RICARDO DAUNT
Tributo
Organização: DERIVALDO DOS SANTOS
Em busca do nítido nulo:
o real e o irreal confluem no espaço da escrita
Por Maria Heloísa Martins Dias
O Romance de Isabel, de Ricardo Daunt compõe, juntamente com Manuário de Vidal (1981) e Anacrusa (2004), uma trilogia romanesca, o que cria uma circularidade ou complementaridade entre essas narrativas. Entretanto, apesar de serem retomadas as personagens, cada livro guarda sua especificidade, podendo ser lido não necessariamente à luz dos outros.
Começo justamente pela frase que abre a narrativa, extremamente convidativa à leitura, impelindo-nos de imediato a pairar, tal como a folha soprada e a palavra suspensa, imersos nessa iminência ou realidade adiada pelo contar: “A última palavra ficou suspensa no jardim como uma folha soprada.” Em nível factual, a experiência dolorosa vivida pelo narrador-per- sonagem, na iminência de ser abandonado por sua mulher, Isabel, transfor- ma essa situação aparentemente simples numa complexa rede de fios e nós tecida pela escrita. É desta trama que vão aflorando motivos e personagens capazes de recolher, também, aquela “folha soprada” pela escrita para irem compondo a história de suas raízes.
O foco em 1a pessoa, ora de Vidal, ora de Isabel, delega às persona-
gens o poder de perscrutar sua interioridade com um olhar arguto, sensí- vel e minucioso para flagrar em filigrana as ramificações mais íntimas e insuspeitadas. Nessa narrativa, o fluxo ritmado da escrita se materializa no modo como se interligam os capítulos (com exceção do 4o), pois as frases finais de um são retomadas no seguinte, estratégia que nos reporta à Cla- rice Lispector de A paixão segundo GH. Um intimismo atravessa a escrita como um sopro entranhado nas palavras, tornando impossível dissociá-las da emergência do dizer. Isso também se patenteia no ritmo contínuo das frases, encadeadas em longos parágrafos, sem pausas aparentes, onde os planos temporais se (con)fundem.
Antonio Vidal e o cão Marvel – dois seres que se “entendem” na per- muta insólita de sensações e sentimentos, fidelidade humano-canina numa cumplicidade intensamente dolorosa. O estado solitário compartilhado e a percepção do mundo circundante a envolverem homem e cão: “É como se diminuíssemos um pouco, e nosso peito quase encostasse em nossas costas, prisioneiros de nós em nós, e quase nada respirássemos e quando digo nós, digo Marvel e eu, de quem mais estaria falando agora?” (p. 13).
Apesar da evidência do título, a figura de Isabel no início do romance existe recuada em seu espaço próprio, como se a dormir em concha ou no fundo do aquário, onde às vezes ela imagina estar. Vidal e Marvel é que assumem o primeiro plano da narrativa e somente aos poucos Isabel vai despontando como personagem, ganhando espessura graças ao traçado e entrançado textual do narrador. Somente ao final do segundo capítulo é que a fala de Isabel se afirma, exigindo de Vidal as chaves da casa, mas o diálogo entre eles nunca se completa nem se configura como realidade normal, plausível; suas falas se quebram, ficam suspensas ou imergem na esfera do absurdo. No quarto capítulo, em que o ponto de vista de Isabel abre a narrativa com sua fala dirigida a Vidal, fica mais evidente o diálogo de loucos entre as duas personagens: não há correspondência necessária ou continuidade lógica entre os dizeres de um e de outro. Trata-se de uma “conversação impossível, linhas díspares” (p. 70). No entanto, no final do romance, a conversa entre eles recupera certa lógica, parece haver cumpli- cidade ou um possível entendimento: é o momento em que se aproximam, após o jantar, para comentar sobre a partilha silenciosa que saborearam.
O estilo de Daunt revela as matrizes de sua formação, essencialmente literária, de modo a deixar na linguagem marcas conceituais ligadas ao ar- tístico. Assim, por exemplo, na descrição de Isabel mesclam-se o estético e o real: “Seu cinismo, seu cubismo, seu abstracionismo em carne e fabrica- do nos seus olhos brandos e ao mesmo tempo exigentes.” (p. 56). Também a literatura portuguesa, pintores, filósofos, escritores, comparecem em seu texto. A presença de Fernando Pessoa, por exemplo, se nota em passagens que fazem ecoar a visão pessoana do tempo: “e nesse dia que surge sinto desaparecer mais um pouco o futuro do que sou, ou o passado de onde um dia imaginei partir para ser o que ainda não consegui ser.” (p. 12). Ou: “Nesse momento em que penso que sonho, sonho que penso no movimen- to do carro sempre abrupto (…)” (p. 51). É interessante notarmos que o poético transparece em passagens comandadas pela perspectiva de Isabel, como as que figuram no capítulo final, o sexto. Anoitece, ela vive o tempo como uma sensação bergsoniana (“como chamarei o momento presente, este momento que escorre pelos meus dedos e sentidos?”) (p. 94) e a pas- sagem da Lua é comparada a uma velha bêbada, “entontecida pela visão da Terra e dos demais astros” (p. 93). O choro da personagem se mescla à ansiedade com que aguarda o jantar com Vidal: “talvez nada ganhe, só a noite que se acomoda sobre os telhados como uma discreta dama; ela nos cobre a todos como seus filhos diletos, puxa as cobertas até cobrir nosso rosto e nossas mãos e com ela anoitecemos” (p. 95). É como se a escrita já estivesse preparando o desfecho do romance com a imagem de aconchego, índice da aproximação final entre Isabel e Vidal ao se dissipar o nítido nulo para imergirem em outra dimensão do real.
