TRIBUTO AO PROF. GALOPIM DE CARVALHO
O casamento não me fez prescindir do quarto que alugara na Rua Cecílio de Sousa. A saída de um outro casal, primos dos donos da casa, de um outro quartinho ao lado do nosso mas ainda mais pequeno, possibilitou-nos aumentar o nosso espaço domiciliário. Subimos de categoria, trocando um quarto, cotado em 300$00 mensais, por uma chamada “parte de casa”, pela qual começámos a pagar 500$00 por igual período. Passámos, então, a ter duas divisões, uma a servir de alcova e outra, onde trabalhávamos, tomávamos as refeições que trazíamos já confeccionadas ou outras, mais ligeiras, ali mesmo preparadas, e onde, também, recebíamos eventuais visitas de colegas e amigos. Muitas horas de estudo e de convívio nessa fase da nossa vida foram passadas na “Alsaciana”, uma pastelaria onde se podia estudar todo o serão, a troco do consumo de uma bica ou de um copo de leite, até às duas da noite, hora a que fechavam esta e a sua concorrente, a Cister. Uma e outra ainda existem, mas com horários, regras de funcionamento e proprietários diferentes, numa zona de Lisboa hoje deserta de estudantes.
Ligeiramente mais velhos do que nós, o casal que nos aceitou como hóspedes, a dona Maria do Céu e o marido, Virgílio, de seu nome, dois beirões de Almaceda, na Beira Baixa, que trocavam os cês por xês e os zês por jês, foram dois grandes amigos para a vida. Almas simples e sãs, com eles contámos como irmãos e com eles partilhámos alegrias e tristezas. Eu era o xenhor Carvalho e a Isabel, a dona Ijabel. Casados uns cinco anos antes, tinham um filho bebé, o João, que ajudámos a crescer.
Continuar nas vendas e na propaganda médica, como no ano anterior, não era compatível com o tempo de que necessitava para as aulas, saídas de campo, trabalhos e respectivos relatórios e, ainda, para estudar. Uma bolsa de estudo que obtive da Fundação Gulbenkian, no valor de 500$00 mensais, o ordenado da Isabel e uma pequena ajuda dos meus pais, eram suficientes para assegurar o essencial do nosso dia-a-dia. Quase sempre o jantar e, muitas vezes o almoço, ia buscá-los à cantina da Associação de Estudantes. Para tal, comprei uma marmita de alumínio com três recipientes encaixados uns nos outros, uma pega e uma tampa, concebida para transportar os componentes de uma refeição, com sopa, carne ou peixe e a respectiva guarnição. Com uma senha, no valor de nove escudos, as colegas de serviço à cantina, simpaticamente, aviavam-me uma dose reforçada, que dava para dois e sobrava. Esta prática, particularmente económica valeu-me a alcunha de “marmitas” por parte de colegas com algum sentido de humor. Uma outra alcunha que emoldurou o meu nome, vindo de algumas pessoas da nossa terra, conhecedoras da nossa situação, foi a de “marido da professora”, expressão de ideologia machista, submissamente aceite por muitas senhoras desse tempo, que punha em evidência, depreciativamente, o facto de um homem viver na dependência do salário da mulher.
Um dia a dona Maria do Xéu (eu tratava-a, assim, carinhosamente, imitando-lhe o modo de falar) comunicou-nos que ela e o marido estariam na disposição de mudar para uma casa maior e melhor se nós os acompanhássemos, aceitando o correspondente aumento da mensalidade a pagar-lhes. A ideia agradou-nos de imediato e fomos todos ver a futura casa, na Rua Nova de São Mamede. Prédio dos anos 40, esperavam-nos, ali, duas salas amplas com janela para a Rua do Salitre. A mudança foi rápida e aí vivemos em perfeita harmonia com os nossos hospedeiros até concluir a licenciatura. Terminado o último exame, fui convidado a ficar, como segundo assistente da disciplina de Mineralogia e Geologia Gerais, um lugar além do quadro da Faculdade, com funções docentes na componente prática do ensino, sob a orientação do titular encarregado das regências teóricas. Eu havia feito uma muito interessada preparação nas cadeiras da respectiva área e obtivera boas classificações nos exames. Isso valera-me inúmeras deslocações de Norte a Sul do país, em trabalhos de geologia, na companhia de mestres consagrados como Carlos Teixeira, Torre de Assunção, Rodrigo Boto, Orlando Ribeiro, Pierre Birot, Georges Zbyszewski, Daniel Laurentiaux, entre outros.
Entrar como segundo assistente na Faculdade era um grande salto na nossa qualidade de vida, com um vencimento mensal de 3 200$00 (16 euros) numa época em que a renda mensal de um apartamento com três assoalhadas, na Amadora, rondava os 850$00 (4,25 euros). Um tal desafogo, associado ao vencimento mensal da Isabel, possibilitava-nos alugar casa própria. Foi, pois, com certa dificuldade que comunicámos aos nossos amigos e hospedeiros a intenção de concretizar esse propósito. Uma possibilidade há muito desejada e agora com perspectivas de realização. Abraços e sorrisos molhados de lágrimas marcaram o dia em que uma pequena camioneta de aluguer, estacionada à porta, carregava a meia dúzia de trastes que constituíam o nosso mobiliário e os levava a caminho da Amadora.
Revista Triplov
Tributo a A.M. Galopim de Carvalho – Índice
Portugal . Outubro . 2022