SÉRGIO MEDEIROS
E N R I Q U E F L O R, O N O V O
(Fragmento inicial)
Senhor Enrique Flor presided at the organ with his wellknown ability and, in addition to the prescribed numbers of nuptial mass, played a new and striking arrangement of Woodman, spare that tree at the conclusion of the service.
James Joyce: Ulysses
PRÓLOGO
I)
… não é a primeira vez que me proponho a seguir os passos do senhor Enrique Flor, músico português
… não é a primeira vez que me proponho a registrar os sons da sua música vegetal
… ou música floral
… não é a primeira vez que me proponho a enumerar os galhos que brotam da sua atividade musical
… ou seja, tudo o que foi, é e será engendrado musicalmente por ele, Flor
… como Flor atuava em Dublin numa época em que as florestas de Portugal haviam desaparecido (conforme se lê no Ulysses, foi em 1904, data em que transcorre a trama)
… como ele se instalara com seu órgão em Dublin e ajudava com seus concertos (era um artista mais apreciado aparentemente em Dublin do que em Lisboa, por incrível que pareça) a reflorestar os parques (a Irlanda já estava quase tão desmatada como Portugal, e as árvores precisavam voltar a se acasalar, segundo bradavam os nacionalistas irlandeses)
… então, tocando seu órgão, ele ativava o sex appeal delas
II)
… enfim, como esse músico português inigualável estava muito longe das terras onde se fala o português
… eu o convidei a vir ao Brasil numa época em que a Mata Atlântica e a Floresta Amazônica eram imensas
… achei que aqui ele encontraria melhores condições ambientais para exercer a sua arte revolucionária, a arte de reflorestar por meio da música
… achei que ganharíamos (ou poderíamos sonhar com) uma floresta “eterna”
… tudo isso contei no meu livro Totens, que publiquei em 2012
III)
… pois bem, Enrique Flor ainda cultua a arte vegetal que James Joyce celebrou no seu célebre romance de 1922
… e como ele ainda está em forma, voltou a Dublin em 2017
… num momento trágico para Portugal, pois, no último verão, as suas árvores arderam pavorosamente no centro do país
… este livro segue os novos passos de Enrique Flor no seu retorno a Dublin, num mês de junho particularmente quente tanto na Irlanda como na Europa como um todo
IV)
… o que me pergunto é se as sementes voltarão a brotar ao som da sua música, quando ele tiver regressado ao seu país devastado pelo fogo
… ou quando regressar ao Brasil, que está cada vez mais desmatado
V)
… na Irlanda ele afinará o órgão e fará o primeiro ensaio…
… que me proponho a descrever aqui
… quero destacar ainda que, traduzido para o inglês como Henry Flower, o nome Enrique Flor é um dos codinomes de Leopold Bloom em Ulysses
… mais do que isso, existiu um segundo Enrique Flor português, o qual foi precocemente sacrificado, aos quatro anos de idade, no último incêndio florestal no seu país reflorestado
VI)
… esses enredos mirabolantes serão desenvolvidos (espero) neste poema
VII)
… ouço as badaladas do sino que os turistas tocam irreverentemente na catedral milenar
PORTUGAL E IRLANDA NO VERÃO
1)
[Enrique Flor em Lisboa] (1)
: atrás das amplas vidraças se movem incessantemente carros e ônibus entre aviões de cores várias; um jumbo pousa em completo silêncio na tarde clara
: um inseto fino e longo como uma fuselagem sem asas atravessa o piso do saguão entre duas fileiras de cadeiras; nenhum pé móvel parece roçá-lo entre farelos de comida e um ou outro guardanapo amassado
2)
[Finalmente em Dublin]
: a mão do velho passageiro que segura o celular junto do rosto é firme, mas a mão que ele apoia na cadeira treme visivelmente; ele fala sem parar em alemão
ENRIQUE FLOR, O VELHO,(2) CRUZA DUBLIN DE MADRUGADA
: poucos carros passam ao lado do rio Liffey, indo e vindo
…
: apenas um dobra a rua e vem nesta direção, vagaroso
