BREVE PANORAMA DO SURREALISMO EM PORTUGAL
Direção e organização de Rui Sousa
TANIA MARTUSCELLI
(University of Colorado Boulder)
Para o Cruzeiro, com carinho
Este trabalho visa percorrer, por via da análise de periódicos angolanos, o impacto da exposição individual de Cruzeiro Seixas em Angola. Além do choque visual das peças e local de exposição, é possível pensar na ideia do Surrealismo segundo a noção de alteridade, que aparece exotizada na obra de Seixas, o português em África. De mesmo modo, a experiência africana marca a obra de Seixas, promulgando assim a possibilidade de o outro ser um – o artista, um espaço, um híbrido em sua arte escrita e plástica.
Uma vez que deixa Portugal em 1951 para viver em Angola, tendo já conquistado o estatuto de artista do Surrealismo, Artur do Cruzeiro Seixas torna-se responsável por exposições e controvérsias no país africano. Esta experiência migratória dura até 1964, quando se vê obrigado a deixar a região por conta do agravamento da guerra de independência, tal como é conhecida no lado português, ou guerra colonial, para os africanos, que se iniciara em 1961. Segundo o artista nos conta em depoimento pessoal, os portugueses que viviam em Angola foram pressionados a juntar-se à batalha ou a abandonar o país e, como não era adepto à violência, nem ao colonialismo, viu-se obrigado a partir de um lugar em que não teria tido problemas em viver toda sua vida.
Tal afirmação de devoção a Angola é fundamental para compreender sua arte que, a partir de 1951, passa a se evidenciar. De acordo com Isabel Meyrelles acerca da poesia, Seixas encontrou em África “o espaço que, ‘homem esponja’, sonhava, estando sempre pronto a absorver o que o cerca, e a transformá-lo” (Seixas, 2002: 8). Já Alfredo Margarido considera que “[a] África foi um continente que nunca nos deu sistemas filosóficos e nunca conheceu as peias de um cartesianismo mal entendido. Daí que sintamos estar Cruzeiro Seixas no continente que é realmente o seu, com uma imaginação elástica e lançando cabos em direcção a todos os seres e todas as coisas” (1957: 6).
Cruzeiro Seixas em Angola, 1955. “… neste tempo distante eu estava convencido que era este…” Espólio Cruzeiro Seixas, Biblioteca Nacional de Portugal, N38/163.
Este lugar de descoberta e devoção aparece em sua obra escrita enquanto “Áfricas”, espaço em que aparentemente o poema foi escrito, ainda que o artista os componha já retornado a Portugal. Diferentemente da cidade de Lisboa, que, como anuncia em um de seus poemas, é marcada por “Um gravíssimo excesso de grandeza/[que] anuncia o Nada” (Seixas, 2002: 11), Luanda foi lugar de revoluções próprias, individuais, mas suficientemente capazes de desafiar o status quo da sociedade colonialista e dar vazão ao híbrido de surrealismo e tribal, de europeu e africano, de pares e não mais de colonizadores e colonizados, tal como na obra que compõe com Tito Chilundo aquando de sua estada em Quiculungo em 1958. No desenho, traço inconfundível de Seixas encontra o seta tribalista cujas penas remetem-nos a luz bruxuleante de uma vela, bem como a pena da antiga caneta, e os galhos e folhas de uma árvore. Natureza e urbanidade reunidas sobre a mesa com o candelabro, transformada em terreno fértil, natural, angolano (e português). A sensação de ascenção permite uma impressão final de esperança, ainda que a flecha, mortal, esteja a atingir a cabeça do homem-árvore:
Espólio Cruzeiro Seixas, Biblioteca Nacional de Portugal, N38/1005
O momento mais marcante dessa experiência tanto diaspórica como artística se dá numa exposição individual em 1957, quando Seixas utiliza um casarão abandonado, conhecido como Palácio dos Fantasmas, para exibir sua arte e introduzir o Surrealismo no país. Este terceiro espaço arquitetônico gera, no processo de sua reutilização enquanto casa de acervo artístico surrealista, desconforto entre a burguesia, ou os “comerciantes locais”, como afirma Alfredo Margarido em seu não menos controverso artigo de jornal (1957: 6). A fronteira entre o real e o onírico é nesta exposição dramática, ou performaticamente borrada, uma vez que as obras e o edifício passam a ser um espaço único de experimentação por parte do artista e lugar de sensação estética por parte do visitante. Ainda, enquanto arte surrealista, o espanto do público e generalizada má receção não deixam de fazer parte do plano original vanguardista. Portanto, há que assumir este entre-lugar que a exposição de Seixas ocupou em Luanda como espaço e tempo inaugural do Surrealismo em terras angolanas, bem como um terceiro espaço de alteridade, pois não se adapta à paisagem urbana (a casa está em ruínas), ao conservadorismo da sociedade (não se fazem exibições de arte a sério em casas abandonadas), nem ao que se espera enquanto papel do colonizador, representado involuntária, mas biologicamente pela figura de Cruzeiro Seixas.
