Diário de bordo

 

TRIBUTO A ANNABELA RITA


DA ACOSTAGEM: PROCESSO E LUGARES.[1]

Ler conduz-nos da interpretação literal a níveis de compreensão cada vez mais complexos, com base em ideias ou impressões, hipóteses de trabalho que vamos procurar confirmar na perscrutação do texto. Esse movimento de reavaliação e de análise detalhada pode, no entanto, infirmar a hipótese de partida, confrontando-nos com outras hipóteses que a excluem, fazendo-nos desistir das visivelmente menos adequadas. Quando as diferentes hipóteses são compatíveis e sintetizáveis, estamos perante um texto de diferentes níveis de leitura, aberto a diversas abordagens; caso contrário, o texto pode estar armadilhado por uma falsa pista, em trompe l’oeíl, projectando-nos de uma para outra, em permanente insatisfação, até que alguma (caso das anamorfoses) ou algumas, entretanto geradas nesse movimento analítico, pareça ou pareçam resolver os obstáculos colocados pelo texto às anteriores.

E ler suspende-nos diante de imagens textuais que nos fazem desdobrar, mentalmente, muitas outras na confluência da memória, da imaginação e do esquecimento, matéria das sombras e das transparências que nos constituem, dotada de uma temporalidade onde a universalidade se inscreve e que se verte no efeito absolutizante do instantâneo. Museus imaginários (Albert Camus) ou livros de imagens (Alberto Manguel) emergindo do signo literário, simbólico, alegórico, evocador, transfigurador, medusante, em suma. Figuração encantatória emanando do sopro do eitroafameitfo perdido (Max Weber, Marcel Gauchet), de raízes longínquas cujos reflexos se insinuam na arte, gerando nela uma espécie de geometria fractal (Benoit Mandelbrot). Porque, afinal, somos, acima de tudo, sujeitos imaginantes (Edgar Morin) com um padrão de pensamento eminentemente relacional (Gergory Bateson).

Nas leituras que se seguem, ensaio sucessivas travessias de cada um dos territórios seleccionados, desdobrando um itinerário possível, percorrido em aulas e em textos’4’, começando pelo que parece mais evidente e progredindo por diferentes e sucessivos níveis de complexidade e de abrangência cultural e estética. Como quando o olhar segue as ondas concêntricas produzidas pela queda da pedra na superfície espelhada de um lago: cada vez mais largas e mais subtis, implicando-se, repercutindo-se… Ou como quando Edward Lorenz e os teóricos do caos nos fazem ver o adejar de asas de uma borboleta a provocar um tufão do outro lado do mundo… Subtilizando-se, potenciando-se ou…

Annabela Rita


4* Dispersos e diversos, assinalarei caso a caso os volumes que os integram.

[1]  DE: Annabela Rita. Cartografias Literárias, Lisboa, Esfera do Caos Editora, 2010 [pp. 198] Índice. | 2ª ed.: no Brasil: S. Paulo, Escrituras Editora, 2012.


Revista Triplov . Série Viridae
Julho de 2022
Tributo a Annabela Rita