CLAUDIO WILLER
Tributo
Às vezes nem fui eu o fotógrafo
daquele mundo que se abria em praias ao por do sol, oceanos à contraluz,
uma natureza de braços abertos
(eu vi todos os rostos do mar)
(o que me dizia o perfil de árvores diante da água?)
fotografia, obra do acaso – sempre – a verdadeira fotografia
quando o belo é terrível
e as fotos nos atraem
por sua tristeza
os registros do que foi – do que fomos? – nunca mais poderei
olhá-las sem um
nó na garganta ou, se for falar, com a voz embargada
fotos que são notas da solidão, isso sim
o tempo – poderia ser em 1930
no país parado no tempo
(o tempo sempre é outro, sempre é um outro
sempre é assim)
e meu vínculo é com a palavra – só
De A verdadeira história do século 20, de 2015:
MENSAGENS, 1: ENQUANTO RELEIO ALLEN GINSBERG
porque o mundo é mágico
eu escrevo instalado em um canto tranqüilo da cidade
onde servem café
e sei-me parceiro das leis secretas que regem o real
você enxerga / eu enxergo à frente / atrás
o que foi e o que será
poesia é isto: saber olhar
atentamente, distraidamente
e contar
tudo o que ninguém precisa saber
POESIA PICTÓRICA, VISUAL: SIMBOLOGIA DA ÁGUA
Quando a praia onde você está é sentida como real unicamente por trazer a Ωlembrança viva dos cheiros, claridade e ruídos da outra praia onde você já esteve, tanto tempo atrás,
quando nada mais resta, a não ser a impressão de que viver foi inútil e de que morrer é algo totalmente idiota,
filtrada por uma sensação do sublime, de estar com os pés no chão.
ou então
quando, ao retornar já madrugada, deu-me a impressão de que se abria um abismo, passagem para outro plano, no encontro das ruas Pernambuco, Rio de Janeiro, Praça Vilaboim, e isso foi igual a perceber que em toda a minha vida nada mais fiz exceto seguir os rastros da minha própria morte.
quando a vida é apenas um pretexto: então, selecionar para publicação o que for mais estranho, anguloso, geométrico, fora de esquadro, que possa ser recitado em um tom de voz bem inocente, de quase surpresa, simulando alguém que mal acredita no que está a dizer
A VERDADEIRA HISTÓRIA DO SÉCULO XX
contemplação: estrela no fundo do mar
você: véu de gaze azulada roçando, suave apelo
furacão: róseo
perfeição: parábola de perfumes
lâmina: a mente alucinada
gruta: você e os arcanos da natureza
gelo: explosão de relâmpagos
essa solidez, essa presença: capim ao vento
rápidos, passando à frente – lavanda
e também sombra de árvore
montanha inteiramente nossa
intimidade sorridente no calor da tarde
Iris, o nome da flor, o seio ao sol
– quanta coisa que você fez que eu visse
gnose do redemoinho, foi o que soubemos
o acaso nos transportava e podíamos ir a qualquer lugar
(que vontade de grafitar as paredes do quarto)
Estranhas experiências, de 2004
Poemas para ler em voz alta
[…]
4
nossos hábitos delicados e perversos
nossas diversões meio delinqüeciais, meio filosóficas
nossos prazeres íntimos e raros
nossas conversas irisadas de memória
gestos aos poucos se entretecendo
na plenitude da nudez familiar
enquanto íamos nos transformando
nos pulsantes personagens crepusculares
de nossas narrativas
rodeados por um silêncio vivo, um tempo latejante
da noite percorrida
para não chegar a lugar algum
durante o dia
éramos simples mortais
5
Os lençóis brilhavam como se eu tivesse tomado veneno
Herberto Helder
é hora de dizer claramente como são as coisas:
você abre suas portas suas pernas seus braços sua boca seu corpo
você se escancara
eu embarco em você
eu me engajo me prendo me agarro navego em você
plano em um jogo de arriscado equilíbrio
atiro-me em seus abismos
singro suavemente sua brisa
enfrento seus maremotos
viajo por sua velocidade
eu me perco no emaranhado de seu pântano, no labirinto de terra e de areia,
