo
– sua serena hora –
e agora já na lonjura
perdida e solitária.
CIDADE
E ele pensou: hoje serei uma cidade
e depois serei uma árvore nessa cidade
e depois ainda um esquecimento
numa rua e num recanto de um pátio.
E quando essa cidade tiver figuras
de pessoas e de animais
pôr-lhe-ei ainda mais figuras
que se olharão entre elas e se reconhecerão
E desaparecerão pouco a pouco
para que fique apenas uma amargura
e muitos risos desconhecidos
MAGNÓLIA
Naquela terra não havia magnólias. À beira dos caminhos
nos jardins e nos pequenos vasos de flores dentro das casas
as mulheres e os floristas cultivavam aspidistras
rosas-chá, malmequeres e pequenos bolbos de tulipas vermelhas.
Um namorado, certa vez, colocou na botoeira um girassol.
Meninas dos colégios assustavam-se e, correndo pelos parques
faziam esvoaçar contra a luz candente da tarde pequenas flores campestres.
Então, um dia, apareceu na cidade um hortelão
que num pequeno cesto tinha um pano multicolor
sobre algo que não se conhecia.
Uma jovem destacou-se de entre os demais e disse-lhe
qualquer coisa em voz sumida. E o hortelão
olhou-a longamente.
E depois principiou a andar devagarinho.
E na rua começou a espalhar-se uma penumbra que de repente
todos perceberam que iria doravante ficar ali para sempre.
ÁGUA
De corpo
Onde acabas e recomeças
De terra
Onde é teu o perfil incompleto
De fogo e ar
Onde exultas e te revolves
Do que dentro existe e cessa
Do que de fora brota
Daquilo que nunca te encontrará
Do que é pequeno e amplia o mundo
Do que jamais se perdeu
Do que se sabe e repousa
Do que não se encontrou
Do que morre
Do que é silêncio e claridade
Do que é mais que um sangue
Um puro momento feito
Entre ti e o teu reflexo inerte.
RESISTÊNCIA
Não apenas a música
mas o som
o ruído que envolve
o oculto grito
Não o nome somente
mas vestígio
o timbre recordado de seu
espaço
Não apenas figura
mas silêncio
silhueta ou contorno
na memória
Não o medo ou o azougue
sobre esta carne morta
Mas um vívido traço
ainda que incompleto
Mas singeleza como
um corpo inconformado.
MADRUGADA
No interior a polpa: um nó convulsamente
preso na carne feita para amar
No exterior partículas
tão exactas e puras como um dia. No depois das paredes
nesse ar que se dissipa
nesse negrume fixo e já disperso
– para sempre encontrado –
o clarão que nos une e que nos leva
entre as horas e os tempos, entre vozes que findam.
A cor o mundo o nome
eternamente nossos.
GRANITO
Um poeta pode durar sei lá 80 anos
Há mesmo alguns que duram noventa anos
Por seu turno uma mesa de madeira dessas vulgares
dessas com um tampo de tábua que as boas donas de casa procuram
sem sucesso que fiquem menos rugosas
– e de repente um rasgão de luz o perpassar duma lâmpada
um traço de vela que alguém acendeu no escuro
devolve-lhe o seu perímetro real de pinho decepado
de pobre utensílio ou de superfície usual –
Mas dizíamos nós aí vinte trinta anos
aí uns setenta se for bela usança de uma casa afastada?
Olhei e vi: um muro nem mesmo bem cuidado de
granito
(palavra que contém não apenas o simulacro exterior
de matérias geradas pelo interior da terra
mas também o que se sente ou se adivinha ou que
se desejaria fazer frutificar: e é a mancha
de qualquer líquido por exemplo a água
mas nunca azeite ou vinho ou até mesmo mercúrio
o sólido cruzando o seu contrário
enigma)
apenas pedras sobre pedras naquele campo a anoitecer.
E um arrepio correu-me dos dedos aos olhos.
E nada mais perguntei a mim mesmo.
E nada mais desde esse momento quis saber.
Disse para mim: granito.
Disse para mim: é então este o granito.
E olhei de novo em volta como se de repente
uma emoção anónima terrível singular me tivesse alcançado.
SORRISO
Como pode entender-se
sua firme estrutura
de momentos e coisas
para esquecer lembrar? Participa das cores
(amarelo vermelho)
com que o nomeiam
e também da incerteza
com que o olham. Antecipa verdades
antepõe-se a mentiras
e serve de desculpa
como serve de enleio. E faz inda esquecer
o tenso o trémulo
sinal do dia
no rosto de quem já
a noite teme.
Imaterial, tão breve
e tão distante
– mas o peso de séculos
nele mora: um sorriso de quem
conhece o tempo
que pelos anos vai
com sua mágoa junta.
A voz que o justifica
sem que o encene o talhe
para que sempre exista
em toda a face humana.
DOIS CÊNTIMOS DE AMOR
Dois cêntimos, ou seja: quatro escudos
No tempo das luzes sobre as casas
E das árvores apenas com o conhecimento de quem se ia
Quase para sempre –
Um pacotinho de rebuçados dos de açúcar e anis,
Duas mãos cheia de ervilhanas,
Três mãos de pevides,
Dois selos para cartas vulgares ou especiosas
Uma esmola pelos que lá se tinham,
Três maçãs,
Meia hora ao bilhar,
Meia hora de ping-pong,
Quatro carteirinhas de bonecos da bola,
Uma vela para alumiar mortos e vivos.
Não dá contudo para mandar uma mensagem.
Mas se desse que poderia obter-se?
Um olhar? Um trejeito? Um começo de frase?
Uma palavra encantada e tão terrena?
Um “e eu também”? Um “mas” seguido de um silêncio interrogativo?
Ou um simples beijo luminescente e natural?
Ou nada disto – apenas um suspiro, um resto de respiração?
Como findar o poema? Com a mão posta
No teu cabelo? Ou com um olhar que se recusa a partir?
Que dois cêntimos são tão pouco.
Que dois cêntimos são tanto.
Assim sendo, eu te digo com uma voz antiga
E feita agora mesmo (pois que vozes não há feitas
A não ser quando se trocam os tempos
Contra o fluir do tempo, puros e imarcescíveis):
Dou-te dos meus rebuçados
Dou-te um selo para que me escrevas
Dou-te ervilhanas, as mais belas que tiver
Um pedaço de sorriso
A melhor maçã
O meu mais doce beijo para que a amargura não nos fira
Com o seu silencio e a sua luz que fulmina.
ESTAÇÃO
De Portalegre? Sei onde fica…
Fui lá um dia
co’a tia Anica!
Tinha lá primos
e uma cunhada.
Conheço bem.
Vale a jornada!
Tem coisas belas
simples, singelas
de nobre terra:
a volta à Serra,
a fonte nova
e uma grande árvore
cheia de brio
quer esteja quente
ou faça frio
lá no Rossio
Tem a Corredoura
mais o Bonfim
(e alguns fulanos
assim-assim…)
E tem o Corro
e a grande Sé
que é imponente
p’ra toda a gente
quer tenha ou não
(queira-o ou não)
a sua fé.
E tem comércio
bem aviado
mais a indústria
de fiação
com bom mercado
p’ra dar o pão
afiambrado!
Vale bem a pena
viver-se lá:
tem gente grada
bondosa, amena
(calva ou barbada)
como não há…
***
Olhe o comboio que vem chegando!
Então adeus. Tive prazer
em conversar. Céus, que está frio
neste lugar!
Sim. Portalegre… Sei onde fica!
Fui lá um dia… Co’a Tia Anica.
Tem a Corredoura
mais o Bonfim
(e alguns malandros
assim-assim…).
POEMA
Sugeriram-me um poema sobre Setembro. Comecei
de imediato a pensar: tirar um Setembro das recordações? Criar
um Setembro que jamais existiu? E criar como? Só como entidade
fortuita, como vivência crepuscular? Num princípio de manhã?
Setembro como lugar e hora, como estância perdida? Porque
Setembro é algo de impalpável, estranhamente inexistente, um risco numa
parede entre duas portas cerradas. Ou então
algo tão intenso e cheio de presença como uma sombra enorme
num pátio abandonado. Setembro como memória perene? Setembro como fuga
como chegada à palavra e ao horizonte das formas?
Eis a voz. Eis o nome. Eis o lugar que se escolheu. Um vestígio
de matéria absurdamente concreta. Porque os demais momentos
são agora um ruído junto das casas que se habitaram
com todo o seu encanto e desencanto primordiais. Com a semelhança
de olhares e de ausências.
E assim Setembro me poisou num ombro
como réstea de sol num dia inteiramente comum. Setembro
que é dito, que é escrito, que é rememorado
Setembro que se olha e nos define como seres ao anoitecer
ante este muro sobre o qual já se vêem os astros habituais
e que são tão nossos como o grito súbito de uma ave indistinta.
Setembro que não sei dizer
Setembro que nos foge quando o tentamos olhar
Setembro que lembro e que conheço como uma cor amada
mês que morre e revive em mim como um soluço um beijo um aceno
de mão sulcada por muitas linhas e pensamentos.
PALAVRA
“Um dia seremos salvos por uma palavra”
Diodoro de Sicília
As palavras não caem no vazio
diz no Zohar
nem dele chegam até nós
As palavras crescem umas vezes na amargura outras na indiferença
outras ainda no reboliço das horas
as palavras afeiçoam-se alegremente como um brinquedo de madeira
como uma iguaria que tanto tempo se aguardou
sob uma latada, na manhã ou na noitinha nascente.
As palavras sabem tudo ou então o que inda é melhor
nada sabem e buscam o seu lugar entre os objectos da casa
num recanto do contentamento
Uma vez pensei
em qual seria a palavra mais bela, a que de repente criaria
para este aquele um momento de completa serenidade
um hálito fortuito de alegria
ou simplesmente um minuto de angústia
– aquela que não punge, que é recordação
ou apenas realidade.
A palavra roseiral, que em pequeno ouvi
e que sempre me acalenta
a palavra horizonte, que nos intriga e que tem por detrás
tantos sonhos humanos de aventura e de crime
A palavra silhueta, a palavra caminho
e essoutra – madrugada – que abre o nosso coração
e o torna a fechar depois.
E tantas, tantas outras que nos rondam os dias que temos
e tivemos
Por exemplo a palavra que nos cai em cima como uma árvore abatida
– pobreza – essa palavra tão infeliz, tão só. Tão perturbada.
Palavras em espanhol, com seu guiso e suas lonjuras, palavras
em francês esvoaçando, em romeno com o seu passo
balançado como uma dança
palavras em islandês e quíchua, essa improvável levitação.
Mas a mais bela palavra sou eu que a tenho
e a trago sempre comigo: nos ouvidos, na memória,
no coração e nos pulmões
Entre as mãos e sobre um joelho, no cotovelo
e num bolso da camisa
e por ela serei salvo. Por ela cheguei ao meu país
onde o mistério se acoita.
Essa palavra
fui eu que a descobri. E é inteiramente minha.
Qual foi e qual será
qual era? Quem a conhece?
Quem a descobrir
que ma diga ou então, não podendo
que me a escreva, numa folha
amorável que me mandar
ou numa pedra
que me atirar
envolta num papel com ela escrita
em qualquer dia que calhe.
SAGRAÇÃO
Ora no alto ou no baixo
com o coração desnudo
nas endechas de uma reza
pois que S.Pedro vê tudo
Seja de manhã ou noite
com sono com fome com medo
pois que S.José vê tudo
sem lhe contar o segredo
Se Maria se declara
se lhe manda uma carta azeda
pois que o arcano tem tudo
mesmo que a morte não ceda
Ainda que os outros não saibam
o bambino fica ao canto
e eles os dois vêem tudo
e até a vida é um espanto
Vejo metade dum peixe
vejo dois braços no ar
e um coração com três partes
negro azul e outra vez negro
Árvore que não é bem árvore
cabeça sem ser cabeça
uma flor vermelha e branca
sobre os dois que tudo vêem
Viajante, se pensares
que esta voz é a dum vivo
viste o princípio de tudo
com o teu olhar altivo
Eram dois agora são um
lá no átrio circular
depois não serão nenhum
para o mundo começar
Aqui, ali, acolá
perto do inexistente
pois assim é que bem bom
p’ra ti e p’ra toda a gente.
Pois que S.Pedro vê tudo
pois que S.José vê pouco
pois que a mudança é o génio
da lâmpada ainda que rouco.
ENVIO
Se nos pedem um poema, num qualquer dia de Abril
a nós que moramos entre o exílio e o reino
que é como quem diz entre a hora do lobo e a hora
do cigarro, devemos responder: “Sim senhor. Vá com Deus.
Lá o terá, em tempo”. Ou, entrando na verdade – entrando
na grande manhã – dizer logo que não
que ultimamente os meses nos aborrecem
que há um som inquietante à hora de deitar
em suma, estamos a Sul
da tal alegria, do tal raminho de hortelã
como quando em criança isso bastava ao velho olhar
de um dia a outro dia: segunda, sexta-feira…
Mas descrevamos os meses, descrevamo-los
como mapa deslindado ou então como simples hipótese
(ou seja, maravilha abandonada, imagem temerosa
que o acaso nos ofertou, coisa feita de somenos
ou de somais realidade legítima ou sinistra): descrevamos
Janeiro, lugar onde há um rasto de sangue numa pedra
ou Fevereiro, o tempo em que a voz disse coisas inúteis
e Março, paraíso dos calendários e dos planetas que rodam
no céu de Abril quando a cinza cobre os campos e as fontes.
Olhemos Maio, pátio lajeado onde a chuva já não tamborila
a não ser que uma certa mão faça deter as horas
e olhemos ainda Junho, e façamos uma pausa
para pensar, por fora do poema, em coisas como uma sala vazia
um rumor de passos atravessando o antigo corredor
e a lembrança dos outros países de mistério
para sempre desaparecidos. E Julho, com os seus vultos imprecisos
com nuvens e ventos e outra quinquilharia poética, que
no entanto prende as horas de realidade ou de abandono
dos minutos de Agosto, lugar verdadeiramente ausente
– que nisto não há simulações, apesar do que se possa conceber
e a cada ondear do poema corresponde uma recordação
ou uma tristeza ou uma
perda de coisa ou pessoa, de imagem ou reflexo
(esse Agosto das flores mortas sobre rostos de pedra) –
E então chega Setembro, a antecâmara dos finos silêncios
quando uma linha traçada num papel pode representar o adeus
e já se anuncia Outubro, guindaste sobre uma ponte derrocada
para que o Natal se apresente com as amplas figuras do mundo
e os ventos tornados brisas de angústia e de lembrança desaparecida.
E antes ficou Novembro, com plantas que se estendem sobre os corpos
com dias de aniversário que os anos foram devorando, com
algumas velas no mar, alguns animais passeando entre as árvores.
O Novembro dos seres e dos não seres imateriais e algo solenes
por vezes com vinho novo dentro e fora do que se escreveu
e os olhos em amêndoa e plantas exóticas pelos cantos.
Os meses têm o seu minuto e o seu perfil
chegam sem que a gente se dê conta e então é tarde demais
eles oscilam por vezes como se o cansaço os apertasse
entre designações ora vagas ora luminosas (como a chama duma vela)
e mal nos distraímos é de novo madrugada.
E eis que já partiram, com seu logro e sua bondade
como vagabundos ao luar, olhando os horizontes exactos
naturalmente reconhecidos, amados com sua eternidade
ou ironia.
SETE POEMAS EUROPEUS
ENCONTRO EM PARIS
Atravesso os bairros e sou um homem só entre as casas
onde patrões e criados vão vivendo o seu dia
E Paris é para mim a face de Manolo Fuertes Refólio
o barbeiro que sabia aparar-me o cabelo
e que depois se exilou nestes lugares de salvação
Até Saint Michel verei pelo menos 60 conhecidos
mas o seu rosto já não é o que me lembro de lhes ver.
Notre Dame fica perto e repousa tranquilamente.
Todos os anos a imaginava, como que levitando na manhã
esperando os seus fiéis franceses que a sonham amorosamente.
A ela voltam uma e outra vez e olham em redor admirados
pensando se um de nós acaso não será um príncipe ou um mago
vindo de terras estranhas debaixo de um impulso fremente
Depois baixam os olhos com tocante delicadeza
pois a nossa expressão entrou-lhes bem no centro do coração
e o ar em volta ficou como se lhe tivesse fugido o sol.
(1999)
QUERIDO PRIMO JACOB
Chamas-te assim, mas eu apetecia-me chamar-te Tiago
ou Jaime, para dar fantasia aos meus versos
Vou caminhando e pensando nas presenças que às vezes
me visitam nos cinco dias de semana
em que vale a pena trabalhar
os tais em que se ganha ou se perde o universo.
Mas eu digo-te: lembro-me do pai e da mãe todos os dias
e estão como dantes estavam: risonhos e um pouco perdidos.
Mas a sua semana entrava pelo mundo adentro.
Quanto a mim, sou apenas o NS
o seu menino tão cansado e sempre repleto de memórias.
(Arronches, em 99)
NA COZINHA
Deuses que entram e saem
com o pão
a fruta
uma bilha de água
um gesto de mãos
um de barriga ao léu
dois três anos
que saberá do seu futuro tempo
interroguemo-nos
A mamã põe os olhos no ar
assim são os sonhos
passeios por lugares insondáveis
áfrica américa
o choro do filósofo encobre o Sol
com as suas mãos emagrecidas acaricia um ombro
O mais pequeno olha a um canto
o rasto de algum familiar
avós sobrinhos comadres
um burrinho branco junto ao maciço de dálias
Se amais as lindas canções
ide até ao princípio da noite
(Vale do Jerte, 2000)
O DIA DE PHILICARI
Georg Friedrich Haendel
em Meerbusch
no Hotel
com mendigos à porta
um de perna quebrada
outro zarolho
outro recordando os seus dias felizes
uma tarde junto ao rio
com uma pequena que o adorava
“Zozi!” dizia ela “Zoziiiii!”
De boca aberta pensa
Coça uma perna chagada
Olha o outro do lado é uma outra
De saias até aos pés olhando o homem
que agora chega de roxo e ouro, as meias verdes
um comerciante célebre que dias antes enviuvou
“Zoziiii!” chama uma voz fresca morta esfomeada
Ele sorri a boca enegrecida os olhos mais fundos
Junto ao rio os mesmos barcos, a mesma água.
Philicari prende o violino, a mão hábil o queixo recolhido
O arco a direito sobre as cordas um sussurro rouco
Haendel sai, a carruagem vai partir os mendigos
olham-no a pouco e pouco mais longe na rua depois
escurecendo mais e mais
deserta.
(Toulouse, 2001)
NAZARÉ (VILA E PRAIA)
Não a outra, mas essa: a que do Sítio nos aponta o ocidente
E depois outras rotas para todos os quadrantes:
a praia de dentro
o jardim de fora e do fundo da nossa pequena
silhueta
– morte que se negou.
A solidão da praia do Norte
o assombro da luz
que alimenta a penumbra
Tudo o que por alegria calamos num passo estugado e
um pouco temeroso
Não importa, dizias tu, além é o mundo e ouve-nos
– pequeno veraneante de roupas coloridas que a alguém entregou
sua voz seu segredo
seu nítido momento.
E agora
não a outra mas tu
a que não entra nessa história sagrada em que Ester
colocou seu cântaro perto do muro caiado
e que em Azarias achou seu derradeiro refrigério
A mão a asa perfeitamente modelada
e depois seu abalar para sempre, seu
trespassado e imperfeito corpo até à claridade
– bóias barcos refluir de vagas as máquinas
fotográficas ao ritmo do que de longe a serra da Pederneira
conserva e permite.
Não a outra mas tu
a que outrora vi entre céus e uma sombra fugaz
Meu íntimo refúgio igual a mil a cem a um apenas.
As flores os fogareiros para o trabalho do peixe a jorna entregue
a quem na memória retém surpresa e saudade
ou simplesmente no cimo da falésia avistou
horizontes ruas incólumes a escuridão das dunas.
(2001)
RELÍQUIA
Onde está o silêncio onde jaz o silêncio?
Não neste braço sujo cortado
Não neste tapete espesso neste bloco de apontamentos
onde se cruzam insultos rimas
Não no pequeno perímetro das veias
– afinal tudo tudo entre nuvens de carbono
semelhantes a um bafo de camponês sobre a neve
onde se esmagavam insectos e excrementos de lobo
O primo velho outrora mo ensinara num mês adolescente.
Onde em que ilha de desolação
sufocado incerto esse silêncio soberano
onde jaz cerzido por traços de faca de pedra
Não não o barulho de um passo que caminha para a beleza dum rosto
saindo de um vazadouro para a lama musgosa da margem
Brilhante como celofane
O silencio que respira
Sim o silêncio morno de quem procura o vazio
ou de quem busca uma cor imersa na carne recordada
da mão faminta de muitos negrumes alheios
O silêncio que se recolhe
que se desdobra
que nos relembra de momentos e perdas
O silêncio que permutamos
O silêncio para além da luz entre os olhos de uma fera morta.
(Monforte, 2003)
ANUNCIAÇÃO
As mulheres do vento parado como um planeta extinto
as mulheres doentes as mulheres que cantam com surpresa
o seu vestido estranho como uma renda como uma absurda mancha
as mulheres do meu dia como um peso de cores distintas
entre mim e o céu
Entram pela minha boca e censuram-me docemente
Aqui, diz uma, puseste o horror de um velho instante
ali, diz outra, não deixaste repousar os devaneios
Há uma que paira, como se me fitasse a direito, com as mãos
junto da testa, perto dos olhos, os lábios palpitando
estremecendo como uma pétala sobre a água
Mulheres de negro, afagando pastas de couro em lojas improváveis
escrevendo em papéis antigos fórmulas de gentileza
Mulheres que a diabetes assolou como praga medieval
mulheres de pernas como lírios rosados
andando ao longo duma estrada francesa
as árvores coloridas formando uma cortina imprecisa
Job de rosto erguido amargo senhor das angústias
a sua face trémula tão igual à do Senhor na noite de suor e remorsos
a sua mulher por detrás, arrepanhando as vestes
Dizei-me mulheres onde com que luz a vossa fotografia se encarquilhou
na madeira queimada das velhas casas onde medrava a guerra
Vós sois o sustento dos pontos cardeais
Lembro-me de ti, Marion, o rosto rodando como um guindaste
e o fumo que soltavas com um meneio elegante da mão esquerda
o fumo espalhado no parque abandonado
os olhos tranquilos frios
A rua solitariamente sob a noite de Junho
e o cão o velho cão dos bosques que trotava muito devagar
A vossa figura palpitante, mulheres, irisada obscura
à luz frouxa da manhã e o frio subindo até às portas como um animal
a morrer.
ELOGIO DO CRETINO
Devo dizer
que gosto de cretinos. Não, garanto que não é por piedade
mas por apreço convicto. Talvez com uma pontinha de malícia
mas sem acinte nem ferrete. Uma (como dizer?) maneira
de tímida ternura.
Afinal – não é verdade?- o cretino
é uma espécie humanóide altamente meritória
e multifacetada: vive connosco à mão de semear, conhecemo-lo
das ruas, vemo-lo
na TV, lemo-lo nos jornais… Ele acompanhou sempre
nos mais expressos lugares
a rude humanidade
desde o fundo dos tempos, desde os primórdios
da vida. À roda da fogueira
lá nas épocas longínquas do período quaternário
quando ainda não havia cretinices modernas ( televisão, rádio
parlamento…) podeis crer que já havia, embora hirsuto
um ou outro cretinus sapiens. E pelos tempos fora
na idade dos ancestros da pré-história
que seria dos inícios adequados
da social organização
sem um par de cretinos a adorná-la?
Seja na arte ou na literatura
nos ramos do saber que o mundo louva
ou demais regras e ofícios
como poderiam os cretinos dispensar-se? Cretino foi, ao acaso
o tolo do Caim, ou o pobre do Job
ou – na quadra das letras – o bom do Pinheiro Chagas
que teve a parvoíce de ser contemporâneo
do Eça magricelas.
E nos domínios vicejantes da pintura
o tremendo Bouguereau, que dizia de Cézanne
que este só fazia borradelas.
Ou nos salões do espírito
sagrado
o magistral Bossuet, a águia de Mons
que Deus tenha bem guardado.
Enfim, nobres exemplos
de douta cretinice. Pois o cretino é plural
e em todo o lado sabe imiscuir-se.
(Aqui um à-parte
para os estudiosos de gabinete: não deve confundir-se
o propriamente cretino, cretinus boçalis, com o pedaço-de-asno
que, sendo semelhante – a olhares sem estética –
claramente pertence
a outra espécie cinegética).
Na boa sociedade, naquilo a que se chama
a melhor sociedade, a tal que se pauta por livros de etiqueta
escritos em geral por excelentes senhoras – às vezes excelentes cretinas –
o patarata é um valor seguro: já pensaram
que seria das páginas sociais de afidalgados
ou mesmo só de notáveis burgueses agregados
sem um ror de cretinos e cretinas interessados
em lhes saber da folha, em lhes saber dos fados?
A vida sem cretinos
é como um lar sem pão, teatro sem enredo, jardim
sem flores ou passarinhos (olha que imagem cretina!),
como dizem as poetisas de arrabalde
com vaporosa graça
quase divina.
Numa recepção de Estado, no salão duma autarquia,
numa cerimónia de homenagem a um que nada fez mas morreu tarde
ou demasiado cedo, co’os diabos do talento
seja na capital ou na feliz província
a presença de cretinos é uma jóia sem preço:
são os que convictamente
mais aplaudem, sem maldade
nem cálculo traiçoeiro
ou gritam apoiado
criando felicidade
no elenco inteiro
ou mais valia, nas forças vivas da cidade.
(E em geral,
por ironia do destino
o orador habitual
é que costuma ser, por sinal
o maior cretino!)
Sim. Gosto de palonços. Ei-los que desfilam: na política,
no professorado
na res publica (que, como se sabe, significa coisa pública
– dou o esclarecimento
não esteja algum cretino a ler-me) o palonço
é fundamental.
Quem diz palonço diz palonça (explico já
não vá
alguma feminista cretina
pensar que o meu poema a discrimina).
A cretinice pura
é algo de adorável como tudo o que é puro:
um puro mel, um puro amor, uma pura
doidice, uma pura miséria…
Mas para que o cretino seja esplêndido
necessita de ambiente a condizer: bons ares e boas águas, está claro
mas também uma família recheada de atenções e de cuidados,
ao velho estilo patriarcal, cultivando modelarmente
os sãos e pacientes
cretinos valores.
Não precisa, todavia
de ser fundamentalista praticante
desses conceitos sem jaça: ele há tanto cretino oriundo
de meios inconvencionais. Como o cacto, o cretino
adapta-se a qualquer terreno, por mais adusto que seja!
Façamos-lhe justiça: o cretino, digamos, é como
um livro aberto – o que ali está
não engana. Por isso tantos cretinos, por serem senhores
graves e concentrados
até chegam a ministros,
a assessores,
a deputados.
(Também sucede que alguns
no entanto
nunca passam de criados…).
O cretino estimula as próprias artes, as próprias letras. Até a filosofia!
Lembremos
as expressões fenomenal cretino, cretino piramidal, cretino apimentado,
cretino até dizer basta. Enfim, altos jogos verbais como
tudo o que o humano engenho inventa. Já houve quem dissesse
que ele é como as castanhas: nem sempre
as maiores são as mais saborosas!
Os cretinos rurais…
Os cretinos citadinos…
Os cretinos intermédios
sociais, profissionais…
Os viandantes cretinos…
Enfim, não divaguemos!
Vou, então, terminar.
Meter um ponto final
antes que, impaciente
o leitor inteligente
me apode gentilmente
de redundante ou, até,
de chatarrão
– espécie de parente
maganão
que também merece versos!
POEMAS DESENHADOS
1 MAYTE BAYON
Segredos quem os tem
Se fosse só
a toalha aos quadrados, o gato na soleira
o pão torrado, o peixe frito
era caso para lançar ao vento
muitos quilos de infinito
músicas de outrora, terrores
e uma que outra solidão pintada
Mas desta forma
não é preciso:
há sempre o mar, o frio, essências
e outros jogos eternos e inocentes.