Não obstante, o sucesso ou insucesso da exibição aparece nos jornais quase que diariamente, provocando ainda um “inquérito” aos mais respeitados da sociedade para tentar definir a qualidade e validade da arte do surrealista. No jornal O Comércio, de 17 de Janeiro de 1957, João Azevedo descreve que a “‘Manifestação’ do Sr. Cruzeiro Seixas”, não era propriamente uma exposição de arte, pois deu-se “num pardieiro da Avenida dos Restauradores de Angola”. Neste artigo, considera o artista português radicado no país de “dalizito dos Muceques”, de modo a rebaixar tanto a figura de Seixas como a de Dalí (dalizito), ressemantizando a ideia de arte ao que os musseques social e economicamente permitem ao preconceituoso conceber. Azevedo ainda faz notar que o “surrealismo [é] velhinho, fora de moda e ultrapassado” (1957: 2), mesmo que esteja a ser introduzido no país pela primeira vez. A discussão acerca do “cabimento” do movimento surrealista na década de 1950 parece ser ouvida de longe pelo jornalista, que se refere a um Surrealismo histórico, desconsiderando a atemporalidade da arte.
A exposição causa tal agitação cultural que o jornal A Província de Angola cria um inquérito para apurar o interesse bem como a má-receção não só entre os comerciantes locais, isto é, a burguesia, mas entre “o público de todas as camadas sociais e de todas as raças” (1957: 2). De facto, como documenta Álvaro Reis aquando da partida de Seixas a Portugal anos depois, a exibição de 1957 foi a “mais discutida e a mais visitada de quantas jamais se realizaram nesta província” (1961: 11).
A 19 de Janeiro de 1957, o inquérito de A Província de Angola divulga a opinião de José Blanc de Portugal, que, ainda que reconheça o génio de Cruzeiro Seixas quando escreve que “é um mestre do surrealismo plástico português”, refere-se que o “lixo dos bem-pensantes e ‘bem sensatos’ faz parte dos habituais cenários surrealistas”. Sublinha, ironicamente, que o local escolhido lhe parece uma “simpática velha casa” que recebeu das mãos do artista uma “piedosa conservação das suas veneráveis teias de aranha” (1957: 2).
No dia 22 de Janeiro as críticas continuam, desta vez em O Comércio de Angola pelas mãos de Abel Cardoso que ironiza: “não se trata de uma manifestação artística, mas de uma afrontosa propaganda (…) Somos da opinião de que não deve ser franqueado o acesso a adolescentes, a indígenas e a… peixes (por causa das redes)”. E continua: “[h]oje exposições, amanhã campos de nudismo, depois cineclubismo de feição marxista e por fim associações pseudo-culturais.” (1997: 231). Nota-se, portanto, a ameaça social – e consequentemente a bisonhice da exibição que provoca os mais conservadores. Muitos foram os angolanos (não somente de Luanda) que julgaram ser esta a primeira manifestação propagandística de um liberalismo tanto de esquerda como a- ou imoral.