Enquanto narrativa contemporânea, o romance exibe a auto-referen- cialidade, essa consciência do fazer a lançar luz (e sombra) sobre o próprio processo de criação. Uma metalinguagem singular, digamos, que aponta principalmente para a construção das próprias personagens, as quais refle- tem sobre seu estatuto: “Se mudo, estou viva, se estou viva, não posso viver morta em uma linha impressa dentro de um livro.” (p. 59). Já ao final do ro- mance, no momento em que Isabel e Vidal fazem juntos a maquiagem no rosto dela, as personagens são como “dois signos literários, frente a frente, se defrontando, quase. Próximos; mais próximos que uma modesta vírgula após uma palavra insignificante;” (p. 98).
Do Surrealismo, Daunt recolhe estratégias composicionais que estão presentes, por exemplo, nas metamorfoses que acometem Isabel, por meio de mudanças repentinas de identidade, assumindo-se ora como peixe no fundo do aquário, ora como bebê num berço, ora imaginada como cavalei- ro medieval, enfim, aquelas mudanças mágicas e desconcertantes, próprias do universo surrealista. A própria sobreposição de imagens passadas e pre- sentes, sem mediação que explicite a passagem de uma esfera temporal para outra, corresponde, de certo modo, ao automatismo gerador de asso-
ciações inusitadas ou prestidigitação imagética, típicos da arte surrealista. A percepção imaginária de Isabel ao aguardar a comida preparada por Vidal transforma os alimentos em signos: “e o chiado da fritura é outra manifes- tação audível de que o almoço está sendo feito; signos literários comendo? deve ser uma experiência alucinante, letras deglutindo letras, em meio a vírgulas e exclamações; falas com partes aleatoriamente suprimidas por conta de uma mordida famélica” (p. 86).
Há momentos que entreabrem ao leitor ricas possibilidades interpre- tativas, como a passagem em que o narrador rememora o episódio da foto- grafia a ser tirada na escola, quando adolescente. A princípio, o fotógrafo insiste, mas as fotos não o capturam bem; depois, com o esforço e empenho de ambos, fotógrafo e rapaz, as fotos são tiradas, mas o fotografado não sai, ou melhor, a foto estava lá, “mas o caso é que o rapazinho não apareceu.” (p. 54). Interessante essa não captura do personagem ou sua “recusa” em sair na foto, extremamente simbólica, em que a “ausência” pode significar o desejo de fuga ao enquadramento, um não-querer-estar-preso-à-moldura. Também Isabel não se reconhece no espelho e até mesmo a Lua foge ao enquadramento da janela, como observa a personagem. Tal como a própria narrativa, que também escapa aos limites e ditames da estrutura linear, não arrumada às convenções do discurso. Personagens, pensamentos, falas, ima- gens, ações – tudo figura como “signos corrompidos e inacabados, como um pedaço de vestido que se rasgou quando a porta bateu justamente no momento em que a fuga de uma mulher prometia se consumar.” (p. 81). Eis uma belíssima caracterização do próprio modo de ser da narrativa.
Apesar de se reconhecerem como signos apagados ou a caminho de desaparecerem, Isabel e Vidal afirmam-se como reflexos que se buscam no sentido de uma convergência, a qual finalmente se dá. Na verdade, esse encontro se anuncia, de certo modo, na enumeração de imagens que Isabel diz ver nos olhos de Vidal, “coisas que parecem ser memórias” (p. 100) e são conhecidas do leitor, pois já apareceram na narrativa, quando Vidal rememora seu passado: Marieta, o fotógrafo, a escola, a igreja, o homem do bar, avenida e carros antigos, vozes díspares…
O erotismo também se oferece no romance de Daunt, acionado pelas rememorações do personagem-narrador, em especial as que se associam a
Marieta, uma espécie de fixação voyeurista do narrador, que a vê (de fato ou pelo imaginário) através da persiana da vidraça em que constantemente estala os nós dos dedos. Outra fixação, mas agora em outro nível, é “o nítido nulo”, leitmotiv que o leitor vai relendo a cada passo e ressignificando até o momento final da narrativa em que a expressão explode como realidade. Eis o surpreendente do romance: quando tudo poderia levar à separação definitiva entre Vidal e Isabel e, portanto, à desintegração do espaço fami- liar, algo (im)possível irrompe e os reaproxima. Mesmo com a morte do cão Marvel, que não pode viver o regozijo dessa espécie de ressurreição a envolver os dois personagens, permanece o clima eufórico, um desfecho que não precisa de explicação. Basta existir como um sopro da escrita:
“Antonio Vidal calou-se. Permanecemos unidos na mesma posição durante muito tempo, até que suas lágrimas secaram. Sentia que minha maquiagem escorrera pelo meu rosto quando chorei, mas naquele momen- to não me importei com isso” (p. 110).
O “bálsamo de renovação” que Isabel diz sentir apodera-se também de nós, leitores, imersos nesse espaço do impossível, em que a dissipação do ní- tido nulo afirma-se como estatuto do literário, o que corresponderia, talvez, ao que Blanchot descreve como espaço literário: a sombra ou o invisível que persegue a escrita, tal como a interdição que acompanha Orfeu em seu percurso em busca de Eurídice. Mas entre Vidal e Isabel, a obscuridade se dissipa, permitindo-lhes a visibilidade do encontro.
RICARDO DAUNT . TRIBUTO