2 GIORGIO MORANDI
Ondas de sangue adormecem
solitárias, nocturnas, imprecisas
As veias são assim, na tela clara
das naturezas mortas
As tuas mãos, pausadamente
contam o tempo
da gestação dos frutos
e desvendam-nos coisas nos sentidos
Uma aqui, outra ali
E depois nós olhamos
a árvore, a catedral, o rio imóvel
O copo e a maçã erguem melhor
o firmamento, a luz sobre as cadeiras
– são o retrato
das diferentes imagens invisíveis
animais, vegetais e minerais
Um ruído lá fora
Um pequeno barulho pouco a pouco desfeito.
3 CARBAJAL
A gente podia
combinar isto de antemão. Eu dizia:
coloca neste ponto uma pedra. E tu punhas
o sinal azul de um enorme jardim.
Depois eu dizia: aqui faz falta
o som de um apito. E tu desenhavas
três crianças desesperadas. A seguir
eu adormecia. E quando acordava
tudo estava terrivelmente silencioso
Na porta, que se tornara transparente
estava pregado um papel amarfanhado.
Nele, estranhos riscos como feitos por garras.
Então aparecia de repente um anjo maneta
– que desatava a rir e de súbito se esfumava.
E sem sabermos como, era de novo manhã.
4 HUNDERTWASSER
Podes prestar-te a equívocos
no quarto da mansão inatingível.
Há sempre uma pergunta
uma resposta a outra coisa
um sentimento que se tornou em símbolo
Alguém que não está nessa paisagem
que nem sequer conhece os seus contornos
que é linha isso sim mas não por dentro
que é pele mas só na outra geometria
do que o pincel procura atormentado.
E às vezes nós olhamos um reflexo
de sol que cai onde as figuras existiram
e ilumina o seu perfeito contrário.
ONZE INSTANTÂNEOS ARCANGÉLICOS
ao Floriano Martins
1 Em cada dia que nasce o mundo transfigura-se. Os quatro reinos da Natureza renovam-se a cada momento. E onde as linhas se juntam e separam é que fica o fogo dos tempos. As paisagens do mundo do pintor são por vezes inomináveis, pois dependem da existência animal dos universos dentro de tudo, incluindo os infernos sociais.
E por isso é que a noite e o dia são da mesma cor.
2 É do fundo do passado que as velhas obras nos olham, inquietas, aguardando a nossa palavra definitiva. A nossa existência está para além de Altamira, do Parténon, das tábuas de Kirsh e dos pomares de Belleville – mas é dentro do artista e das suas moradas ocasionais que a claridade se decanta.
E por isso é que o dia e a noite não se misturam.
3 Estamos rodeados de presenças – de pessoas e de coisas, de palavras ora estranhas ora familiares. Que teremos de maravilhoso para lhes dizer? De revelador, como um sulco numa rocha do paleolítico? Eis que o pintor decide pôr-se ao trabalho: as portas abrem-se por um momento luminoso e, logo após, cerram-se de novo. O que ficou, pobre coisa multicolor, será o seu pão e o seu vinho interiores e secretos – e o artista mais não pode fazer que olhar com as mãos a tremer os continentes fabulosos que entreviu.
E é então que percebe que noite e dia têm a mesma forma.
4 O corpo é um mundo incógnito que há que revelar na sua inocência de pedra e de madeira, mas só se não existem imagens virtuais na nossa mão e nos nossos olhos, O quotidiano do pintor é tão natural como uma cadeira, um gato ou um lápis – mas só se o que subjaz à sua busca são os sete continentes da fábula.
O dia, a noite, a amargura dos momentos são lugares muitas vezes só de passagem.
5 Só da nossa experiência esquecida poderemos tirar a forma mais exacta, como se uma voz velada nos permitisse traçar num papel frases adormecidas.
6 É na calma fecunda do dia-a-dia, na frescura das horas profundas que o artista encontra os tempos em que a vida retém a cor das madrugadas sombrias e das noites longas e palpitantes de desconhecido. Os demónios não se movem, o pincel reteve-os como uma árvore ou um muro de quinta.
7 O mundo tal como se vê ou se sente pode caber num bolso, donde depois se solta como um lenço manchado pelos dedos do artista. Mas é preciso que se saiba mergulhar entre os destroços que as existências dos outros deixaram nas ruas.
8 O pintor anda pelas ruas e reconhece o traçado do passado próximo. As memórias existem em todas as direcções, são simples e belas, terríficas ou indiferentes – e a mão do artista treme e adeja como que para lembrar a si mesmo que a naturalidade é afinal a mãe dos segredos que aprendeu.
9 Nas ruas por onde o pintor se locomove há outras figuras que lhe são paralelas: constitui matéria de má-consciência pretender que o artista tenha algo a ver com todas elas. Se há gentes cuja estrutura lhe é próxima, outras há que apenas são matéria de vómito ou de incógnita.
10 A chuva acontece na realidade e na fantasia, o sol existe em reinos diversos, da ficção ao facto concreto. Mas o que é que isso significa? Assim como o lixo é o que subjaz à civilização, o que está por detrás da existência doméstica e social é aferido de minuto a minuto pela nossa consciência do sagrado. No fundo, os momentos absurdos reconstituem uma existência passada algures e plasticamente recriada. Como se o dia e a noite fôssem apenas matéria para quadros de género.
11 Os pintores nunca mentem, mesmo quando pensam o contrário. Os anos encarregam-se de os aniquilar – e então a verdade que acharam desaparece – ou de os confirmar – e então tudo se torna possível. Porque, afinal, vai-se pelo mundo com dois olhos, dois ouvidos, vários pares de mãos e muitos pés diferentes: indagando, reflectindo, comparando. No fim, o que se conseguiu de certeiro, de fértil? Apenas alguns segundos de inteira alegria, algumas imagens cercadas de escuridão. Mas esse pouco é o penhor da nossa realidade, aquilo que não se deixa aos corvos e aos girassóis. Tudo está, bem vistas as coisas, para além do que se julgou possuir, mas não será esse o sinal perfeito duma meditação como um pequeno sinal de cor numa tela destruída pelo fogo?
ERÓTICA LEXICON
1 (a)
A – não o simples começo
do amor alevantado da árvore que se descobre
sobre a cabeça
num espanto de olhos de quem
se ama no chão do campo
ou de pé na penumbra numa viela esconsa.
(Que aí seria mais
o vulto escuro
de casas na neblina ou o vidrado
de anónimas janelas). Mas sim
o a de abrir
de ficar com o alto das coxas preparado
para maiores desvelos, sem que a mão
por detrás pela frente
atabafe o grito inocente de alguém
virgem ainda ou hábil fugazmente
num ardil de maior gozo. O a do fim
da meia preta se possível, ou de grosseira lã com seu til
sensual mais o resto da roupa lá no centro
do espasmo ou da voragem.
O a que se exerce na palavra pássara
nosso amorável gosto de beijar de ter
o vôo ao rés da boca nos sentidos
de um abalar da língua p’ra norte ou ocidente
com a tensa amargura de tudo se acabar.
O a da salvação de enormíssimas tardes
do passado da aventura rara
que jamais se esqueceu
porque foi a nossa dura condição. O a do gato
da tímida coelha ou do cavalo
do cão fremente na rua sem que uma voz
reparo lhe faça por animal o ser. Ou o a
alucinado do enamorado por amor se perder
– um destino arrancado
do denso doce pecado
no meio do coração.
E o a do não
do nunca mesmo nunca poder ser
de jamais a dois
nos tempos do Tempo se acordar
e voltar a arder.
O a sagrado e ferido
enfeitiçado dividido
de se matar de se morrer.
2 (b)
Já reparou, disse Jolce, que não há algarismos nem números começados por bê? Ora pense um bocadinho…Para ter um bê precisa de chegar ao bilião. Quase o tempo da Terra!
Tem razão, respondeu Belinda um pouco admirada depois de alguns segundos de silêncio. Porquê aquele raciocínio naquela altura da conversa? pensou de si para si. Um pequeno mistério que deslindaria mais tarde, quando Jolce já não constituísse para ela qualquer segredo, quando o tivesse reduzido à condição que lhe competia de fogoso cobridor, de doce urso roncante sobre a cama de casal – larga e resistente como ela gostava, como ela exigira no seu quarto de meiga aventureira para viagens sem retorno quando as férias parece que são para sempre.
A verdade é que aquele homem a intrigava desde o princípio. Com o seu rosto cinzelado de arcanjo um pouco brutal e o torso de pugilista amador, assim que o vira no átrio do hotel ficara a cismar. Caçadora de férteis recursos, não lhe passara despercebido o olhar algo febril e o vulto que se recortava, pujante, sob os calções de banho. Ele transportava na mão esquerda um copo de curaçau gelado que fora buscar ao bar e quando os seus olhares se cruzaram ela percebeu que tinha ali um bocado de destino. Seguira-o até à piscina. Chegar a um jantar a dois fôra uma simples naturalidade de fêmea acelerada e experiente nos seus trinta anos de gozadora de rins másculos e sapientes.
E notou ainda, disse ele com a sua voz de baixo enquanto a olhava bem de frente, a mão arrepanhando um pouco a toalha cuja alvura, nem ela sabia porquê, lhe perturbava os sentidos alerta, que algumas das palavras mais inquietantes, mais significativas, é por bê que começam? Beemoth, bendito, Babilónia, bondade, bifronte… Já tinha reparado?
Sob a mesa, com o seu pé Belinda tocou no pé de Jolce. Pisou-o mesmo com decisão e a dureza sentida deixou-a um pouco admirada.
Mas há outras palavras, pelo menos tão significativas embora bem menos inquietantes, que começam por outras letras, disse pausadamente com a voz um pouco rouca. E atacando sem retóricas escusadas e paninhos quentes: Palavras como possui-me, como vem-te dentro de mim, como mete-mo também aí… Não acha?
Sentira chegada a altura de lhe testar de caras a qualidade de macho esclarecido, de jogador de entendimentos e de mundanais sabedorias. Estendeu a mão e agarrou na mão dele, junto da garrafa de Chateau-Yquem e do copo de vidro facetado a que uma suave coloração cor-de-rosa pálido dava uma ténue luz.
Olhou Jolce e estremeceu. O seu rosto parecia ter ganho uma doçura insuspeitada: os traços mais suaves e ao mesmo tempo estranhamente endurecidos tinham ficado como que imersos numa ligeira sombra, tal qual sucede no princípio do entardecer às coisas que nos envolvem. Na testa que os cabelos castanhos claros coroavam parecia ter-se iluminado, de repente, uma pequena estrela.
No pulso, ao rés das veias salientes, ela apalpou uma leve rugosidade e depois distinguiu – enquanto a respiração se lhe adensava – um sinal diminuto, que contudo se percebia ser constituído por três letras muito juntas, num relevozinho finamente traçado: o bê, o duplo fê e o él.
Quando levantou os sugestivos olhos doirados viu então, talvez só com um leve toque de surpresa, enlevo e algum terror, que os olhos esverdeados de Jolce a miravam fundo, bem fundo, com todo o conhecimento e uma absoluta melancolia.
O ARMÁRIO DE MIDAS
SAUDAÇÃO
(a Júlio/Saul Dias)
Não conheci o pintor nem o poeta.
Não sei se era mau ou bom como pessoa
Mas espero que fosse um bocadinho mau
O suficiente para não ser mau a valer.
Só li um poema dele só vi um desenho dele.
Sei que em pequeno viveu perto do mar
Disseram-me que mais tarde morou noutra cidade
Onde havia não gaivotas mas cegonhas.
Disseram-me ainda que gostava de rosas
E de figurinhas de barro e que sentia
Anjos a pairar por cima dos telhados. E isso
É bom, o coração dos anjos bate ao ritmo da chuva
Ou do andar dos animais, por vezes há anjos
Que morrem atropelados numa estrada enlameada.
Disseram-me também que ele falava baixinho e pausadamente.
Sim. Creio que estou a ver. Parece-me que o conheço
Mais ou menos: umas vezes monstro, outras
Flor, ele devia noutras alturas ser também peixe ou árvore deslizante
Devia gostar de fruta, de mexer nos utensílios dentro de casa
De ficar parado a pintar no Inverno.
Penso em tudo isto, talvez fosse mesmo assim.
Mando-lhe a minha benção
Peço-lhe a sua benção.
TRÊS POEMAS
1 E assim chego
– colete, calça e paletó.
E sento-me, feliz da vida
na esplanada quase deserta.
Espero os ventos do sul
os musgos do norte
o sol de um pouco à esquerda do sudeste.
Talvez relinche como uma estrela fogosa
talvez chame o criado e fique mudo.
Talvez, quem sabe, me espante um bom bocado
chapéu de feltro cinzento na cabeça
dócil e omnipresente.
Que pergunta, interrogo-me perplexo
fiz a mim mesmo há pedacinho?
2 As árvores
Não as que vi em criança
umas de roda do luar espelhado
no pequeno tanque
outras em dia de mortos
aparecendo desaparecendo
como presenças incertas
Não as árvores de repente ternas
como sementes
remotas como pedras
Mas as que gravitam em torno de nós
aflitas
silenciosas como um pensamento.
3 Nas arribas do Cabo Espichel
aí pela manhã
um tipo pensativo põe-se a recordar
os tempos dilectos da juventude
quando trabalhava com o velho Indalécio
o carpinteiro tisnado de camisas de algodão
E ambos galhofavam serenamente
um em frente do outro, de pés em cima da mesa
na sala traseira da vetusta lojeca
atestada de móveis como dantes se faziam
perto do farol do arquipélago das Berlengas.
“Quando o vento acalmava, rapariga
a morte e a doença à porta não chegavam
à porta não chegavam, digo-te eu
minha garota, minha garota bela!”
Indalécio, rei das cadeiras e das mesas
o das camisas baratas de algodão…
Colete, calça e paletó
e às vezes uma rosa na mão direita
– mas não como se fôsse um troféu.
E tudo sem palavras, sem um gesto
sem sequer uma canção que vem de longe
que vem de muito longe e ressoa.
AMIZADE
(a um amigo que me ofereceu um poema)
Excelente poema, rapaz!
E a noite vem vindo fria fria
e entretanto
há um pedaço de melancolia
escondido, coitado, a um canto.
Já estamos mais novos
já estamos mais velhos
já temos milagres e povos, sorrindo
sentados nos joelhos
Mais um neto lindo
e uma réstea leve de sol
e tantas, tantas coisas mortas:
chuvas e ventos, recantos e janelas e portas
nas casas da recordação
e ruas direitas e estradas tortas
dentro do coração
– às vezes luzindo como um farol.
Vai, rapaz, com teu poema belo
se assim o quiseres, para a noite bendita
ou para outro sonhado castelo.
Mas nunca te esqueças
dos nossos tempos do sete-estrelo
mesmo que de forma esquisita.
Certo ou incerto
– ou de voz aflita –
é o futuro do nosso passado:
brinquedo fechado
– e há tanto tempo aberto!
FALA DE SUA FILHA A SEU PAI JOSÉ RÉGIO
Sou eu, pai! Estive com umas amigas. Fui com elas
Ao cinema. Vim pela rua do Bairro Alto.
Como a cidade
Estava bela com a noitinha a entrar. Ao pé do Castelo
Um anjo rebrilhava coberto de lantejoulas
Como as dos desenhos do tio Julio.
Comeste, pai? O que é que a dona Rosalina nos mandou?
Eia, pai – jardineira! E leite-creme como tu gostas. E figos
– num prato ratinho dos teus preferidos!
Deixa. Eu coloco na mesa. Tu continua a sonhar
Aí junto à varanda, na cadeira velha de verga.
Já reparaste?
Que de luzes que aqui se juntam! Ficam tão bem
À minha blusa amarela. Sim, tu bem o sabes, a noite vai ser longa
Mas um novo planeta nos espreita lá de cima.
Não tenhas medo, pai!
Eles não andam no quintal. Eu disse-lhes
Que não andassem no quintal, mesmo em Vila do Conde.
Logo terás, depois da música
Areias do deserto e os ventos da beira-mar. E olha
Consertei-te o coração
E o teu boneco estripado.
Pai: ontem um moço, na rua
Olhou para mim e eu
Pensei de repente em coisas – borboletas sobre um prado,
Um grilo tenor em alvoroço, rios correndo – em coisas que tenho
Pudor de contar a outras gentes. Que tolice, pai, não é?
Mas ele, se assim o digo, parece gostar de mim. E estou um pouco feliz.
E peço-te já versos para ele. Como os daquele príncipe
Que todo se danava se acaso a lua não vinha. O meu rapaz
Tem um sorriso esquisito
E uns olhos azuis-lilases.
Pai, a casa – esse navio – vai partir. Olha, ao pé, a tua estrela
Do teu menino ausente. Não te entristeças, pai. Estou tão contente!
Dá-me a tua tablete
De chocolate, dá-me a Nossa Senhora, dá-me a tua caneta
De estudante: com ela farei versos
Que tu me invejarás. Estou a meter-me contigo, pois então!
Como tu, também sei pelo caminho quais os passos
Que vão dar aos meus próprios lados. Quando dormires
Eu te velarei. E vejo-te sempre como tu me vês
Pelas pálpebras mal cerradas.
Teremos luz e calor, pai
Como tu bem mo quiseste revelar. Os deuses, coitados deles
Não terão mais remédio
Que ler teus livros inteiros. (Um dia
Pedir-lhes-ei alvíssaras).
Não temas, pai. Eu estou aqui. Sempre estarei aqui. Guardo comigo
As rosas desfolhadas
E o meu vestidinho branco. E agora
Vamos, pai. Deixa lá as escritas, escreverás o resto do teu conto
Lá p’ra mais tarde.
(É sempre p’ra mais tarde que se escreve). Vamos agora passear.
Que a grande voz do mundo
Eu já ao longe a ouço.
VERBO
Eu hei-de ter, algum dia
um barco para voar
entre as plantas e entre as árvores
que uma vez pude encontrar
Hei-de ter uma janela
e hei-de ter um pomar
que em vez de frutos dê sombras
e luzes para acordar
Hei-de ter uma distância
das que se perdem no mar.
Hei-de ter quatro caminhos
e estradas p’ra viajar
e dois mundos lá ao longe
para ninguém mos tirar
Cinco dias dum momento
que pude desesperar
que tirei de sobre o peito
que eram dias de encantar
Hei-de ter uma lonjura
que tão perto há-de chegar.
Hei-de ter coisas perdidas
que se acham ao abalar
momentos, segundos, horas
tão belos como o lembrar.
Cantam vozes quando é escuro
o tempo todo a passar
nas canções que em nós se evocam
desfalecendo no olhar.
E hei-de ter o som de tudo
sem ouvir e sem falar
Que tudo vai pelos anos
a correr e a parar
Pois que nada entra nos dias
que nos fazem sufocar.
E hei-de ter uma estrela
como o meu amor de amar.
E hei-de ter um campanário
para o lume vicejar
E sete palmos de aragem
para a noite trespassar
quando for a tal parede
atravessando o luar.
Que de uns e doutros se encontram
os retratos de ficar
se de palavras convulsas
o que acaba vai findar.
O VENTO
No começo era o vento:
o vento da chuva, o vento do sol
o vento só vento ou não mais do que um sopro
na cara no corpo ou à esquina das casas
O vento das palavras e o vento que se lembra
ou que se esquece e nos faz pensar
em manhãs de vento, do vento que vem
de noite e atormenta
e nos rouba de súbito
todas as memórias, todos os minutos.
Vento
das árvores e dos desejos
vento vulgar vento da solidão
agora já só vento de vazios ou de presenças idas
vento duma ave que passa
vento duma voz que já se não ouve
vento que se ouve ao longe
vento dos anos vento nas mãos que se não tocam
vento de tudo o que morreu.
Vento que não existe
que nunca existirá
vento das folhas que ondeiam no ar
vento das folhas dos livros nunca escritos
vento que pára de repente e cresce em nossa volta
e nos ensina os pontos cardeais
e nos faz erguer o rosto e olhar o horizonte
vento de coisas ao vento de momentos tão nossos
vento do mar na nossa cabeça inclinada.
Vento que sabe nascer nas florestas
nos desertos e nas ruelas
vento que sabe matar nas cidades
vento que corre em todo o tempo em todo o mundo
vento que é só remorso
só um sinal
só o sinal que jamais tivemos
de vento que rola no nosso perfil desfeito.
RECEITA PARA UM NATAL
à Flora
Primeiro, ficar parado
durante um momento, de pé
ou sentado, numa sala ou mesmo
noutra dependência do lar.
Depois preparar
os olhos, as mãos, a memória
e outros utensílios indispensáveis. A seguir
começar a reunir
coisas, por ordem bem do interior
do coração e do pensamento:
a ternura dos avós, uma mancheia;
rostos de primos distantes, uma pitada;
sons de sinos ao longe, quanto baste;
a recordação duma rua, uns bocadinhos
um velho livro de quadradinhos
duas angústia mais tardias, alguns restos de azevias,
a lembrança de vizinhos ainda vivos mas ausentes
e de uns já passados.
Quatro beijos de seres amados ou de parentes
um cachecol de boa lã cinzenta aos quadrados
e um pouco de azeite puro e fresco
igual ao que a mãe usava noutro tempo saudoso.
Mexe-se bem, leva-se ao forno
e fica pronto e saboroso
– mesmo que, nostálgica, se solte uma pequena lágrima.
MEMÓRIA DE LUDGERO VIEGAS PINTO
Lud vírgula Pedro Oom. Os dois vírgula como
dois braços abre parêntesis com várias mãos fecha
parentesis dum animal fabuloso Dois pontos assim como se estivessem
do tamanho duma casa vírgula
como em Monte da Pedra traço a terra onde eu encontrava o primeiro e
combináramos receber um dia o
segundo Fecha traço abre a porta deita pela janela o
toco do cigarro
Vai buscar um desenho deles para vírgula
por um momento te lembrares melhor. Nunca nos pudémos lá
encontrar os três Ponto o Lud tinha cara de mexicano o
Pedro sempre o achei parecido com vírgula
um antigo amanuense duma novela
húngara Ponto como em Lajos Zilahy. Agora
um e outro vírgula estão como se fossem dois arbustos vírgula
dois arbustos perdidos numa floresta das Ardenas Ponto final ou
três pontos três espaços três
lembranças amargas.
RITMOS
1
Percorro a cidade sem frio sem fome
Ando como uma sombra diria: uma pequena sombra
um fragmento escuro entre automóveis carros
baratos carros de luxo
Um hiato de carne entre casas Moradias
onde nunca entrarei.
2.
Conheço-as há tantos anos as suas imagens enchem-me
Repleto sou uma pança de reconhecimento de meiguice
ó casas sem nome com nome Casas bonitas casas feias
As casas da cidade habitual
As vozes não entram em mim ocupam-me
As flores que não há repousam modestamente
no sítio do costume
As que há desafiam-nas para existirem paralelamente
Entram na minha sombra
ondeiam estralejam.
3.
Afinal a minha fome é diferente
Talvez pior que a dos bravos rapazes dos Assentos
ou do bairro anão dos marroquinos
que misturam a polícia trancam-na em monossílabos
sangue e ruínas pistachos guisados de borrego
“morte, onde está tua vitória?”
– como na Bíblia se diz –
visitam com o seu gáudio os parentes
Eles são os grandes avatares do momento.
4.
Vede é a calva dum tal qualquer
límpida como a lua límpida como um sol
e eu sem fome e eu sem sono
Desespero. Tenho de que me queixar desfaleço
O meu fato de sempre pende-me do esqueleto
ouço a música e espero como uma sombra espero
Algo passa vai para um planeta distante vai para
o mundo todo o mundo
no sítio do costume.
SONETO (QUASE) INGLÊS
Como por Abril velho Abril antigo excede
Voz de meses e de anos rara vontade havida
Sob sua estrutura ou curvatura feita
Antes de lumes ruas e rios adormecidos.
Como luz por escura sóbria murmuração
Ou em mesa de pinho um rasto de outros tempos
Assim se solta a sombra assim figura cresce
Mesmo que só minutos nesses anos houvesse.
Num século fôra Agosto noutro século Setembro
E já por terra adentro as marés encalhavam
Que meses são como horas dias são como rostos
De muitos anos feitos em seus mares de desastre.
Que pois Novembro seja ou Janeiro para sempre
Barco ou ramo ou caminho em alta voz firmado
Penumbra que se acolhe em céus de sobressalto
Fragmentos de lembrança como um Outubro ou Maio.
Que por nossa memória meses são como árvores
Que em ondulantes traços palpitam sobre as casas.
AFRODITE
Chegar lentamente ao teu lugar preferido
Piscar-te o olho, sentir uma pequena mágoa
Sentir sede, dizer só para dentro
Deus proteja o meu riso, deus me dê um dicionário.
Saber quase ao acaso
que ardes como numa casa um suicidado
em agonia um animal por exemplo um canário
normalíssimo mas com um adejar suspeito
olhado de lado por alguém que não se lembrará de ti
Um corpo um cântico sugestivo profético
sobre uma cama que só há no poema por baixo
Contar-te longamente longamente
– fingir se fôr preciso a amargura das horas –
E contar-te de novo um bocado um fragmento
Linhas versos um trecho excepcionalmente amargo
Não apenas vinho. Mas também isso.
Ou água ardente. E sal e outras maravilhas.
Olhar-te como se olha um lenço velho
De pescoço ou um par de calças esfarrapadas.
No mar, receio dizer-te, não se encontram
Linhas de fuga, finos tecidos vogando sobre as ondas.
Cobrir-te lentamente os membros superiores
De negrume e de coisas tranquilas e secretas
num tempo devastado e inteiramente vago.
Informar-te assim como quem não sabe o que faz
Que mais ou menos há monstros e que há vozes a toda a volta.
Os perigos os remotos usos os lindos cabelos entre as páginas
Estão por aqui, por ali, e tu adormeces no seu conforto.
TESTAMENTO
(ao meu filho Pedro, cientista)
Julian P. Snyders, biólogo
do Instituto Federal da velha terra dos
Iroqueses – os olhos
inteiramente iguais a qualquer de nós – observa
pelo microscópio e vê: o cendrado da cor química
como as folhas de uma tília às quatro da
manhã, no pequeno espelho suporte do
aparelho desaparece – pouco a pouco. O instrumento
é assim uma presença
viva. O ruído
como de aluvião em perpétuo movimento: a mosca
sobre a mesa. Julian P.Snyders, marca
de carne na sala mobilada, ou
António, Ezequiel, Isaías
Joaquim, Moisés, Absalão
nomes muitos, como aves na noite e
na encosta norte do seu próprio corpo
para utensílios raros.
Julian nota qualquer coisa incerta.
Rosada na tarde
branca de madrugada
como máquina folicular ou elemento
primordial, sobe enfim a seus olhos o minúsculo
foco sensível. Vega ou Hiperyon, a madeira e o
tempo destruído. Em 22 de Fevereiro de 1952, um
jardim cobria-se de novos silêncios e a
neve era de novo a cicatriz aberta
na cidade. Uma
lembrança de pastores, o
braseiro junto a muros derrocados, branco
fora e dentro do mundo. Íntima devastação.
Antes dizer: que esse
inteiramente só o achariam, surdos
trabalhos de alma, como objectos quebrados.
Julian P.Snyders, olhando
retendo, erguendo, buscando
a quem o deve atribuir, enquanto
cataclismo e criação? Nada
como parede onde um prego susteve
imagem e momento.
Aqui estive, então
morto e humilhado, acto
como sombra e destino, imagem em nós
projectada. Julian, etc., incomum
a mim como eu a ele – a natureza e sinal –
dissolve-se no tempo como um ardido
bosque em
alto caminho impossível.
VOZ DE AMOR
Não te direi poemas e sim vulgares palavras
– como café, cadeira, naco de pão, um copo
de água para refrescar os minutos
ou “cuidado com o carro” ou “que te deu?” ou ainda
“não estejas triste, está aqui a minha mão”. Palavras
com que se fazem os poemas mas agora só presas
ao natural de um dia, ao natural do tempo
ao natural de quem fala com as palavras todas.