…
: há uma profundidade escura no rio visto daqui, mas a água brilha discretamente no fundo, como num poço
…
: uma sirene soa mas se cala quase imediatamente
…
: também se ouve o badalar cristalino do sino da igreja; soa uma vez só
…
: e depois, bem depois, agitam-se as garrafas vazias que vão sendo despejadas abruptamente num caminhão; a onda se repete duas vezes, mas se ouve em seguida o som de um veículo pesado que se afasta (cheio de garrafas agora calmas)
…
: amanhece, é dia nublado
ENTRE 6 e 7
: na parede penumbrosa uma longa palavra escrita que se lê ao subir a escada; no fim da escada uma janela e uma mosca grande zumbindo
– da janela se avista um pátio e uma casa em ruínas, com trepadeiras verdes
: um jovem árabe na porta da lanchonete à espera de um fornecedor talvez; a música árabe típica soa às suas costas enquanto uma mosca enorme passeia no seu sapato que pisa a calçada lavada
FLOR E HANDEL
: um caminhão se aproxima bufando da janela do Handel Hotel (que fica ao lado ou ao lado e em cima do célebre Music Hall, que a história da música europeia registra) à luz agora firme do sol e estaciona diante da placa onde se lê:
GEORGE FREDERICK HANDEL
The first performance of the “Messiah” took place
in the Music Hall,
Fishamble Street,
On April 13th 1742
.. homens uniformizados descem cuidadosamente na calçada dois carrinhos de mão e algumas pás; num carrinho tem areia; no outro, mudas de plantas; as mudas começam imediatamente a ser plantadas em canteiros do outro lado da rua; o som de pás cavoucando a terra eleva-se até o topo do Handel Hotel… (3)
9
– diante de uma lanchonete brasileira que vende coxinha e outros quitutes tradicionais dois buliçosos meninos orientais idênticos correm em círculos usando coroas de papel; gritam felizes sem dar ouvidos às mães, que os aguardam com paciência
: são dois duendes coroados ao sol da manhã
.. quase correndo o jovem alto passa sem camisa entre os pedestres exibindo sua lívida magreza joyciana
ENRIQUE FLOR, O VELHO, CRUZA DUBLIN NO MEIO DA MANHÃ
.. diante do restaurante tcheco uma mulher jovem dá tapas no rosto de um homem bêbado com o peito branco exposto; ele se recusa a vestir a camisa
: um homem magro alto usando casaco preto caminha apressado acariciando a barriga com a mão direita e mexendo nervosamente a língua na boca desdentada
.. no meio de milhares de vinis ouvindo rock pai e filho aguardam olhando para os cartazes (4) nas paredes enquanto o vendedor foi buscar no estoque secreto um inacreditável disco (provavelmente uma gravação pirata) de Enrique Flor
: sai o sol após rápida garoa matinal; entre as faixas altissonantes que pai e filho ouvem na loja as gotas ainda batem na calçada distintamente
.. na livraria mais antiga de Dublin, com retratos de James Joyce na vitrina, os feitos de Enrique Flor continuam a ser relembrados e narrados por pelo menos um dos vendedores (sobretudo pelo homem magro desdentado que coçava a barriga) que deslizam de cá para lá entre os clientes
: os feitos do músico português constam de várias edições de Ulysses alinhadas nas estantes dedicadas à ficção irlandesa
.. o sinal fecha, mas uma mulher jovem (a mesma que esbofeteou o namorado ou o marido momentos ou horas atrás) não se detém: atravessa gritando a rua diante dos carros que começam a se mover com cautela
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: na esquina, a essa hora, diariamente se reúnem homens e mulheres agitados; um jovem sujo passeia os olhos-azuis claros ao redor, saudando com um sorriso leve alguns transeuntes fantasiados de Molly e Leopold Bloom
.. a essa altura da manhã o tiroteio das gralhas atinge subitamente a janela do tranquilo Handel Hotel; elas vão substituindo definitivamente as gaivotas, que se deslocaram minutos atrás para uma das pontes do rio Liffey, de onde agora chegam apenas fiapos de gritos agudos…