Por via de descrições dos críticos tal como aparecem nos jornais, vai-se compondo o cenário no Palácio dos Fantasmas que concatenou a arte de Seixas com uma arquitetura em ruínas e objets trouvés, como redes de pesca, marcas da realidade africana e, ainda, as referidas teias de aranha. Em depoimento pessoal, Cruzeiro Seixas relembra que o piso superior estava parcialmente destruído e deixava passar a luz do telhado, o que o artista fez questão de aproveitar. O espaço também se transforma em objeto de arte, como se uma moldura para as peças inusitadas – exóticas ao olhar do outro.
É contudo o depoimento de Alfredo Margarido publicado dois dias depois n’A Província de Angola, a 22 de janeiro de 1957, que vai incitar ainda mais acalorada discussão, uma vez que defende a exposição de Seixas e acusa a sociedade provinciana influenciada pelos comerciantes portugueses que ali viviam de mesquinhez intelectual: “As pessoas têm medo de imaginação que lhes destrói a imagem conformista que têm das coisas” (1957: 2). Margarido explica que é “[p]rocurando o conhecimento das realidades que a natureza oculta, [que] caminhamos para uma intimidade (que tem o seu quê de ferocidade) com tudo o que vive” (idem). Segue ainda o poeta e crítico português demonstrando o valor simbólico da exposição que abriga Portugal e Angola no mesmo espaço: “Os limites estão aqui naturalmente alargados, pois a confabulação com todos os elementos de natureza, a sua procurada fusão, estabelecida através de um diálogo pertinente, faz oscilar o nosso conhecimento (real ou pretendido) do concreto.” E conclui: “O real da pintura é a imaginação e quem não foi capaz de imaginar, não se aproxima da pintura. Não vale a pena” (1957: 6).
Jayme Amorim assina um artigo no dia seguinte, em O Comércio de Angola (a 23 de Janeiro de 1957) em que se identifica como um dos referidos “homens do comércio”, em resposta a Margarido, concluindo que era “uma exposição do lixo!” a de Cruzeiro Seixas (1957: 5). Julga-se, portanto, incapaz de conceber nos objetos do cotidiano ali expostos a noção artística de objets trouvés. Outro artigo do mesmo dia, 23 de Janeiro de 1957, sai em o Diário de Luanda, este assinado por Diamantino Faria. O autor segue a tendência de fazer pouco caso da exibição quando, por exemplo, afirma que “Luanda teve sua primeira (…) manifestação surrealista (…) as opiniões dividiram-se: houve os que foram, viram, não perceberam e disseram mal; e os que foram, viram, também não perceberam e disseram bem” (Cesariny, p. 124).
Ainda outro inquérito divulgado por A Província de Angola, datado de 24 de Janeiro de 1957, traz a opinião de Santos Moraes que mantém o argumento de José Blanc de Portugal e outros já referidos no que se concerne à qualidade das peças expostas: “Desde os micro até os macro, todos os cosmos se reuniram ali, num local onde o asseio do chão contrasta com o lixo do tecto e das paredes” (1957: 2). Dois dias depois (a 26 de Janeiro) o mesmo jornal publica uma charge sobre o tema em que afirma jocosamente que “Com tanto osso que se enxergou na exposição de Cruzeiro Seixas, doeu-lhe o coração por não ter lá levado todos os cães vadios a tirar a barriguinha de misérias…” (1957: 4).
Não obstante o acervo de depoimentos e artigos quase todos contra a exibição de Seixas, desvalorizando o local de exibição e retirando do Surrealismo a importância que merece, o jornal O Comércio de Angola a 28 de Janeiro de 1957 publica uma carta que recebe de um de seus leitores, um Sr. Adulcino Silva. Sr. Silva coloca-se ao lado da orquestra desconcertada com a exposição de Seixas. Escreve, enfático: “‘Nós os futuristas vemos que o surrealismo está esgotado’.” Considera ainda que a dita exposição “‘não passa de um acidente de trabalho.’ (…) [O] palácio dos Fantasmas ameaça ruína, que é como quem diz – o surrealismo está arruinado’” (1957: 2). É de interesse notar que o leitor se denomina futurista, também “arruinado” se se pensar no movimento enquanto fenómeno histórico. Entretanto, há que sublinhar dois elementos curiosos nessa afirmação: ser futurista nos de 1950 não significava necessariamente adotar as propostas marinettianas, mas ser fora do comum, tal como hoje se emprega levianamente o adjetivo “surreal”, por exemplo. Por outro lado, recuperando a história do futurismo entre os portugueses – os mesmos de Orpheu – e a receção da obra dos primeiros modernistas, pode ser pensada em paralelo com a revolução da primeira manifestação surrealista em Angola. Bata lembrar que os artistas companheiros de Pessoa na revista foram acusados de loucos que deveriam estar internados.
