Entre telhados e tabernáculos, o poema

MARIA AZENHA
Foto: M CÉU COSTA
TRIBUTO


Por CARLA CARBATTI


Carla Carbatti  é doutoranda em Estudos da Literatura e da Cultura pela Universidade de Santiago de Compostela (USC). Possui textos poéticos, ensaísticos e resenhas publicados em várias revistas eletrónicas. É autora do poemário ‘Na cadência do caos’ editado pela Urutau, 2016.


A simples leitura da breve bibliografia contida no livro da Azenha foi suficiente para evidenciar minha imensa ignorância em relação à sua obra. Talvez, pensarão alguns de vocês, fazer essa confissão não seja um bom começo, talvez. No entanto, Blanchot, que para mim é um dos mais brilhantes críticos literários, dizia que só interessa escrever sobre o que não se sabe e de maneira fragmentária. Longe de mim querer me igualar à genialidade blanchotiana. O que trato de dizer é que há nesse hiato do não-saber todo um espaço de experimentação. Ademais, por que não poderia falar do seu livro, sem ser uma especialista, se falo como uma aprendiz, uma dançarina, uma menina que segura a sua mão em silêncio e demora em sua companhia, um segundo, um infinito, por cima dos telhados, por dentro do poema? Dessa maneira, pelo menos, me livro da injúria de querer estabelecer o que a autora quis dizer, de querer explicar o livro, constrangê-lo em um sentido. Ajuizar em nome da objetividade.

O gesto, portanto, que convoco para inflar essa travessia a cegas é o de ler levantando a cabeça. Uma maneira de ler que Barthes disse interromper a leitura (fragmentá-la, como quer Blanchot), não por desatenção ou falta de interesse ao texto, senão em função dos afluxos de sensações, afetos e conexões que nos invadem. Essa leitura acontece a partir de um lugar não consciente, logo, fora do domínio da leitora, do meu domínio. Dessa maneira, pelo menos, me livro da injúria de reduzir a leitura a uma visão pessoal. Ajuizar em nome de uma subjetividade assujeitada. Já que a leitura, como sugere Barthes, deriva de formas transindividuais; são, pois, associações geradas pelos traços do poema que nunca são arbitrários, uma vez que são extraídos e inseridos não só dentro de certos códigos, de certas regras, certa língua, mas, sobretudo, são extraídos e inseridos dentro de uma lógica (logos, razão comum) que vai além do poder da leitora e também da escritora. Barthes assumiu que ler é fazer o corpo trabalhar ao apelo dos signos. Eu diria que é fazer o corpo (um corpo que deve ser criado no ato da leitura) dançar com as forças e intensidades que circulam nas palavras; é criar um ritmo (um entremeio, uma dobra). Não objetivo, não subjetivo, o ritmo percorre o campo do sensível e o campo do inteligível, ou melhor, torna indiscerníveis as fronteiras entre os dois campos, propondo um mapa de suas variações, velocidades, sobressaltos, pulsações. Levantar e abaixar a cabeça é traçar uma transversalidade. Levantar a cabeça, interromper, colocar em suspenso para não significar, não fixar; voltar a abaixá-la, reconectar, religare, para, como numa prece pagã, acender a vela, dar o primeiro sopro.

Assim, pois, me encontro no Tabernáculo (primeiro poema) da Azenha. Este lugar, como ela diz, onde o poema é submetido à maternidade. É dizer, então, que o poema começa dentro? Se damos um passo a mais, para o segundo poema, tateamos a poeta dizer: todos os poemas que escrevi  já foram escritos/ Dou-me apenas ao ofício da névoa/De revelá-los em pedaços de argila. Ora, o poema parece não começar com a poeta, a ela, artesã do sangue, para usar seu belíssimo verso, lhe cabe a tarefa de revelá-los em pedaços visíveis. Atentemos para o fato de que a palavra ‘revelar’ aparece no poema cujo título é Há fotografias como punhais. Por extensão, poderíamos dizer que há imagens, há exterioridades que ferem. Por imagem não me refiro à representação das coisas. A imagem é a coisa na qual os sentidos se convergem com a matéria, ou seja, as coisas não são representadas pela imagem, as coisas participam na imagem. A rapariga feia e bela, transfigurada pela varíola que nunca foi amada (que aparece ainda no segundo poema), essa imagem, essa intimidade extrínseca não teria afetado, ferido Maria Azenha, a tal ponto que ela se viu obrigada a revelá-la no coração do poema? Revelar em sentido fotográfico, como processo de transformação da imagem latente, captada pela sensibilidade, sentida, em imagem visível, captada num discurso, discursada. É possível, que mesmo tentando evitar, eu ainda esteja propondo uma dicotomia. Tento outra vez, digo de outra forma: o que acontece no poema é a circulação constante de uma imagem a outra. E ainda que se possa concluir que há uma cortadura, uma mudança ontológica ao transladar a imagem de um lado a outro; o poema se afirma como fogo que alumbra a ferida, o poema fala desde a fissura. Assim, escutamos a poeta dizer nos últimos versos do referido poema:

é exatamente por essa razão que os meus poemas 

Já foram todos escritos 

São chagas alastrando e crescendo em searas de fogo 

Estando entre a terra e o céu 

Sei apesar de tudo porque li Juan Gelman 

Que cada lágrima é um problema insolúvel 

Se aceitamos o convite, devemos vagar com Maria Azenha entre a terra e o céu. Entre tabernáculos e telhados. No telhado, no exterior, está tudo que arde, fere e se extravia; é uma região em chama, anônima, onde a vontade fracassa em assignar um efeito, um signo:

Olha o céu em fogo! 

O fumo azul-escuro jorrado 

Por entre as notas de um violino 

Partido e doido, 

Que agora se escapou 

Pelos meus dedos

É a região-mãe. Poderíamos dizer, então, que é a origem, onde começa o poema? Se dissermos que sim, temos que aceitar que a origem, o centro é justamente o não-encontrável; de modo que o poema se anuncia, novamente, como errância, como passagem. Por isso a poeta diz à mãe: A minha beleza perdeu-se ao tentar estabelecer-te. A mãe ou a origem assinalada, demarcada, se torna a mãe federal, uma jurisdição, uma governança, um poder; mãe infértil onde não cabe o trigo. Por isso a poeta devolve, com toda força da paisagem, às árvores destelhadas pelo vento, o nome materno; desloca a eternidade do seu lugar, para dentro do peito e o peito se fragmenta em mil sementinhas espalhadas em pleno verão. Alma partida, ferida, diz a Azenha: Minha alma é um enxame. Sopro multiplicado em fogo, água, ar e terra. Desdobra a noite em lanças, retumba o amor com nomes furiosos. Não deixa – lembrando a epígrafe de André Breton – a meia-haste a bandeira da imaginação, da imagem em ação (participa na imagem, tateia no escuro); com mãos delicadas maneja a névoa em molduras de sombras e vento. Pastora cósmica em seu trenó de gelo escapa da mãe federal, segue a linha de fuga dos cabelos da amada e, nos diz gozosamente:

Com eles transmuto o vento 

Em grinaldas d´águas 

Em cavalos de estrelas 

E a abóbada celeste é a minha casa

O telhado também é região-amorosa, pathos extremo, desmedido, que extende seu império na pele da linguagem. As palavras deliram, são beijos que vão em cavalgada, cambaleando como um Baco, numa gotinha incendiada. Cosmo grávido de caos. A força amorosa é a força que atravessa os incêndios, o informe e traz na crina, no pensamento um traço trêmulo de universo: uma consistência, um corpo vibrátil. Vemos, então, a geração de microsestruturas instáveis: laranjas de fogo, estrelas vermelhas, centelhas do dia, mão d’água, flores de pedras, pedra acesa, paloma de âmbar, trenó de gelo, montanha de estrelas, estrelas de orvalho, anel de rosas brancas, ramo azul de vento, barcos de licor e mel, pupila dos astros. Microsestruturas instáveis que são como relâmpagos que cortam ao mesmo tempo que unem o céu e a terra, telhado e tabernáculo. A pupila dos astros, por exemplo, é a ascensão da clareira dos bosques. Por essa mesma ponte as estrelas descem por dentro dos mastros, na noite.

É o desejo erótico de unir certos latejos e lampejos dispersos a fim de explicá-los, desdobrá-los mediante a indefinição. Como podemos escutar no último poema chamado Poema:

Era a luz reunida numa alva manhã 

E o seu pequeno coração 

Unido ao meu 

Combatia a grande solidão de Deus 

Ouviu o som do mar 

Depois começou a desintegrar-se

Eros que se move entre saber e não-saber, de sorte que o tempo amoroso é agora, uma vez que agora é o momento no qual estalam as transformações: saber metamorfoseia em não-saber e vice-versa.

São extensões abertas, caminhos cotraçados entre sensível e inteligível, coisa e palavra, porque o poema não pertence à esfera semiológica, senão que a tange; não pertence a esfera física, senão que a tange e foge como um pássaro de fogo do qual só herdamos a febre e as cinzas.

 


indice . revista triplov . série gótica . inverno 2020-2021