MEIO-DIA
A)
[Primeira Martello Tower]
– a torre fechada, e diante dela, roçadas pelas ondas, pedras enferrujadas; mar calmo (aparentemente) morno frequentado por bebês
– numa praça dois pregadores gritam alternadamente ao lado de uma estátua em cujo pedestal homens obesos estão sentados, comendo e conversando
- B)
– o sino jovial da catedral badala longamente sem excesso de entusiasmo
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: vários homens magros em pé contra uma parede sendo interpelados por dois policiais; os seus pertences estão amontoados na calçada; o mais maltrapilho usa muleta e não parece nada desconcertado ou irritado com a revista minuciosa depois do almoço; todos estão sorrindo, inclusive um dos policiais
.. um velho desdentado fala fazendo gestos exaltados a outro velho que apenas ouve; estão no meio da calçada e detêm o fluxo dos pedestres
– corpos jovens tatuados passam diante da cabeça diminuta e dourada de James Joyce grudada na parede de um prédio histórico
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.. um galhinho verde flutua no rio escuro e vagaroso que parece andar para trás às vezes; povoam o seu fundo imóveis latas de cerveja grandes e gordas
: as gaivotas se calaram entre o trânsito engarrafado; a água traz para junto delas – pousaram num círculo no meio do rio — um saco branco vazio de biscoito ou de batata frita; o sol se reflete na prata dentro dele
– na cripta milenar sente-se forte cheiro de peixe fresco na penumbra espessa onde as peças de ouro reluzem
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: uma velha surda se aproxima sorrindo desdentada fantasiada de trêmula Molly Bloom; fala confusamente sobre frutas e verduras com turistas que não estão celebrando o Bloomsday mas buscam o mercado mais próximo
.. faz frio ao redor da torre longínqua; o mar vai ficando de um azul mais escuro
– o sol se reflete na vidraça de um prédio baixo; os rumores vêm amortecidos de longe; mas, de repente, a porta de uma carroceria na rua deserta se abre ruidosa; as pombas esvoaçam lançando sombras nas paredes
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I)
[Segunda Martello Tower]
– diante da death mask de James Joyce o pai fantasiado de Bloom percebe que ele parecia sorrir, como se quisesse dizer que novamente e logo iria reabrir os olhos
– a mãe, fantasiada de Molly Bloom, se reconhece imediatamente num retrato de Lucia Joyce: loura, elegante, madura, serena, muito mais linda do que quando era moça alucinada e cortava o fio de telefone para impedir que o pai falasse com os leitores de Ulysses
– no caminho que leva à praia, um copo de plástico entre as pedras úmidas, como um focinho de porco tomando sol
II)
– as pequenas flores lilases com aroma delicado soam talvez como música perfumada de Enrique Flor; algumas desembrulhadas, outras embrulhadas, todas num galho que aponta para cima comandando o mar ao redor
– a aguardada (pelo pai, pela mãe, pelo filho) música aromática de Enrique Flor provém inequívoca de uma moita na ponta mais afastada e elevada de um gramado ao longo da praia
– crianças gritam dentro e fora da água fria com os braços cruzados no peito; lançam os gritos favoritos de Enrique Flor
– abelhas se movem nos tufos de música aromática; o som das pétalas é contínuo
– as flores se acumulam lilases num jardim; umas moitas são fortemente lilases, outras apenas levemente lilases; são tantas pétalas sobrepostas que elas ficam borradas nos canteiros, sem contorno: é como se a sua cor fosse o aroma que se elevasse delas
– o que há é silêncio, (ainda que) cheio de aromas evanescentes?
– ou é ruído de rua?
