TRIBUTO A ANA HADDAD
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Programa de Estudos Pós-Graduados em História da Ciência (Instituição-sede da última proposta de pesquisa) . Brasil
O que é uma carta?
Carta é um registro que exige um emissor e um possível receptor. Uma carta, se considerarmos classicamente o seu conceito, desdobra-se na escritura, sempre solitária. Uma confissão. Uma carta sempre é uma confissão: para nós mesmos e para o destinatário. Uma carta comporta o envio. Comporta a espera da resposta. Um registro impresso em tempos líquidos. Com as novas e imediatas formas de comunicação quase perde o sentido. Por quê? Porque a ansiedade toma conta de um mundo que exige todas as forças em simultaneidade. Quase absoluta.
É de conhecimento geral que as cartas impressas, das mais variadas, se tornaram uma modalidade escritural que pertence a um passado remoto. Elas existem desde tempos imemoriais…por diversos meios de envio…Nas palavras de Marco Lucchesi: “Pensava que as cartas deveriam pertencer apenas ao rio do tempo, quando alguém chegasse a retirá-las da correnteza, pois que remetente e destinatário não seriam mais que mero fragmento do cosmos, tanto ou mais frágeis que essas cartas” [1].
Mas uma carta, conceitualmente, comporta uma grande multiplicidade. Ouçamos o grande escritor Lúcio Cardoso [2]:
Há cartas que não se respondem. [3]
São aquelas, em geral, que soam desagradáveis. Ou aquelas que nos chegam tarde demais. Quando já estamos numa outra atmosfera. Talvez de indiferença…Cartas não respondidas fazem parte de um passado que já não faz parte de nosso tempo presente. Quando lembramos de algumas, por alguma razão que nos escapa, visto que a memória sempre nos traz grandes surpresas, para o bem e para o mal, interiormente sorrimos de forma irônica. Ou aplaudindo a nós mesmos. Como conseguimos nos livrar do peso de uma resposta? O presente atualiza o passado. Viva a memória que felizmente consegue filtrar e hierarquizar as lembranças. Viva o mecanismo, necessário, do esquecimento.
Há cartas pálidas como uma rosa aberta
e que se esfolham em nossas mãos.
Guardadas há muito tempo e que não resistiram ao tempo. Muitas vezes aliviam o que não gostaríamos de lembrar. Outras vezes… lástima da perda nítida do registro tornam-se uma massa aos pedaços, incompreensível, de lágrimas e papel.
Há as que demoram e chegam no Outono,
e têm gosto de mar, de cinza e esquecimento.
Nada pior, talvez, do que uma carta que chega tarde demais. Nada pior. Lembra a grande lição de Grande Sertão Veredas. Ou seja, o não vivido por Diadorim e Riobaldo que deixaram escoar um grande amor… pelas amargas águas de um rio misturadas ao sal das lágrimas do jagunço.
Há inesperadas, que voam sobre campinas baixas
e são como a chuva amarga e os temporais.
As cartas inesperadas, como chuva amarga, são as grandes surpresas que a vida nos proporciona. Paralisam os sonhos. Despedaçam almas. Interrompem memórias do futuro.
Outras são pesadas e dormem sobre a cômoda,
escorrendo conselhos que se leem com um suspiro.
Cartas pesadas, geralmente, são aquelas que nos foram enviadas num ímpeto impensado. Com muitas lucidez alguns dizem que ao enviarmos uma carta devemos estar em verdadeiro estado de graça.
Mas existem as que são como pássaros
e trazem as asas úmidas de matinal rocio.
Cartas voadoras desdobradas como a promessa de um dia que se descortina ao sabor das expectativas.
E há também as que são infantis
e voam leves à brisa cor-de-laranja
que vem do fundo dos quintais…
As cartas infantis são, via de regra, as cartas de amor. Quando o domínio de uma grande paixão deturpa a verdade e a realidade. São as cartas em que a leveza do amor inicial se mostra disponível para qualquer aventura. Ou loucura.
Há cartas vermelhas que ardem nos dedos,
beijos, soluços que a paixão modelou.