Palavras como “pena”, como “chuva” ou então “já é noite!”
e “o dia foi tão rápido”, palavras que irão cair
dentro de um bolso, no coração fendido, nos olhos perdidos
até na música que reboa dentro de um peito ausente
palavras seja de perdão seja de febre, palavras
apenas sons sobre a angústia da tarde. E a palavra “alegria”
e a palavra “segredo”
e aquelas palavras que se não dizem ou se dizem
quando as palavras findam por já não precisarem
senão de silêncio entre duas bocas que serenamente se calam.
Sim, e as palavras desaparecidas
e as que não viveram
e as que saudamos como companheiras de viagem
que reconhecemos e com quem trocamos um olhar
porque as palavras sabem esperar no escuro
e é nesse escuro que aguardam o seu momento
palavras breves
que nos amaram por fora de nós
que nos conhecem
que sempre nos haverão de conhecer
palavras como “ontem”
como “depois”
como “sempre”
palavras que já não estão em nós
pois existem em nossa volta
são o nosso ar e o nosso sangue
o nosso momento infinito.
VARIAÇÕES PARA UM AMIGO
QUE ME ENDEREÇOU UM REPTO
“D. Quixote é o Cristo deste tempo” – MT
D. Quixote e o burro que são Cristo por ora
Ou o Sancho cavalo andando junto dos quatro
Moinho que Rocinante foi antes de todos eles
Mais a voz de Dona Aldonsa que por seu valor se ergueu
Seja manhã ou tarde ou muito depois de isso
Que vai ou fica no século que se gerou de trás
Cristo que por Rocinante se conhece com seu imenso
Tempo de burro como peregrino semi-morto e tenaz
Em frente suas andanças com a póstuma piedade
De ser cavalo no tempo de ser não mais que miragem.
Mas agora Quixote e Sancho e Rocinante
E D.Aldonsa e o burro sobre as suas figuras todas
E os gigantes que olham seu testemunho de séculos
Seja nos campos de Espanha seja nos outros lugares
Da erma melancolia para um burro ou um cavalo
Só Quixote só Cristo só Sancho ou só Aldonsa
Que param junto a moinhos no depois de essas vozes
Que se geram de frente como no tempo de outros tantos
Gigantes sempre de antes como miragens valorosas
Peregrinos todos eles como muitos junto de isso.
E por Sancho ou por Cristo Quixote se faz tarde
Na manhã do cavalo seu testemunho dos tempos
Bem cedo por seus campos no depois do seu burro
Seja em lugares de Espanha ou nos séculos de piedade.
GUITARRA
a Carlos Paredes
O som das cordas retesadas
e o cântico indistinto abandonado
das cidades na noite que ao encontro
da memória e dos minutos serenamente
dormem serenamente esperam
sob a luz que num perfil
de homem ou de animal
sabe que além do rio
há um acorde que nunca cessará
mesmo silencioso
ou desfeito.
DORME MEU FILHO
a Antero de Quental
Dizer: eis a tristeza. Dizer: a voz marinha
Dizer: soluço ou pedra ou crime ou diamante
Aranha talvez não, que o sol morto dos mortos
Escondeu toda a Terra, deslumbrado e medroso
Os barcos esperam docemente na manhã
Cobertos de hortências e de cravos
O canto intacto das sementes e das mãos.
Dizer: o escuro do mar e a inclinação
Do mar sobrevoando o universo.
Uma escada é um sepulcro ou uma ave branca
Apenas dependente do planeta originário.
E os rostos aguardam desesperadamente
O silêncio das praias frias e abandonadas
Nítidos, com a lua por adeus
Vão saindo da carícia e da lenda.
SEQUÊNCIA ESPANHOLA
SOLENIDADE
Porque me pedes o que não tenho
Rosas aos quilos, nuvens no mar
Um comboio louco p’los campos fora
A suspirar a transpirar
Porque me mostras coisas tão belas
Um anjo cego sobre um altar
Um cantor surdo na passerelle
A suspirar a transpirar
Porque me dizes coisas profundas
Um som de flauta para encantar
Um tiro no peito dum marinheiro
A suspirar a transpirar
Porque me dás quarenta beijos
E uma imagem subliminar
E um pontapé no baixo ventre
A suspirar a transpirar
Porque me assustas porque me espantas
Porque me fazes admirar
Os deuses que andam nas avenidas
A suspirar a transpirar
Só sei que tenho a voz aflita
De me rir tanto de protestar
Por me obrigares a andar aos tombos
A transpirar a suspirar.
PAISAGEM
Vem um e diz: quando passarem por uma porta aberta
Fechem-na com decisão
Só assim se multiplicarão
As bem-aventuranças.
Vai outro e refere: se um desconhecido vos fizer sinal
Num lugar quase deserto
Olhem para o céu e façam uma figa
Só assim as cigarras romperão a cantar.
E diz então o que primeiro falara: nos campos
Atirem muitas pedras para o ar
E ponham o chapéu sobre um maciço de dálias
E gritem alto o nome de um animal extinto
Só assim os pássaros os pombos os cavalos
Começarão a perceber
Que o contentamento não tem razão de ser
Excepto se as almas se transformarem
Num enorme barulho entre o arvoredo.
E o que respondia dirá então: se uma janela
Numa qualquer rua da cidade
Vos parecer que tem todos os vidros partidos
E que de lá sai um negro clarão
Ponham no ar a mão e riam baixinho
Pois só assim começará a madrugada.
BUCÓLICA
Olha lá, rouxinol
Onde tens a guarida?
Nos olhos de um pedinte
A fazer pela vida
Olha lá, rouxinol
Onde vais apressado?
Vou ali à igreja
Mais ao supermercado
Olha lá, rouxinol
Tens ideias decentes?
Tenho quatro narizes
E as orelhas pendentes
Mas, ai, ó rouxinol
Já não vejo o caminho…
Pede ao senhor polícia
Ou então ao vizinho
Mas é que, rouxinol
Vejo além muito escuro!
Compra um punhal de prata
P’ra ´screveres sobre um muro
Rouxinol, rouxinol
Tenho medo da noite!
Convida um monstro enorme
Para que ele te acoite
Rouxinol, já não vejo
Nem o sul nem o norte…
Compra um preservativo
P’ra dormires com a morte
Meu belo rouxinol
Levo vida de cão!
Marca um encontro a Deus
E dá-lhe um encontrão
ALENTEJO REVISITADO
a meu avô Francisco
1.
Do rosto que olha o Alentejo é o corpo
mas não somente o corpo a árvore
figueira junto ao mar um pássaro
perto do coração
Trigo que escutamos e que vemos
antes de ser o pão
A mão que desvenda
o sítio exacto da alma
vegetal animal e mineral
em todos os caminhos
Para sempre
um país sob a luz menino imemorial
2.
Durante tanto tempo foste
o companheiro das coisas vivas
Terás de encher agora os teus bosques ardentes
de neblina e silencio e animais sem condição
E deverás olhar as coisas mortas
como se todas as manhãs elas partissem
Tudo o que tens e que tiveste outrora
a paz que em vão buscaste tantos anos
nesse lugar fecundo ficará
Quanto oceano quanta sede quanta voz
na escuridão das searas que amanhecem
Alentejo um pão cortado
na sombra dos candeeiros dentro das casas desertas.
JARDIM
Oxalá ninguém esteja à minha espera
naquele lugar que perdi
não sou dali, desapareci
e tinha o Inverno no meu bolso
e a manhã guardada num cofre
Não sou assim, nunca te vi
oxalá tenham mudado de ideias
Tanta alegria imediata
e hoje o tempo como está parado
este é um planeta assombrado
tenho mais do dobro da vossa idade
O mar fica muito quieto no escuro
aqui connosco mesmo ao pé
Um estranho fulano põe-se a falar
para um pouco mais longe poder estar
Cresce comprido um velho braço
para um que escreve sem parar
e de repente fica muito quieto
Oxalá ninguém ninguém me conheça
e nem me pergunte que horas são
Agora vou de sobretudo
e vogo ao sabor da corrente
e sou um trôpego anjo mudo
com uma frase inteligente
no mais incerto lugar comum
Oxalá na taberna não haja pessoal
oxalá as lojas fiquem todas fechadas
oxalá na colina não se erga um espantalho
para termos razão de abalar outra vez
e ninguém repare na mancha que temos
um pouco por baixo do coração
Oxalá que já seja Verão
e que os cães se portem como cavalheiros
e os chapéus sejam sempre amarelos
ao contrário das uvas que são cor-de-rosa
Oxalá não me peçam para cantar
oxalá não me peçam para levitar
oxalá ninguém esteja à minha espera.
OUTONO
Em certos dias
não há quase nada que nos console.
Talvez só uma lembrança
de uma rua ou de uma casa
daquelas especiais
que havia quando éramos adolescentes
e enquanto tomávamos uma bebida
no café onde já nos deixavam estar
seguros da nossa importância
de pequenos pássaros aventureiros
olhávamos pensando
que quem lá morava
devia ter sem dúvida uma vida cheia de sonho.
Em certos dias
o grande mistério fica mudo
e o frio nem cheira a alfazema e rosmaninho
e só conseguimos falar a nosso respeito
anichados pelos recantos.
É bom haver requinte nas pequenas coisas
meter a mão no bolso
e achar uns tostões perdidos
saber que um gato é não mais que um pretexto
para dormirmos a sono solto
Mas a primeira coisa que avistamos
nesses dias sem agasalho
é muitas vezes só a voz dos meses
o choro dos dias santificados
Ou o cheiro dos frutos comidos há anos
e que agora frementes se afastam de nós
enquanto a nossa sombra sem fazer barulho
se coloca de mansinho lentamente devagarinho
bem junto da porta p’ra poder ir-se embora.
EVOCAÇÃO
Foste a palavra és a palavra
Mas para lá da palavra está a silhueta
a figura completa e incompleta
além das velhas salas da casa do jardim
A voz de inverno de verão
a voz nas manhãs de outono quando um vento súbito bulia
nas ramagens maiores que o meu desconhecimento
A tua mão no meu ombro uma inquietude
pelo menino pequeno tão deserto tão vago
a criança primordial dispersa pelos anos
talvez como um soluço
E era tão frio o corredor naqueles anos
– a luz que chegava vinha nas tuas mãos –
A tua figura um pouco enevoada como a lembro
Mais tarde percorrendo os muitos domingos a vir
Fazias bolos rias choravas
um dia te vi chorar com as mãos entrelaçadas
por um desgosto qualquer uma morte na família
Um dia te vi cosendo serenamente no clarão da janela
Mãe
onde estão onde estão os caminhos de outrora
o Pai os parentes a cabrinha branca
o teu lampejo fortuito de um momento de amargura
Idos como flocos de neve num horizonte cerrado
O teu vestido que nas feiras te dava luzimento
e o pão que barravas cuidadosamente como um trabalho árduo
erguendo o natural de um momento
Na noite de ruídos recordo o teu olhar
longínquo como porta que se fecha sem parar
próximo como uma toada um afago um sereno minuto.
CONSELHO
Não faças nada que te coloque
Um pouco a norte do que não sabes
Seja uma página seja horizonte
Ou uma pausa na morte alheia
Não tenhas nada na tua mão
Seja um junquilho seja uma carta
Que não provoque a toda a volta
Sorrisos tristes ou escuridão
Não tenhas hoje calor nem frio
Roupa estendida numa varanda
Um prato sujo e alguém que grita
Quando em segredo morrem as horas
Não abomines anos tão longos
Não faças peito frente ao espelho
Não atravanques o teu destino
Não te atrapalhes não sejas velho
Não lembres sempre os dias idos
Não te equivoques no restaurante
Não peças chuva para almoçar
Sê uma enorme sombra na lua.
Não faças nada que não te ponha
De novo dentro do tempo inteiro.
(Marco/La Codosera 2000)
ELE VOLTA SEGUNDA VEZ E CANTA
Eu devia ter percebido que afinal tudo estava distante
devia ter notado que algo estava ao contrário
Daquelas palavras não há e sabe tudo a mau agouro
As navalhas não se colocam daquela maneira
dentro das algibeiras. Nos versos elas não são assim
São só coisas p’ra espantar, às vezes para servir de pretexto
ou à culpa ou à dor. Mas por favor nunca à justeza dos dicionários.
Eu devia ter visto que os pregos ora aparecem ora desaparecem.
Que a coroa de espinhos e tudo o resto não perdura.
Como não me fui lembrar que podia ser apenas murmúrio ou sufocação?
Que fazia eu ali se os mantos as rendas que cobriam as cabeças
as vestes tão pequenas olhadas lá de cima
mesmo algum garoto que brincava
mesmo as pedras do chão
ou um pássaro que oscilando cruzava o céu entontecido
ou um grito de um mais impaciente
de repente eram imagem eram ilusão eram miragem
E tudo muito para além de qualquer ideia feita.
Como não me lembrei eu de que a um espanto
se segue provavelmente um arrepio?
Há anos que eles empregam termos que só nos perturbam.
Depois vem um grande pedaço de silencio. Depois
há sempre um ou uma que executa uma genuflexão
Depois repara-se que aquilo não podia ser assim
mas é demasiado tarde, já tudo se desvaneceu
e só ficaram ruínas ou p’lo contrário folhas cobertas
de uma escrita compacta que é quase impossível esbater.
Um embrulho dizem-me e eu viro-me com inocência
Que não, dizem-me ainda só podia ser um animal
Ou antes – segredam-me por vezes – tudo o que vês
é com toda a certeza uma montanha. E então faço as minhas contas
na cabeça cruzo um esvoaçar talvez um pouco violento
uma busca de algo inconcreto que me vem à memória
uma pena tão funda tão abandonada tão
sem adjectivos nem contornos.
Eu devia ter reparado que não basta chamar ou ser chamado
As palavras as melhores as mais exactas
são mesmo essas umas vezes só secura outras vezes
longe de tudo
E é então que se sabe que o ar que nos rodeia
terminou para sempre É então que se compreende
que as coisas não se movem misteriosamente
que as coisas simplesmente já não estão
nem nos mares nem na terra nem nas casas
onde se assiste a crimes e a salvações.
Talvez ainda vá a tempo, penso cá para mim, talvez ainda
possa ver e destrinçar verbos e conhecer substantivos. Que as palavras
tontas e coitadas horizontais e verticais não são
efémeras ou belas, não são sequer cintilações
nem tampouco recordações de algo perdido
pois só residem só se detêm sem que as toquemos
não no futuro não no passado mas no eterno presente.
ESPANHOLA
Ela trazia nas mãos um objecto que desconhecia
Um garfo, um maço de tabaco, três pincéis
E um retrato inacabado e seis nozes esmigalhadas
E duas meias por coser e trinta farrapos de algodão
Que umas vezes levantava no ar outras escondia num bolso
Como um osso no primeiro verso mas já reconfigurado
Trazia uma profunda nostalgia mas isso era apenas engano
E não havia ali por perto papéis rasgados trapos velhos
Tudo aquilo era não mais que ilusão logro ansiedade
Como se no segundo verso houvesse ternura e terror
E tudo em volta dançasse cantasse apodrecesse
Ela era uma espécie de ave a quem ninguém pedia contas
Era, digamos assim, um sinal que alguém compreendia
Qualquer coisa realmente absolutamente material
Que se raspava da parede Colocava num belo frasco vazio
Como se tudo fosse desaparecer a qualquer momento
como se por trás de tudo estivesse apenas um soluço.
CARTA DE SAMYAZA RAFACALE AO SEU AMIGO AZAZELO EYQUEM DE REICHNAU, DUAS SEMANAS APÓS TEREM POUSADO NO PLANETA NÚMERO TRÊS A QUE CHAMARAM EUROBOROS E ANTES DA MUDANÇA DE ESTAÇÕES A QUE DEPOIS SE IRIA CHAMAR INVERNO/PRIMAVERA
Caríssimo:
Não é preciso dizer-te que isto a princípio foi monótono: amarração, desprendimento, notação de azimutes, um pouco da Teoria dos Contínuos, muita indecisão entre ficarmos mesmo na ilha ou irmos até ao continente que se divisava, horas altas, para além das montanhas com as suas cúpulas de neves eternas que pareciam sair da neblina que a certas alturas do dia cobria o mar.
O comandante Theos Gallipoli (tu sabes, o tal que depois foi nomeado pelo Conselho logo a seguir ao conflitozinho com os de Inergaum o que se calhar até foi por cunhas mas não vamos agora por aí) deu ordem para que a princípio ninguém saísse, o que constituiu uma estucha que tu nem calculas. No entanto, a breve trecho teve de se deixar de coisas, até porque depois de tanto tempo de navegação a malta estava realmente atormentada. Um dia vi materializar-se, mesmo na minha frente, a figura de meu tio Asmodeu, como sempre com um copo de boa pinga na dextra enquanto recitava pausadamente a partir dum velho manuscrito que balançava na sinistra: “A vós, os embusteiros, que o infinito passou a provérbio / direi apenas que havereis de ver / num canto do jardim e às escondidas / uma simples cadeira / um artefacto / para as mais formosas, aquelas / que melhor irão dançar. Nos anos a vir / vos serão revelados /os certos e justos condimentos sobre as mesas: / só sangue numas / só terra noutras mais / E por isso havereis de as mãos passar/ sobre as colchas das alheias camas / em quartos serenos e alegres. Havereis de saber / que a vossa imagem está por detrás / só de branco ou de negro vestida / Como vosso pai venerável / num outono ou num verão / sem intervalos nem sonhos.”. Pareceram-me palavras proféticas, mas não o vou jurar. Em todo o caso posso garantir que não se tratou dum holograma nem mesmo duma projecção mental daquelas que o velho Mummu Tiamat, disfarçado de deus do Caos, nos propiciou para nos chatear aquando da nossa viagem a Bifrons, quando eu ainda era tenente e tu um oficial geómetra. (Belos momentos ali passámos, lembras-te meu colhudo, cala-te já!). Jamais te mostrarei, asseguro-te, a fealdade do mal, falam-me em que há por aqui uns cabelos negros um pouco encaracolados e é verdade, uns olhos assim deste tamanho, ai ai, dizendo com o espírito que encontramos nos melhores momentos, em resumo traduzo-te sem querer ter graça e é garantido: o Samael está a perder as penas da asa direita, mas adiante. Ia eu dizendo que as Obras do Tempo nos fizeram passar de um plano a outro, então eu fui ter com o comandante e resolvêmos que iria eu e vinte e seis outros, a princípio, apalpar o ambiente. Tudo gente de gabarito, estupenda tripulação, o Lucy à última da hora também se propôs ir connosco eu tinha entrado no vaivém e lá foi ele num ápice a buscar o escafandro e o capacete de esmeralda, afinal não iria fazer falta a aragem engole-se que é um regalo. Era já noite entrada quando aterrámos. Uma lua de intensos raios iluminava tudo. Ouviam-se risos para noroeste. Um som de flauta, um zumbido intraduzível que te posso apenas sugerir, falta-me jeito para profeta de certos mesteres triviais, mas crê que era tudo uma nova volúpia. No écran da esquerda nada se via. O da direita ficara iluminado a valer. Como sabes sempre enjoei um bocado a altas velocidades, mas o que se divisava era duma beleza inigualável: jornadas de trinta mil quilómetros, upa, sou capaz de me aguentar daqui até lá sem beber água, quando deixámos de pairar sobre as vagas as flores vieram todas, como doidas, pousar-nos nos cabelos e de repente achei-me sem ar, sem negrume, sem apetite, rodava como uma bola de vidro, entrava na velhice, coçava-me sem dar por isso e de repente tudo acabou. Tínhamos chegado.
Eram tendas, tendas e cabanas de tijolo. Perto, um ribeiro repleto de canaviais, salsa e hortelã, outras ervas banais e benignas, ovelhas e cabras, um ou outro cavalo, meia dúzia de burros. E seres a que depois chamámos homens.
De modo que cá estamos vai já para três semanas e, crê no que te digo, ainda nem sequer apresentei relatório. Como, bebo, até me parece que engordei um bocado. Das sete às nove leio sobre a teoria das coisas plásticas. Eles acreditam em feitiçarias, banham-se de manhã nas águas mais profundas, uma das morenas até me vai ensinar a pescar. Pelo meu lado, ensino-lhe a ciência dos cosméticos. É taful, mexe-se que é um regalo e gosta de me ouvir contar-lhe balelas. O pai é cameleiro e nunca viu mais mundo que o que termina no horizonte. O seu antepassado, um tal Enkidu, ensinou-lhe a fazer vinho e a tecer a lã, eu já lhe dei umas noções de ourivesaria e creio que dará um bom ferreiro. Vamos a ver.
O Beemoth vi-o ontem: ia de braço dado com uma garina esbelta mas de boa peida, olhos rinchões, tás a ver. Veremos o que isto dá. Logo comunico com o lar pelas ondas alfa, dá certo conforto ver o pontinho de luz lá no alto, mesmo sendo um sacripanta o comandante irá gostar disto aqui, insisti com ele para que descesse. Há por estes sítios gente com interesse, têm muitas virtualidades fora a inocência, não sei ainda se daqui a uma semana iremos passar para as terras do lado de lá do deserto.
Há bocado ofereceram-me um assado de pavão real. Acompanhei-o com um moscatel que não te digo nada. Sinto-me cheio de genica, o Iblis vai retransmitir isto em diferido.
Abraça-te sem sofrimento, mesmo levando em conta a ausência, o teu velho
Samyaza, o língua ágil “
FALA DO PASTOR NO DIA SEGUINTE
Eu estava era de manhã quase junto ao casebre baixara-me
para desapertar a corda de esparto do pescoço da cabra
Não o vi chegar mas ele viera a pé
O assobio delicado entredentes quase um sopro
Retraído para que não me assustasse
Fiquei a olhá-lo era grande a minha tristeza no entanto
não sentia nem melancolia nem receio Apenas soltei um suspiro uma espécie de riso
um pouco talvez de divertido pasmo
Ao longe o sol de Março Ao longe o brilho de uma árvore
Piscou-me o olho O seu rosto estava na meia sombra
A cabra quedara-se como estátua agora roçava-se-lhe na perna
Segui-o Ele entrara na casa
Os meus passos como se ressoassem em chão de tábua.
Pousou a mão sobre a mesa um sobressalto de pó
erguera-se a um canto.
Não lhe olhei nem as mãos nem a testa requeimada
que um vinco de sangue sulcava
Sabes? perguntou com a voz enrouquecida
e todavia clara Um certo ar de perplexidade
Alguma daquela gente não era de facto gente de bem
Enchi um copo com o vinho que me sobrara da véspera
Sabes? disse-me então e limpava a boca com um dedo
Alguns deles não sabiam de facto o que diziam
Teriam sabido o que faziam?
Poderei doravante carregar este destino? pensei eu
E contudo a resposta já eu a conhecia.
E ali ficou sentado. As mãos abandonadas no regaço. E a amargura
entrou em mim.
Ao sair
olhei a cabrinha que se chegara trémula junto da porta
Olhei-a como se do seu pelo um clarão negro se soltasse
Olhei-a e senti o mundo parado para sempre.
E assim o vi eu depois que regressara de entre os mortos.
O QUE OS OLHOS NOS DÃO
Poucos dias depois
os afagos do vento eram pequenas pedras
salpicos, sedimentos ruídos no silêncio
na luz filtrada.
Então, avancei-lhe com o fumo
Os deuses todos à porfia
– autocarros e placas como sinais funestos
emanações de vozes
murmúrios lancinantes:
a senhora do canto um yogurt esmagado.
Então, avancei-lhe com o riso
O latim que se esquece e as contas por pagar,
mãos que batem, obscuras pés carregados de sono
cabeleiras ligeiramente balançando
como obscenas frágeis aves mortas.
Então, avancei-lhe com a chuva
Rostos sempre de lado, o barulho que faz
como que um circuito por onde o ar se escapa
para este mundo e o outro.
Então, avancei-lhe com o grito
A tua forma agitada. A noite mais que esboçada.
A refeição igual à invisível fadiga
e o rumor que adormece estendido no escuro
Então, avancei-lhe com a lonjura
Mas dirijo-me ao doce contaminar da multidão
– tudo agora já livre e jamais consumado
Construída nudez. Submissa sonolência
como se nada os salvasse.
Então, avancei-lhe com o conforto
E com essa passagem que a eles vai direita
e se torna no seu impreciso país
E com a neblina
e o desconsolo
Porque tudo se recolhe
e oculta na sombra viva
Fecunda solitária
e há muito tempo fria.
PESSOA INÚMERO
aos Irmãos de H.
O que me interessa em Pessoa (máscara)
seja ele Fernando, Alberto ou Álvaro
é o ar grego e geométrico da sua casa
– casa dos seus versos exteriores –
onde as plantas terrenas, totalmente terrenas
com que enfeitou os seus dias e noites
aguardam sonolentas no calor do dia
a música, as abelhas, a lenta putrefacção
da clara Natureza na noite nascente.
Parece que escrevia bem o inglês
(descobriram isso, embora não seja seguro
depois de falecer)
tão bem que os rostos de Tennyson,
Shelley, Whitmann, Shakespeare
e alguns outros indistinguíveis
vieram pousar sobre o seu rosto engelhado:
numa aldeia galesa os habitantes
julgam recordar-se dum fantasma de gabardina
que numa tarde foi segundo consta avistado
por velhos, crianças e amáveis mulheres
andando entontecido pelas ruas sem destino
sombra aqui, sombra acolá
– o que era, aliás, apenas fingimento.
Por cá evidentemente sua-se de novo
o ranho, o esperma e o sangue dos poetas
(carrascão, ginjinha, uísque e soda?)
a sério e a brincar
o que dá jeito expressão serenidade.
Algures, num jardim real, o neófito agoniza
ombro com ombro, barba com barba
para que a chama da candeia luza ainda
numa rua onde nunca choverá
Algures, um laranjal incendeia-se de repente
e as aves partem em bando
mas já frias como dobrada à moda
de nenhures. Numa sala
um gato absorto olha o mostrador dum relógio
olha sem entender
e numa certa janela um lenço acena de vez
E a figura de arame de Pessoa (máscara)
dentro dum automóvel de brinquedo
na velha estrada de Sintra
que não existe, nunca existirá
– e por isso, ó minha alma, é bem real –
despenha-se explodindo no coração
do Mundo (ausente).
PRECE
O senhor Marcelo
o senhor Gonçalves
o senhor Ramiro
que dá passos que ressoam.
A senhora Adelaide
a menina Cecília
o gato do senhor Victor
um ronco muito ligeiro sobre o ar, sobre as flores.
A tinta no meu peito espalha-se no vosso rosto
canta como um galo saudado o intervalo
entre os meses, os grandes meses bravios
em que acordais de repente, surpresos como os arcanjos.
Senhor Marcelo, protegei-me
dai-me o fruto do vosso dia impoluto
Menina Cecília, por favor por favor
dizei-me que a imensa floresta me será sempre propícia.
As árvores, as grandes árvores solitárias
suspensas como ruas que tremem quando amanhece
que tremem como vós, senhor Ramiro, velho compincha
quando ao pequeno almoço ergueis a vossa face lívida.
Meus amigos, meus amigos, pequenos animais nocturnos
frutos como eu indistintos minúsculos pedaços de acasos.
PARÁBOLA
O verde está ao norte na esplanada da manhã.
O azul por dentro da camisa do primeiro barítono.
O castanho debaixo duma carta dum primo distante.
O preto ficou parado: estendeu-se sob uma laranjeira.
O anil, por seu turno, nada fez.
O violeta censurou-lhe a preguiça e agora vão os dois de braço dado.
O cinzento mora no sovaco de um cardeal francês e ressona.
O amarelo foi devagarinho aninhar-se por detrás duma garrafa de conhaque.
Algumas outras cores dançam de roda. Duas delas cantam:” Naquele dia
o meu amor nadou sete quilómetros/ ao longo dum rio caudaloso
e os girassóis estremeceram/ cheínhos de saudade“.
Uma cor pequena e modesta subiu para cima duma cadeira
e pediu atenção. “Era uma vez“, disse com voz clara e sóbria
– e todas as cores, sonolentas, desataram a sorrir.
GENEALOGIA
Meu tetravô de Pontevedra que agora sei que existiu
teria conhecido um dia os pinheirais de São Mamede?