UM BRASILEIRO (5) FANTASIADO DE HENRY FLOWER (CODINOME DE LEOPOLD BLOOM) LÊ PARA SEU FILHO FANTASIADO DE STEPHEN NOTÍCIAS/MANCHETES SOBRE UM APOCALÍPTICO INCÊNDIO FLORESTAL
– Portugal mourns as forest fires kill more than…
– THIS REGION HAS HAD FIRES…
– but we cannot remember a tragedy of these proportions
– THE SKY IS LIT UP BY FLAMES AT PENELA IN THE COIMBRA DISTRICT OF CENTRAL PORTUGAL
– Portugal has declared three days of national mourning after the deadliest forest fires in recent memory raged across central areas of the country, killing at least […] people
– Families burnt in their cars as forest fire kills…
– Enrique Flor (6) one of four children that perished in forest inferno (7)
– I am close to the dear people of Portugal
– I am close to the dear people of…
– eis o nosso…
– inferno português!
– [Silêncio cheio de aromas evanescentes]
DUAS DEFINIÇÕES DE PORTUGAL (SEGUNDO UM HEBDOMADÁRIO SATÍRICO)
– País mais desmatado da Europa no início do século XX. (O segundo país mais desmatado da Europa naquela época era a Irlanda de Leopold, Molly e Stephen Dedalus.)
– País reflorestado na Europa mais devorado por incêndios neste início do século XXI. (Hoje Dublin está particularmente florida, luminosa e aromática, e o português do Brasil soa sem pudor em todas as esquinas.)
(Este poema será publicado em livro em 2018, no Brasil, pela editora Iluminuras de São Paulo, num volume intitulado Trio pagão.)
NOTAS
(1) O leitor logo verá, como eu disse no prólogo, que não existe apenas um Enrique Flor em Portugal. Alguns nasceram no século passado; outros, neste século… A maioria continua viva. São todos músicos de mão-cheia. Além disso, Enrique Flor é um codinome usado ultimamente por alguns brasileiros…
(2) Na verdade, acredito que seja melhor dizer que se trata de alguém fantasiado de Enrique Flor. Afinal, é época do Bloomsday, e os leitores de Joyce se vestem com roupas de 1904… para homenagear o Ulysses moderno. Enfim, não sou capaz de dizer ao certo quem é Enrique Flor, embora eu seja oficialmente o seu biógrafo.
(3) Colado ao hotel fica, como os melômanos sabem, The Contemporary Music Centre.
(4) O pai está, na verdade, como que “cego”: só pensa em fantasiar-se (melhor) de Leopold Bloom; talvez ele até consiga fazer o filho vestir-se de Stephen, para completar a dupla que deseja formar com ele no Bloomsday… Onde estará a mãe? Na Primark, comprando as fantasias da família?
(5) Como tem brasileiro em Dublin! Este e seu filho, por exemplo, que não moram na cidade (parecem turistas), estão celebrando o Bloomsday, uma festa literária que será tão popular no Brasil (prevejo) como o nosso velho Carnaval.
(6) Naturalmente, um homônimo do nosso herói, Enrique Flor, que por sorte se encontrava em Dublin no momento mais crucial do incêndio florestal: quando se contavam os mortos que eram retirados das chamas.
(7) O nosso herói Enrique Flor, o velho, não teria sido por acaso substituído, neste poema, (à minha revelia, talvez), pelo menino de quatro anos (dessa imagem trágica (um músico potencial)) que pereceu barbaramente queimado no inferno português?
Sérgio Medeiros nasceu em Bela Vista, no Mato Grosso do Sul, fronteira com o Paraguai, e hoje reside em Florianópolis, Santa Catarina, onde leciona literatura na Universidade Federal. É autor, entre outros, dos livros de poesia “A idolatria poética ou a febre de imagens”, “Totens” e “O sexo vegetal” (publicado em inglês pela University of New Orleans sob o título “Vegetal sex”). Traduziu, com Gordon Brotherston, o poema maia-quiché “Popol Vuh” e organizou a antologia de mitos amazonenses “Makunaíma e Jurupari”. Colabora no jornal “O Estado de S. Paulo”.