de água do mar e de água doce
– nós somos o pântano e somos o labirinto
eu me cego em sua brancura
e me alço em sua ondulação
você é o planeta onde pouso
a nuvem em que me envolvo
aura estelar, dissipação de caudas de cometas
leva-me e me conduz
nessa dança desarticulada
para mais longe para o alto para o profundo
arrasta-me
amor oxímoro
amor, palavra de paradoxos
ANOTAÇÕES DE VIAGEM
1
meio-dia
a Terra respira
formigas transitam por suas nervuras
arabescos de pássaros
pontuam o pausado discurso das nuvens
só existe o espaço
a paisagem lacustre
que agora cobre uma cidade submersa
e sem saber por que vim parar aqui
o que me trouxe a esta fronteira de lugares e sensações
entro n’água
a claridade me leva à deriva
flutuo no amplo
embebido no dia mais que morno
sei-me hóspede de quem tenho sido
(a superfície do lago
se desmancha no movimento dos círculos concêntricos)
2
praia na ilha
é assim que eu gosto: ninguém por perto
só o acolchoado de areia macia
estendido entre as dunas
onde o esforço de andar
transforma os passos em gestos voltados para baixo
na direção do caldeirão
onde se debate a fumegante cordoalha
labirinto de convulsões
vazio atravessado por espasmos
novelo de tentáculos de espuma, de correnteza polar
e as mãos de gelo
que apertam a garganta e deslizam pelo ventre
são as labaredas de mar, ganchos fincados nas costas
para nos arrastar ao fundo
– penetrar nesse abismo
é navegar o dorso da morte, transformar a consciência
em pátio de ventanias –
mas, no entanto
não somos daqui
viemos de muito longe
para descobrir a derradeira praia deserta
no costão oceânico da ilha
cercada por muralhas de vento e claridade
onde cobertores de maresia
são estendidos sobre nossos corpos
mansamente reclinados
sobre a pele dourada do Tempo
Praia Mole, Florianópolis, 1981
Jardins da Provocação, de 1981:
FAZ TEMPO QUE EU QUERIA DIZER ISTO
ainda não conseguiram destruir o mar
não foram capazes de estrangulá-lo com fios elétricos e rodovias
nem de o retalhar com cercas
ou de lotear as manchas do seu dorso
o mar ainda existe
presente na consciência dos amantes
nas madrugadas de suor cúmplice estampado nos lençóis
para podermos ver o mar
para penetrar aos poucos nestes refúgios mornos
cavernas do primitivo sonho
útero de filamentos luminosos
é preciso nos desnudarmos totalmente
e sabermos nos reconhecer
pelo toque da pele
como algo que termina e recomeça
dois poemas entrelaçados
mordendo-se como a serpente mítica
o mar e suas gavetas de cristal
seus andaimes de prata
sua borbulhante conspiração de gelatinas
sua sofreguidão de novelas agitadas
seus túneis de trilhos descendentes
sua nudez flamejante
seu tempo de redes desfazendo-se na areia
seus barcos mergulhados na definitiva espera
seus poços artesianos de sal
seu recheio de quadros abstratos
sua cornucópia dos desejos obscuros
seus punhais envoltos em sargaços
suas torres de castelos de beleza pura
suas largas avenidas batidas pelo vento
seu arco-íris dançando o balé do amanhecer
suas mãos de dedos transparentes a perder de vista
guardião dos nomes dos suicidas
que vagam pelas ruas de cidades submersas
labirinto de lembranças
labirinto de luzes e sombras vivas
ondas fazendo valer seu interminável instante de rugidos
entrechocando-se com o furor dos metais nas batalhas de Paolo Ucello
selva de ruídos selva de ausências
e a hora da praia
pura realidade de silhuetas
lábio de vagina úmida dos continentes
dorso de gato angorá roçando a terra firme
clamor de corais
ecoando por campos submarinos
afugentando as águas-vivas
que chegam à praia como bandeiras de nações febris
(nesta rua asfaltada e cheia de gente de uma cidade de prédios inúteis que contemplam o mar certos da sua fatal corrosão
