da impossibilidade da morte para as âncoras

MARIA TOSCANO


Participação no IV Encontro Triplov na Quinta do Frade. Mosteiro de Santa Maria, Lisboa/Lumiar, 4 de novembro de 2017


1.

sabemos ambos da impossibilidade da morte para as âncoras.

 

nascem, as âncoras, de raras raízes esbeltas exigentes

e comprometidas com os astros rosa e esverdeados.

 

nascem, as âncoras, por entre o riso de crianças de alongados olhos suspeitos

olhos meigos e inquietos e abertos à cintilação da maré vagarosa dos dias.

 

nascem, as âncoras, de mãos inefáveis, de dedos inadiáveis

e, repare-se,

de cabelos lisos avermelhados ou acobreados pela espera

pela demora que leva esperar dentro de água

pela vaga rasa,

pela seca e evaporada linha de iodo, algas, azul e sal

que é o mesmo que dizer: esperar no fogo

que acende o amor.

 

sabemos ambos de seus caprichos. e quesitos.

 

esse mesmo é o segredo da nossa vaga

de iodo e algas

da nossa linha de doces sais

num horizonte onde ainda sobrevive esse beijo

inocente na hora azul.

pelos seres reservados e luminosos

«que se vão da lei da morte libertando».

.

2.

sabemos ambos da impossibilidade da morte para as âncoras.

.

com pés de barro crispado e dedos que apontam aos céus avançam —

encandeadas pelo brilho do sol-pôr, quando é o caso de haver sol

e, não havendo, sob a estaladiça aura da lua ou ao luar esplendente de brancos —

avançam, as âncoras, com uma discrição e candura improváveis de superar

mesmo pelas figuras de Gabriela L.  ou pelos personagens míticos

do país de uma tal menina arrojada conhecida como alice

 

— avançam, as âncoras, ao ritmo ternário, ao ritmo do pousar arrastado

dos seus ganchos ou grampos ou ferros firmes na crosta de pedras e areia

e fundos do mais fundo do fundo do mar.

 

estrelas e cavalos marinhos circundam-nas.

líquenes e franjas coloridas de raros seres raros luminosos

deslizam ondeiam e oscilam à roda dos seus ganchos ou grampos ou ferros.

 

assim confirmam a mutabilidade dos viventes

a transitoriedade dos desejos e a intemporal sede do movimento.

 

as âncoras, discretas no seu peso fundido, deslizam avançam e permanecem

com os pés de barro crispado e os dedos a apontar aos céus,

encandeadas pelo brilho do sol-pôr, quando é o caso de haver sol, ou

sob a estaladiça aura da lua, ou sob o esplendente luar de brancos espelhismos.

 

assim o amor — como ambos sabemos — o amor e as âncoras

esses seres reservados e luminosos «que se vão da lei da morte libertando».

 

3.

por entre algas rochedos e asas fluorescentes

voar ao encontro da raiz do mundo.

buscar-lhe o pulso, o pulsar, o timbre

contornar os impulsos, atiçar o risco

e desaguar, liquidamente, à beira do melhor que há em ti.

 

por entre algas rochedos e asas exuberantes

alinhar os caracóis morenos e a franja revoltada

de vermelhos e brilhos ruidosos de luz

e encontrar, comovidamente, a vertigem de impossíveis em si

na demora no esperar dentro de água na vaga rasa,

na seca e evaporada linha de iodo, algas, azul e sal

que o mesmo é dizer: por dentro do fogo incendiar o amor sem fim.

 

4.

de raras raízes, as âncoras ensinam a esperar no fogo que acende o amor.

.

de cabelos lisos avermelhados ou acobreados pela espera

escoram a nossa linha de doces sais,

um horizonte onde ainda sobrevive

esse beijo inocente

na hora azul.

 

na seca e evaporada linha de iodo, algas, azul e sal

que o mesmo é dizer: por dentro do fogo, incendiar o fervor sem fim.

 

assim o amor — como ambos sabemos — o amor e as âncoras

esses seres reservados e luminosos que se vão da lei da morte libertando.

 

5.

do rodopio das ondas sabem as âncoras e as marés.

distintas e, mesmo, opostas, precisam umas das outras

umas não vivem não existem sem as outras.