Dessa terra de meigas trouxe decerto recordações
quando foi para Alburquerque para casar por amor
com uma Ana de Cáceres, como o Livro me diz
– o que os meus filhos me deram por lembrança da mãe
como presente de Natal – genealogias fecundas
do coração do tempo. Teria alguma vez andado por estas ruas
ou mesmo pelos meandros do Reguengo?
Ele, que era hortelão, como meus antepassados
mais antigos, que sonhos acalentou
pelos dias, pelas noites duma terra diferente?
Já nestas terras alentejanas, chamar-lhe-iam talvez
o espanhol, mas sem maldade, antes de lhe nascerem netos
como ele se calhar com sotaque galego
e memórias de lugares onde seus pais se criaram.
Meu tetravô que buscava nos campos portugueses
– o amor da aventura, a procura do pão
ou apenas horizontes gratos ao seu coração
de rapaz novo e forte com sede de conhecer
outros rumos e gentes, desconhecidas raízes?
Bailaria nas festas? Olharia os caminhos
tão velhos e tão novos da planície e da serra?
Guardaria num baú utensílios da infância
que sempre nos acalentam, sempre nos enternecem?
Meu tetravô de Pontevedra, meu quintavô já velho
de anos depois lançados na lembrança dos meses
que jamais nos devolvem o passado que tivemos
agora vive em mim, agora sei que existiu
como depois dele houve os Gonçalves, os Garções
e muitos mais do futuro que depois de mim virão.
Meu sextavô espanhol, lá da terra das meigas
saúda-me decerto, saúda-me dos longes
com indistinta voz em surdina, galega
mesmo já do além ou de dentro dum livro
– ao hortelão-poeta que agora aqui o lembra
que agora aqui o escreve
emocionadamente.
POEMAS SINFÓNICOS
a Robert Schuman
I andamento
Somos conduzidos às raízes dos sonhos, na direcção
do branco e cauterizante calor da visão.
Somos tão moldáveis pelas forças ocultas
quanto por seus próprios moldes ocultos.
É mais fácil bloquearmo-nos contra as aterradoras visões da realidade que permanecermos abertos e vulneráveis ao que elas nos confiam.
Vivemos num mundo fluido, maleável, que frequentemente escorrega por entre os nossos dedos.
Como a inconstância da pele sob a seda
do muro sob a cal
possuimos um cérebro alado
que voa ao sabor da ventania,
um penumbroso lugar transformado
numa grande tempestade solar. A consciência é
cumprir a vontade de um desejo sempre reprimido, mas
o poeta bebe a liberdade por um cálice de vidro resplandecente.
“Se nada é verdadeiro, tudo é permitido”. Assim pensam aqueles
que no dia-a-dia tentam fazer-nos morder o pó da terra para
nos comerem a carne e os ossos como vampiros de lenda.
Continuaremos, todavia, a olhar a noite estrelada como se o Norte
e o Sul fossem uma só coisa viva.
II andamento
Ahora es tarde
Ahora ya nada será como antes
Ahora te quiero
Ahora hablaré con el reloj de mi abuelo
Ahora hablaré con la máquina de coser de mi tia
En estos tiempos hay que estar muy seguro
Los objectos son como minutos fugaces.
Ahora
cuéntame el sueño que guardas en tu corazón
como la luz en el pecho de un muerto.
III andamento
Perco em todos os dias eléctricos combóios e
todos os dias a máquina de escrever me dita um poema
todos os dias largo o emprego e
o amor cresce-me nas orelhas. Mal te vejo, pois
o horizonte é imutável
e nas ruas desce de novo a sombra
Os crocodilos de todos os momentos
devoram-me a vontade e
todos os dias renasço. Primaveras
apavoradas
O sol finge que brilha todos os dias e
as pernas soltam-se dia sim dia não
para correrem nos espaços abertos
entre o presente e o futuro.
Parece-te bem? Como se um barco te passasse
sob o nariz?
IV andamento
Mejor así!
Vale. Soy como un árbol
en el dia destrozado. Alguien
me contempla indeciso, en blanco y negro
emocionado.
Rompe a llorar y le tiemblan
los brazos
Es que, quizás, me falta gracia.
Perdoname. Lo siento.
Soy como um perro
en la imensidad de tus coloridos ojos.
PRIMEIRO POEMA DE SAMYAZA
Na parede já velha leves riscos, duas
ou três manchas vagas, um vestígio
de memórias de insectos de retratos.
Um pretexto, afinal, para que vivam
recordações saídas de outros mundos
como a vontade súbita de erguer
a mão que nos fascina, uma palavra
desprendida, temível, solitária.
Como um olhar seguindo
o nível do horizonte, quando à tarde
os pássaros se despedem para sempre.
Qualquer coisa esquecida
plena de movimento ou de amargura.
Como o fogo ou a água
num poema de outrora
alheio ou por escrever
Nos outros reinos ausentes
num pensamento vago
ou num papel perdido.
COMO EM FOLHA ESTRANGEIRA
“A liberdade umas vezes é azul outras amarela, às vezes visível
e outras invisível” Georges Schehadé
Senhora vossa excelência madame chegue aqui ao pé de mim
quando tu me olhas o meu ouvido que há tantos anos esqueci
o meu ouvido esquerdo se assim o digo o do meio aquele mesmo do fundo
o que amei mais do que posso pensar o tal que me fazia tanta falta
ou é dos meus olhos já agora o outro do outro lado
aquele meio assombrado um lábio ou talvez o nariz
uma espécie de abalo de terra um braço um dedo mindinho mais que não fôsse
a estranha combinação entre um ponto cardeal e uma frase assombrada.
Então como é que vai ser?
Mas como dizia madame minha senhora sua relambona de firmes convicções
Quero eu dizer há por perto uma estrela um caco de barro um encantamento
Pois não será assim ó tu a quem julguei como Job na primeira aparição
Senhora aqui entre nós por entre os ramos sentem-se figuras um pouco sumidas
E o teu contentamento o teu digamos medo admiração digamos mesmo surpresa
Calada senhora caladinha é que tu devias estar
E mesmo que fôsse frente ao mar e então e isso que é que tinha
As coisas negras madame não se acoitam em folhas em trejeitos em limites menores
Já devias sabê-lo desde que Hefestos passou para o lado onde tudo se reconvertia.
Fatalmente senhora isto teria de acabar mal bem mal
Como madame você talvez saiba os destinos ora fecham ora acabam
Ora abrem e se suspendem no ar como uma lamentação intempestiva
E eles sabem compreendem concebem mesmo disfarçadamente
Que um pedaço de carne um bocado de sangue um rasgo de veias vibrantes
Ouvem-se ao crepúsculo. Como se ouvem, essas palpitações!
Um impulso vem de cima, dizem-me algures
Outro impulso vem de baixo, se é que não se enganaram
Segue-se o norte
E depois o sudoeste e provavelmente o ainda mais ao lado
E – quereis acreditar – a solução é fingir que se não vê
Que nem há estrela, nem nada que se pareça com madeira, nem sequer
Palavras que um qualquer esqueceu e que procura esconder atrás das costas.
Madame senhora ó linda virgem das vestes arrepanhadas
O melhor é esquecermos tudo e passarmos brandamente para o lugar vazio
O melhor é verdadeiramente colocar a mão sobre as palavras amadas
Palavras isso sim postas num papel, espalhando-se sobre a nossa língua
A língua das palavras dos gritos a língua língua dos mitos e dos medos
Pois e agora como é que eu o vou encontrar?
Disso não há em parte alguma
Disso não se conhece senão a silhueta
Disso não há nem menção nem perfil
E muito menos um gesto a esperança um arrepio.
Senhora querida madame ó vulto que desenho em mim em ti com emoção com fúria
Com pequenos amuos com prováveis excelentes intenções
Veias minhas traços meus de sangue sem que o soubesse mais estranhos que o sol.
SEIS FOTOGRAFIAS DE PABLO NERUDA
Primeira foto: Neruda com o pai, aos três anos. A mãe tinha ido a Cochabamba comprar figos. No rosto da criança lê-se uma expressão ansiosa. Nessa manhã o seu primo Felipe, dois anos mais velho, oferecera-lhe um gaio. A mão do pequeno Ricardo (chamava-se então apenas Ricardo Reys Basualto) parece um pouco enclavinhada na fímbria do casaco do seu progenitor.
Segunda foto: Neruda no terreiro junto da casa familiar. Os olhos assustados. Vira nessa manhã uma cobra junto a um muro. Podemos imaginar como à criança de seis anos essa visão inusitada perturbara. Traz uma camisita branca de folhos. O cabelo é um pouco revolto, como se lhe tivesse dado uma brisa indiscreta e prazenteira.
Terceira foto: Neruda na sala de aulas. Percebe-se que olha com alguma inquietação o professor, como se este lhe tivesse comunicado coisas inomináveis. Na carteira em frente da sua, uma mocita sensivelmente da sua idade deixa ver meio-perfil. A sua expressão é de clara expectativa.
Quarta-foto: Neruda numa praça de Santiago. Tem um pouco mais de vinte e três anos.
Um ar de intensa concentração. Olha a direito, com seriedade e decisão. Os passantes nota-se que reparam atentamente neste jovem a quem as musas decerto têm sorrido. Entende-se que o autor de “Residência na Terra” possui mil razões para permanecer tanto no mar como na terra dos silêncios e das buscas.
Quinta foto: Neruda junto de César Vallejo. Um ricto intraduzível paira-lhe no rosto. Vallejo, que mais tarde iria morrer de uma doença desconhecida, com os ombros erguidos mostra ao amigo a força de quem tem por si o génio e a esperança. É sabido quanto Neruda o admirava, ainda que não o soubesse ou pudesse demonstrá-lo.
Sexta foto: Neruda numa sala, intensamente concentrado, ouvindo a telefonia. Transmitem o relatório Kruscheff, cujas revelações iriam espantar intelectuais em todo o mundo. A expressão do poeta de “Canto geral” é de claro sofrimento. Um dia mais tarde, na Isla Negra, Pablo Neruda irá relembrar as conversas com Vallejo e uma dor muito funda atravessar-lhe-á o coração. As recordações da guerra de Espanha afinal permaneceram na sua memória até ao momento devastador da morte.
POEMA
Uma coisa pequena
quase inútil, afeiçoada no dia
tão vaga na noite
afastada nas horas do mundo
calada porque não mais
que objecto achado algures.
Além do elemento vegetal
para todos os anos
como diminuto utensílio
só para ser olhado
nem sequer pensado
De só ser visto
pelos olhos amados.
UM NATAL ÁS CORES
Em geral estava frio. Um frio límpido e seco
com um tom de cobalto muito escuro no horizonte, quando
surgiam no céu os primeiros luzeiros de Orion ou da
Ursa Maior. Para os lados de Ocidente, a seguir à noitinha, um clarão
débil propagava-se sobre o bosque de castanheiros: e eram as luzes
da cidade acocorada no princípio da aba da Serra, estendida
no pequeno vale para lá das colinas e dos pinhais.
Às vezes
chegava alguém até ao muro da azinhaga – primeiro sinal
de casas e de gente: e eram vizinhos das quintas em volta, alguns bufarinheiros
com a sua mala de corre-mundos, um que outro mendigo mais afeito
aos campos e à sua generosidade em que as Estações
se sucediam com figos, castanhas, laranjas ardentes de sumo e de cor, o bom pão dormido e coberto de toucinho rechinante ou rescendente de frescura
com o queijo duro e a manteiga entre duas capas de presunto. Porque à gente
de boa paz nunca se negava, por vontade do Pai e da Mãe,
o aconchego do estômago e uma que outra placa desviada ao serviço
de domésticas, económicas utilizações. E havia o tio Noitinhas
que, contava-se, fora rico e decaíra; o tio Chico do Mel (esse levava sempre, porque tinha o meu nome, um pedaço de chouriço ou de paio, de reforço);
a ti’ Ana Grila, que corria Ceca e Meca desbastando por dentro
a saudade de um filho e de um marido que lhe haviam morrido de desastre
lá para as lisboas da construção civil; e o tio Martinho,
sempre com um canito à ilharga: figura e retrato escarrapachado
do homem-do-saco que tantas vezes me faria
comer o prato sem tardança, ele que era manso e sereno
como um irmão de Heliópolis e cuja voz,
tirante as barbaças de monge, era suave posto que rouca e mais afeita
a dialogar com o rafeiro que a assustar fosse quem fosse.
Mas as crianças, já se sabe, vêem o tempo
com olhos maravilhados e sobre a sua imaginação corre uma brisa
deslumbrante e divina que lhes permite ver um emissário de mistérios e segredos
num pobre pedinte alentejano.
E depois, quase de repente, era Natal. Com todas as suas
maravilhas incógnitas: o grão cozido e pisado para o recheio
das azevias largas como uma palma de mão
ou diminutas
como um ninho de andorinha-do-mar; o bacalhau que o Pai trouxera
da cidade de juntura com misteriosos embrulhos
encaminhados à socapa para as secretas geografias das gavetas
da cómoda grande; a Tia cortando o pão
para a sopa de cação apaladado de alho
e demais ervas próprias, a Mãe estendendo o manto
das filhós depois fritas com cuidados e saberes de alquimista, a Mana
que ajudava neste e naquele trabalho para depois saber
quando crescesse com filhos e responsabilidades por dentro
e nas mãos operosas. E, pela noite,
vinham então a vizinha Mari’José, o vizinho Manuel Planeta, as filhas
Jacinta e Júlia e, às vezes, a minha Avó das histórias
com seu saquinho de malhas, lá de longe das Arronches,
e no meio duma conversa, dum riso, duma garfada, dling dlong
e era já meia-noite? Já, a missa do galo sentida por cima dos pinheiros, chegada
da capela de S. Cristóvão ainda não havido o Atalaião?
Sinal de fraternidade na noite subitamente silenciosa.
Um Natal às cores. Com as cores do passado. Fotografado
pela memória da infância e da recordação agradecida.
CANTOS DO DESERTO
1 Coisas, coisas e labirintos, pedras entre
pedras – que o sol aqui se põe muito mais tarde
A sonolência da erva Fórmulas mortas
que a memória nos dá. Tudo o que de longe pela noite
se vê Animais parados como desejos Como
desconhecidas raizes Figuras que de repente
erguemos por dentro (a casa nova e sem ninguém, a
oliveira cortada, a mágoa de saber que flores e frutos
são já de uma outra vida, pois que os meses
inconclusos se afastam). Bosques que num repente
devagar se consomem Destroços na lembrança
nos olhos ou nas chagas
Diferentes coisas sobre os espaços da manhã.
2 Vestígios de as águas Troncos mortos sílica
nas páginas impressas. O rosto um rosto
que se sabe perdido As leis do mundo
serenamente postas na paisagem. O negrume da noite
e um quadrado de açúcar no interior do tempo
Na chávena de chá
oferecida bebida no sopé da montanha.
À nossa frente, a casa
e uma figueira morta. Olhos semicerrados
pela ardência do ar – um corpo que submete
passos paragens sedes. Que em tudo se define
nossa pura vontade Não de
apenas zonas rochedos ou areias As aves
que nunca iremos ver.
3 Por uma palavra se
começa, por uma lembrança se inicia
a trajectória o poema a travessia o primeiro
rumo vicinal: a voz de um Senhor
Alarcón, vereador da Cultura – segundo o disse, parente
do Pedro António. Conversa de três bicos, conversa
de quem não tem do deserto senão mapa de poiso
eventual de cabras se as houvesse. Não poder informar não
alcançar, não ver
silhueta de acanto ou pintarroxo, não poder ter
nem papéis nem folhas de oliveira na cabeça
como o chapéu do conto
dos montes escalavrados Não ter viagem bendita para dar
a visitantes além do seu pequeno
rosto de um vaqueiro de pechisbeque. Assim
foi meu encontro primeiro com essas rochas de ao longe
ao perto ao raiar dos caminhos : o Alarcón
sem telefone para as dunas primitivas para os
movimentos da alma: a secura o calor que em estradas
de outra Europa pensei, vi e multipliquei
para meses distantes num depois no caminho digamos entre
Assumar e Arronches, no pino desse Verão
recordado: o combóio para Sul que os dias grandes nos davam
– seu verdadeiro coração dos espartais, do braço que embala (cinge) –
e era
um olhar nostálgico bem junto de Piedras Negras, a redondez
acústica o diagrama público lembrado a força
de um deltóide sustentando a mochila ou então
a rotação da luz a aridez sonora
da singeleza.
4 Não se entra no mundo
por desejo claro. Nem por
amor sequer. Não é figura erguida
ou rente ao chão nem
rocha na paisagem por tristeza
pensada e logo
escrita: seu sol, seu mar, seu
multiplicado silencio
de alegria. Não há vozes nem
figuras descobertas, desaparecendo no lugar
da pedra e terra sentidas. Por feliz
minuto, sua brusca
inclinação de serras prolongando-se
por entre a sombra do obscuro pensamento
do que se teve e se esqueceu. Coisas que se palpam, se sustentam
na mão mais do que em olhos
idos para sempre. Aqui a geografia vista como se mais
ou menos fôsse areia ou xisto ou fibrosa
matéria vegetal, ou algo de que
muito tempo depois se fizesse
utensílio propício a trabalhos
perenes, como algo bem preciso para os minutos
fugazes da existência: mesa limpa
chão lavado e o demais
que nas casas existe, a roupa e o
recheio de vidas dispersas pelos dias: um adeus entre
caminhos que se perpetuam – o penedo tocado, as plantas
vivazes e a água que se pensou
não existir senão em longínquas
paragens desconhecidas. Não existir
senão na vontade ou em
extremas solidões.
Não na palavra, não em coisas sobre a silhueta que nos rodeou
(esse tempo não o que nosso foi ou que nem
sequer nunca tivémos mas aquele
que era apenas imagem ou música difusa) e eis
a prolongada imensidão, o perfil duma memória, o gesto
de cabeça rodando, de rosto ferido um passo e outro passo
entre montanhas ao alvorecer.
Ou a sua lembrança
em momentos de amargura e enquanto a terra
espera o seu fulgor de eras distantes
de rumores de vozes
de um som de porta batendo
fechando ou erguendo o dia
Na mão que se suspende
e desenha depois o princípio
e o fim esperado
de todos os séculos das noites
da derradeira manhã.
5 Campos ardidos, campos onde não há casas nem uma parede mesmo derruída, lugares de alegria sob as manchas de sol ao longe nos montes subitamente brancos, restos de coisas feridas em terra ou no ar que se dissipa perturbando-nos, percorrendo-nos na manhã e na lembrança das horas nocturnas.
Ardidos mas não de lume, uma fronteira que passa ao norte do mar, um grito que nos sacode o coração e é um pássaro que no cimo do morro escalavrado aguarda como que a lua que não chegará envolta em halos difusos de cor sumida, como uma penumbra na montanha que espera outra sombra no desfiladeiro apenas entrevisto.
As moitas raquíticas nas cumeadas, por vezes brilhando como pequenas chamas negras sem cheiro de Primavera, sem odor de Verão, sem ressumar de Inverno. Outono de marcas meio destruídas num solo que é como palavras soltas no nosso pensamento, na nossa sabedoria esquecida e de que conhecemos todos os sulcos, todos os vestígios, universo perpetuamente dependendo dum destino feito para maiores silêncios, alegrias e desesperos, a lei das suas vidas de força desflorada, de mistério despojado como um coração em todos os abandonados bosques da terra.
NÃO VOU PARA PASÁRGADA
(ao Ricarte-Dácio)
Eu não quero ir p’ra Pasárgada.
Lá, estão os esbirros do Rei:
eles conhecem-me e sabem
tudo o que sei e não sei.
E o que sei eu? Sei amar
o que o ódio tem de mais fundo
sei que palácios olhar
na louca elipse do mundo
Sei o que chega e não chega
em bondade e maldição
e que, não chegando, entrega
o estranho, o raro, a traição
Conheço tudo o que navega
– antes assim do que assado –
como barca demente e cega
dela só tendo o mau-olhado
Mas não irei p’ra Pasárgada!
Mesmo co’a filha do Rei
nos meus braços, doce e amarga
para o que sei ou não sei…
Estarei contra o que leva
à vingança de esperar
o brilho sombrio da treva
de pança cheia, a arrotar
como os esbirros do Rei
dos que em Pasárgada estão
– e a quem somente darei
o raro, o estranho, a traição.
TEXTOS MAQUINAIS
1 – Ossos, pele, vento e sangue em torno dos anos que passaram. A vida. E também os produtos da Terra que existem na nossa memória: o perfil de hortas e pomares com as figuras de que guardamos um sentido de alegria e remorso, a doçura dum fruto imaginado.
2 – Põe a mão sobre a página de um livro e como se nada te oprimisse deixa-a repousar enquanto lá fora ressoam vozes desconhecidas. Talvez seja também assim que se acariciam as palavras. Palavras como coisas vulgares e repletas de amargura, serenidade, um som de sino dentro do livro.
3 – Estás absolutamente só e é noite. Bebes um copo de água e sentes o vidro de encontro à palma da mão. A mesma com que tocaste a página do livro. A mesma que te serviu para tanta coisa bela e inominável. Se agora o copo se despenhasse e partisse seria apenas um ruído sem relevo na vasta casa sem ninguém, mas contudo fervilhando de presenças que jamais poderás abandonar.
4 – Não te levantes. Não te sentes. Não comas, não espirres, não fales. O príncipe da ilha vê-se naquele quadro onde as estrelas são pedaços de metal simulado e não rodeiam nada que não seja apenas um eco. Do que disseste e não chegaste a dizer. Mas tu falas, espirras, sentas-te e comes, levantas-te e contigo se levanta o mundo e a sua circunstância.
5 – O equilíbrio entre um mas, um que, um de ou qualquer outra palavra é uma verdade que nunca pudeste entender, que nunca quiseste pronunciar. Por isso este escuro e este calor não são mais que elementos de um discurso destruído.
6 – Um universo de simulacros. Um momento de pequenos gestos onde não se conta, mesmo que penses o contrário, o brilho de um espelho que não é mais que uma coisa, apenas uma coisa insignificante. Sombria como tudo o que já nada nos diz.
7 – Alguém conta: quando vinha de volta enganei-me na estrada. Fui dar a um sítio onde havia apenas lixo de objectos inutilizados e quase podres.
E sem que se perceba porquê, uma sensação de medo apodera-se dos convivas.
8 – Escrevo. Depois apago. Era demasiado evidente. O som de uma máquina que num edifício ronrona, geme, perfura a manhã. Evocava uma rua sem ninguém, o rosto de um garoto andando devagar e olhando as portas…E de repente compreendo que tudo tinha um significado diferente, que tudo existe no todo, como algures a morte e a permanência.
9 – Um ferro de engomar junto ao caixote de tábua meio partido. Um cesto de plástico e outro de verga. E isto pode ser a revelação de um mundo que nos responde a cada momento se o soubermos interrogar entre quimeras e violências.
10 – O mar. A água do mar. Espessa como o óleo dum carburador, mas com uma estrutura de areia ou de vinho forte. A água que corrói, que lava e que serve para brincar, para olhar com alegria ou soturnamente nas praias das terras desertas. Nem sangue nem magma, apenas algo que é bom sentir que existe por fora, sob a lua e o sol.
11 – A terra. A terra que pisas e que vês: a terra castanha das hortas, a terra clara dos caminhos vicinais, a terra que é o contrário do metal com que se fazem as máquinas que andam sobre a terra e que vogam no espaço. Metal que dela veio e a ela voltará, como a carne dos homens e as sombras dos seus pensamentos.
12 – Uma série de palavras vulgares, bem como os olhares fortuitos e de relance sobre as coisas do dia (casas e automóveis, um rosto qualquer) e da noite (o negrume, a luz de uma cidade ao longe, os astros nocturnos) podem comunicar-nos a maravilha e a estranheza dum momento – tal como se fosse a súbita aparição dum mecanismo desconhecido.
13 – É a meia tarde. Nem um ruído se ouve deste lado da quinta. Sob as figueiras antigas, muito copadas, quase rentes ao chão, o acaso e o tempo e o desmazelo dos homens deixaram ficar pedaços de máquinas e utensílios velhos, desconjuntados, como se fossem esqueletos num campo crestado pelo sol de Junho.
14 – “- Se fosses uma máquina, qual gostarias de ser?”. O outro ficou interdito, depois um pequeno sorriso surgiu como uma porta que se entreabre: “Gostaria de ser uma debulhadora, uma dessas que quando eu era miúdo passavam perto da minha casa ao crepúsculo. Estrondeavam e eu vinha a correr, um pouco amedrontado mas fascinado e só voltava a entrar quando se perdiam na curva do caminho. Como um bando de feras ou uma nave que passa no firmamento”.
RETRATO
Foi no Verão e foi no Inverno
e se umas vezes era de tarde, noutras
vezes era de manhã. E era dia e era noite
quando isto foi. E foi imagem desenhada
e foi lugar e utensílios
noema e recordação e foi
porta e parede
o odor das sopas e dos assados, o odor
das outras partes da casa e do
exterior que entrava pela sacada em frente
da entrada
do poema.
Isto era
isto foi
isto é
ou seja
isto é, na verdade
que é como quem diz
isto não passa de retrato ausente e muito aqui
e muito acolá
mas é mais e por vezes menos, mas
em todo o caso é, é claro(escuro)
uma fotografia, leia-se
– um lado de fora das coisas
um lado de dentro das coisas
em resumo e concerteza
um fora que está por dentro dos seres e do mundo.
MOMENTO 1
(Serra de São Mamede)
Na região que habito, algures entre a África e a América, num lugar de montanhas e de florestas com pequenos cursos de água e casas entre as árvores, os entardeceres são quase iguais aos de qualquer parte não fôra o aparecimento repentino de figuras que não sei nomear.
Às vezes soam pelas quebradas trilos de flautas e solos de saxofone vindos como que do interior da terra. Ou será do ar que gira como se estivesse em sobressalto? Não é certamente das habitações, plasmadas num estranho sossego.
Em certos dias o horizonte perde-se na bruma. Então as figuras agitam-se, ganham tons mutáveis e luminosos e os que ali residem sentem uma brusca exaltação. As mulheres erguem os braços e rodopiam, observadas pelos homens que não ousam proferir palavra.
Já houve quem visse alguns com o pranto a escorrer pelas faces.
MOMENTO 2
(Niagara Falls)
Quando se chega da estrada que atravessou a pradaria e os bosques, é o espanto: como é que aquilo é possível? A seguir vem o encantamento: o rio coberto, na parte de cima, de ilhotas verdejantes e, na parte de baixo, de uma nuvem de fumo de água de vento e de remoínhos devido à força da “senhora do nevoeiro” (lady in the mist).
A força? A graça, para melhor dizer, porque aquela imensa e poderosa massa-de-água possui uma elegancia, uma beleza a que chamaria ática. Escorreita como uma escultura criada por um deus artista e benfazejo.
Ficam-se cinco, depois dez minutos, depois um quarto de hora. Depois meia hora e a seguir vai-se até à loja de recordações e merca-se o que o bolso nos pode dar.
Depois volta-se – para mais uma vez se lavarem os olhos naquela maravilha que também surpreendeu Chateaubriand.
Porque ela é a melhor recordação. Que nos acompanhará, interiormente, pelo resto do nosso tempo.
MOMENTO 3
(Georgian Bay)
Um perfume de paz. Árvores e mais árvores e um esquilo cinzento que, de súbito, salta quase junto aos nossos pés.
Num segundo, percebe-se que a felicidade é possível – por um momento que nos parece incorruptível.
Ao longe, o grito de uma ave de que nunca saberemos o nome. O castanho dourado da ramaria e, por sobre a colina, ao fundo, o sol sobre a praia do Lago Huron. Quase como se fosse em Carcavelos, não estivéssemos no antigo território dos corajosos guerreiros dos Grandes Lagos.
Em Sainte-Marie-des-Hurons subi a um pequeno forte para turista ver, enquanto os meus companheiros desciam ao restaurante servido por empregados índios.
Absolutamente só, olhando o rio e as florestas naquele fim de tarde, senti chegarem até mim as memórias adolescentes das histórias lidas no “Cavaleiro Andante”.
