Era famoso e não sabia

CLAUDIO WILLER
Tributo


Alguma prosa.
De Dias ácidos, noites lisérgicas (2019)


Era famoso e não sabia.

Em 1966 foi publicada a narrativa Cleo e Daniel de Roberto Freire. A história do casalzinho de jovens enamorados que não se encaixa na sociedade e acaba se destruindo. Comoveu. Enorme sucesso, lista de mais vendidos, reedições, adaptação para o cinema. Li mais de uma década depois. Confuso, tem mudanças de foco, da primeira pessoa para a terceira sem mais nem menos, metáforas pobres, o protagonista, um psicanalista, alterego do autor, é ora bom, ora diabólico. Ranço forte de católico em crise. Depois Freire, terapeuta, tornou-se seguidor de Wilhelm Reich, publicou umas obras mais libertárias. Celebridade então, hoje esqueceram-no (acho).

Carmela, com quem tive um relacionamento intenso e aleatório, só nos encontrávamos por acaso, chegou a ser paciente dele. Passamos um fim de semana de 1978 no sítio de Freire na Maromba, região de Mauá, Serra da Mantiqueira, onde reunia discípulos ou pacientes – mas quando fomos, estava desocupado, felizmente não havia ninguém. Já conhecia Mauá. Passeios na montanha, sauna, banhos de cachoeira. Isso, antes de Carmela mudar-se para a Europa, sobreviver recebendo uns trocados ao apresentar-se com um conjunto musical em estações do metrô em Paris, drogar-se pesadamente, voltar reclamando, quando não estava sob efeito de remédios, da TV ler seus pensamentos através de eletrodos implantados na cabeça. Assombração urbana, morreu precocemente. Terapia com Freire não adiantou.

Em Cleo e Daniel, que finalmente li nessa época, há um personagem chamado “Claudio, poeta surrealista”. Perverso, tem um apartamento onde distribui cocaína e controla de algum modo os protagonistas Cleo e Daniel. Aparece pouco; mas Freire pegou todas as epígrafes e algumas citações do meu Anotações para um Apocalipse, os trechos de William Blake, Rimbaud, Henri Michaux, Ginsberg etc, foi enfiando em seu relato, além de imitações dos meus poemas em prosa. Tudo, obra do “Claudio, poeta surrealista”. O modo como meu livro de estreia repercutiu em sua cabeça. Apresentado a ele no final da década de 1970, não toquei no assunto.

Em 1979 ou 80, o artista plástico Roberto Campadello abriu um bar, Persona, no Bixiga, Rua Treze de Maio. No porão, espelhos reversíveis e lanternas, conforme se iluminava, você se enxergava, via quem estivesse do outro lado ou fundia as imagens, podia ser um e o outro. Campadello chamou-me para umas reuniões em seu subsolo, queria discutir ou retomar a contracultura. Compareceram tipos. Um deles, Eugênio, sempre vestido de branco-amarfanhado, baixinho, barba e o cabelo loiro para ruivo ou ruivo aloirado, olhos azuis. Falava bem alto, com um timbre claro. Recém-chegado do reduto hippie na Praia da Trindade em Paraty. Contou-me que o livro que lhe fizera a cabeça havia sido Cleo e Daniel de Roberto Freire. “Pois eu sou Claudio, o poeta surrealista”, disse-lhe. Arregalou os olhos: “Você…? Você….? CLAUDIO, O POETA SURREALISTA…!? MEU ÍDOLO…!!!” Contive o ataque de riso. Mais tarde, me convidaria para uns eventos algo despropositados que organizava, acabou estabelecendo-se como editor de jornais de bairro na região de Santo Amaro, morreu dolorosamente de câncer no reto. Também está em Crônicas Marsicanas de Alberto Marsicano, por conta de um fim de semana maluco em São Luis do Paraitinga. Marsicano – outro belo personagem que se foi – erra ao declará-lo modelo fotográfico da revista Casa e Jardim. De fato, dava um cartão no qual se fazia constar como “modelo fotográfico”. Antes de estabilizar-se como editor de tablóides, entre outros empregos, trabalhou em uma revista de fotonovelas pornô. Fazia o anão de pau grande. Folheei essa revistinha.