Margarido não foi o único a defender Cruzeiro Seixas, aliás. No Jornal de Benguela, jornal publicado fora de Luanda, portanto, demonstrando assim que a repercussão do evento ultrapassou as fronteiras da capital, a 7 e a 11 de Fevereiro de 1957 publicou-se o artigo “A ‘escandalosa’ exposição super-realista de Cruzeiro Seixas constituiu um ‘test’ esplêndido e oportuno para os alfenins da falsa intelectualidade.” O longo texto assinado por A.C. foi dividido em duas partes e publicado em edições diferentes. O autor concentrou-se na receção do público, mais do que da arte propriamente dita, ecoando o argumento de Alfredo Margarido: “Admirei, em respeitoso silêncio, os senhores emproados que tomavam ares de superioridade meticulosa e exigente, remirando, tornando a olhar, quase cheirando…. Recuavam, avançavam, fechavam um olho, caminhavam de lado, punham-se a três quartos, espreitavam de esguelha, e findavam por declamar com grave entonação: ‘Não está mal de todo…’ (…) Que apropriado seria um fundo musical de pífaros, ferrinhos e zabumbas!” (1957: 3). Na segunda parte do texto, publicado na semana seguinte, (11 de Fevereiro de 1957), acrescenta o subtítulo: “Um ‘fermoso’ canteiro de talentos – Luanda, de palanque, muito se riu dos ‘faz-tudo’ – Acácio, indignado, não gostou e acha que Seixas é servidor de Satanás…” O articulista lança mão do personagem de Eça de Queirós, Conselheiro Acácio, que em O Primo Basílio representa a vacuidade e o convencionalismo burguês, cujos gestos sempre bem medidos, vocabulário cuidado e citações de grandes autores para ilustrar as conversas, marcaram-no como caricatura da burguesia lisboeta. (Cf. Dicionário de Eça de Queirós). A figura de Acácio é recuperada para argumentar que “Luanda – toda a Luanda do bom senso, do respeito pelo trabalho alheio e da noção das proporções – foi à exposição” (1957: 1) e que “[d]ecididamente, Cruzeiro Seixas pregou uma rica ‘partida’ a muita gente empertigada e oca.” (1957: 6).
Também provocados pelo testemunho de Margarido, outras personalidades da sociedade se manifestaram, como foi o caso do Padre José Viega que, a 16 de Fevereiro de 1957 escreveu no jornal O Apostolado uma “Carta aberta a Alfredo Margarido e a todos quantos a lerem”. O padre cita Gabriela Mistral, recontextualizando seus versos para criticar a exposição de Seixas: “Não levarás a Beleza às feiras, porque a Beleza é pura e quer continuar a sê-lo” (1957: 5). A discussão pública não parece ter se dissipado por longo tempo, uma vez que já no ano seguinte, em 1958, os jornais continuaram a publicar manifestações de indivíduos acerca do tema. Uma delas foi outra “carta de José Blanc de Portugal a propósito de exposição de Cruzeiro Seixas” datada de 29 de Dezembro de 1957 e que foi publicada no jornal A Província de Angola a de 23 de Janeiro de 1958. José Blanc de Portugal escreve para sublinhar o fato de ter o diário dedicado “especial atenção à exposição de Cruzeiro Seixas” e, por isso, vê-se na obrigação de esclarecer suas declarações publicadas no inquérito distribuído pelo jornal. Retoma, portanto, a questão do surrealismo ‘ultrapassado’, argumentando os calculados 20 anos de “atraso” referidos nos diversos artigos do ano anterior que deveriam ser recalculados e considerados ainda mais longos, pois, se tomassem como referência o primeiro manifesto de Breton, de 1924, ou ainda, demostrando seu conhecimento de causa, se tomassem como parâmetro a exposição da “Galerie des Beaux-Arts” de 1938, quando se afirmou “que o surrealismo estava esgotado”, a exposição de Seixas, em 1957 estaria, desse modo, ou atrasada em 33 anos, ou obsoleta a 19 anos, já que foi em 1938 que se determinou que o Surrealismo havia deixado de existir. Considerou ainda que num recente trabalho de André Breton na revista Surréalisme, datado de 1956, o francês analisou o papel do movimento e acabou por admitir a “arte abstracta” como legítimo novo processo do Surrealismo (1958: 2). José Blanc tenta, de certo modo, esgotar a discussão e “apagar o fogo” da controvérsia. Tenta acalmar ainda mais os ânimos quando categoriza que a arte exposta por Seixas não deveria afetar a sociedade angolana (isto é, a elite branca angolana), uma vez que já havia sido oficialmente extinta na Europa.
