Das coisas maravilhosas e inquietantes

 

NICOLAU SAIÃO
Tributo


Palavras proferidas na livraria Lusófona, em Paris, na sessão de lançamento do livro “Flauta de Pan”.


Fui-me deitar. E levei toda a noite a sonhar com o deserto, diamantes e animais ferozes e com o desafortunado aventureiro morto de fome nas vertentes geladas dos montes Suliman.  H.Ridder Haggard

Nestes tempos, canta-se aquilo que não vale a pena dizer. Beaumarchais


Quando sou convidado para vir conversar em lugares como este, durante alguns dias tento articular uma introdução apropriada, defrontando-me então com um acervo de inícios possíveis.

Provavelmente passa-se o mesmo com qualquer outra pessoa nas mesmas circunstâncias, mas no meu caso, confesso, fico ligeiramente mergulhado numa certa indecisão, que a meu ver parte do facto de que, à medida que os anos passam, me parece saber cada vez menos, ter cada vez mais interrogações perante a questão da escrita e ante o que ela pode significar para os meus semelhantes em geral e para mim mesmo em particular.

Creio que tal se deve à circunstância de eu não ser, segundo me parece, um pensador, mas apenas um indivíduo que foi através dos anos descobrindo uma certa pequena música e alguns segredos presumíveis nas palavras e no reflexo que elas por vezes são.

Só me posso desculpar, se assim me posso exprimir, com uma frase do “Zohar”, ou “Livro do Resplendor”, que refere argutamente que “todas as palavras podem ter cinco sentidos e algumas têm mesmo muito mais”. O problema estaria então em tentar descobrir alguns desses sentidos, que no outro lado do espectro nos fazem meditar numa frase do Inquisidor-mor de Richelieu, que disse uma vez:”Dai-me uma qualquer frase e garanto-vos que ela porá um baraço ao pescoço do seu autor”.

Ao escrevermos, e naturalmente aponto para o meu caso pessoal, talvez não fosse asneira meditarmos no facto de que, de acordo com alguns sagazes especialistas, logo contestados por outros tão sagazes como eles, o território da escrita é o território da indefinição e da suspeita, da maior luz e da mais profunda sombra, isto se quisermos recorrer a símbolos. Pela minha parte tenho concluído que a existência projectada num determinado espaço de escrita configura sempre a observação, por vezes a instauração, dum espaço caótico, seguido nos melhores casos da sua reconversão. Ou seja, segundo o raciocínio que a lógica dos sinais e dos símbolos comporta, um acto que provém do jogo efectuado em circunstâncias mortais no seu plano próprio, no plano da vida enredada nas palavras a que o “Zohar” alude. Porque, com efeito, o caos manifesta-se a cada passo, vivemos num Universo regido pelo “princípio de incerteza” de Heisenberg, o que pressupõe, por extensão e antítese, que a acção do sujeito, enquanto “anima mundi”, é o verdadeiro princípio gerador da ordem e da realidade. E aqui está porque é que a ordem das instituições e dos poderes é tão incapaz de estabelecer uma relação harmoniosa entre o ser e o meio societário. Máquina esvaziada de sentido, palavra perdida num oceano de dura penumbra e de aparências fragmentadas, ela não é mais que uma ilusão arteiramente acatitada através dos séculos, ainda que as consequências produzidas tenham sido sempre funestas, sempre duvidosas. A palavra que contém em si o verdadeiro sopro vital é bem outra: a que se consubstancia na figuração e no posterior entendimento do secreto sentido do Mundo, ou seja, aquele que é o cerne da própria matéria, como um sal unindo enxofre e mercúrio.

Segundo parece há na operação alquímica um momento em que o operador, depois de efectuado um “tour de main” apropriado, fica dependente de um lampejo em que a sua imaginação, mais que o seu conhecimento, lhe indica o que fazer. O mesmo se passa a meu ver na poesia: há, nos melhores casos e nas melhores alturas, um encadeamento feito de sabedoria em que, como referia Chesterton, somos levados ao país das fadas. O grande problema, o penoso problema, é que vivemos numa sociedade de afrontamentos que, apesar da democracia mais ou menos envolvente, é um meio propício ao desenvolvimento do efémero contínuo, mais do que o “presente contínuo” a que um filósofo cujo nome não recordo fez referência numa obra sua.