Depois, com a nostalgia a coalhar-se-me na garganta e nos olhos, fui para o restaurante acompanhá-los num retemperador “indian steak on the plate”…
MOMENTO 4
( Serra de Portalegre)
Ir à serra entre Porto da Espada, S. Julião e a Teixinha, em certos dias acalma-me e ilumina-me: é um dos locais mais isolados do Alentejo, um verdadeiro mundo à parte. Nessas alturas é-se imperiosamente suscitado a contemplar a urze do monte. E algumas paredes derruídas que, saiba-se lá porquê, ali existem. Seja-se Sagitário, Peixes, Virgem ou Leão, quem pode escapar à sua beleza, à sua serenidade na tarde cheia de sol ou sob as estrelas nascentes?
Tive de a fotografar. Mas depois as fotos agiram sobre mim num poderoso impulso e resolvi de chofre acrescentar-lhes elementos desenhados que as transformaram noutra estrutura. Ficaram de maneira peculiar (entre o mineral e o imaginado, o existente e o rigorosamente inconcebível) e parece-me que se uniram nelas o concreto da natureza e o abstracto da desconstrução.
VIAGEM
Naquele ano, na sala de entrada
do Museu do Homem (Otawa), em certos dias da semana
e durante alguns minutos os visitantes
mais observadores repararam numa aparição
que se materializava perto das esculturas
feitas de pedra macia pelos habitantes dos bosques
da província do Ontário. Um ou outro supuseram
que se tratava da figura de um homem-medicina
que buscava a sua antiga morada. Outros,
no entanto, disseram que não era mais
que um ectoplasma pertencente
a um cidadão da longínqua Europa.
ÁFRICA
1 Não, ela não fica ali à esquina. Ou talvez fique. Em todo o caso, poderemos dizer: os altiplanos de Kundelunga. Ou: os primeiros passos no deserto de Niyery, perto de Namanga e dos grandes planaltos como enclaves de plantas perpétuas que, tirada uma linha recta para a direita, léguas e léguas andadas, nos consente que encontremos à beira do mar a cidade de Kapini, nesse Índico onde outros nomes míticos ressoam: Mombaça, Dar-es-Salam, a ilha totalmente feita de dunas da Grande Baía mais a sul.
Os animais e seus silêncios, a grande solidão que os faz deter seja no Okavango seja na serra de Chela ou na fronteiras do rio perto de Bongassou.
E os homens e o seu rosto corroído pelo tempo. Como uma welswitchya mirabilis nos plainos requeimados, inabordáveis, de Moçâmedes.
2 “Here is a typical village”, referiu o guia olhando os outros dois viandantes.
Sobriamente, nenhum deles proferiu palavra. Entraram na primeira casa, espaçosa, com persianas de bambu e olharam em volta.
Sobre as mesas, cobertas de pó, copos de pé alto guardavam um líquido ambarino que luzia estranhamente. No chão, desirmanadas e dispersas, pequenas figuras talhadas em marfim repousavam ao calor . Sobre um sofá de couro de alto preço via-se um exemplar do “Público” e outro do “Saturday Evening Post” com o discurso de Henry Stanley dirigindo-se aos kukuyos aquando do primeiro combate.
“Henry Stanley, I presume“, disse o juíz entrando com a mão estendida. E nessa mão brilhava, como se estivesse enfeitiçada, uma factura do super-mercado onde o Dr. Levingstone usava ir abastecer-se.
Ao longe, por sobre as cubatas, o sol declinava. E foi então que o segundo viandante puxou da automática de nove tiros.
SETE QUADROS
Como o sete que vai do norte ao sul. Como os mares, as luas e as florestas. Como os ventos que se acrescentam nas moradias e nos lugares. Como o de dentro e o de fora das recordações, o antes do oito e o depois do seis: as três partes de baixo e as três de cima pelas quais o Homem se completa.
O que sai do oriente e se encontra no ocidente, as ruas e o interior daquilo que se construiu e que é vidro e cinza, firmamento e areia, pedra sobre as lembranças e sinal de escrita, de matéria ausente. A frescura do orvalho e o pólen ao redor de flores cuja imagem se multiplica perto da sombra numa parede. O sete da mágoa e do contentamento, das figuras que se reconhecem num relance em praças intermináveis. Sete espigas, sete peixes, sete animais desconhecidos. Sete frutos repousando sobre uma toalha de linho. Sete segredos entre o riso e a dor. Sete sinais ao longo duma viagem entre a noite e o dia.
Sete contemplações, sete olhares, sete palavras e, de repente, algo que ficou sendo apenas o um – o um que nos envolveu sem que o esperássemos e uma luz se quedasse sobre um caminho onde a penumbra havia pousado levemente o seu inconcreto horizonte.
ARS MAGNA
A arte
contemporânea – ou seja, a que com independência
de espírito se estabelece como tal – tem
o selo de quem ama de facto os traços, as cores e as
inflexões matéricas que nela se contêm
e, por isso, os cria fogosa ou serenamente.
(Aqui um esboço
de Beckman ou
de Lyle Carbajal ou mesmo
uma aguarela incompleta de Cézanne
ou até uma folha semi-queimada
semi-rasgada de Wolfli, o que no seu
quarto do manicómio onde residiu uma vintena
de anos, acendia velas de estearina a Santa Realidade
que para ele
era a enfermeira que o amparava no seu desgosto).
Esses que a fazem
por um imperativo da força que lhes sai do corpo
e da sua organização em ossos e pele,
músculos, cartilagens e sentimentos – e que depois
cristaliza em quadros, peças escultóricas
e elementos mistos – sabem que isso em seguida
se repercute em nós e faz nascer
outras cores e traços e substâncias
vitais rodeados de palavras e de realidades
por vezes raras e acrescentadas. Coisas
que umas vezes em cima outra vezes em baixo
do mundo que as fundamenta
são como um rosto convulso
ou inteiramente apaziguado
entre as mãos de quem rememora
o tempo vivo e desfeito.
PÁSCOA
1.Vem dos tempos antigos a voz desse tempo – antigos para mim, do meu tempo e não da História: era eu que levava ao forno da padaria do sr. Júlio que fumava de boquilha e tinha um dente de ouro (padeiro fino, não sei se me entendem) as latas com os bolos-fintos e as “enxovalhadas” ou boleimas que a Mãe e a Mana artilhavam com saberes de magas.
Eu não sabia que era feliz. Só sabia que naqueles dias, naquele tempo de férias da escola, me davam amêndoas, me davam bolinhos doces, me davam alegrias, e o Pai até umas suaves moedinhas…
Eu não sabia que era feliz – e na sexta-feira às 3 da tarde soava o apito da fábrica e isso assinalava que alguém, há muito tempo, morrera de morte triste numa terra do Oriente. E sentia-se um estranho silêncio enquanto o apito soava. E eu sentia um frémito porque eu gostava desse alguém que há muito tempo morrera – sem me preocupar se ele era isto ou aquilo.
Era um estremecimento, digamos um abraço solidário que ia de mim para ele, porque eu era criança. Ou seja: tinha tantos séculos!
E não sabia, nessa altura, muitas coisas – só um poucochinho, um poucochinho mais do que sei hoje.
2 Ao longe a serra, ao longe como os tempos que passaram. Tempos de páscoa, serras de páscoa, recordações de momentos que depois preencheriam dias e lembranças.
Amêndoas, bolos desta terra e daquela, festarolas tradicionais? Sim, isso tudo. E o mais que a emoção dá, que é ir-se vivendo com um resto de inocência e de fraternidade vital. Dentro de nós, fora de nós: para nós e para os outros – que também tiveram/terão o seu tempo de maravilhamento e nostalgia.
UM PRATO DE PEIXE OUTRO DE CARNE
É de tarde e você comeu frugalmente. Sardinhas assadas
Do dia anterior. Para escorregar melhor, uma caneca
De “Castillo de Salobreña”, sem álcool, “base de mosto de uvas
De vino y manzana”. Lavou as mãos? Não lavou. Não tem
Problema – a higiene é como as manhãs de Junho (fica bem quando
Está e bem quando não
Está – uma frase
Que não é nem carne nem peixe). Mas dizia
Eu que é preciso juntar, pois é disso
Que se trata: um salmão fresquíssimo, dois
Ovos de avestruz, um cheirinho de louro e outro
De aguardente, um molho de hortelã e duas
Codornizes. Abra o peixe, frite a carne, urine
Entrementes um pouco de lado se acaso pensar
No tal poeta que também é médico: aproveite para
Se vingar dando um ou outro
Violentíssimo traque como vírgulas, no interior da panela
Da escrita. Considere, sorrindo, que a alimentação
Tende para o sujo, para o torpe, para o inefável
Se a sua voz é cheia como o Verão
Que findou há doze anos: esse verão de 94
Que nunca lhe sairá da memória.
Coza a carne, corte o peixe, polvilhe com pimenta
Deixe alourar tudo misturado. Grite. Grite mais. Ria desabaladamente.
Cague nas suas desilusões. Jure que vai desmaiar. Faça de conta que vê um rio
Que viu um rio
Que esteve em cidades quotidianas mas que o assustaram mortalmente.
Assim eu cozinhava. Assim eu vi –
Mas vi mesmo, vi convictamente
Papoilas na noitinha nascente ao pé de um muro derrubado –
E assim eu comia, tal como dobava linho
Aquela mulher velha da fotografia
Ou o outro entre móveis simples de pinho
Ou de castanho
Olhados, perdidos, olhados.
Hoje devoro torradas
Não muito a fundo. Debicando um pouco
Pois tremem as chamas das velas e quando se adormece
Respira-se como se não mais houvesse presságios nem minutos.
FORMULÁRIO
a C.Ronald
Amigo
Os livros chegaram mesmo agora.
O carteiro das encomendas entregou-me o pacote
não há cinco minutos. Passou-me para as mãos
a Caixa Tipo 2 (amarela e azul) e disse ao pedir-me
que assinasse o formulário acusando
recepção: “É do Brasil…”. Assinei e saudei. Fechei a porta.
Na cozinha, com a velha tesoura que já fôra
das costuras da Mãe, dos bordados da Flora
eu abri com cuidado, para não danificar
o meu nome e endereço, em letra
muito bem desenhada – um cursivo
de excelente recorte. “Para si. Para já. EMS Correio Urgente”,
assim se lia oficialmente
na caixa. Que agitei, para também
sentir primeiro o som dos livros, para também
fruí-los pelo som: o som primeiro
de chegada a uma terra longínqua.
E cheirei-os, tão-logo
os tirei. Porque os livros
com seu cheiro de passado
de presente e futuro
possuem o odor
que lhes é próprio – em seu corpo
mortal aí reside
o cheiro do mundo, o cheiro do tempo
com seus horizontes
das diversas estações: ora de inverno
ou de outono
ora de dia claro
ora de noite e madrugada
de tardes que a primavera entrega
ao verão nascente. Sete livros.
Sete livros: capa, figuras, títulos ilustrando
as palavras de dentro, mas também
seus secretos nomes de naturezas
vivas.
Sete livros: número de tradicional
recorte natural
por sua magia
quotidiana, recreando
o íntimo júbilo.
E depois será lê-los. E por isso
agora calo minha fala. Pois que um’outra
se irá depois erguer
– e pelas letras agora de meu tempo
e palavras escritas num tempo alheio
saberei então outros descobertos
buscados, encontrados
partilhados mistérios.
MENSAGEM
Ao domingo chega mais tarde o sol do dia
À segunda a noite fica dentro do quarto
À terça os pombos comem connosco à mesa
À quarta não é assado mas peixe frito
À quinta entre o pijama e a camisola
À sexta sente-se o gosto de tempos idos
Ao sábado o sabonete faz mais espuma
Ao domingo entre o cabelo e a paz dos tempos
À segunda lembra-se a neta e a ida à escola
À terça que já não há como o que havia
À quarta sabe-se que ontem não era sábado
À quinta nos outros dias que eram depois
À sexta escreve-se ao outro do outro lado
Ao sábado tem-se na mão um “como está?”
Ao domingo vai-se ao mercado sem se lá ir
À segunda sabe-se bem o que não há
À terça fica-se erguido como sentado
À quarta tem-se no olho um arabesco
À quinta as florestas nem dão por que ontem
À sexta era mais vento nos outros dias
Ao sábado fica-se pronto para pensar
Ao domingo cala-se a tarde se inda é manhã
À segunda tudo se espera se se esqueceu
À terça quando se abriam os sons da noite
À sexta há um retrato que se procura
À quarta não se tem medo do canto escuro
À segunda come-se o fruto bebe-se o vinho
Ao sábado um livro entrega o seu segredo
À quinta já se tem anos para o que foi
À terça a voz antiga que nos chamava
À quarta come-se o pão olha-se o campo
Ao domingo vamos embora que já chegámos.
GUINÉ, FEVEREIRO DE 70
Entre mim e as janelas há o rio e as árvores
e milhões de anos feitos para a gazela e a marabunta.
Dionísio teria percorrido a savana e a montanha
quando ainda não havia rastos de camião
nem o mar sepultava pensamentos e memórias
entre um olhar e um silencio.
Serena era a madrugada, subitamente despertando
um vôo de coruja sobre os ombros de quem velava
– pastor e aguadeiro –
homem que na terra colocava a semente do tempo
ou do milho fremente para os sonhos e os minutos.
Algures, junto a uma parede devastada
onde a cal cristalizara a inocência e a perfídia
as abelhas eram a equivalência perfeita
do universo gerando a carne negra e branca
que dos livros guardara a misericórdia e o temor
de anos e anos a vir.
Há um grande e perpétuo rumor que faz pensar
em Orion e no Cruzeiro do Sul
mesmo quando o sol ainda risca a figura
incontusa dos sete pontos cardeais.
Qual o fulgor
que viaja entre oriente e ocidente
– os campos do mamute e da zebra primaveril –
mesmo quando a época das gramíneas refloresce
entre lua e penumbra?
Na terra
marco os dedos e os vestígios
de avós e bisavós
mas o contorno das palavras que escrevo e que despertam
as sombras do passado e do futuro
hei-de lembrá-las sempre
impolutas sobre o rio, sobre as casas, sobre os homens
que vi e que inventei.
PALAVRAS
Há palavras que nunca ninguém pronunciará.
Palavras de esquecimento, emocionadas palavras.
Palavras de mistério, apenas entrevistas
pairando entre a figueira e o computador
Palavras assombradas, iluminadas, nocturnas
palavras incontusas, breves, imarcescíveis.
Palavras encontradas num súbito comboio
palavras navegando no coração da chuva.
A palavra memória para a infância das estrelas.
A palavra planície, a palavra mamute.
Uma chaminé-palavra no alfabeto oculto
para a morte saudosa de todas as designações.
E também as palavras de todos os hemisférios afundados.
A palavra solstício e a palavra suicídio
e todas as palavras em que a sombra encontrou
o inquieto horizonte de uma ânfora de oiro.
A palavra das cidades vazias, dos espigões erguidos
pelos olhos do medo
as palavras de todos e as palavras sem ninguém.
O abeto-palavra, gelado e milimétrico
invadindo os espelhos nos mais escondidos quartos.
O salto, o golpe a palavra absoluta.
Uma palavra simples como uma boina basca
subtil como um navio, límpida como um rato
uma palavra desvendada e solene como um leito.
O natural do escuro, palavra negra e sangrenta.
A palavra completa
dos muros transfigurados
ou da casa doente abandonada aos chacais.
A palavra do peixe
do animal
do homem
a palavra habitante de todos os séculos martirizados.
MALA-POSTA
Como o olho da Terra bem longe entre lembranças
entre os séculos que as manhãs acalentam
podemos ter:
uns óculos ao pé dum pano escuro, enquanto
lá fora chove
alguém que pergunta pela sua cidade natal
e já nada vê nem ouve
a inútil viagem que tantos anos sonhámos
o gato o cão o pêndulo e a ponte
círculos na areia vulcões rios e desertos.
Lembra-te: o que procuras já foi algum dia
e é simples e pleno como um artesão trabalhando
no vão duma escada
meros fantasmas que passam despercebidos aos transeuntes
em finais do quarto século.
Olha para este retrato: uma árvore
descarnada, um pedaço de casa, o esplendor defunto
do ar que vibra.
É deste antigo reino que te falo
– e a melancólica ave nocturna
vem até ao meu rosto, despelado como uma pedra viva.
AS ESTAÇÕES DA VINHA
Os vinhedos de Estremoz como os vinhedos do Reguengo. Como os de Asnières ou de Peso da Régua. Como os de Tavira e de Pinhel, de Modena e de Kerion. No Alentejo ou na Argentina, na província de Mendoza antes de se entrar nas pampas desérticas.
No Oregon e no Idaho, em La Rioja, no Lidl e na Praça Nova, no mercadinho do Corte Inglês e na mercearia fina ao canto da rua de Jacobo Rodriguez quando se entra na Plaza de Cristóbal Colón em Badajoz: vinhos que da uva saís, que dos vinhedos brotais – e esta palavra vinhedo que se rola na boca como um néctar numa prova real – vinhas sob o sol ou debaixo da chuva que sacode as parras, com gente e sem ninguém, brancas e azuis da neve numa tarde de Janeiro.
E as latadas. Em frente da casa antiga do lado sul da ermida de S.Cristóvão, agora exactamente como há cinquenta anos.
Nos olhos e na memória do mais discreto evocador como nos minutos simples de prazer dum modesto beberrão solitário.
***
Fotos são sinais. Tal como as vinhas. Sinais de qualquer coisa que se prolonga num tempo abstracto e no concreto tecnológico de diferentes disciplinas. Semelhante ao olhar mecanicista de Rebeca Horn num crepúsculo rosado, “veins of light inside, like branches” ou o rigor objectivo e o conceito antrópico de Jannis Kounellis.
Como se fôssem poemas. Ou antes: como se tivessem sido sempre poemas. O pio do pássaro, a gaiola suspensa dum prego habilmente inclinado para lhe d ar firmeza. E as mulheres que passavam para a monda lá mais para diante, para os socalcos em ferradura das Covas de Belém, lugar de nascimentos de ancestros e de gente futura, mas de outra trajectória familiar.
De outros destinos, sinas diversas como raízes de plantas diferentes, de cepas desconhecidas.
E o campanário, no meio das vinhas se olhado do pinheiral antes da estrada, para além de outros campos dos lados de Marvão e dos contrafortes primevos da serra de São Mamede.
***
O copo meio cheio ou meio vazio de Franz Hals. Os borrachões de Goya. Os hussardos bons pichéis de Jean Giono e os salteadores que se acalentavam com um belo copázio de tinto quente com açúcar nas estalagens das terras de Pourrières. A ida ao campo de ténis do Salão Frio pela vereda que atravessava as vinhas e sob as figueiras ao pé da nora. Robert Desnos no campo de concentração de Terezin, delirante e pouco antes de morrer, sonhando que passeava com Tzara entre os cachos de moscatel das terras da sua infância. Os provérbios e as sentenças da sabedoria popular com um travo de séculos (“Muita parra, pouca uva”; “Ano de nevão, ano de vinho e pão”; “Passar por lá como cão por vinha vindimada”).
Os domingos sem regresso, quando o pai levava o garoto pela mão e entravam numa taberninha anexa a uma adega para provar o vinho novo e lhe disse que era dos cachos iguais aos da velha quinta que se fazia aquele líquido de cheiro pungente e fresco na penumbra da loja de alguns convivas.
***
Avançavam cautelosamente à roda da vinha. Por precaução retirou e depois voltou a meter o carregador da automática. O tremor passara-lhe. Lembrou-se de quando brincava aos índios e cóbois na courela da Quinta Ferreira, antes do bosquezinho de castanheiros e um pouco para além da eira e da saibreira como um deserto em miniatura.
A rajada apanhou o companheiro da frente à altura dos rins e fê-lo rodopiar. Ao estender-se no chão, estranhamente calmo e fazendo pontaria como se estivesse na carreira de tiro, viu os olhos do outro muito abertos e fixos na cara suada.
Olhos esverdeados como uvas ainda não plenamente amadurecidas.
***
“A vindima é a apanha dos cachos. Deve ter lugar na altura em que a uva atingiu a maturação completa. Este momento pode ser determinado com rigor, desde que se recorra ao gleucómetro de Guyot – tipo de areómetro de volume variável e peso constante, munido de três escalas…” – assim se lia na página 245 do livro “Mercadorias” (4ª edição da Livraria Didáctica) de Leopoldino de Almeida e Jorge Ferreira Matias para os alunos do Curso Comercial.
Na primeira página das folhas de guarda, escrita a tinta de caneta permanente, uma citação do “Drona Parvah” (descoberta onde?): “Não haverá sol, nem chuva, nem pássaros no céu. Não haverá paz, nem calor, nem amizade. Somente se ouvirão os lamentos surdos e os gemidos roucos dos que morrem. Tereis morte, loucura e peste. E tereis desespero e fome. E tudo que havereis de ter será pouco. E tudo será demasiado. Porque vós não sabeis quem sois, nem os vossos princípios conheceis.”.
***
Entrara em Espanha por Vilar Formoso. Passara a seguir os vinhedos de Ciudad Rodrigo e as estepes e morros frementes de sol antes de Salamanca, até Medina del Campo e os Montes Ibéricos. Os Pirinéus na noite crescente, os lumes que eram vilas e cidades e aldeias ao longe na largura de lugares que nunca vira. E, depois dum semi-sono, as luzes junto da água, um caminho de luz e sombra e reflexos e era Bordéus e eram os armazéns para os cascos enormes para todos os lugares da Terra, para muitos sítios que jamais verá a não ser em mapas amorosamente guardados na estante grande.
Algumas ruas da cidade sob a Lua de Junho com o seu traçado antigo como nos filmes de d’Artagnan. E um café ao pé da paragem aonde a camioneta se deteve por breves instantes e dois clientes apenas na esplanada minúscula que bebiam talvez Fanta ou limonada, ou Ice Tea como numa tasca fina de Borba, mas não, concerteza não – assim lho dizia o relancear de retrato que lhes deitou – um qualquer bálsamo dos corriqueiros ou especiais, habituais dali enquanto a camioneta ia abalando até que apanhasse o dia, correndo já para os ares abertos na manhã da Grand Prairie.
O MARINHEIRO E O CÃO
“Ainda não escrevi o teu poema/ aprendiz de poeta e carpinteiro”
B. da Fonseca.
Nem eu tampouco, e talvez jamais escreva
o resto do poema em nós esperado
outros são hoje os duros logaritmos
a herança entrevista, o falso alarme
Não há hora p’ra rir, a coisa é esta
é estar de ponta, em pelo e solidão
espreitar de repente pela fresta
ser mais veloz depois que um foguetão.
Mais que não fosse, ser o tique e o taque
abalar para algures, limpar o prato
moldar no anelar um triplo baque
ser Caldeu no boné e no sapato
Em vez da obra, a obra duma vez:
trava-se a mão, esconde-se o cigarro
estripa-se o manequim, estende-se o escarro
desfolhando um casaco em malvadez
A seguir ser ausente, cego e mudo
usar o espanto limpo de desertos
as colunas e os chifres sempre abertos
definitivamente cerrar tudo.
NOVE POEMAS PARA NOVE IMAGENS
1.
De coisas
feitas
com seu nome
dado
– torre, janela
e flores dispostas
sobre seu lugar
de tempestade
de manhã ausente
de alegria
e lume.
Súbita luz
e pedra
e pão e acalento
de anos já perdidos
e sem memória.
2.
A Terra: laranjas e legumes, risos e
melodias, o medo e a sombra. Com tuas
mãos tocarás a maravilha lenta da cal e
do cimento sobre coisas desfeitas. O sol
e o vinho a teus pés: toda a riqueza
adivinhada de mansões de gente já
desaparecida. E a noite a chegar e uma
nódoa de sangue nos olhos.
Olha pois à tua volta. Verás a silhueta
esmaecida de uma pátria inconcreta.
3.
Apenas
serenidade entre
muros e ruas
longínquas
próximas de nosso
escolhido dia.
Porta, simulação
que de si mesmo
guarda
gestos alheios:
uma árvore
um espelho
um lenço
Tudo impoluto
– e um grito sobre
as casas.
4.
A coisa poderia definir-se
assim: dum lado objectos
habituais – copos, talheres,
duas lâmpadas eléctricas,
uma almofada suja. Do
outro, dispostos em pilha,
livros antigos e vasos de
plantas verdes, alguns
frutos e embrulhos
fechados. O que mais
perdura é o sinal da
estrutura óssea, os
vestígios de carne seca,
desfibrada e solitária.
Apitos, correrias, vozes ao
longe e, afinal, o ardente
ruído de um terrível
remorso.
5.
Esse fumo:
– de lenha
de tabaco
de papel
de pano.
Esse fogo
– de árvore queimada
de terra ferida
de carne cortada
ou esmagada
ao longe
ao perto
dentro do dia
fora da noite.
Som
de voz de mulher
de animal
de mosca
de uva
de guizo
sobre os seios
entre os dentes.
Soluços
enleios, terrores
asa posta
na cabeça
na palha
na abertura
do mundo
na alegria
no beijo
saudoso e
trémulo.
6.
Faz sair do seu
reduto
a melancolia e vê
que na parede
um sinal negro é a
sombra das mãos
entre
tecidos
amarfanhados. A
espera
angustiada a
natural
inclinação de um
ombro
a seminal
fotografia
única para saber
de todos
a veloz asa oculta
sobre os tempos.
7.
A voz
o escuro da
manhã/ a luz da voz
no escuro da luz
como/ a voz na noite
entre/ a manhã e o
calor do pequeno/ dia
futuro
a tarde e o grito
e a recordação/ de luzes desaparecidas.
Escuro
para vozes passadas/ o tempo
recordado
o futuro como/ uma voz escura
o nome sobre o dia/ a luz
no calor do grito.
8.
De muita gente
o nome
o talhe
a viagem
na noite
Um som de ferro
contra ferro
um assobio
de máquinas distantes.
A severa geografia
da terra desconhecida
os pensamentos de outros
– fomes e ausências.
A amargura, o sono e
um olhar sobre os
corpos perdidos
ao longe. Um céu
um sopro de vento
entre terras e
pacientes lugares sem nada.
9.
Na república dos artistas terá de
haver mapas. Mas
não só. Haverá também
cadeirões, candelabros, centenas de
mesas repletas de jarrões
com limonada e
à noite, uma janela dando para
um parque misterioso. Os cozinheiros
terão nomes de rios: Zambeze
Sena, Amazonas e mesmo
o soberbo Orenoco – ou então
de plantas como fotografias
ou ainda muitas imagens
de ruas familiares ou de
parentes desaparecidos.
RUÍNAS
ao Margarido Neves, in memoriam
Vinte e quatro ruínas. Uma ruína para cada hora do dia e da noite.
Ruínas que do tempo vieram, que de tempo se fizeram. Coisas, lembranças, lugares e pessoas que o tempo desfez. E que agora se reerguem por um momento na memória de quem as viveu. Nos olhos de quem as pode viver ou contemplar ainda que exista a vida breve, tempus fugit, que afinal dura os minutos de um dia, de um mês, de um ano. De muitos anos. Também das existências que se não tiveram, pois que viver é escolher um caminho entre vários caminhos, apenas aflorados, apenas pressentidos como um eco longínquo. Como num sonho encenado, possível mas ao qual não se deu figura.
A vida ardente está aí. Entontecedora, repleta de sonhos e quimeras, de pequenas luzes interiores como o súbito brilho do sol nas folhas de uma árvore desaparecida.
Ruínas nos sítios habitados “onde tudo canta gravado pelos séculos”. Ruínas que “multiplicam os seus fulgores conforme as horas”. Recordações entre os muros e entre os mundos de baixo e de cima, como na infinita sabedoria e na infinita humildade dos que não viveram em vão. Ruínas que não são de cidades perdidas, de impérios destroçados, de cadáveres desmembrados e de rostos convulsos, mas de pequenos detalhes que a nostalgia e o encantamento dos momentos idos possibilitou existir num continente improvável.
Aquelas matérias que ascendem na vida natural de quem sabe ou de quem pode rememorar, metáforas e imagens de quartos e de escadarias, de ruas que jamais regressarão e contudo são as mesmas, de ideias esquecidas entre o pequeno mundo do que se pensa num relance e se vai para sempre, sem remorso nem contentamento, mas marcadas e coloridas pelo horizonte de muito do que se foi vendo existir.
