É assim que pega

 

CLAUDIO WILLER
Tributo


Perdi o lamento do mal com o passar dos anos.

Ganhei a simpatia dos peixes.

Robert Desnos

1

 

Um hotel pode ser o navio fantasma.

Uma árvore, xamânica.

O que dizer de corpos estranhos? Estão aí, sempre.

E dos milagres da síntese?

Não, não é viajar no sentido de deslocar-se de um lugar a outro ou de estar em uma cidade, um lago, enseada, montanha – porém do estado alucinatório que sobrevém e a mais íntima sensação de não estar aqui e de haver ido além.

 

2

 

Eu não morri em uma queda de avião

não me arrebentei na estrada

não me afoguei ao atravessar o rio Paranapanema cheio a nado

e aquele barco no canal de Ilhabela não virou nem foi levado pela correnteza

– acho tudo tão estranho, como foi possível..?

Sobram uns poemas, uma relatos de alucinações sólidas, mapeadas.

O natural é o verdadeiro sobrenatural.

 

3

 

O poema que eu deixei de escrever em 1965:

 

As ruas são de ácido e os túneis estão em chamas

O pé é lisérgico

A mão é um mantra

As Índias Ocidentais ficam logo aí, basta dobrar a esquina

– nós somos as Índias Ocidentais

 

4

 

E eu também já escrevi assim:

 

sábado do continente imerso

domingo da cidade que respira

segunda-feira da poesia que me toca

terça do mundo que recomeça

quarta para ler um poema com ênfase

quinta do sono azul

sexta da sabedoria

sábado: todas as cores

da rapidez

da vertigem

 

 

5

 

as coisas que não entendo

e que ultrapassam minha frágil compreensão:

som do silêncio (é claro…)

solidez diáfana (sim…)

NADA além da parede que se desfaz

mais a noite fria de maio

e o tempo que avança como se fosse algo

com vida própria

 

6

 

já foi dito que entre os xintoístas

são cultuados três milhões e duzentos mil deuses

talvez ainda sejam poucos

tão rarefeitos

nesta noite de maio

enquanto Claudio Willer escreve para mostrar que não tem nada a ver com isso

assim parado, entre eras que se estranham

 

 


C.W. Biobibliografia


revista triplov

SÉRIE VIRIDAE . NÚMERO  04: CLAUDIO WILLER

portugal . fevereiro . 2022