E, uma vez que vivemos nessa tal sociedade, talvez faça sentido recordar que, desde Georges Simmel, que através dos seus estudos chamou a atenção para o que depois tomaria o nome de “socialização da morte”, se tem conhecimento de que, e cito “o espaço social mantém e encerra os ossos com o excremento dos vivos, acumula os locais vividos de geração em geração, suscita uma unidade atemporal que envolve o Homem na trama já constituída da morfologia e da paisagem. É uma unidade, sem dúvida, inteiramente psíquica, pois os acontecimentos podem levar um grupo a certas deslocações e os nómadas não sentem a necessidade dessa estabilidade campal, mas esta frágil unidade é como aqueloutra da “memória colectiva” de que falará Halbwachs, mais ligada ao meio que à duração”. E, penso eu, não devemos perder de vista o facto de que a sociedade actual se caracteriza, entre outras coisas, por possibilitar que se camufle a violência interior, que é a mais perigosa e arrasadora, sob artefactos mentais de violência exterior dados como naturais, inevitáveis ou até como exigências de maiorias claramente controladas por uma certa ideia, desvirtuada, das necessidades de Estado. Talvez faça sentido, ainda, considerarmos que nos encontramos em reciprocidade de acção, quer sejamos mais permanentes ou mais passageiros – passe o simbolismo destes termos – e que as estruturas deste fim de século dependem muitíssimo de abstracções que já pouco têm a ver com as realidades individuais ou grupais existentes. Daí o desacordo frequente entre personalidade e colectividade e que tem a ver com o “apodrecimento das sociedades” detectado, entre outros, por Georges Pérec e Paul Virilio mas também, noutro continente de preocupações, pelo sagaz e recentemente desaparecido Jean Guitton.

Há que notar que, apesar das operações bem adestradas de contra-informação e de distracção de massas, vivemos rodeados ou explicitamente imersos num sistema relacional extremamente vulnerável e permeabilizado pela hipocrisia afável, a desinformação controlada, a mentira sistematizada e a desertificação dos imaginários consistentes, todos eles filhos do tal “efémero contínuo” a que aludi.

Pode ser que isto seja devido a uma mudança de pele da Humanidade e da História. Contudo, creio que fará sentido considerarmos o que nos diz uma personagem de Henri Pichette, numa tirada digna de Vítor Hugo: “Vós haveis feito de Paris um bordel, de Londres um monturo, de Berlim uma cloaca, de Moscovo um calabouço. Mas não mais tereis paz. Eis que de toda a parte oiço chegar, com dentes de lobo, os espectros encolerizados da mágoa, do desprezo e da expiação”.

   Os quotidianos bichosos, essas “coisas que há no ar e me atabafam os dias”, como dizia Jean Giono, podem contudo ser contrabalançados pela assumpção de um conjunto de movimentos e de inflexões interiores forjador de um hálito capaz de nos permitir entender formulações como esta, da autoria de Gherasim Luca: “A beleza rompe literalmente as trevas. O seu frémito procura-nos, encontra-nos, atravessa-nos, conduz através das veias um veneno que ressuscita. Porque a beleza é uma doença de pele, de nervos, de sangue e de espírito”.

   Aqui, tenham a bondade de me consentir que transcreva umas palavras de Thomas Mann, que a dada altura dum ensaio da sua lavra nos diz:”O artista e a sociedade. Pergunto-me se chega a compreender-se com clareza quão complexo é o problema que enfrento.(…)De facto, muito bem se sabe que o artista não é em si mesmo um ente moral mas um ente estético, que o que o inspira e move não é a virtude mas o jogo, inclinado espontaneamente a jogar, ainda que mais não seja que dialecticamente, com os problemas e as antinomias da moral.“. Todavia, acrescenta o A. Logo a seguir, “o artista melhora o mundo de maneira distinta à que é preconizada pela moral, e precisamente incorporando a sua vida pessoal – e de maneira representativa a vida em geral – à palavra, à imagem, ao pensamento, dando-lhe um sentido e uma forma e tornando transparente o que Goethe chamava ‘a vida da vida’: o espírito. Em nenhum caso poderei contradizer o artista quando afirma que o fim da arte é a ‘vivificação’ em todos os sentidos e não outra coisa (…)”. E mais adiante, e a finalizar esta citação, refere: A verdade é que o artista, nas suas realizações e nas suas formas individuais começa sempre como algo de novo e, impregnado de ingenuidade, sem se conhecer, ou melhor, sem se reconhecer, vai adquirindo vida de maneira espontânea, sempre de maneira totalmente nova e absolutamente única. Cada caso que nele se manifesta é um caso extraordinário, determinado pessoalmente, de modo particular”.