 

 

às marés cumpre o movimento sedutor da evasiva,

tão cansativo ao cabo de certos tempos

quanto a parada fila de pedras num cais.

às âncoras cabe a dança fugidia e exigente desde a superfície,

frouxa,

até à sublime profundidade dos escuros fundos

surpreendentes nos corpos em movimento de cores e luz.

 

toda a gente sabe que as marés amam as âncoras desde sempre

— embora possam nunca o vir a saber ou nunca o admitir.

 

as marés são os únicos amores dedicados das âncoras

já que vogam entre a despedida e o regresso

habitam a subtil eternidade indo estando e sendo.

 

as âncoras — ah poucos conhecem a verdade desses sólidos

braços ligados a resistentes cabos sebosos

cabos e ferros e ganchos persistentes,

serenamente fortes ali, sempre, focados,

despertos e disponíveis para o rebentamento errático

como para o sossego ou a espiral da vaga

vertiginosa vaga repentina e voraz —

 

as âncoras, lembre-se, são as ferramentas mais infiéis

porque se treinam e habituam à incansável futilidade

das idas e vindas gratuitas, desgastantes boçais.

treinadas, só as sobreviventes ao rodopio devêm âncoras.

só as sobreviventes ao desgaste se assumem, fortes

firmemente erectas em cada gancho e cabo castanho

avermelhado pelos rubores da intimidade com o mar.

 

tal força e elegância torna as âncoras alvo de cobiça ou difamação

por parte das insatisfeitas marés.

até ao dia em que, por instantes,

o mar suspende a refega gratuita e para si mesmo declara

que só se habita de marés porque as âncoras o protegem do ar.

 

com as suas carícias entre o sal e as algas

as gotas e gotículas que se unem, resistentes

defendem o mar de evaporação e nuvens condensadas

gotículas e gotas que, enamoradas, permanecem ligadas

mesmo no roçar das areias

mesmo no embate com as rochas

mesmo na evaporação do ar.

âncoras e marés coexistem, milagrosas

unidas na tarefa amorosa de salvar o mar.

 

Casa do Caes, Figueira da Foz. Agosto, 25-26 Novembro / 2015. | Coimbra. 11 Janeiro / 2016.


dos guindastes, esses actos amorosos

 

“O auto-conhecimento é filho de actos amorosos”

Helena Blavatsky.

 

1.

por mais que mude a direcção do olhar

é sempre da imensidão do azul — o horizonte.

 

os braços robustos de aço e metais coloridos estão em pausa,

repousam também eles da carga pesada para que foram construídos.

 

o destino é essa massa criativa por onde nos vamos encontrando e desencontrando,

amor meu.

 

os braços robustos estão, em pausa.

indicam o azul de cima. emergem do azul de baixo.

 

há um ponto no horizonte ou na perspectiva onde os azuis devêm apenas um.

são apenas um os dois azuis que o nosso limitado olhar alcança.

.

por isso é que, por mais que mude a posição de rosto ou a direcção do olhar

é sempre azul e imenso o profundo horizonte.

.

amo-te, amor, com todos esses limites da visão e do olhar.

 

quando alcançar a perfeição não teremos mais este laço,

meu amor, pois já seremos só um,

meu amor iluminado quando ri, alucinado quando sofre,

sempre infante e fugaz como a fragilidade faz.

.

o destino é essa linha a tracejado que vamos corrigindo ou renegando ao respirar.

o ritmo da respiração e a abertura de ar e luz são os utensílios do destino.

.

caminho ao ritmo da ilusão consciente, pois sinto a tua mão na minha, fulminante.

.

caminho ao som da balada interior, pois oiço o teu encanto em cada urro silenciado

marcado na ruga e no rasgo espantado de teus olhos, às vezes, meu amor.

.

 

amo-te, amor, com todos estes sinais de loucura e encantamento figurativo e realista.

.

o amor é, por definição impossível, a alma do utensílio que é a realidade,

digo, a plena utopia que alaga o presente a devir magma.

.

o amor é a alma do magma, a acha do vulcão.

e tudo o mais? é, amor, pura ficção.

 

2.

agora, os braços trabalham em turnos durante noite e dia,/

para encher os depósitos de mel ou os cargueiros de sal ou

os contentores de cargas que só os guindastes elevam.