São as cartas que destroem os primeiros pilares do não esperado pelos conflitos das grandes paixões. O subterrâneo se mostra gradativamente. Ingenuidade em desconstrução.
E há as de adeus, as frias e mutiladas,
Como, por exemplo, uma carta, (apenas um fragmento), de Simone de Beauvoir a Nelson Algren em 06 de dezembro de 1951:
“O tempo anda frio e chuvoso. Em mim, também, faz frio. Você insiste em se referir às coisas de que meu amor o privou, tendo tantos outros amores. Você sabe que eu tampouco ganhei muita coisa. Jamais quis dizer uma só palavra a respeito, mas posso assegurar-lhe que o nosso romance não fez bem à minha relação com Sartre. (…) Minha vida amorosa se encerrou, para nunca mais, coisa muito desagradável de pensar, quando ainda se conserva um coração ardente e um corpo cheio de vida. Não me queixo, desejo somente que você entreveja também a parte que me toca nesta história. Não me queixo, porque, mesmo que o mundo ficasse congelado para sempre a partir de agora, valeu a pena.
Adeus, querido. Espero uma carta, breve. Adeus.
Sua Simone. ” [4].
as que se leem depressa nas estações,
Quando estamos sob a urgência de compromissos profissionais que buscam, acima de qualquer coisa, comprar nosso capital imaterial. Ou à espera de novas paisagens que nos aguardam. Ou à espera de novos encontros. Ou à espera de um grande amor. Não importa. Uma carta lida com pressa pode subtrair certas possibilidades vitais que, talvez, contivessem uma nova forma de ser…
as que se rememoram à névoa das madrugadas,
Cartas rememoradas indicam elaborações inconclusas em relação a um passado imobilizado. Talvez saudades de tempos idos.
as que são finas e doem a vida inteira,
Registros telegráficos com alto grau de ambiguidades que geram as incertezas. Das mais agudas. Por isso doem a vida inteira.
as que são pardas e falam com lábios molhados,
Inexplicáveis. Emitidas em momentos das indecisões que assolam o íntimo do ser.
as que um dia são descobertas de repente,
amarelas, murchas da palavra não compreendida.
Como um salto na memória. As descontinuidades de temporalidades sem rumo. Labirínticas.
Há as que são como gelados aquários,
frio e chama de países não viajados.
Como, por exemplo, (fragmento) a carta de Allen Ginsberg, enviada no dia 24 de fevereiro de 1953, a Jack Kerouac:
“Caro senhor,
Obrigado pela suas duas respostas imediatas no dia 21 relativas à minha carta do dia 20. Estou sinceramente incomodado ao perceber que meu pedido original contraria seus parâmetros de decência, conforme o senhor explicou em suas cartas, e me disponho a reparar quaisquer faltas o mais breve possível ” [5].
Há as que não são nossas
e chegaram por engano num dia de Inverno
De forma pesarosa, antes da indecisão de visitar o conteúdo, abrimos. São cartas instigantes que levam a fantasia e o devaneio a pontos inimagináveis: “Teria Semíramis se jogado? Teria se matado? Fui reler sua penúltima carta, dizia que Calixto estava a matá-la, com sua rigidez. Temia perdê-la, se a libertasse. E a estava perdendo, pois sua vida se esvaía em desilusões. (…) Teria sido uma mensagem de desespero? Um indício de sentimentos secretíssimos? A linha da vida em sua mão…Semíramis se foi, deixando mais um enigma que jamais seria desvendado” [6].
e as que , dormindo, achamos sobre o colo,
como um ramo selvagem que trouxéssemos da serra.
São as cartas dos amores não correspondidos. Preferiríamos que fossem de quem realmente amamos. Condenação humana…a eterna busca pelo que não se possui. Como desejar aquilo que já temos? Impossível. A incompletude, ontológica, predomina.