PARQUE
São apenas três manchas brancas sobre as plantas do jardim
e outra azul mais pequena mesmo posta ao lado dum banco de tábua
E nós pensamos: uma para as saudades, a segunda para os remorsos
a terceira para os que tentam reter a tosse que os sufoca.
Mas a quinta mancha é cinzenta. E apesar de fria como um sobressalto
pesa-nos no peito, pesa-nos na memória e revolve-se
no ventre enquanto tentamos reflectir angustiados.
Uma lua e um sol estão sobre a silhueta de um animal morto
hirto, com estranhos círculos no lombo, os olhos cintilando
como alguém escondido numa viela cheia de lixo.
A vossa vigília durará até que os ramos se afastem
que o transeunte de acaso de repente caia de joelhos
ante a noite que chega, guardando um grito na garganta
e fale mansamente olhando as árvores que desaparecem na luz.
FASHION
Em todo o tempo as há, mas no Verão nota-se mais.
Lá vão elas andando desfilando como estátuas hieráticas com tudo, contudo, no lugar.
E são brancas e pretas, ruivas e morenas e louras e de cabelinho rapado para ficarem exóticas, ex-ópticas aos nossos olhos em bico em bugalho em riste como binóculos de apreciadores de corridas de cavalos ou de paisagens longínquas.
A umas os seus construtores/construtoras querem que apreciemos as partes de cima, outros/outras as partes de baixo – e nós, que sabemos apreciar ver coruscar como faróis na noite olhamos principalmente o que as suas construtoras construtores não lhes fizeram/costuraram mas lhes foi dado pela natureza o acaso a simples e boa elegância que ou se tem ou se não tem, raios.
Elas lá vão deslizando como borboletas numa serena manhã de verão ou ao entrar da noitinha. Meninas, lindas meninas, qual de vós o vosso ideal e os/as que as miram escrutinam remiram sentem por vezes um frémito um arrepiozinho que acrescenta um tremeluzir na passerelle. Como se fosse o ring em que se batem contra a fealdade do tempo e a beleza da idade.
Como se não fossem apenas estátuas hieráticas mas pessoas andando desfilando no quotidiano dum mundo reconfigurado e liberto.
TRANSFIGURAÇÃO
Estás mais longe que o mundo e é já inverno.
Dessa terra de sombras nada assoma
nem silêncio vencido em gelo e em chama
nem marulhar de gesto, ou feroz ou terno.
Para mim a loucura e para ti a vida
mesmo no esquecimento da ausente mão.
Importa é possuir uma, ainda que perdida
ou imóvel como um ogre na escuridão.
A estrada é a que vês. E em tudo traça
o caminho de sangue anunciado
o medo erguendo ao alto o que não passa.
Velha é a torre riscando o horizonte
velho o mistério da hora designada.
Em redor voa o Tempo, ao céu defronte
mas parado, sem voz, sem luz, sem nada.
O Depois não é sonho nem lamento
nem murmúrio de sol, nem choro de vento
nem rebentar de oceano em agonia
É perfume polar de oiro detestado
é mansarda e castelo, é noite e dia
levando ao planisfério divisado
a ternura da raiva e da maresia
em todo o amor maldito e encontrado.
LEVANTAMENTO DE RANCHO
O meu sargento desculpe mas ali não havia sonhos
Nem sequer daquele arroz que a prima Maria fazia
Doce como os sonhos o meu sargento desculpe
Mas é tão estúpido tão escalabitano tão
A norte de Bafatá ou mesmo
Castelo Branco o meu sargento é um nabo
Sonhos de ovos em castelo misturados na farinha
O meu coronel desculpe mas tive de o abater
O gajo não entendia que os sonhos eram os outros
Eu não ia gastar na tropa recordações de noites várias
E já agora também lhe digo que na bolanha entre as árvores
Há um ar em silencio extremamente melancólico
O meu capitão desculpe mas não chamei a amargura
De quando conheci a Domingas uma vez encontrei-a
Já havia muitos meses que me lavava a roupa
Junto ao mercado do Pixiguiti chorava
Era sofrida como uma mulher
Doce e tão calada como um objecto partido
O meu capitão desculpe mas tive que o abater
É uma coisa que me chateia entrarem-me nos afectos
O que é que você sua besta sabia da ternura em comissão
De serviço o senhor que olhava de alto os taratas e os mancarras
O meu major desculpe mas era chegada a hora
Tantos anos depois ficaram todos em fila
A vingança é o que mais mora numa cabeça de soldado
Pensa-se nisso sempre quando se passa à peluda
De modo que foi assim fiz levantamento de memórias
E o melhor de tudo foi que já não me podiam tocar
Eram nabos frios como o esparguete o arroz sensaborão
Ficaram todos em fila pois então
Mesmo que em sonhos e agora estes não são
De ovos e farinha como almejava nesse tempo
Quando aguardava sem chegar uma encomenda familiar
Os olhos antigos tão fundos como o pego do rio Geba
E já agora que estamos com a mão na outra massa
Que é como quem diz com a pata na G3
O meu general vá à fava palavra de civil tão sem galões
O meu general é um nabo como na caserna se dizia.
CALABAZAS
a Mayte Bayon
Eu sou o que sou
vegetal e mineral, fruto e animal
no inverno no verão
em cima da cama e numa cozinha
sobre a mesa com copos e garrafas
Sou pintada sou disposta em arco-íris
como alguém que ri e alguém que chora
como uma artista submergida
como um retrato emergente
ando de roda
rastejo
voo sobre os rios e os ventos
os montes e as chamas nas lareiras
sinto a terra nas mãos
balbucio a dormir
assusto-me fico presa
a um objecto tão belo como a escuridão
antes da manhã
depois de anoitecer
Tenho muitos nomes
que de repente desaparecem
cabacinha pintada de azul amarelo
cabacinha pintada de preto vermelho
e sou outra vez eu
e faço o pino danço adormeço
e os sonhos saem pela cabeça
e ficam a pairar perto das paredes.
Sou cabaça
sou pessoa
sou madeira e pedra
e lume e ardósia e papel
ramagens ensolaradas
casas que se abrem e fecham
no dia inteiro
e na tarde
de todos os silêncios e ruídos ao longe.
A INFANCIA E O SILÊNCIO
1.
Os anos em que eu olhava
o segmento negro do horizonte
como se para além das suas árvores
uma ave branca, estranha e pura
silenciosamente me esperasse
para se transformar num animal
vermelho
correndo à desfilada
2.
Ondas de sangue adormecem
solitárias, nocturnas, imprecisas
As tuas mãos sopram o tempo
e desvendam-nos a morte e o teu rosto
Ah a cor dos olhos ardendo
na sombra oculta do dia
VISLUMBRE
No bote, os polícias jazem amorosos
no virar da semana
com as suas adoradas em passeio
naquele jardim com o lago meio adormecido
em que depois de remarem, como os cisnes do parque
como a lua se tivesse caído na água
ficam no vazio, olhando os bancos e a relva
dessas horas em que as ramagens cobrem
os corpos de quem descansa e os ausentes
comem sua merenda debaixo de outras folhas
em diferentes lugares.
No barco ou ao balcão do quiosque eles sustêm
na sua mão a mão de alguém que os prolonga.
Onde estão as crianças e a música? Quando não é manhã
os barcos vogam
em busca de um horizonte em que haja noite
dentro mesmo dos corpos, até do peito fendido
em que eu contemplo as silhuetas seculares
quase no fim dos bosques onde depois se amam
e se interrogam por um nada
bocejando aqui e além.
Tocas com essa mão a primeira palavra. E notas
no céu negro figuras como havia
na tua adolescência sussurrante. Agora
olhas ao pé do castelo um pequenino embrulho
e foi há muito tempo que o sentiste
uma e outra hora e ainda uma outra hora, essas
que de repente param e tu sorris
na evidencia que te chama. E dizes, como se nada fosse
– Ouve, jovem polícia, o teu barco quedou-se ali
e por entre as pálpebras semicerradas
o teu amor esvoaça. Oito nove de noventa e seis
repara bem
o taumaturgo testa a tua sede. O teu raro momento
tão plácido e completo como um hall sem ninguém.
Vamos embora, meu Senhor.
Seco e magro como um vislumbre
que estimula os quartos ao derredor
andas de continente em continente
e os risos aumentam e aumenta
o choro ao canto do jardim ensolarado.
Uma palavra em calão e uma reza, uma reza
saindo sem que o soubessem alegremente das trevas.
NUVENS
Naquele ano fui para o sul de França. Durante vários
meses, antes de abalar, pensara sem cessar
na velha cozinha da infância e com esses pensamentos
vinha muita coisa sufocada – a ideia de que as manhãs
eram como um relato vago visto na televisão e que nada
nos pertencia a não ser a recordação de quando
pensava em ser aviador nos anos distantes de oitenta.
A menina
entrou na escola numa segunda-feira ou seria
terça feira? Era num livro de contos que isso
era dito e o telefone tocava intermitentemente e então
resolvi partir. Lá fora os pássaros estavam parados
como se posassem numa fotografia desfocada e eu
pensava: esta parede ficará sempre
sob o tempo
noutro espaço
noutro pensamento.
E passou
o dia inteiro
e as pessoas diziam: ontem, meu amigo, onde deixaste
a tua imagem além ou noutro
tempo qualquer, apenas para que soubéssemos
ser fiéis ao que foi
o reverso?
LE BLEU
Poemas sobre o azul? Sim, é possível fazê-los. Não, por vezes
é impossível fazê-los, vai sempre dar-se a outra coisa
a outra cor. A ruas que nunca mais se verão, numa cidade
equatorial onde, do lado direito, o lado oposto à catedral, havia casas
pintadas de vermelho ardido, de ocre vibrante, de amarelo irisado, casas
com portas de madeira preta.
Passe um pouco de lado, por favor. Apanhe
aí um chapéu-de-chuva. O azul
é para outras estações: talvez Casabranca, talvez Mogadouro, talvez
Chança ou Alcáçovas, onde as flores do pequeno jardim perto do armazém
eram flores de uma outra primavera
meio espanhola ou mesmo
meio grega. O azul dessas praias nunca divisadas. O verde
de um rosto de um cadáver insepulto. Um azul de anil, aquele
por sobre o bosque de pinheiros da primeira ruína
do convento no meio da Serra. O azul convencional das torneiras que
quer dizer água fria. O das pedras de cobre da antiga
drogaria na cidade velha. Um olho azul, mas por fora, azul de violento
murro certeiro. Passe
por aqui, por obséquio (dizia o empregado de mesa de calças azuis um pouco
sebentas, um pouco
enrugadas de quem não vive
entre estátuas jacentes), alguém
de casaco branco como um cirurgião. Na pedra
um cor de rosa. No chão um castanho sujo. Na parede um risco
azulado, difuso letras já
semi-desfeitas. Um azul
seco, um tom pintado que se almeja, que se sonhou algures, um
azul que não se encontra nunca, que ao longe se some
no nevoeiro que sem piedade aumenta.
NATAL ZERO OITO
Quem fala de Natal perde palavras
à entrada do Inverno, na secura dos dias
no vasto frio das noites, tão lúcidas e antigas
tão de infância e de Agosto. O fogo
misturado: árvores, luzes, fantasmas
e as doces mãos das Avós. E ainda
um postal velho velho cheio de vento e de memórias.
Quem fala de Natal perde palavras, ganha
e perde as demais coisas que as palavras edificam.
“Quem grita no Natal? E Deus
não os fulmina? “. Quem mergulha os seus pulsos
na fria água do rio? Com seus chapéus à banda
em barcos engalanados
os anjos vão passando, dizendo amores esquecidos
dizendo estranhas frases, assombrando as moradas
onde afinal não nasce o tal de Nazareh. O sal e o
pão terrenal dos que ainda não foram
pelo ar, pela vida, pelos túmulos vazios.
Sim, pelo Natal as pobres casas em ruínas.
Para ser do Natal é preciso possuir
uma lembrança ardente, um brinquedo estripado
e muita tristeza feita nos anos em leilão
dos retratos tombando com um nó na garganta.
Para ser do Natal é preciso morrer
e viver de seguida com o sangue nos braços
esperando a estrela fixa do brusco espanto nocturno
junto à porta perdida dum milagre adiado.
Ah falar de Natal! Quem o consente?
O pão e o sal
talvez
de toda a gente. E um olho de animal
pairando no poente. Decisivo, visceral. E Deus, pobre dele
abrindo a água lustral (no bem, no mal)
frente ao horror da morte
terrena e inocente.
Por isso, no Natal
os segredos demoram
e tudo muda e tudo se envolve num pano branco barato
para que ninguém esqueça um corpo ferido que por debaixo jaz
uma nova e desconhecida espécie de cadáver achado na ilha
dos animais inominados
e outras diversas coisas que por desespero se não apontam.
No Natal treme a casa, a casa
sempre caiada, como um sepulcro sem número e sem nome.
E o inventário dá, se estiver certo:
um coração ardido todo azul
uma recordação minúscula que se guardou num bolso
um riso salutar ensanguentado
uma pequena ironia desenhada a tinta de colegial
uma apenas esboçada mão posta sobre um antebraço
o lenço de cabeça duma tia que desapareceu na manhã
um gato tranquilamente dormindo ao cimo das escadas
uma rosa e uma palavra que a si mesmas se julgaram
duas mãos de pedra tremendo atravessadas por uma ferida
numa cruz de polo a polo
um hálito que soprado no peito nos enlouquece
um arrepio, uma agonia
uma tarde a fechar-se repleta de amargura e de alegria.
Talvez o Natal seja um rosto
ou uma madrugada de outono
ou um avião nocturno
ou um verão por detrás das coisas aparentes
ou um combatente jazendo de borco numa pia baptismal
ou os bramidos de dois seres abandonados encarando-se de súbito
numa rua da cidade
no escuro muito escuro de uma cidade do universo
quer dizer – luminosa e aterrada. E talvez
que tudo afinal esteja a mais, que tudo afinal
se resuma a filhós e azevias de um outrora
a canecas de café familiar
algures num horizonte, numa idade, num momento
no imenso murmúrio de uma voz sulcando o tempo.
E a chuva que diabo irá cobrindo tudo
no infinito Natal dos mundos desaparecidos.
CAIXA
A flor da murta, a flor do cravo, a flor das páginas
impressas. Entre o amarelo do sangue o azul das palmas das mãos
o vermelho vivo dos olhos mortos. O sereno preto-cinzento dos amores
perfeitos.
Como um parque vazio no silencio de Outubro.
Como a lua colorida em Dezembro ou Maio.
Como o interior pulsante de uma anémona ou um miosótis.
Como os pulmões rasgados por um tiro num peito
de animal ou de criança ou de mulher
que outrora amou e sofreu.
O amor entre parêntesis, a voz do mundo e a letra
do mundo para além dum horizonte que se traçou.
A NOITE DO POETA EM CRIANÇA
Quando eu for um homem serei marinheiro.
Ou pastor, para conhecer o sono dos mundos.
E usarei uma roupa azul e violeta
se sair padeiro
porque em todos os pássaros descobrirei a verdade.
No Inverno os insectos sentem-se mais sozinhos.
Serei seu irmão. As cidades sonham mistérios sombrios.
Com o meu canivete retalharei o sol
que viverá para sempre na geometria das crianças.
Ai como eu amo a candeia que o avô
ontem acendeu para iluminar a Terra!
O lugar dos sepulcros não me amedrontará.
Com outros cuidarei das sementeiras novas.
E tudo será simples como esta minha mão verde
ou como essa janela voando sobre a cidade.
Quem vela, a esta hora, a esta hora serena
será, como eu o sou, um dos milénios futuros?
PLANISFÉRIO
Gira o tempo, gira o mundo, gira o olhar na direcção do sol e o que gira é a nossa estrela polar, o nosso horizonte transtornado apanhado pelo negrume azulado da lua, o firmamento de tudo sobre a nossa casa, o nosso corpo e a visão da matéria planisférica, violeta na manhã, branca na tarde, multicolor no dia que corre transborda se petrifica nas palavras nas cores e visões nos desenhos do interior do corpo, da criação do mundo e do mar que rodeia os continentes imaginados que somos que fômos que seremos quando o espírito a glória do senhor das formas for simplesmente um universo terreno e com tudo na sua existência fluvial e matérica de atlas imenso nos traços da nossa fotografia completa.
OS CAFÉS
“Um Café é o lugar onde podemos arruinar-nos, enlouquecer ou cometer um crime”
– Vincent van Gogh
“Um Café tanto é um continente perdido como um lar encontrado”
– Lord Alfred Jelly
Eles são territórios de solene aventura
com seus nomes diversos e pacatos
com seus nomes soberanos de antiga submissão:
Cafés do nosso mundo interior e exterior
a lembrar-nos o tempo, a liminar memória
tão conhecida e próxima, nocturna e singular.
– o Café onde um dia contemplámos o cerne
de que nos construimos: os Cafés da cidade
toada familiar
a que não se resiste
e por vezes nos muda a rima cá por dentro
setentrional como um cântico sob o luar de Fevereiro
seja só para a bica ou para maiores rumos
da primordial viagem:
o Facha e o Central, peculiares estações
onde li quer as opacas ordenações perfeitas
de Maurice Scève, Bulgakov, Antonin Artaud
quer a fulgurante linha de terra criada
por René Char e Nerval
– ainda não existia nessa altura a incisão deste silêncio –
pelas tardes de Verão, com amigos à mesa
(o Donato Faria, acompanhado
pelo Par Lagerkvist por dentro da cabeça
ou o Drago longilíneo que depois deu em romancista
ou ainda o Arnaldo, que tinha um pai polícia
o que é sempre matéria para odes
próprias ou alheias)
prolongados em conversas donde surgiam segredos
anos e anos depois
inteiramente sentidos. Cafés
como o Alentejano, substância de possibilidades metamórficas
e por isso tendo a ver com os proverbiais sete pontos
de orientação europeia
ou o Tarro das elegâncias funéreas
de magistrados, professores, lojistas finos
ou ainda o Luso, onde se viam geralmente o pernalta
e o seu irmão contabilista
o rico ou o obliquamente pobretana, o estudante e o doutor
e outros
negociantes dos arredores da existência e demais vilas.
Quantas vezes
na orla insubmissa das noites comigo mesmo
foi neles que senti, olhando os rostos em torno
o faiscar repentino das descobertas diárias
que a seguir se dispersam e vão por todo o lado
como redondas andanças dum sentir universal
e portanto bem nosso. As manhãs
repousadas, um contínuo pulsar
de entradas e saídas
porque sempre a tal nos ligam alegrias e tristezas
se adolescentes somos ou já adultos olhamos
os retratos do passado e o barulho do futuro.
Os meus Cafés existem muito para além de mim
nesta terra, naquela e naqueloutra ainda
– Cafés de Portalegre, um Café de Madrid
onde li as palavras que Bergamín escreveu
a traços largos numa parede, entre desenhos
de companheiros já idos ou simplesmente fuzilados,
o Café de Leiria (como se chamava a menina dos petiscos…?)
que tantas vezes acolheu com bondade comercial
a minha estranheza de militar por acaso
lá na mesa do fundo, com muitos anos a vir
e a abalarem p’ra diferentes latitudes
ao recordar com afecto as refeições a crédito
do fraternal patrão e as viagens p’ra casa.
Um Café de madrugada, sito em Ciudad Real
onde fômos comer churros, acompanhados
por canecões de chocolate a escaldar, mas mais propício
que um discurso de alcalde ou señoria. Um Café
rumorejante de Paris
onde tentei encontrar resíduos de poetas báquicos e resistentes
e em troca – we never know – quase fui engatado por uma londrina
que certamente nunca estivera na Rua da Junqueira
onde habita a última imagem de Café que frequentei
antes de passar à peluda.
Cafés, entidades secretas de tessitura incessante
em vós se pode
sentir o amor passar numa figura desfocada
entre outras coisas que passam, cintilam e logo após
se dissolvem entre ruas calcorreadas e planetas
ano atrás de ano divisados
– um de cada lado da mesa, construindo
o imenso mistério que em nós pode habitar
e trocamos como um eco enquanto mastigamos
às vezes com manteiga, às vezes com mostarda
as lembranças da vida e as sandes de fiambre.
DAGUERREOTIPO
(Sobre uma escultura de Jacob Epstein)
Na sala ligeiramente silenciosa
frente a mim e a oeste de toda a luz solar
há dois homens sentados. Um deles é barbudo
e ambos são infelizes
estúpidos e feios
mas duma infelicidade e duma feiura de homens
que são barbudos feios sob tudo o que a manhã pede
de húmido e habitual, histórico e quotidiano.
São infelizes e vão durar muitos anos
pois ambos se agarraram desesperadamente à vida
como se a vida – sem símbolos – fosse
em tamanho superior ao volume normal.
São homens que bebem comem e acham certo
que dormem e acham perfeitamente certo
que defecam caminham sorriem bocejam e acham
mais do que certo
que não concebem nada de equivalente ao voo sinistro
de borboletas verdes sobre o mar
ou duma faca cravada no pescoço queimado
dum aborígene, dum alfaiate qualquer ou dum
habitante desconhecido duma cidade inominada
Que num domingo sem maldade colocam entre parêntesis
algum espanto petrificado em horas, em minutos
até chegar o crepúsculo com o seu barulho encantador
com os seus pobres rostos vidrados de dois mil anos de civilização
principalmente nas infrenes segundas-feiras
e vão olhando um pouco atónitos o existir nuclear das cerejeiras
das flores sublunares
que é o que lhes resta fazer, especialmente neste poema.
Coitados, não estiveram em Hiroxima
em Belsen, em Lisboa
– até isso lhes foi negado –
são, por estranho que pareça
habitantes do sétimo círculo paralelo à Ursa Maior
homens enfim do tempo do pepsodent e das canções ligeiras
das herdades antigas de súbito reconfiguradas
e da saudade, da mansa e dolorosa agonia dos pintores de Altamira
em postais pro bono
hoje viajantes perplexos junto ao túmulo de alumínio dos seus descendentes
enquanto lá fora os cães citadinos ladram debaixo da brisa que a tarde dá
e angustiadamente rolam pela relva, eles lá sabem
com os olhos postos num esquisito embrulho que ali ficou por esquecimento
– os seus olhos pacíficos onde parecem esvoaçar fantasmas.
Rockdrill Rockdrill existe
digamos mesmo em coro e paz aos homens de boa vontade.
Minha pequena Antígona, tu que com esse nome te autoliquidaste
e hoje mais não fazes que buscar sem repouso a caixa azul
levemente amachucada pelo tombar das vigas
tens, pois quem dúvida, um gafanhoto no teu sapato amarelo
douradamente grego ou mesmo Dior 37
prático, funcional mas elegante
como um bem esgalhado revólver de um designer de fama
apenas para assustar quem nos aborde na rua
com o pretexto de nos mostrar uma escultura moderna
um relógio de marca muitíssimo barato
um in-fólio iluminado por pontas-secas de Durer
e certamente uma ilusão abandonada
toda feita de palavras supostamente simples
nessas localidades inquietantes a que a tradição deu singeleza
e em cujos recantos caiem de tempos a tempos flores meio calcinadas
apontando sabe-se lá para continentes múltiplos.
Tu minha redôce Antígona, cinderela de papel normalizado
– e que bonito é ler, saber pintar, contar
histórias de estarrecer –
nos teus dias de volúpia como segredos contados
pelas aias meio-surdas desaparecidas, de balbuciados bons-dias
de guerreiros descritos entre o não e o talvez
procuras muita coisa essencial
quando o teu rosto ameno e comum irrompe em reflexo entre os drops das montras quando encostada ao vidro a tua infância sonhava
tentando ver o destino que adivinhavas sem escolha.
Sim Rockdrill existe quer o queiramos ou não
Que pensariam de nós os celtas, os aztecas
e os tais que devolviam os presentes que lhes eram atirados
enquanto um que outro gemido se ia ouvindo
à luz dum candeeiro de petróleo, provavelmente
se meditassem nos enforcamentos que o inverno nos concede
aqui, ali, acolá
quando à nossa volta crescem as velhas plantas tuberosas
de que já o Hispano falava com os lábios a tremer
se pensassem que nas mesas podem de repente surgir
uns quantos insectos mortos, vindos de parte ignota
alguns lápis roídos
ou uma pedra pequena
desenhada ou esculpida com um amor temeroso?
Todos irão ficar, não duvidemos, sem um ou dois
lugares onde estiveram tenuemente.
Não brincar, ou brincar, é o primeiro mandamento
já que os deuses nos facultam certos momentos de repouso.
E é então que se pergunta: que faz este copo sobre a toalha? Como
te chamas tu? E se pergunta ainda: somos candidatos ao recomeço?
Onde pousar
este cinzel tão velho, este bisturi rombo
com que matei o princípio que a todos foi comum?
Mas mais provável é que a resposta não venha
e que no átrio deserto e mesmo assim familiar
surjam de repente outros vultos barbados, de bocas
muito abertas, de silhuetas limpas mas aterrorizados
como o senhor amável que todas as manhãs delicadamente
nos saúda à esquina do prédio
em aramaico, em latim, ou numa língua maldita.
Claro, Rockdrill existe e sempre existirá.
Que ninguém esqueça, por caridade, o aquecimento central.
E as torneiras cromadas, seria imperdoável.
Toda a gente, meus senhores, vai quando pode à consulta: de dentes,
de fígado, de circulação sanguínea.
É para isso que há especialistas dos mais diversos ramos.
E os telefones, não esquecer os telefones.
Mas sede por vezes sonhadores, como astrónomos,
pois sem piedade Rockdrill vai existindo.
Rockdrill, ó céus, existe e existe o vidro fosco
e os netos que tomam banho enquanto esperam quem os vista.
E gargantas que nos repetem coisas inesgotáveis.
E mortes mortes mortes rolantes e aflitivas.
Tiram-nos coisas dum lado põem-nos coisas noutro
anos e anos e dias de convulsionada ansiedade.
Em todos os países portos e pátios da História.
Por isso Rockdrill é uma presença palpável
nem vegetal nem astro excessivamente terreno.
Por isso Rockdrill nunca desaparecerá
pois conta-nos reconta-nos retalha-nos devora-nos
que ainda somos, aqui, o filamento mais excelente.
Antígona vive agora entre Sírius e Altaír.
DE AMATUS
(Amato Lusitano, na sua celebração aos quinhentos anos)
Também ele conhecia como tu o sangue
o perímetro das veias, a primitiva viagem
nessa terra de desertos e de rios ao alvorecer
Também ele fugia não apenas dos caminhos que se perdiam
entre bosques de pinheirais e macieiras, nesses lugares
de pequenos animais ao crepúsculo, de casas
perto das grandes pedras de granito ou de xisto multiplicado
mas igualmente das válvulas incrustadas no corpo da noite
de rostos desirmanados nas grandes praças onde era irreal permanecer
onde o mar não achava horizonte de homens ou de fantasmas
Também ele
erguia contra o céu, o sol, a silhueta das árvores
um vidro facetado, a página de um livro, o perfil recortado de um fruto
e por um momento sentia correr a linfa pelos sítios ignotos junto ao esqueleto
e por um instante sabia que a Terra ficara parada
e que tudo o que pensara era agora matéria de júbilo ou de pavor
Posso imaginar os teus passos na sombria rota através de um bosque em Itália
nos outros recantos que te acolhiam
o rosto grave, um olhar contemplando a neve que caía
e um silencio como se nada existisse na manhã
como num país perdido donde os teus vestígios se afastavam.
Posso ver-te sobre a mula ou num carro tirado a éguas, ofertado
por um paciente a quem devolveras a alegria
imagino-te talvez partilhando um repasto
numa sala abobadada de um companheiro de exílio
os aprazíveis frutos do tempo desses minutos sequiosos
Tal como ele, juntavas a serenidade ao porvir
ainda que por vezes a amargura fosse o teu seguro quinhão.
Anos e séculos se desbravaram, anos e séculos se dissolveram
e a música que cobre tudo
e a chuva que tudo envolve
e as mãos que se iniciam no que a sabedoria traz de imutável
e a fresca esperança do tempo e o que é uno, puro e não acaba
Quinhentos anos passam tão depressa.
POEMA ALENTEJANO
Nascer no Alentejo é engraçado
– com a morte debaixo e a fome ao lado.