[…]

[…]

Em 1979 ou 80, o artista plástico Roberto Campadello abriu um bar, Persona, no Bixiga, Rua Treze de Maio. No porão, espelhos reversíveis e lanternas, conforme se iluminava, você se enxergava, via quem estivesse do outro lado ou fundia as imagens, podia ser um e o outro. Campadello chamou-me para umas reuniões em seu subsolo, queria discutir ou retomar a contracultura. Compareceram tipos. Um deles, Eugênio, sempre vestido de branco-amarfanhado, baixinho, barba e o cabelo loiro para ruivo ou ruivo aloirado, olhos azuis. Falava bem alto, com um timbre claro. Recém-chegado do reduto hippie na Praia da Trindade em Paraty. Contou-me que o livro que lhe fizera a cabeça havia sido Cleo e Daniel de Roberto Freire. “Pois eu sou Claudio, o poeta surrealista”, disse-lhe. Arregalou os olhos: “Você…? Você….? CLAUDIO, O POETA SURREALISTA…!? MEU ÍDOLO…!!!” Contive o ataque de riso. Mais tarde, me convidaria para uns eventos algo despropositados que organizava, acabou estabelecendo-se como editor de jornais de bairro na região de Santo Amaro, morreu dolorosamente de câncer no reto. Também está em Crônicas Marsicanas de Alberto Marsicano, por conta de um fim de semana maluco em São Luis do Paraitinga. Marsicano – outro belo personagem que se foi – erra ao declará-lo modelo fotográfico da revista Casa e Jardim. De fato, dava um cartão no qual se fazia constar como “modelo fotográfico”. Antes de estabilizar-se como editor de tablóides, entre outros empregos, trabalhou em uma revista de fotonovelas pornô. Fazia o anão de pau grande. Folheei essa revistinha.

[…]

Vi minhas fichas de DOPS. Reunião no Arquivo do Estado, pedi para ver, mostraram-me. Cinco fichas. Coisa de burocratas burros, não sabiam nada, não entenderam nada. Talvez ache coisa melhor em arquivos federais, se é que não foram destruídos.

As vezes em que coloquei meu pescoço na reta, movido por uma combinação de ética e irresponsabilidade.

Taís. Poderia ter tido algo com ela antes, conhecia desde o final de 1965, garota ainda, porém estávamos ambos ocupados, ela se iniciava com um amigo meu. Muito atraente. Plástica. Acabamos saindo em 1972. Disse-me que militava, estava na ALN ou no que restava daquela organização. Não quis saber mais a respeito, quanto menos souber, melhor. Uma noite em que dormiu em meu apartamento, noite de pesadelos com vampiros e demônios, no dia seguinte o telefonema, a irmã e o cunhado haviam caído, sido pegos. Hospedei-a. Pediu-me para ajudá-la a recolher uma arma, um revólver usado em ações que estava em uma casa na região de Poá. Jamais esquecerei o ar mais frio, a umidade de muitas árvores ao redor, o cheiro de mato fechado, o silêncio. Arredores perfeitos para uma campana, que sorte ninguém haver entregado o ponto, teria sido facílimo nos pegarem em flagrante. Como foi longa a viagem de volta com o calibre 38 debaixo do banco. Havia barreiras, fiscalizações na estradinha congestionada que então ligava Mogi das Cruzes, Suzano, Poá e São Paulo. Imaginem se me pegassem. Outros atravessaram o inferno por menos que isso. A mais expressiva e perigosa das vezes em que não fui preso.

Aos poucos a barra de Taís foi-se aliviando, alguém nessa história tinha pai militar, um general, mediação não fez que soltassem a irmã e o cunhado, mas impediu tortura em grau extremo ou que os matassem. Taís continuou a vocalizar seus orgasmos em meu apartamento e, em duas ocasiões em fins de semana, na casa de campo de Irco. Arrumou trabalho em uma daquelas exposições ou feiras de produtos no Anhembi. No dia seguinte a uma noite juntos, noite bem intensa e sugestiva, subitamente largou-me. Despachou-me. Ficou, soube, com um uruguaio que conhecera naquela exposição ou feira. Voltaria a ter notícias dela. A última, na década de 1990. Telefonou-me para dizer que estava em uma reunião no Embu ou Taboão da Serra – da Convergência Socialista, então ala do PT, preparavam a criação de um novo partido que veio a ser o PSTU.

Uma vez militante, sempre militante. Aí está um falso axioma. Porém verdadeiro para Taís.


C.W.: Biobibliografia


revista triplov

SÉRIE VIRIDAE . NÚMERO  04: CLAUDIO WILLER

portugal . fevereiro . 2022