E há também as que não foram escritas,
Talvez sejam, tal qual um livro, como expressa Virgínia Wolf em seu diário:
“Quanto a meu próximo livro, vou evitar escrever até se tornar iminente: consistente em meu espírito como uma pera madura; pendente, prenhe, pedindo para ser cortada antes de cair. (…) Ocorreu-me que o que quero fazer agora é impregnar todos os átomos. Ou seja, eliminar o excesso, a inércia, o supérfluo: conceber a totalidade do momento; o que quer que ele contenha. Digamos que o momento seja uma combinação de pensamento; sensação; a voz do mar”[7].
as que esperamos sempre e não virão jamais,
Angustiam-nos tal qual algumas anotações autobiográficas de Pasternak: “No meio da noite fui despertado por uma dor ao mesmo tempo branda e insistente, como jamais havia sentido antes. Pus-me a gritar e a chorar de angústia e terror. Mas a música abafava meus soluços e me ouviam somente quando terminavam de tocar a parte do terceto que me despertara. A cortina, atrás da qual eu estava deitado e que dividia o quarto em dois, se abriu ” [8].
as que existem apenas em silêncio,
mas cujas palavras, ai de nós, sentimos reais
como envenenada música em nosso próprio sangue…
São as cartas que escrevemos, mentalmente, marcadas pelos encontros infelizes que nunca se esgotam.
Além dos tipos de cartas enumeradas pelo belo poema de Lúcio Cardoso, temos também, por exemplo, as cartas que nos surpreendem como uma enviada por Octavio Paz ao grande poeta Tomás Segovia (1957-1985) em 31 de dezembro de 1963:
“Querido Tomás:
Tu carta me abrió um mundo desconecido, un verdadero palacio encantado de asociaciones y enigmas – como el de Minotauro ou La bella durmiente del bosque. Quise contestarla immediatamente porque mi fascinación fue doble o triple: amistosa, poética, psicológica – metafísica diría, si la palabra no fuese sospechosa. ¡Qué poco sabemos de nosotros mismos! Tu exploración en tu y tu vida y tu pasado, tu búsqueda del “dónde vengo?” y el “adónde estoy”, me pareció novelesca y por eso mismo muy real, como si tú tratases, en ese buscar tu origen y tu relacíon con el mundo, al mismo tiempo de inventarte a ti mismo. Conocerse, quizá, es crearse” [9].
Existem, também, as cartas que expressam uma profunda solidão como a enviada por Nietzsche a Paul Rée, quando estava em Stresa, em 31 de outubro de 1880:
“Quizá, queridíssimo amigo, usted ha vuelto a casa y se ha salvado a sí mesmo y a su filosofía de los peligros del mar y del americanismo. Pienso en usted con verdadera nostalgia y sin ninguna esperanza de aplacarla; pues he tenido que refugiarme de nuevo en el sur y esta vez, como me he prometido a mí mesmo, para más tiempo. La soledad , la perfecta soledad, se revela en mí de manera cada vez más clara, no sólo como receta, sino también como pasión natural – y tenemos que fabricar el estado en que podamos crear lo mejor de lo que somos capaces, y, para ello, estar dispuestos a hacer muchos sacrificios. Pero para una persona tan solitaria , ‘el amigo’ es un pensamiento más delicioso que el gentío de aquí. – Mis respetos para sus padres” [10].
Existem as cartas que jamais serão esquecidas. Como por exemplo uma enviada por Nise da Silveira a Marco Lucchesi no dia 09 de dezembro de 1990:
” O sagitário, seu símbolo, diletíssimo Marco, exprime o nexo entre a terra e a poesia-céu. A violenta tensão do impulso do arco é um movimento intenso e perigoso. Dividir a tensão entre os extremos seria talvez salutar. Mas se o fascínio da poesia-céu é irresistível, a distensão será inevitável. Aceite seu belo destino.
Grande beijo,
Nise” [11].
Uma carta, o que é?
I .Tessitura de linhas comprometidas com a linguagem do silêncio que atinge uma temporalidade suspensa e que repercute, gradativamente, em nossa subjetividade. Inclusive, pelos diversos níveis de aprofundamento que ela contém… por lembrar de Bergson. Uma interioridade cintilante que brilha ao sabor das exigências e insuficiências dos graus de introspecção da qual não temos escapatória.
I.I Uma vertigem. Movimentos lentos e insubmissos a um possível controle.