Planta-se uma couve regada de urina
– colhe-se um maneta com viola e menina
É-se jovem e airoso como um deus antigo
– com sorriso rasgado da garganta ao umbigo
Esvoaça na rua da aldeia velha
A canção do pirata de brinco na orelha
(História contada no caminho
dos que estão
com a raiva ou o carinho
dos que vão.
História terrível
do Bem e do Mal
alentejanamente
convencional)
E o sol ao tombar doura as arcas de ouro
fugindo das trevas, vagalume mouro.
E o suão é suor de romance barato
– p’ra ter bem depressa toucinho no prato.
Saudades saudades saudades irmão
– natureza morta com cego e bordão.
Ai terra do Alentejo
corda de guitarra cigana
flor de lua ao entardecer
caranguejo de face humana
no dia negro a morrer.
(E o pastor que guardava o gado
jaz dolorido e enforcado)
Tudo está errado e tudo está certo
a oliveira ao longe e o borrego ao perto.
E balança a estrela da madre pendente
o silêncio da infância e a voz do poente.
Saudade saudade saudade perdida
na morte na morte na morte
da vida.
AQUI, ALI, ACOLÁ
Não se vai longe correndo
não se vai longe
a carne é fraca
o vento quebra ao nosso lado as visões os sinais
as presenças de gente e de lugares de grandes
árvores solitárias
de portas que se abrem e de rostos sobre o seu
rodapé de suas cicatrizes na madeira em que se bate
não se vai longe
dói por dentro a memória
o desejo
os grandes passos as passadas ferindo lume
chispas mordentes de cavalo ou de avestruz no deserto
nas ruas imprecisas
mortalmente atentas
Não
não se vai longe
o peito ressoa
a mão grita
o olho soluça
e é por dentro um motor sufocando nas bermas
o nosso crescimento implume
Por isso é necessário
e vivente como andar de coruja ou leopardo
como rapariga apaixonada num café de vila remota
ir devagar
passo a passo
devagarinho como um ribeiro na pradaria entre
árvores de fruto e plantas campestres
pé ante pé
com os dedos adejando com os lábios
rebrilhando
e soletrar fragmentos de uma palavra serena
sonora
breve
Ir devagar
como se adormecêssemos
como se habitássemos um bosque
como se de novo chegássemos à primeira luz.
ATÉ AO FIM
Quando entrei na sala vi num relance que o meu demónio
estava deitado
A boca entreaberta, um resto de baba no queixo de quem
Dorme justamente como um anjo.
A janela pouco cerrada e o sofá chegado
à plena luz
A manta já antiga azul e amarela roçava o chão como se
Tivesse havido por ali discreta borracheira dominical.
Congeminei
Que ele antes de reentrar vindo do etéreo passara
por uma tasca ou que
aceitara a oferta toma lá dá cá de um qualquer maltrapilho
Cheio àquelas horas entradotas de uma modesta
fraternidade bebedora.
Olhando bem via-se-lhe contudo no rosto
uma vaga felicidade
Dizendo melhor uma centelha de contentamento
ou alegria, ou
assim como que a sensação de quem vira o mundo
no seu lugar real
Vamos a ver, no fundo a lonjura dominava
Como se visse o cavalheiro por uns binóculos ao contrário
Cheirava um pouco a flores e vagamente
a desodorizante
Um livro tombara no chão, ficara à espera
aberto anquilosado
Quando abri a porta da cozinha vi sobre
o fogão um tacho com
Uma iguaria qualquer com que se entretivera
certamente antes de cair no leito vencido
talvez pelas canseiras das últimas horas.
Se minha mãe estivesse viva decerto
lhe teria aplicado um raspanete
Uma expressão em dialecto se calhar
um tabefe levezinho. O meu pai
Poria na cara aquele sorriso suave dos dias sem idade
Lá fora estrepitavam ruídos da cidade barulhenta
Contos do dia e da noite, o irresistível
fascínio do desconhecido.
Sentei-me, a angústia apoderara-se de mim. Uma frase estranha
Revirava-se-me na cabeça.
Quando olhei pela janela o horizonte
pareceu-me uma linha ténue.
Mais tarde, pensei, falaríamos a preceito. Ou antes
por entre dentes eu diria talvez
coisas sobre a grande aurora ou então sobre a memória
Sibilina dos sobreviventes imutáveis.
LEONOR FINI
Qual é a voz que me canta
que me chama e desafia
a ir pela estrada onde o sofrimento do mundo
está guardado como para uma boda?
O doido penar da minha alegria
na sala dos sem coração
grita para todos os pássaros que me conheceram
Lâmpada, lâmpada de todas as desgraças
eu sei que o teu semblante me aterrorizou
e os lamentos estão neste lugar
como uma bela mulher de areia e neve
E eu adoro-te todavia
pois tu és como eu sou
como eu sempre fui
uma criminosa
a criminosa das horas flamejantes
doridas e sem medo
A tua mão tocou-me
bailando sobre tudo o que era nosso
a tua mão que se aproxima dos seios
das estátuas que crescem nos soalhos
E entre nós e o tempo das suas mágoas
somente está aquilo que não fomos.
O teu corpo, desfeito, recusa-se
o teu corpo, sem o ser, é a luz
mas o terror destrói a luz, na luz apodrece o riso
tudo o que existente foi para além do sacrifício
Os golpes do fogo tiveram a coragem de soar
uns contra os outros
anilhas de infinita ternura
e eu sei que o jogo não mais findará
A claridade da rosa ainda está escondida
nas formas das palavras ao acaso perdidas.
POEMA
(Xisto)
É de xisto que faço a minha casa.
Nela irei colocar os utensílios
As memórias que as coisas trazem com elas
A luz a escuridão os pequenos objectos conservados
Ou apenas pensados e que nunca
Se tiveram no decorrer dos tempos
E as roupas penduradas guardadas em gavetas
E papéis indevassados e móveis já em desuso
De quando os anos passavam sobre as árvores da quinta
Dias que se apagam com um gesto tão simples
Como um torcer de mão sobre uma folha de papel
E muitas coisas úteis e que nos faziam lembrar
Movimentos naturais tão justos tão discretos
Onde a terra congrega imagens que nos sustentam
E por vezes o riso numa sombra
De alguém que fala sem que entendamos o que é dito
O bruxulear duma pequena chama para clarear a noite
E faz com que as palavras tenham outra matéria
– pedaço de pão bilha de água fruto ainda fresco da colheita –
E com ele o perfil de um animal que por momentos
Olhamos sem sentir a esquina de uma rua
Num outro lugar do universo.
Uns a fizeram de madeira ou de granito
E colocaram nos séculos sob o silencio das manhãs
Com o que pensaram com as vozes que as acolheram
Para os campos da neve do grande sol dos astros
E dos murmúrios da amargura
Com flores dentro de minutos entontecidos
De horas para outros destinos
De anseios e solidões.
Mas de xisto farei a minha casa
Dessa matéria tão próxima e tão longínqua
Tão para todos
Tão para nenhuns
Que a não saibam erguer como se ergue o que perdura.
PARA ANTÓNIO SALVADO
Mas uma só palavra me acudia à mente
Enquanto devagar ou antes ainda sonolento
Ia executando os primeiros pequenos gestos
Do acordar
Primeiro uma perna posta quase ao acaso
No soalho sobre algo que na madrugada
Ali se dispusera uma peça de roupa um objecto
(e pense-se no que estes minúsculos pormenores anunciam)
Um botão um pente de matéria plástica vermelho num bolso
Um arrepio porque é de facto um outro dia
Murmurações recordações uma árvore que oscila contra a vidraça
A sombra
Um traço de luz São os gestos
De um novo início
Sete horas oito horas mas mais que uma palavra
Ou antes um pedaço de frase mesmo assim
Um começo do que sabia um rasto um vestígio vago
E repetia repetia sem cessar a sua melodia solene
Mas não bem solene emendo com sua tessitura iluminada
Assim como sacral ou diria comovida e talvez
Ponto de fuga para outras latitudes
E ia e vinha e fazia-se memória
(Eis como é o mapa o continente do que repercute
Do que por um breve momento é bem matéria viva
Na nossa cabeça como se diz no que pensamos)
Um verso um verso apenas e que quase não se situa
Duas três palavras como som desvelado como reflexo
Uno e duplo duplo e uno porque ligação de descoberta
(“Dos olhos e das mãos brotam as coisas”)
De casa entre ventos de sons ora surdos ora ecoando
E é a voz que nos chegou incontida perene
E finalmente o grande arco do mundo é junto de nós
No nosso corpo inconcreto
No tempo que é bem nosso
De novo o princípio duma manhã reencontrada.
MURALHA
Na maior parte das vezes não
vemos as aves levantar voo. O de farda contava
que não havia muito ruído, que era na meia-tarde
enquanto elas passavam, que iriam
ao pequeno restaurante imaginado. Resta
uma questão importante,
dizia o outro, o radar pode ter diferentes efeitos, uma rosa era
uma espécie de pedra sobre o teu cerebelo. Semelhante
à doença dos mergulhadores, os animais da
auto-estrada e os estorninhos da floresta ao lado olham
com doçura o azul do céu. Eis as tuas mãos, os vestígios
da alegria.
Não é portanto uma história da natureza. Sente
o que não sabes, vê
o que não dizes. A tua voz ressoa
nos olhos dum peixe amarelo entre pedras
– a hortelã e o funcho, na ribeira sobre as hortas
nesses dias adolescentes no calor de Junho –
e o que alcançaste é apenas
ainda que o não saibas, mesmo que o não suponhas
a memória de coisas que outros outrora sonharam
em fragmentos de tempo
para além da distancia no céu enegrecido.
“A MORTE NO JARDIM”
a Max Ernst
Hoje os pássaros não cantam como dantes
nem as portas batem como antigamente
nem os gatos, que tanto amavas
como dantes vagueiam no lar dos homens.
Partiste
e algo terminou, que não era
simplesmente o teu vulto de príncipe renano
traçando a rota primordial
ou apenas
a tua boca sussurrando nas planuras encantadas
les hommes n’en sauront rien.
Foi aqui que tu morreste, Max
nesta rua portuguesa onde as crianças brincam
neste pátio de casa provinciana a que as plantas conferem
a dignidade e o medo
a beleza interior de algo humilde que se evoca
foi bem aqui
nesta Cidade Inteira
repleta de inocência e de amargura
neste Café que se alonga como se quisesse devorar o espaço
neste quarto alugado onde os amantes se encaram
como se se vissem pela primeira vez
nesta praia policiada pela maldição das pátrias
neste silêncio
neste espanto
nesta ignomínia.
Alguém um dia desenhará nas paredes derruídas
o coração escondido da tua Ninfa Echo
com o ar de quem volta de uma grande viagem
com as mãos humildes e já serenas
sem que ninguém lho impeça
Algum dia, no doce recanto duma madrugada
alguém entenderá porque sabias tu que é bem real a Vila Petrificada
e então será possível o caminho até ao mar
e os homens saberão finalmente
qual a melhor mais bela delirante floresta
guarida para os cavalos e os animais nocturnos
E que será na penumbra das ruas desse mundo
onde cantamos, comemos, bocejamos, padecemos
que a alegria submersa se haverá de descobrir
paciente e subtil como uma estrela abrindo
sobre uma antiga casa.
Há gente que fala, dizias tu. Há gente que fala
mas as palavras sabem a azebre e a limalha
e a tristeza e o remorso percorrem-nos os ombros
como um pedaço de um qualquer metal maldito
pois a cidade violenta devora a sua própria cauda
como se fosse ainda existir centenas de anos..
É nas coisas reais que morres em cada minuto.
Neste pedaço de pão a que uns dentes ofereceram um sinal de fogo
nesta janela aberta como se aqui tivesse sido posta para um acto teatral
neste incrível Abril de vozes sonolentas
chamado muitas vezes a ultrapassar o tempo
É aqui que tu morres com as palavras por companhia
em cada hora de desespero organizado
nas vagas caravelas sulcando o mar oculto
para as ilhas para os momentos para os sonhos.
Não morreste pela razão das armas
como essoutro teu irmão Garcia Lorca
nem te foste pelo postigo octogonal
que Jacques Rigaut escolheu lucidamente
partiste, apenas partiste como um fruto demasiado maduro
como um ovo que se quebra no minuto habitual
como uma cama revolvida pelos espasmos da solidão
e que já nada dará nunca mais a quem a abriu.
Por isso Max para ti não tenho mais que um olhar longínquo
ou um breve uivo de raiva à altura do coração
para a tua fresca libertação
para a tua máscara e para o teu cinzel que soube construir
e desconstruir de seguida
todos os Napoleões do Deserto
mas mesmo assim dói
e persiste
porque ficámos mais sozinhos ante a solenidade e a ganância
e não mais nos dirás que a vida reside no segundo degrau.
Porque quase ninguém tem a coragem de brincar
como tu a sério dizias defronte ao teu chemin mistérieux, debaixo
da tua eternité des mondes
nós continuaremos com os nossos frágeis cigarros
lançando o fumo da nossa dor revoltada de encontro às sombras
que já se vêem surgir no tempo
do derradeiro arrepio
como um tremor na montanha distante
no mundo que permaneceu
nesse teu universo adivinhado
tantas vezes sonhado, no plenilúnio
pintado e escrito.
COMO O OUTRO QUE DIZ
ao Mário Cesariny
I
O que os meus olhos seguem nesta vida
tem mais perversidade do que manha.
Não está sempre perdida
não é sequer estranha.
É um pescoço
rodando lentamente para o lado da sombra
para o lado da barca dos primos de Cacilda
franja por franja correndo o espaço morto
tão depressa coitados como se fossem de mota
ou sobre o rio
sem margens
sem o batuque doido extremamente caligráfico
da água interior
dos nomes.
E os cabelos os cabelos do mundo
estão sobretudo aqui
nesta cadeira branca simulando o silencio
a quinhentos quilómetros a oeste do mar
equidistante gélida submissa
detendo-se de súbito na sua própria agonia
muito perto demasiado perto
do jardim diurno dos réprobos cuja candura
acende
e se dissolve
se dissolve sem mágoa
uma e outra vez e ainda uma outra vez
no colo amarelíssimo de Rosaíris.
Escuta por favor
escuta
não os enganemos nunca
A voz que me sopra junto ao tímpano
vem de muito longe vem de muito longe
tão morta como viva
e em vez de dizer arcano diz madrugada
e em vez de dizer o mundo diz fogo-fátuo
virgem montanha almofada
diz os catorze nomes que é proibido ouvir
diz o dia e a hora de todos os demónios
e um corpo que se agita por baixo das arcadas
no Alentejo da Europa dos automóveis por dentro
buscando a clareira imprecisa dos cemitérios
em Sintra na Ericeira nas ruas de Lisboa
nos locais onde canta a raparigataúde
imersa em claridade
em cuspo
em chuva.
No entanto, no entanto
é preciso sim senhor desesperar
digam lá por favor que é preciso
andar de novo ao longo da estrada de tijolo
adormecer cantando nos túneis que maçada
e defecar do alto duma árvore
para cima da moleira de Adonai
depois olhar as estrelas que surgem dessa vasa
e recuar para o sítio onde o barco dissimula
a sua rama suja do Oceano
esperando a tardinha o vento morno
a negra Primavera e o rei do bosque maldito
com barbas adejando como um estandarte louco
no seu retrato igual ao rosto do emparedado
na selva da distancia
que ninguém
nem mesmo nós
conhecemos.
II
Todavia o homem-mosca bate que bate
a a mulher-gafanhoto sopra que sopra
e o senhor-fantasma rema que rema
entraram já na casa inconquistável
e nada deixaram de pé
e eis que de repente há alguém que se interrompe
perto do braço-bandeira a oriente da aurora
e tudo fica escuro, serenamente
como colunas raras de cimento
na cauda sexual do elefante por fora
cujas presas bem limpas desfizeram o dia
levemente atmosférico
sobre a areia do universo no país onde o choro
é só até ao estômago
e alguém espera tremendo que o fresco sangue de Alceste
o outro sangue
seja a calamidade e a angústia
que não vão de avião para nenhum deserto
nenhum glaciar horrificado
nenhuma cama especiosa nenhum comboio sem lágrimas
nenhuma taberna de Alcântara onde o sarro dos anos
se descobre no salto da pantera
que galga o passeio de azeitona na boca
de axilas escurecidas
cujo suor excessivamente espesso
é bem o resultado fiel do habitante da cubata
com um diamante escondido numa ferida
o filho infiel da oração dos marinheiros de outrora
a rua do mundo que desemboca numa laje circular
em frente do lago pútrido
aguardando sem minutos desaproveitados
os que gemem os que se cobrem de negrume
os que nada querem imenso
e só sabem sonhar em termos de ave ou de horizonte
de rato semimorto encontrado num jardim
de árvore
de meio-homem de Epaminondas os sustos
duma Lisboa sem língua
de janela de um país efémero
de constelação trepa que trepa, enfim
de mancebo de pouco futuro desaparecido
de todos os barulhos da Terra.
Mas convém, ó meus amigos de infinito
que tudo seja aquilo que sabemos
e fazemos
o perfil ardente sorvendo o rio trovejante do mundo
a garganta trémula dos lobos ao longo dos carris
sob os tectos
da cidade repleta de ferrugem
e cal tocando o horizonte
ferido como o braço rasgado arrastando sangrentos
embrulhos para a campina solitária
para a babugem da praia na linha de água do mar
onde os peixes ficaram nessas pedras nesses recantos
tão conhecidos por Ahab, o capitão louco
e o seu tubarão vermelho.
Entretanto o poeta cabisbaixo os bantus e as aves
lá vão ao longo das avenidas
nesses táxis que usávamos sob um trémulo firmamento
na Praça do Intendente onde numa noite de repente
as palavras mais simples se velaram nos nossos lábios
como os de Bulgakov, como se fossem de Margarita.
E uma luz assombrada
abominável aos solavancos
crescia em todos os pontos cardeais
em todas as coisas que se divisavam
ao vicejar da treva
entre os degraus dum largo sem nome e sem lugar
na mão tremeluzente, na chave de novo achada
para trespassar todos os símbolos
quando o homem de cinzento erguia no seu chapéu
entontecido e prestes a partir
uma agonia lírica, clássica, regionalista
para todos os rostos destroçados.
POEMA PARA ANGELA DIALA
Este poema é para ti, Angela meu amor
Angela Diala, loba de dentes cintilantes.
É para ti a febre é para ti o sono
é para ti o pulso sangrento desvendando
o caminho de tudo aquilo que eu adoro.
Angela com raiva
Angela com mágoa
é para ti este poema e o triângulo dos meus olhos
e a pedra escura do meu peito
e a viagem entre escamas e pesadelos
e a órbita o vitral do meu amor perdido.
Quando à noite o corpo lento da Terra
desperta para a ternura e para o esquecimento
todos os vulcões me escutam todos os braços
me apontam a antiga multidão em chamas e serenidade
a noite que me determina
o dia que me socorre
a noite e o dia verdes da minha amada
África
amada dos ventos que em mim forjam
os tempos anteriores e puros até sucumbir.
Sob uma tenda repousa
a lança misteriosa da liberdade
em tristeza dorme
em amargura dorme
mas sem que o elefante negro dos sonhos
depois de ti e de mim
depois de todos nós
crave o seu louco batuque nas cidades.
Em Londres, Roma, Paris
na gordura escorrendo das paredes um choro
eleva o seu canto de cegonha e de navio
e tu Angela passas
por entre o cinzento das avenidas acenando
a saudação do porvir o futuro incendiado das ramagens.
Tudo o que está em mim foi de ti que me veio
de ti antigamente do que tu foste e és
da cabeça de bronze em frente do cavalo
que apenas uma palavra espera para surdir
do fundo das mãos negando o tédio
do rumor das sinetas do desespero da cinza
de todos os medos que não conheces
e que são o meu trigo deslumbrante e astral.
Angela, para ti
é este poema
mas não somente o poema, a cabeleira do verbo
não simplesmente o sal maduro dos anos
é para ti a liana rememorada
o vinho atravessado pelo rasto das caravanas
a suavidade dos planetas dos rebanhos emudecidos
de todos os desertos, savanas, ilhas rebeldes
da minha voz, da esperança, da lembrança terrena.
FÁBRICA NOCTURNA
ANÁLISE ESPECTRAL
Embora seja dia
a vida densamente esvoaçante
por uma profunda afinidade com a virgem negra
do hemisfério tranquilo
inclina-se cada vez mais.
Os veados na pesada clareira da floresta
colocam travesseiros em frente dum ventilador.
Sob os lenços durante uma fracção de segundo
as luas desabam estendendo a mão.
Os homens libertam-se galho por galho.
O sangue passa pelas agulhas
em velocidade moderada.
Tudo é um clima e não um tempo.
“El Norte!” murmurou o anjo
aconchegando-se nos seus trapos
enquanto deus encolhia os ombros
resignado
ameaçado de atraso na sua enorme torre branca.
Ora mais ligeira, ora mais vagarosa
a dama suspensa reflecte a luz contra o rosto
da memória não-habitada.
A extravagância avança entre chamas.
– O que é o Homem? pergunta o pássaro a vapor
no desfiladeiro das cavilhas.
– Um produto que não pode ser guardado
transportado e consumido
tudo no mesmo instante. – responde a pomba de Verão
mergulhada em agonia
meio centímetro a leste do céu.
É tão vão esperar que a alma se suspenda
numa peneira
como esperar que a virtude
no longo declive das lendas
projecte sobre o Universo a secura hibernal
das grandes feridas.
Finalmente, o Homem, a truta, o escafandrista e o ouro
incendiado
levam-nos a crer na existência de diversos estados
oscilatórios
com períodos duplos ou quádruplos:
o amor, o crime, a solidão
etc, etc.
ELES VÊEM
Desde os seus inícios a inocência pretendeu
ser a obra eterna a uma dimensão nova no sinistro universo
das qualidades. Mas na ilha onde germina o zimbro
das gargalhadas, os altos fornos vencidos esquecem os grãos
da idade e os anõezinhos persistentes.
A ciência é a imagem do Verão em conflito
com a serenidade talvez assassina.
Posso estar em desacordo com o meu próximo. Nunca, porém
com a consciência do trovão numa sala às escuras.
Submetendo os deuses a excitações que exijam
respostas contraditórias
verificar-se-á que a madrugada é uma máquina
misteriosa, muito diferente do aspecto dado por duas
ou três gotas de saliva segregada pela carapaça
ardente da humanidade.
Sabe-se que a eloquência das paixões é semelhante a uma
aurora olhando o Inverno penosamente.
Mas, cuidado: o Homem esquece; o escaravelho agoniza.
E os licores preciosos nem sempre deixam as mãos contemplar
com ternura o coração gelado da amante morta.
Assim o milho provoca a melancolia. Assim os pêndulos
choram, ao longo dos continentes, a firmeza
magnífica dos loucos, esses que entraram já
na máscara da Terra, e vivem
paredes-meias com os mortos
e com os ratos negros de perturbantes
cabeleiras.
Assim na colina cercada de sonhos
por todos os lados
nesse leito de prata onde se morre
sem chaminés nem horizontes
ante o brilho devastado das janelas
o manequim venenoso solta o seu pio
o seu gemido iluminado.
A morte é uma chave; ávidos, entre as colinas dardejantes
eles espiam a orgulhosa concha
da ostra solar. Povoadas
de ossos musicais, as cidades entregam-se
à ferocidade e ao crime duma perpétua
abstinência.
POEMA
É possível que a sobreposição da vida e das manchas sonoras
nas paredes dos corredores
constituam a primeira evocação dos mágicos que nunca
falaram nem podem emanar deles mesmos.
Muito frequentemente
os desenhos que a criança executava navegavam sobre a obra
das gerações. As transformações progressivas
reflectem um mundo onde o isolamento se baba com autoridade.
As aves que serenamente voam nos domingos
conhecem agora a catástrofe.
Não é de estranhar que as ondas e os lírios
da fascinação chorem no jogo do amor: nunca ninguém dissera
arquejando que os ouriços cujas campainhas se agitam
apodreciam junto ao sorriso da Virgem.
O rigor – essa formação paralela – caminha na eternidade
como um rosto.
Pela noite
enquanto milhões de almas amavam a bela mulher de cera
os invisíveis partilhavam o sofrimento.
Todas as dificuldades apareciam e desapareciam.
Os três objectos que seguiam o pó das datas convenciam-se
de que o mas de cada poeta não era mais do que uma flor
sem braços.
Milhares de silêncios negavam o não.
Os outros
que sobre os sinais característicos do Mal
ocultavam os restos da agonia
renasciam de tarde soluçando
erguendo o seu castigo com bravura.
Este candeeiro seria até capaz dum assassínio.
– E os esqueletos? Onde se encontravam essas formas geométricas
concentradas num gesto molecular
depois iluminado com a sua própria história?
A tonalidade musical não respondia.
Em torno do Futuro as abóboras fluíam
contrastando entre si.
Muitos anos mais tarde
nos dedos insubmissos do sentimento
necessariamente feito para tranquilizar
o exotismo depunha gravemente
micróbios e ausências.
POEMA
O fatalismo primaveril é uma oferta
liberta, mole, autografada
em pé
na cidadela da dúvida.
Inquieto e isolado
o moscardo fiel espera a escama dos olhos
e dos amores
antes de largar a sua pele
de rato sob as intrigantes lunárias.
Depois
dos amados anos
fica no lazareto
chorando a partida
dos búzios
o ranço
dos astros
medrosos
a agonia dos
renascidos fetos
Noite, noite
homem, mulher
agasalho esfumado da Terra ardendo
ergue sem piedade a nossa
violação
o nosso
jogo inútil.
A voz apodrecida
sentada
de enormes vultos negros descendo
os rios
lança no infinito a lâmina do Levante.
Macio, macilento
eterno
caminhar da ternura
quem marcha em ti antes do meridional assassinato?
A modéstia protege-nos
putrescente
e reconciliada
e o sangue não é sangue
é um salvo-conduto
assenhoreando-se do inferno e do céu.
Novamente
a luz.
O luto
a manhã que mastiga
os ossos
construídos no corpo.
O perigo em nós remove o sentimento
ilusório e fugaz
de não morrermos nunca.
POSFÁCIO
Quanto ao resto, bom dia
que é o hábito, pois então
e grande é a seca nos campos
e fraco o oxigénio. Enxertias
nunca o mar as dá à mesma glória
– como eu vos compreendo! –
fica sempre o remorso
uma certa dor
de canto para canto
de telhado para telhado
palavra que cruza a estrada e não se vê
cair
e finda sob as rodas.
Constantemente
o barro e o cimento, a parede e o entulho
o leve esvoaçar da mosca morta
queira-se ou não, suba-se ou não se suba
E aqui Ele é que pode
e tem disso a matéria
irrecusavelmente
perversa.
Não há pois almas nocturnas
camisas penduradas na manhã
manteiga e queijo, toques de campainha
carteiros e gatos
não há nada
a não ser lá quando o rei faz anos
(o rei do Sul
e de outros pontos misteriosos)
um pouco de piedade
de tal forma que a luz
se apaga.
E aqui Ele é que sabe
e fixa a substância
intraduzivelmente
maldita.
Todos os que dizem que viram a imagem
todos os que sopram a penugem adivinhada
todos os que se calam depois do que calaram
todos os que se baixam até tocar o solo
enquanto caiem no solo
não são p’ra’qui chamados: miniatural
é a tristeza e a distância
verdade transitória
viscosamente bela.
E aqui Ele é que observa
a nossa voz: mãos
e números diversos trocando
entre si o espanto (a dimensão de oiro)
e a agonia
constante e luminosa.
Quanto ao resto, boa tarde
boa noite
boa hora
Boa miséria.
A S S E M B L E I A G E R A L
(Turba Philosophorum)
Um dia o lirismo veio ter comigo
não me recordo já se de tarde se de manhã.
Mas lembro-me que havia um estranho ruído nas ruas
de gente que subia que descia
e do antigo tempo – como nos sonhos –
saía uma luz como que de farol de automóvel
e o verde-escuro dos rostos crescia a cada segundo
como que para estabelecer uma atmosfera de amargura
todavia amável.