 

os guindastes fizeram-se para erguer tudo o que os humanos não suportam: /

aros de aço, tampas de metal fundido, escadas de betão,

litros de combustíveis líquidos ou de todos os leites de todas as cores/ escorrendo

de frutos redondos como as uvas os seios ou as conchas / ou as barrigas doces

em cascos de nogueira também conhecidas por barris pipas e tonéis/

tudo isto que os humanos não aguentam às costas aos ombros,/

tudo isto e muito mais como sejam cargas impalpáveis e invisíveis/

a saber: pesadas ideias de culpa, invenções de pecado,

sentimentos de tristeza ou impotência,

ideias de desistência ou abandono,

corações fraquejando na batida, na corrida ao sangue,

mãos tremendo de dor saudade ou medo,

olhos aguados de todos os sais sisudos,

lábios molhados pelo húmus da distância e da hesitação,

colos ciosos e ocos de futuro e aconchego/

pois os guindastes fizeram-se para elevar tudo isto e muito mais

matérias materiais e elementos

que os humanos não aguentam às costas,

nem nos rins nem aos ombros e nem sequer

na memória lembrança ou na imaginação/

 

motivos, agora, para os turnos de braços em toda a noite e em todo o dia/

 

para encher depósitos de mel cargueiros de sal ou contentores de pesadíssimas

cargas que só os guindastes suportam /

que só os guindastes aguentam, elevam, transportam e mudam, de vez, de lugar;/

 

 

assim, agora, enquanto uns braços trabalham,

outros abraçam a nocturna transição para o outono,

e outros braços apenas abraçam/

a pele do vulcão desejado a seu lado em repouso

entre lavas e ondas de fogosa entrega;/

agora, neste entrecortado silêncio pelas gaivotas a adejar gritos e silvos ruidosos/

agora, neste assumido contorno dos afectos sem outro destino que a dádiva/

agora, neste assustado recanto da alma perturbada, saudosa do espírito amado e seus ansiados passo dorso lábio e braço/

agora, neste interior espelho da confirmação

a reflectir anseios sonhos e gestos partilhados

leves, sem densidade nem peso nem restrição.

 

Casa do Caes da Alfândega. Figueira da Foz. 6 e 16 de Setembro/2015.


Oferenda

 

toma este sorriso verdadeiro:

nele se abrigam milénios seculares

de sapiência que eu mesma desconheço,

sabendo embora do segredo que a guarda. Toma

toma este sorriso e o cansaço

que as rugas com que se ri também denotam

pois por baixo de todo o traço esforçado

podem dormir outros retratos ou esboços

do inimitável coração das próprias coisas.

Toma este sorriso e o esboço, toma.

Toma o rascunho de perfeição tão grosseiro

que ele aborda ou indicia mas não esgota

como nem gasta a solidez de cada passo

ou cada gesto engrandecido pelo fervor

que já espreitava na madrugada de ontem

sem que eu soubesse o porquê dessa aparição.

Toma o sorriso, metáfora do fervor

símbolo da esperança e da irrevogável luta pelo bem.

Toma o estremecer dos lábios e das pálpebras

toma a hesitação entre riso e lágrima rebelde

pois das lágrimas muitos sorrisos são ante-câmara

ou resguardo ou repasto ou vão banir.

Toma a ponta da corda juvenil e salta logo

acata a mão dos amigos a embalar teu jogo

teu momento de transição entre o chão e o ar

tua oportunidade de redenção, e emoção

tão ansiada mas temida por tua sombra

pois tua sombra te encaminha tantas vezes

ainda que não seja esse o lado que mais anseias.

Por isso mesmo toma esse sorriso sincero

arrepia-te sem dó, grita e esbraceja

enquanto o tempo ainda te é favorável ou leal

enquanto a marca de água te deixa o rosto liso

e os cabelos pestanejam, luminosos,

por entre ambas as mãos forçadas na tua nuca

— amparo que ainda não tens porque não estás.

Toma o sorriso, a alegria, os lábios e o encantamento.

E que o zunido da mágoa abrande a pouco pouco

até à hora da tua redenção no amor, ámen.

Figueira da Foz. Casa do Caes. 21 Janeiro / 2016.

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poemas IN ‘Ciclo da Prata’. 5 Livros de Poesia de Maria Toscano.


© Revista Triplov . Série Gótica . Inverno 2017