III. Retirada rumo a sonhos, fantasias e digressões sem a escalada do tempo de um relógio. O tempo da leitura de uma carta é como um relógio quebrado ou disparatado. Sem controle palpável.
IV. Um pacto, tácito, com o destinatário. Um pacto que não admite terceiros. Um pacto que não admite a invasão de uma privacidade que constitui, ainda nos dias de hoje, um dos pilares mais fundamentais da estrutura de uma subjetividade.
V. Palavras cruzadas, muitas vezes ao sabor dos temporais, que não admitem possíveis leitores fora da atmosfera emissor-receptor.
VI. Espaço íntimo que admite e comporta lágrimas, saudades, inveja, ira, fúria, alegria, submissão, e tantas outras paixões humanas que, para o bem e para o mal, potencializam a humanidade, por lembrarmos de Spinoza!
VII. Atmosfera propícia para confissões subterrâneas guardadas ao movimento incessante da poeira de nossas memórias.
VIII. Um pacto que beira o autobiográfico. No entanto, tal qual uma autobiografia, com a mentiras que inventamos para nós mesmos como condição, humana, inescapável. A mentira é necessária. A verdade essencial, sempre, nos escapa por todas as portas.
IX. Abertura, dentro dos limites de um abismo quase intransponível, de uma alma, em estado de solidão, para outra. A pretensão de uma sincronia impossível. Separada pelo tempo do envio e do recebimento como uma pedra enroscada nas teias do invisível.
X. Linha de fuga e em fuga presa aos limites impostos de uma linguagem encarcerada e submissa aos códigos preexistentes.
XI. Liberdade dada a qual somos condenados, se pensarmos com Sartre, mas menos petrificada, visto que exige o compartilhamento de quem a recebe, desde que com o coração aberto e disponível para uma aventura sem rumo ou calcado na incerteza do futuro.
XII. Um instante fixado entre o passado e o presente. Um instante quase eterno. Poético. Perigoso. Mas que esconde, quase sempre, uma intenção mais íntima e inconfessável. Incompartilhável.
XIII. Um fluxo de ideias que se mostram, momentaneamente, com a necessidade, quase vital, de ser jorrado para um outro espaço. Comporta, muitas vezes, amargos arrependimentos. Um belo portal para o perdão visto que admite o possível erro de uma acusação. Mas quem pode mudar o passado?
[1] LUCCHESI, Marco. Viagem a Florença: cartas de Nise da Silveira a Marco Lucchesi. Rio de Janeiro: Rocco, 2003. p. 04.
[2] CARDOSO, Lúcio. Poesia Completa. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2011. p. 605.
[3] Idem.
[4] BEAUVOIR, Simone. Cartas a Nelson Algren: um amor transatlântico 1947-1964. Texto traduzido do inglês por Sylvie Le Bon de Beauvoir; Tradução para o português por Marcia Neves Teixeira e Antonio Carlos A. de Athayde. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. p. 435.
[5] KEROUAC, Jack; GINSBERG, Allen. As Cartas. Tradução de Eduardo Pinheiro de Souza. L&P Editores: Porto Alegre, RS: 2012. p. 41.
[6] MIRANDA, Ana. Semíramis. São Paulo: Cia das Letras, 2014. p. 174.
[7] WOOLF, Virginia. Os Diários de Virginia Woolf. Tradução de Jose Antonio Arantes. São Paulo: Cia das Letras. p. 119.
[8] PASTERNAK, Boris. Ensaio de Autobiografia. Tradução de Helena Parente Cunha. Rio de Janeiro: Editora Ópera Mundi, 1971. p. 73.
[9] PAZ, Octavio. Cartas a Tomás Segovia (1957-1985). México: FCE, 2008. p. 72. Tradução livre, da autora, do espanhol para o português.
[10] NIETZSCHE, Friedrich. Correspondencia Volumen IV. Tradução de Marco Parmeggiani. Madri: Editorial Trotta, S.A., 2010.
[11] LUCCHESI, Marco. Viagem a Florença: cartas de Nise da Silveira a Marco Lucchesi. Rio de Janeiro: Rocco, 2003. p. 29.