O lirismo a princípio apareceu
como um simples habitante
quero eu dizer: com figura de homem
o que não deixa de ser perfeitamente natural
se nos lembrarmos que os andrajos e as cartolas
constituem ora mistério
ora logro
ora elemento transfigurado
– culinário, diga-se assim –
seja na Poesia que se enrola sobre si
seja na Música como um braço tatuado
ou até na Pintura cuja ternura nos acompanha
como um canivete de infância.
Bastou um modesto aceno com os dedos da mão direita
que nem sempre ao contrário do que se diz
tocam ao acaso um dos pontos cardeais
para estabelecer o natural nestas coisas: o lirismo
tinha de facto um coração atormentado
perdoai-me a ironia, ó amantes
perto do lago Léman
e com um ar triste tocou-me ao de leve no braço
mas não havia árvores por ali
nem casas
nem pessoas
naquele momento como que estávamos em certo núcleo interior
– o assunto era já outro –
estava de repente muito claro e os jarros sobre a mesa
apagavam-se pouco a pouco.
Mas como durante anos utilizei palavras evidentes
(como saleta tuberculose amendoim)
foi-nos permitido reentrar no ambiente de todos os dias
que não tem mal nenhum: há zumbidos de moscas
e um olhar súbito de face surpreendida branca
e alguns garotos que todas as manhãs passam por nós
a caminho da escola na rua da Fonte do Penedo
(estamos todos no mesmo barco, ia dizer
mas nós é que riscamos o derradeiro fósforo
e o olhamos contra a silhueta das casas)
e seja-nos permitido
guardar uma fugaz circunspecção
para não enovelar toda a conversa.
Chegou e fez
coisas impossíveis
e não havia já barulho no corredor
porque lá as diferenças não são acentuadas
uma pedra aqui, outra pedra acolá
e a nossa voz reflecte-se como se recordássemos
e se algo brilha (ou não brilha) sabe-se que ali
é o corpo
Sabes dizia ele foi tudo uma maravilhosa aventura
ó os anos na quinta que tinha aquele grande pinhal
sombra dedilhada, que é como quem diz
perfeitamente posta num caminho de saibro
e o Pai com o seu grande chapéu de alquimista
afeiçoava os dias
e uma penumbra de mão na estrada vicinal
Não há coisas fora do mistério de arbustos desconhecidos
o que já foi já é retrato ou natureza morta
mas sempre com as cores necessárias.
E de repente estávamos todos com a mesma cara
havia uma cara de apreciador de calendários
como nos tempos de Abu-Bakr
ou dos antigos egípcios
aqueles que nos confins do deserto divisavam ondeando
a molécula primitiva – para bom entendedor – ou figueiras
noutras terras, com um sol no labirinto
ou com a cara que se usava nos anos cinquenta
Os Citas, a propósito, eram cavaleiros exímios
e de acordo com Sir Vivian Fuchs
“foi no dia 26 de Dezembro que realmente começaram as dificuldades”
é evidente que
se trata da viagem de travessia da Antártida
– lá ao longe as montanhas ligeiramente negras, o barco
uma breve mancha negra como um animal gelado
(a horta era em socalcos e havia um tanque
e havia uma pequena estátua num nicho seria a deusa
das ervas?)
Ora portanto
o lirismo queria dizer-me coisas e sentámo-nos
num degrau das escadas da capela do Miradouro
de São Cristóvão
dali vê-se a cidade inteira
e durante alguns minutos nada dissemos um ao outro.
Lembra-te
os ramos das videiras
brilhavam
– nada de perdões fora do tempo –
dentro de ti ficará sempre qualquer coisa inescrutável
mas é preciso falar e dizer que em Novembro há uma rua em Coimbra
e muitas outras ruas no mundo para muitos anos
As cerejas comidas numa azinhaga a oeste
do clube de ténis (a casa
recorta-se como um barco silencioso de encontro às sebes do monte
que antecede São Mamede) vão vivendo pelo tempo fora
e tudo flutua
Lembra-te
as rosas que nos sábados bem cedo te traziam do mercado
lá estão elas sobre a velha cómoda
Lembra-te
os pequenos cactos na janela da moradia defronte são o penhor
de um silêncio íntegro e solitário.
Agora um aparte: às vezes
Deus começa a meter-se nas coisas
ultrapassado o negrume entre os castanheiros
um escrito como de até à vista
Que aqueles que viram Deus face a face me entendam
e me escutem fala por mim a voz da justiça
não me façam rir mais, por favor, ora ia
eu dizendo que o lirismo tinha agora cara de rapariga
tinha uns olhos cor de avelã não completamente madura
coisas que servem para ler o jornal
poder ir sem tropeçar ao mictório e ao super-mercado
olhar a Lua em terça-feira gorda
os desenhos sempre alucinantes da vegetação antiga nos
livros de ciências de antes da guerra
Ora bem
pôs-se a olhar para mim
e contou devagar: setenta e dois, trinta e sete, quarenta
(mas dizia tudo de trás para diante, como Calígula no teatro
ou como se recitasse aquele poema de Rilke que se refere às
peras maduras que uma criança devorará)
não era nada disto
estou a brincar convosco ou antes a delimitar
este é o mapa
aquele é o mapa inteiramente cobertos
o que disse, asseguro-vos, foi muitíssimo diferente
Falava, segundo ouvi, nas idades mortas da Terra
e na altura do oceano que só existe nas fábulas
e em como era grato sentir no plexo solar o ar de Setembro
– na praia há, sensivelmente, tanta areia como astros na
Via Láctea
li num livro do Asimov personagem singular
não há somente areia mas estranhas figuras evanescentes
carne de cefalópode, de tyranossauro rex
e de rynocerus ou lá como se chamava
porque tudo vai morrer em frente do grande mar
cor de vinho como na Odisseia
– e, a propósito, sabiam que se sobrepusessem
um mapa do Pólo Sul
à Europa a base de Shackleton ficaria quase sobre Lisboa
e a de Scott sobre Estocolmo? – e o lirismo
dizia-me que por dentro tinha ora a neve ora a treva
e sinais de que não se conhecem coordenadas
sob o firmamento apreciem a cagança desta frase, flor inicial
que vos vendo pelo preço que me custou e que vos ponho
à consideração de jovens animais do Terciário. No começo
era o vento
(e chega-te para lá, ó eterno Adão
senão levas um chuto nos tomates
falo como quero e onde quero
significando então que há palavras intraduzíveis
e faço os trocadilhos de acordo com as Estações)
que não inclui lepra ou estátua de sal ou cancro atómico.
Os inteligentes que me perdoem mas é sempre
entre Tel al Amarna e Lagash que se sente o apelo
e subitamente ante nós aparecem imagens irreais
e a montanha da primeira estrela dupla
– uma criança passa, com o seu boné de lã cinzenta
junto ao alpendre da taberna –
porque uma coisa está por detrás da outra e há
um choro que se ouve vindo das traseiras do velho estábulo
entre a neblina ao pé do tanque
quando ainda existia a azinhaga onde cresciam
fetos e plantas incógnitas.
Ora bem
dizia eu que os caldeus adoravam o equinócio de Verão
e nem tu meu amor soubeste entender o que havia
de terrivelmente distante ou seja
vivo e sobre os velhos sinais de betume e tijolo
passe o exagero
uma que outra vez fico muito calado e do alto caiem figuras
ou chegam mansamente as antigas
faces dos filhos, de todos os nossos
pais e mães, mulheres e amantes, pois que todos
têm mais que um só significado
digo um rosto fugiu-me a boca
para a grande espiral dos planetas exteriores
é cá uma maneira de dizer nada de sustos
ora aconteceu então que tudo ficou como as cartas de jogar
cara de valete para baixo, cara de valete para cima
e o Outono anunciava-se e um garoto trepava pelas paredes.
Como dizia aquele zé dos anzóis
esse da legenda mais que tudo parisiense
se o meu intento era louro
era suficientemente desembaraçado
para ir à pesca e trazer um bacalhau de oitenta quilos
(mantenho-me jovem porque por baixo da camisa
trago não apenas o esqueleto e os tendões
mas inúmeros sonhos de gatos e cães
que sempre são mais solenes que o vulgar homo sapiens)
e já agora, antes da pista final
uma história: em Alexandria
dizia-se frequentemente que de Hébron a Nippur
eram duzentos dias de marcha
e havia bosques de palmeiras a toda a volta
e o ar era frígido de noite como nos plainos da Bretanha
e por detrás de nós havia passos docemente retinindo
e também, como o recordo, aves no negrume que se avizinhava
Iremos, pergunto eu, mais depressa que a estrela
que em Belém anunciou o nascimento do Cristo
E será verdade que no tronco das bétulas brancas
as borboletas alitreus bombex mudam de cor através dos anos
o que corresponde não só a uma mudança de habitat
mas dos hábitos da espécie
uma estratégia para sobreviver?
Neste universo de duas
mãos dois pés não subsiste o grande sonho
ainda que o contrário seja possível admitir
O que há é um muro de quartel ao longo da Calçada da Ajuda
e flores e frutos no pino do Inverno
o que afinal está certo por razões desconhecidas
os grandes sáurios morreram em pouco tempo o que deu
possibilidades para que a cadeia da vida continuasse a rolar
e depois nascesse o Homem o castor a rena
nossos bons companheiros de vida sublunar. Apesar de tudo
vos digo, ó alturas de Machu-Pichu
que gostaria de saber-vos loucamente amadas
com todos os números pares, com todos os números ímpares
sulcando o céu cor de cobalto
ou entre a ponte e o rio, pois há sempre um rio e uma ponte
entre possíveis e impossíveis
entre luz que diminui e lâmpada que imita
a voz do antigo deus Dionisos ou Chukulkan, esses que numa
rotação milenar navegam intemporalmente.
Sob um qualquer momento divino
entrai no campo – o lugar das plantas vai mudando
o vosso corpo fede, a unha estreita cobre-se de baba
nada parece belo e nada parece horrendo
nesse princípio que é futuro e passado. Procurem
a palavra que faça zunir
lâminas de carne entre bancadas depois limpas
– a boa terra grumosa assemelha-se ao papel
de súbito povoado por figuras atónitas
Porque desde os caldeus e os gregos, os persas e os assírios
a certas horas da noite em certos lugares das cidades
um virar de vento agita um minúsculo fio de lã
um farrapo que um dia existiu em qualquer lado
– a lua nas vidraças não existe é uma recordação
onde entram de juntura um cântaro e um lábio sangrento
meditados com alegria. O cheiro da chuva é agora
como um coração cheio de moscas. Passo e repasso
sucumbo como através duma montanha
a luz de um camião na estrada da vertente. O que Scipião
Africano fazia era juntar por sobre as rochas o
que à natureza é defeso: a fúria da língua, o
hálito fortuito numa cama aberta
entre as eras.
Sabeis a pergunta? Um lápis como um arado arrasta
o perfil de alguém que com uma faca separa
tendões e ossos. Uma caixa de fósforos e uma folha rasgada
onde se pode ainda distinguir
algo que poderia ser uma flor branca –
e alguém corre e murmura um nome
e nada do que no homem é nossa proximidade
é o contrário da lenta estranheza que na manhã nos antecede
pois o orgasmo não é uma pedra mármore ou uma esponja
e há por vezes de noite, naquela quinta a sul da terra dos pais
um súbito cheiro de curral
um joelho que seria possível ver nos declives da cidade
mas que desaparece minuto sim minuto não.
O que é certo é que a verdade atravanca os séculos
não, não atravanca os séculos, os séculos
são uma hora dividida entre Julhos, Janeiros, Agostos
e a verdade atravanca-se a si mesma
reflectida no pó é de repente pó e de repente cera escura
para que algo incolor se despeje e inicie
uma atmosfera exposta
ao brilho dum pulso queimado.
Saúdo-te, antiga melancolia
que não és melancolia pois pelas ruas há filhos que vão
e filhos que vêm
como se um limpa-parabrisas fosse um arco-íris no Verão
Distingo do lado esquerdo uma parede romana
mas é um quadro de Van Gogh
mas é o vestido de uma holandesa num texto de Paracelso
e passo-te a mão sobre a cabeça
e acontece que a electricidade flui em toda a casa
belamente erguida e que me diz espero.
Renoir morreu aos sessenta e tal anos
e no último momento pediu que virassem uma perdiz de lado
no seu delírio para a pintar melhor.
(Agora, vejam bem, já não pertenço à ilha
não sou nem Sagitário nem Virgem, nem Peixes nem Aquário
não trago comigo o cão e a aranha, acima dos outros seres
e a capa que nunca bordarás e os couros vermelhos desfeitos
e a lebre e o cavalo e a folhagem de Janeiro
sou talvez como
uma noz que nunca morrerá
uma almofada de veludo amarelo
inerte como um aparador ou um armário de cozinha
sem tristeza mas também sem o leve cacarejar suscitado
pelo azul, pelo roxo, pelo anil ou o índigo
cor que pouco aliás emprego em qualquer circunstância
porque para desporto bem basta a garrafada na cabeça
e, dizes bem, afinal
se nada é uma questão de retórica
muito menos é questão de apaixonada sonolência
quando os seres adormecem contentes nos braços um do outro
depois de terem passado a Neptuno e Mercúrio
a rasteira mais que tudo concebível).
Olha
disse o lirismo
não temas
tu és a verdadeira bíblia dos homens
porque morreste e reviveste, porque morreste e tornaste a morrer
e a porta onde uma criança pintou letras e corpos
vai-se desfazendo lentamente
não temas
Sabias que sobre uma rocha numa quinta do Frangoneiro
uma raposa pelas noites de Verão certamente se sentava
– assim o indicavam os excrementos depositados num
pequeno côncavo da pedra – e lá por cima (como dizê-lo)
o negrume entre os astros continuava como se nada fosse?
E sabias ainda
que os mergulhões de uma charca saem subitamente da água
e voam alucinados para um bosque de árvores ali de perto
e sob uma romãzeira existe um poço fresco afeiçoado
em cimento para que de lá se possa tirar a água com um côcho
se é assim que se diz, pois por vezes a memória falha-me
e não sei já se este automóvel passou no sonho xis
ou passou na realidade ípsilon
(o piano lá continua a executar qualquer coisa de Bach)
e, meu caro lirismo, tu que tens ossos de milhafre ou pintassilgo
diz-me de novo: não temas
tua é a imagem da mão que apodrece
e o ruído de uns pés por cima da cabeça
diz: não temas
apesar de estares absolutamente só
num certo ponto, sob certa forma
ainda é tua a certeza de que existem reposteiros e lâmpadas
como se fosse por encomenda. Por exemplo: primeiro – o fogo e o ar
interpenetram-se
a escolha inclui esqueletos e colinas
e se não existe amor talvez exista um pouco de piedade
um destino, uma sombra, um pedaço de sombra, um pedaço de destino
e segundo – corre um bocadinho mais depressa
entra-me já em Junho, mesmo que os pólos se atropelem
e não esqueças – de línguas não fales uma só
diz boa tarde em inglês, olá em aramaico
e cresce umas vezes para baixo outras p’ra cima
“a cidade é uma represália à natureza selvagem”
como dizia o Papini uns tempos antes de patear.
Não te vendarão os olhos com um lenço de seda
disse o lirismo
não te meterão na mão esquerda uma vara benzida
não terás mil portas para olhar
mil janelas para ornamentar
mil degraus para subir e queimar
mil cadeiras para destruir
mil espelhos mil âncoras mil alfarrábios
para trocar as voltas a quem te leia
a quem minimamente te tivesse querido
te tivesse agarrado pelo espírito ou pelo corpo
– o que é a mesma coisa, deixem que diga
excepto quando se consegue algum adiamento
que afinal nunca chega, porque nisto de paraísos
a chama equivale o alfinete, a couve-flor e o insecto
mesmo com certificado, testemunhas abonatórias
e algum incenso a acompanhar. No tempo dos grandes veleiros
Sírius estava seguramente no mesmo sítio.
As palavras fazem sentido pense-se o que se pensar
embora nada modifiquem, porque o saber
aquele que permite
que se veja a relação entre a raiz duma cidade marítima
e o tremor de uma macieira
não é um infamante cartapácio rasgado
que altos são os desígnios de Deus (um traque)
e altos os caminhos do Senhor (outro traque)
com o devido respeito, porque café há-o de várias marcas
– lentamente a polpa da mão passeia
e sente o minúsculo relevo da tinta, o azul, o vermelho
depois novamente o vermelho e, por fim, o preto.
O lirismo
de repente adormeceu
pensava então em Esculápio e em Sosóstris
o tal que comprava e negociava tecidos multicolores
ou em Don José Maria de Hinojosa
porque diabo me lembrei deste agora
– sendo certo que uma ou outra página teria
em que falasse da alegria de viver –
pensava nada o que ele queria era descansar
refastelar-se de todas as maneiras
(o ânimo não ousa erguer-se
ele finge agora que é um gémeo com a boca cheia de sangue)
pois não se pense lá que alguém perdeu isto ou aquilo
ou se perdeu procurai lá entre as ervas
e dizei-me depois se algo haveis encontrado.
Mas se há brisa ou não há brisa
isso compete ao taumaturgo
agora sentado entre laranjeiras e favais.
(Agora
ele escuta
ruídos difusos, leves, incorpóreos
É gente que executa os ritmos habituais de quem se deita
de quem tira a camisola, lentamente as cuecas
e brandamente coloca sobre o espaldar da cadeira
uma gravata, um cinto, um lenço de pescoço).
Sim
longe está o país
onde o nosso cérebro bate como um coração novo.
Não há resíduos sobre a pedra de mármore
da cozinha
ali nunca ninguém estrelará ovos às duas da manhã
com um pouquinho de pimenta que faz os olhos bonitos
ninguém lançará para a lata do lixo com alguma pena
uma que outra garatuja incomensurável
Se doze são as figuras do mundo
vinte e quatro serão os clarões do universo
a despeito das imagens que se agitam na água
mesmo sabendo-se que no continente se perdeu
entre as ilhas
a cabacinha branca conservará o seu poder oculto
e olharemos ainda os soalhos de madeira
para aí vermos os passos dos que viveram antes
– lentamente, muito lentamente
do chão se vão apagando os vestígios que os animais
encaram como palpáveis, como se fossem desenhos
impressos nos azulejos à semelhança daqueles
que os romanos pintavam por pirraça
por antiguidade clássica.
Contaram-me ou não sei bem se li
que entre as pedras das casas dos Aqueus e Átridas
crescem plantas domésticas, a camomila e a papoula
limite para que tende o divino e o humano
Não temas, não temamos, disse o lirismo a pensar no almoço
é preciso calar, calar muito e a boas horas
mas se acaso for de dizer coisas, que elas saiam
com serenidade e alento
(cheias de gripe, que é como quem diz)
pois que a poesia, para além de ser
um aparelho circulatório, um calhau solitário
e um rio fértil e majestoso
é também para que conste apesar do métier
a velhice e a adolescência misturadas
uma cócega na orelha, um arrepio na anca
e agora façamos uma pausa
Calados o lirismo e eu olhávamos a rua
alguém que passava com a cabeça palpitando com a ventania
outro que olhava ondeando gravemente úteis composições
uma que se tinha cabelos chapéu é que não tinha
e muitas coisas mais que me dispenso de referir
Sabiam que as montanhas de Théron
no seu ponto mais elevado atingem
quatro mil e quinhentos pés de altitude
e que logo a seguir para além de um largo glaciar
outras se elevam a cerca de sete mil pés? O lirismo
estava evidentemente cansado
ouvira entrementes a história de dois irmãos apaixonados pela
governanta mais idosa que eles
e que no sótão todos três celebravam ritos tenebrosos
a escuridão ficara no jardim e formava como que obeliscos
Estava cansado, tinha andado de barco
tinha ido comprar papossêcos
distraído tinha mijado para cima das botas
e pensava lá para ele inúmeras situações comovedoras. Passe
o exagero dir-se-ia
que conhecia o nome de todas as coisas vivas
porque tudo, sem resumir, se igualava às vinte e tantas letras
do alfabeto e o amor é tão transparente como opaco
– usavam um corpete, uma touca branca, um guardanapo sujo
lentamente os olhos iam seguindo os movimentos
sobre tudo descia um silêncio decisivo –
por vezes dentro dele encontram-se vagos objectos ornamentais
vestígios de um dedo cortado, um beijo dado no vácuo
um pedaço de baton
uma meia rasgada.
Mas o lirismo sem se fazer rogado
dizia
o sueste e o nordeste, a silhueta axial
de, por exemplo e sem compromisso, a Lua, um satélite de Júpiter, as
primeiras memórias duma infância
qualquer ela seja
e, como de propósito, as diferentes parcelas
em que se dividem os números e as cores.
Mas não era isto
a nossa hipótese de sobrevivência não se compadece com o real
e o irreal é como que o resíduo de um mínimo que se atirou
fora
– bastaria o amor, encontrado ou procurado
e que afinal sabe bem onde ficam as florestas
mas bastaria um invólucro de bolos
ou uma limonada conscienciosamente feita
bastaria na madrugada um gesto simples de mãos
um soberano movimento de outonos e primaveras
(aqui o lirismo tropeçou no seu próprio manto
a pergunta colara-lhe na testa um papel de cor incerta)
e era estranho e belo aquele tecido
– de várias matérias composto:
havia a lã, a boa lã de Norfolk que nos primeiros anos
era muitíssimo popular
(a Mãe tricotava pacientemente
puloveres, carapuços, meias compridas)
havia a seda, que se nos descuidamos cobre os mortos
havia o linho
que faz funcionar os diferentes aparelhos
e o algodão, feminino no singular
e tudo estava unido a ponto cruz
e de repente o lirismo
que agora era uma espécie de porteiro de pensão com cara de médico
percebeu que nada tinha dito que se aproveitasse
e, vai daí
começou devagarinho a despir-se
fazendo ao mesmo tempo uns sinais cabalísticos
para significar, lá no seu entender, que jamais
discutiria a necessidade eventual
de dizer sim ou não
uma vez que se dispusera a referir que a verdade
tanto é curta como comprida
se é natural que um verso seja mais ou menos intenso
conforme o calor e o frio
e as formas do milénio. “Faço os meus cálculos
executo as operações
aqui é a soma, ali a diminuição”
disse baixinho e compassadamente
e de repente caiu para o lado
e dos seus ouvidos saíram algumas sombras
que se espalharam em torno e afeiçoaram uma auréola
uma irisação de orelha a orelha
entre o risonho e o sinistro. E eu
que já não estou totalmente deste lado da vida
mas que estou mais que nunca no que existe e não existe
recordo que em certas grutas
da Andaluzia e da Provença
foram um dia encontrados
vestígios
de estranhos seres
que – dizia-se – teriam amado a corça e o cavalo
Supôs-se até, mesmo devido ao fumo
inexistente nos tectos das cavernas
que pertencessem à raça outrora amaldiçoada
dos deuses
que no frio lunar tocavam lentamente nos lábios
(eram homens e mulheres, cheios
da sua própria existência
que limpavam as unhas
à pelagem dos pequenos animais do bosque
às últimas horas do dia)
o que me faz perguntar com singeleza: há nessa casa
alguma mesa branca de madeira de pinho
com uma toalha aos quadrados por cobertura
ou uma pedra antiga como a que eu mesmo possuo, pedra vinda
de longe
do Paleolítico
pedra que ainda conserva na superfície áspera
vestígios que poderão ser de lume, ou ser de sangue, assim a luz
seja de um foco eléctrico ou do sol e estejamos
por exemplo perto da porta
ou a norte da vidraça entreaberta e velada
por uma branca cortina de renda?
E então
como a tarde começava a chegar ao fim
com o seu tom habitual de algarismo entre milhares
ele tomou-me pelo braço e fomo-nos sentar na esplanada de um Café
e com uma expressão lamentosa e indizível
disse-me serenamente: “Você, meu caro
foge à reflexão. Ora venha cá. Ora prove
e depois cuspa, ou então
finja que não é nada consigo. E diga-me: ele tem ou não tem
só a saudade que é dele
só o corpo que é dele
– que é aliás alugado –
sim, aquele corpo que estende para nós asas libertas
e é alma (mas sê-lo-ão mesmo
em vez de asas não serão lençóis batidos pelo vento?)
no quintal ou na sala de estar
Mas adiante
porque se de tão pequeno começa o espanto a não nos deixar
existir
tudo se complica excessivamente. Mas dizíamos
foi este o mistério que sempre nos cruzou a mente
sem deixar contudo que o seu voo chegasse à altura dos nossos olhos
de tão escuro, tão sem sentido na orla das nossas narinas
perto ou frente a frente com o animal que nos observa
dia após dia, hora após hora
sem desfalecimento e sem, claro que não, remorso
– o solo falhando sob o tapete, o soalho sob
as pantufas –
(esta do remorso dá que pensar: se ao mesmo tempo
o tal anjo começasse a… mas deixemos isso)
tal qual boa terra arável. Só a nossa indisfarçável paciência, só
a extrema e corajosa calma
que nos permite trocar o bê e o jota
as calças, o colete, os suspensórios
as diferentes espécies de açucenas e malmequeres
que nos rodeiam a cintura
é que sustentam o impulso de correr
altas e infinitas, ó figuras de correr para o vosso regaço
incomensurável e molhado. Talvez
ainda não tivessem sequer pensado
que antes de nós havia luzes nos caminhos e eucaliptos
com pequeninos flocos sobre os ramos
– só um momentinho que já bebo – abarcando entrelaçados
movimentos de pulmões. Prefiro uma cerveja. E mande o criado
buscar um outro género de crepúsculo, que este
dá-se mal com o tabaco. Se tivesse morado em qualquer parte
que não as partes em que este mundo acaba
(não consinto que pague!) e tivesse saltado
inventando e desinventando outro género de reinos
gostaria que então me contasse dessas. Possa
como aos que demandaram as terras do Prestes
o destino um dia cravar-lhe nas costelas
um centímetro de areia dos desertos. E agora cantem-lhe
assobiem-lhe às botas
como um passeante que nunca aparece
mais do que a conta. Por aí
penso que não irá lá, mas enfim
– nós somos os herdeiros
não simples espectadores
e muito menos estofadores ou carpinteiros
meros videntes ou construtores esperando
numa escada que não se conhece
dum edifício confusamente olhado
alguém que daí a minutos descerá
com uma mala na mão.
Lá onde o mar bate e se desintegra
admirado com o tamanho da Terra
iremos como sempre, as sobrancelhas acentuando o negrume
que já nos cobre toda a cabeça. Iremos no nosso próprio
girar”.
E pronto, acabou-se o contarelo
já de há muito se ouviu o sussurro do cuco
e da poeira nocturna
entrando na órbita dos planetas menores
Os animais, agora, vêem através dos nossos corpos:
olham na direcção do fígado e por detrás divisam
um relógio antigo
olham através duma perna e do outro lado
está uma máquina de lavar
olham através do antebraço esquerdo e distinguem
um casaco de criança no cabide
As nossas figuras cresceram
e são breves e intensas como um astro. Agora
é-me lícito finalmente dizer
– objecto ou escultura o meu coração permanece
discreto e impenetrável
antigo marinheiro, antigo tecelão acocorado num escuro
compartimento
onde pouco antes passou o silvo duma serpente
Ele viaja até aos lugares mais secretos
ele sabe o que está por dentro dos diminutivos
a matemática de espirais e elipses
Obscuro viajante ornado apenas com um chapéu e um colar
agita-se devagar como uma abelha maldita
e não toma a realidade por uma pomba cubista
Às vezes visita-me
como um turista afeiçoando um idioma
injuria-me se visto o meu casaco escuro
porque o botão de cima não lhe agrada
O meu coração é não só o alfa e o ómega mas a linfa e os humores
o que cresce entre placas ósseas finas como um tronco consagrado
é um desconhecido de quem só sei o nome oculto
– duplo nome caído numa masmorra –
O meu coração
ressona de noite
sabe que a lua é um arbusto adormecido
e que um desmaio nem sempre é
aquilo que parece
entre os signos de Caranguejo e Capricórnio
O meu coração
é um vulto embuçado que de repente salta e ri
é um pedaço de carvão de pedra
uma planta de pé atravessando
os minutos
uma linguagem morta e primordial.
Atalaião de Portalegre, Novembro de 1987 / 2017
Nicolau Saião \ Biobibliografia sucinta
revista triplov