encontro um velho e inesperado amigo, ele carrega consigo sua roupagem hindu de seda negra e um estranho olhar fixo de visionário estampado no rosto pálido
recuamos para um lugar tranqüilo, sentamos para conversar entre palmeiras e uma brisa fresca
falamos das pessoas e das aventuras dos anos 60 e 70, tudo o que aconteceu, esses frágeis cenários agora vistos a partir desta perspectiva favorável de uma mesa de bar, eterna como todas as mesas de bar, neste mesmo lugar onde já escrevi outros poemas
próximos demais da areia para que não sejamos rigorosamente verdadeiros
nomeamos os personagens: um que foi morar em Punta del Este para fazer não se sabe o quê, outro que viajou para a França e ficou muito rico, aquele que mora em um barco e contempla o vazio todas as manhãs, alguém que dardeja traços alucinados sobre o papel, os que escrevem coisas absurdas com a firme convicção dos testamenteiros
e há também os que se mataram, os que foram mortos, que se afugentaram de si mesmos e ingressaram na definitiva condição de fantasmas, os navegantes para todo o sempre
o amigo se despede e parte, mergulha para dentro do calor de fim de tarde de um verão precoce, atravessa a barreira de uma cerca viva de folhagens, dissolve-se dentro da névoa que sempre se forma nestes dias
arrasta consigo este feixe de biografias entrelaçadas
e a questão parada no ar do que fazer com tudo isso
levanto-me e vou até a mureta que separa o jardim, agora deserto, da praia
chego mais perto
(o entardecer começa a despejar seu instante de alucinação carmesim)
CHEGO MAIS PERTO
atravesso um filtro de maresias
recolho das ondas a simetria deste poema
nuvens dilaceram-se em um derradeiro combate de cores
enquanto o mar
(um rio mais indomável)
respira pesadamente
passando à minha frente
com a lentidão solene das procissões de barqueiros religiosos
estendendo seu cobertor de noites
abafando as fogueiras do fundo
acesas nas clareiras onde afogados tentam aquecer as mãos
a presença humana é murmúrio e solidão
restam apenas estes dois navios cargueiros
sombras recortadas contra o longe
dois barcos – dois pontos
vozes solitárias insignificantes e nulas
mergulhando no vazio cinzento
e este veleiro
mancha agitada sobre um mapa de negações
deslizando rápido para dentro da sua hora noturna
o humano recua de vez
agora tudo é distância e vazio
dissolvem-se as palavras e a paisagem
resta apenas o outro
tudo o que não somos
tudo o que nos é estranho
como um texto
oco da memória viva
malha obscura de encontros amorosos
o negativo deste nosso mundo de coordenadas terrestres
com seu surdo murmúrio de infinitas fontes
Dias Circulares, de 1976:
AS RODAS MECÂNICAS E COM VONTADE PRÓPRIA
QUE SURGEM APÓS O SUCUBATO
E agora, como sempre, Hermengardo, o nascer do sol, Fúlvia, a luminosidade, seus estiletes, os panos alaranjados estendidos sobre os alambiques, cada vez mais longe, a distância é uma pedra azulada que define tudo, o afastamento uma sucessão de pirâmides brotando raízes, o caminho um nó no cérebro, a velocidade o rastro do grito que atravessa as farpas, a satisfação vista como possibilidade de espirar profundamente, de novo, um pouco de pó com significado de esperas, Hermengardo, Fúlvia, o colecionador de anéis e dentaduras fosforescentes sob a tempestade, a sorvedora de corações de periquitos imperfeitos porém brilhantes, a predileção pelas escarpas e vertentes, a luz conivente, lembrada, penetrante, dos estados visionários quando saímos do eclipse para saber que o sonho só pode ter um formato tubular. A proximidade sentida como sendo toda uma época, seu cortejo de personagens familiares redescobertos: paisagem a partir da víscera, desdobrando o olho e despejando guarda-sóis feéricos contra a opacidade do mundo.
