TRIBUTO A ANA HADDAD
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Programa de Estudos Pós-Graduados em História da Ciência (Instituição-sede da última proposta de pesquisa) . Brasil
I. O presente eterno, um hoje sem princípio e fim. (…) O amor como sopro, de que o amante é flauta, e o amado, músico. Marco Lucchesi
O tempo, como tantos desejariam, não se eterniza na matéria. Contudo, há um toque. Algo soa e toca num sensível que tangencia os mistérios mais íntimos desconhecidos dos relógios. Ampulhetas. Imperceptível som-movimento da areia que se esvai. A flauta toca para a lua. Então é meio-dia.
II. Sorriram-se, viram-se. (…) É de notar que o ar vem do ar. De sofrer e amar, a gente não se desafaz. Guimarães Rosa
Não existem leis para os amores. A grande verdade, como nos afirma Guimarães Rosa, é que o ser humano não se desabitua de amar mesmo sabendo que a partir do momento em que estamos enlaçados pela paixão, o sofrimento faz parte da trajetória dos desencontros, sempre, inegociáveis. Das insatisfações da não plenitude. Amamos quando estamos longe. Mas não com a mesma intensidade de quando estamos mais próximos do ser amado. Eis uma das grandes questões do amor e, sobretudo, das grandes paixões. Amamos o existir de uma outra pessoa. O ser. Como um todo que se unifica sem que possamos distinguir as partes.
III. Parecia-me que essa música era a minha, e eu a reconhecia como todo homem reconhece as coisas que está destinado a amar. Baudelaire
O que estamos destinados a amar? Aquele ser, que por uma fração de segundo, atravessa nossa alma. Sem hora marcada. Pegamos o amor… como diria Guimarães Rosa. E sem saber a razão. Porque o amor desconhece a razão desde que o mundo é mundo. Fronteiras. Abismos. Tempo. Estamos destinados a amar profundas harmonias verticais. As aberturas do outro nos faz ver aquilo que jamais teríamos visto não fosse somente e somente aquele ser que atravessa nosso corpo e alma.
IV. Apagados. De faces descaídas. Desfeitos. Decompostos. Desmembrados. Desmontados. Peça por peça. Pulverizados. Partícula após partícula. Partes extra partes. Espaçados. Extravasados. Descontruídos. Esmigalhados. Disseminados. Dispersos. Emulsionados. Embotados. Desdobrados. Redobrados. Desirmanados. Estancados. Calmamente. Pausadamente. Continuamente. Obstinadamente. Jean-Luc Nancy
Um dia o amor vai embora. Ruptura fatal e irreversível. A quebra de algo insondável muito profundo e agudo que se torna movimentos de um estilhaçar cujas partículas se dissolvem ao sabor dos ventos de uma saudade que já não clama nem por lágrimas. Salgadas ou doces. Contemplamos indiferentes a um processo que chegou ao fim. Como tudo, claro, que está sujeito ao tempo soberano e, sobretudo, em sua engenharia que lhe é intrínseca.
V. Um sentimento de impotência: da desordem aparente de minhas ideias tenho a chave, mas não o tempo de abrir. Aflição fechada, solitária, uma ambição tão grande que…gostaria, eu também, de me deitar, chorar, adormecer. Permaneço aqui, mais alguns instantes, querendo forçar a sorte, e quebrado. Georges Bataille
O dilacerar da impotência. Nada há para fazer. Isolados em uma cápsula que sonha, ao menos, com a transparência. Cada um é em si mesmo coexistindo com o próprio desconhecimento. Mas as fraturas internas reclamam uma saída que não se mostra. Um labirinto que ora chora, ora ri. O amado está incomunicável. Silêncio pesado. Adormece nos braços de pesadelos permeados por fantasmas indomáveis.
VI. Caríssima Ira,
Tu voltaste? se sim, tu não deixaste de ti mesma, lá, uma parte inconsolável que eu queria ter o direito de tentar consolar?
Cara Ira, não digo nada demais, as palavras, felizes, infelizes, não bastam. Adoraria apertar ternamente sua mão, assim como te abraçar ternamente. Maurice Blanchot
Por um consolo de um adeus em definitivo ou não. A espera. O retorno sem a promessa de um futuro no horizonte das incertezas. Eis um mistério por conta das indeterminações sobre as quais não temos controle no amor.
VII. De onde tiramos a coragem de viver, de realizar um movimento que nos preserve da morte, num mundo em que o amor é provocado por uma mentira e consiste tão-somente na necessidade de vermos nosso sofrimento apaziguado pela criatura, seja ela quem for, que é precisamente a causa de nosso sofrimento? Marcel Proust
O que realmente amamos? O outro ou a nós mesmos? O amor seria um jogo perverso de espelhos? Vemos no outro aquilo que vemos em nós mesmos e Narciso emerge de águas profundas e nos atinge? Ou amamos o amor? A sensação do amor? Irrespondível. Mas a coragem de viver permanece e nos ativa para atitudes imponderáveis e inexplicáveis. Abismos se multiplicam em séries infinitas. O amor coexiste com a eterna insatisfação cuja base estrutural (verdadeira seiva) se encontra no ciúme. O eterno ciúme que rodeia e corrói possíveis e pretensas certezas. Nada mais. Desejamos o amor alimentado pelo sonho de sermos compreendidos. Amamos. Por si só. Deixamo-nos amar porque a tristeza é uma travessia possível que faz parte da condição humana e, paradoxalmente, nos humaniza.
VIII. Há almas que nos fazem acreditar que a alma existe. Nem sempre são as mais geniais, porque as mais geniais são as que melhor souberam se exprimir. São às vezes almas balbuciantes, quase sempre silenciosas. Marguerite Yourcenar
Somente o silêncio profundo consegue tangenciar a espessura do encontro fatal e abismal que nos exige o amor em todas as dimensões. O resto é superfície. O amor é exigente. Requer, sobretudo, renúncias. Mas não pode se deixar invadir pelo futuro do pretérito e muito menos pelo pretérito imperfeito do hipotético.