   Eu não sei se a poesia e a escrita, tal como ela foi praticada por autores como Rilke, René Char, Pavese, Juan Ramón Jimenez e tantos outros, ou o continua a ser por vivos como Milozs, Yves Bonnefoy, C. Ronald, Michael Hamburger, Mathew Meade, Mário Cesariny, etc., pode constituir um antídoto eficaz contra a poluição do ambiente mental. O que sei é que existem coisas como este verso de Cristóvam Pavia que nos fazem reflectir esperançosamente:”Até as imagens me são inúteis porque contemplo tudo”.

Inscrito no seu contexto, ele deixa-nos adivinhar um mundo religado, misteriosamente reconduzido à sua função primitiva: lugar onde o Homem já não é mera fotografia ou apenas sinal de intercâmbio formalizado e sim figura significativa onde confluem mundos de liberdade e de imaginação salutar.

Estamos a atravessar, uma vez mais, dias em que o novo-riquismo e o ambiente filisteu da mais baixa extracção se erigiram em valores sensíveis e que certos sectores buscam apresentar como naturais e irrepreensíveis. Fará talvez sentido, então, sublinhar uma vez mais que o artista não desfigurado e vertical e alheio às mundanidades continua a ser um polo de consciencialização, embora isso seja extremamente entravado pelo jogo intrincadamente societário de muitos sectores que, no país, procuram imitar em caricatura o que lá fora se faz com mais experiência, mais discernimento e até com certa lealdade, embora esta seja uma lealdade nefanda, uma vez que tenta fazer passar como exemplares, conseguindo-o frequentemente, ritos de massificação, propondo com certa argúcia os valores do precário, do aparente e do vazio pedante como questões fundamentais.

Felizmente que a cada dia que passa o mundo se transfigura: os quatro reinos da natureza renovam-se a cada momento e, em certas horas, deixam entrever os símbolos do Tempo, com o seu fogo e a sua luz. Na nossa memória, no sal e no pão interiores de toda a gente, há certos influxos que cristalizam, porque é condição da Vida ser fruída e recordada. E, se é do fundo dos séculos que essa voz persistentemente chega até nós, estamos contudo rodeados da sua imagem soberana, desvelada em presenças familiares ou fraternais, a verosimilhança da mágoa e dos grandes amores em que, como indivíduos, nos vazamos e expandimos – a dimensão simultaneamente humana e sagrada da nossa exactidão como pessoas.

Permitam-me, aqui, um parêntesis: mais do que poeta, sinceramente vos digo, neste momento considero-me mais um recolector de resíduos. Resíduos de acontecimentos, de inflexões, de memórias e de momentos bons ou maus. A organização da escrita que se lhes sucede é que constitui o acto poético possível. E isto também depende da memória das coisas e da memória dos seres com quem me fui e vou cruzando. Não é que a verdadeira vida esteja algures, como dizia Rimbaud, mas sim que haja tentativas de a falsificar. Pessoalmente, respondo com a utilização de uma certa desconfiança lúcida, digamos, e sempre com a fidelidade aos sonhos que acalento desde a infância. Se acaso consigo traduzir isso em versos que possam interessar os meus semelhantes, é matéria de suficiente congratulação e suficiente prémio.

Para finalizar, queria dizer que a minha vinda a Paris teve naturalmente a ver com esta sessão. Mas consintam-me ainda que eu diga para mim mesmo que foi de facto por um maravilhamento que antevia me fosse ofertado pela vossa cidade e os inúmeros amigos que nela tenho: pois não constituiu acaso que o meu primeiro acto, ao chegar, fôsse dirigir-me ao cemitério do Père Lachaise, que é mais um jardim onde não se sente a presença macabra da morte – onde visitei presenças para mim tutelares: Gérard de Nerval, Chopin, Balzac, Corot, Benjamin Constant, Max Ernst, Modigliani e tantos outros.

Que este meu gesto, finalizado na rua do Rivoli frente à Tour Saint Jacques de Nicolas Flamel, seja como que a afirmação do sinal de permanência da vida até na morte.

Obrigado a todos.

               ns


Nicolau Saião \ Biobibliografia sucinta


revista triplov

série viridae nr 02

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