de Anotações para um Apocalipse , 1964
O VÉRTICE DO PÂNTANO
J’ai tant revê de toi
que tu perds ta realité
Robert Desnos
1
O pântano é um espelho despedaçado – nele flutuam imagens conduzindo ao além-mar das derrotas, dos dias de angústia mais negra. Eu me perderei pelos labirintos e pelas mansardas, em busca de uma lembrança cercada por antenas trêmulas e lampiões chineses. Abrem-se as corolas para mais um abraço mortal do destino, e a cidade estremece e recua diante da proximidade do Apocalipse, enquanto percorro as ruas de muralhas desabadas e canteiros desertos, as mansões que aprisionam tempestades de gaviões negros. A cidade e seus serpentários, sua coloração de sacrifício, suas vertigens, seus braços que não alcançam mais o próximo instante. Os telhados me sufocam e dão a certeza de que há gestos que são uma antecipação da morte e olhares que encerram abismos.
2
O rio e seus afluentes de tóxicos, seus igarapés de cocaína, sua tumultuosa visão de serpentes. Marte comanda a morte, caminhando sobre seus carrilhões surdos. Eu sempre me senti atraído pelo Oriente, todavia, e um magnetismo surdo dava a direção dos meus passos desprotegidos para a Vida e comandados pela Vertigem. Assim foi que se dissociaram as partes do meu corpo: as vísceras emaranhadas na copa de um coqueiro, as mãos despenhadas em crateras, os pés calcados em um formigueiro em planície árida, a cabeça congelada e fixa em uma encosta, os olhos vidrados para sempre fitando o poente, os genitais perdidos na correnteza de algum rio que nunca chegará ao oceano, os pulmões arrastados por falcões insensíveis, os demais membros perdidos em tetos de edifícios ou então fincados em troncos milenares.
3
A palavra Amor desaba pelas paredes do quarto, com um turbilhão de outras palavras: cratera, aventura e fonte, navio, acaso e fuga, serpente, hora e salamandra, astro, circuncisão e potência, batismo de chamas, lâmpada submersa e gavião metálico, sombra calcinada, ossos enferrujados e areias movediças, tocaia de insetos ardentes, febre de sensações líquidas e marfim cravado de flechas, espirais de concreto colorido, locomotivas embriagadas ao poente e associações de leopardos tristes, cânticos soprados pela estepe, cortinas rasgadas dançando ao meio-dia, mantos hipnotizados, obscuridade povoada de plantas aquáticas, ilha habitada por morcegos, floresta de arbustos congelados, tempestade de pombas atravessadas por agulhas, antemanhãs, libélulas… A conspiração dos silêncios entrecortados de soluços toma conta da madrugada e congela o pensamento ao redor de uma só imagem: sombra navegada pelo incesto, campo do meu desejo galopante. O peso da invocação é tamanho que meus vasos sanguíneos ficam irremediavelmente emaranhados. O cérebro, cortado em duas metades, fixa o olhar para além dos contornos. A invocação é tamanha que paredes se dobram e novos ferimentos surgem sobre os corpos. A sombra é mais real que os passos, todo rastro é uma sedução definitiva, há imagens que são convites ao delírio e outras que nos arrastam sobre mortalhas, salões abandonados e despenhadeiros de lâminas.
4
Todo rio é um convite ao sobressalto, à morte através de chamas e venenos terríveis. Todo rio é um convite ao amor entre raízes milenares e campos roxos sulcados por veios de cristal. Pianos antigos, estações ferroviárias, um telégrafo enferrujado: fragmentos que gotejam sobre o meu corpo parcialmente destruído pela madrugada, o coração lancetado por um lírio ardente, galgado por mãos sensíveis segurando punhais, e engastado em um paredão infinito, entre pupilas veladas, algemas de marfim, e estandartes gravados a fogo. Isso, durante anos, que se dissolviam carregados pela tempestade. Não temíamos, porém, a escuridão, nem os perigos da febre e do mármore, e as conspirações de silêncios lacrados. Fomos só nós dois, unidos como um véu flutuante, à espera de maiores presságios. Só nós dois, os corpos inertes e solenes, no meio dos espelhos mansos e das crateras que não perdoam. Assim lançamos nosso desafio, apenas os dois, e a conivência dos sabres e das medusas.
revista triplov
SÉRIE VIRIDAE . NÚMERO 04: CLAUDIO WILLER
portugal . fevereiro . 2022