Coincidentemente neste mesmo dia, 23 de Janeiro de 1958, o leitor enfatuado que teve sua opinião publicada em Comércio de Angola em Janeiro do ano anterior, envia outra carta a ainda outro jornal, A Província de Angola. Praticamente um ano depois de sua intervenção “futurista”, decide escrever uma resposta ao elogio que Furtado de Mendonça havia feito à exposição. O jornal, contudo, demonstra sua discordância com a opinião do leitor por via da chacota e humilhação assinada por Vasco Palácios, que publicam os erros ortográficos do remetente no seguinte formato: anuncia Palácios que o Sr. Adulcino Silva teria escrito que “[n]ão sei o que o Artista pretende difinir nos seus desenhos. Mas sei que desenha primorosamente e que a minha alma vibra de simpatia por eles (…) ainda que “muito poucos compreend[a]m aquela exposição” (1958: 2). O respondente do jornal, em seguida publica uma nota explicando que a carta fora reproduzida como está em sua “origem [difinir; ilugiar; ilucidação], para não perder o seu melhor sabor” (idem). Acrescenta rechaçando a acusação do leitor de que Furtado Mendonça não era amigo de Cruzeiro Seixas. O jornal quis se pronunciar e explicou que “suscitou-nos o interesse de saber, de fonte fidedigna, o que há de verdade nesta história de ‘comadres’ (…) Cruzeiro Seixas (…) nos disse que nem o Sr. Furtado de Mendonça é amigo dele (…) nem vice-versa” (idem).
Imagem de A Província de Angola, 23 de Janeiro de 1958. Espólio Cruzeiro Seixas, Biblioteca Nacional de Portugal, N38/735.
É inegável, com os diversos exemplos, a agitação cultural e social provocada pela exposição de Cruzeiro Seixas. Ainda que fosse um conhecido curador de exposições no Instituto Angola, para onde trouxe 187 obras de artistas modernos ao país, e do Museu de Angola, onde lançou Malangatana Ngwenya, criou o Salão de Pintura e uma exposição de arte sacra bastante comentada na mídia. Sua exposição individual causou uma marca indelével na história das artes no país africano. Tal se estendeu às relações sociais como aparecem nos jornais, em que figuras proeminentes em Luanda foram convidadas a revelar suas impressões, tendo ainda os media contado com a opinião de seus repórteres e leitores. A “manifestação surrealista” de Seixas foi tal, que implicou uma denúncia dos costumes burgueses à la Eça de Queirós inclusive, demonstrando que a sociedade híbrida angolana perdia em não valorizar suas raízes negras. Alfredo Margarido chamou atenção para este facto quando comparou a arte de Cruzeiro Seixas e seus objets trouvés, isto é objetos encontrados em Angola, como “uma raiz para [sua] arte” onde aparece “o mundo negro, na raiz telúrica do homem negro.” (1957: 6).
Iniludível, portanto, a força da obra de Cruzeiro Seixas, seja por via da vanguarda que espanta o burguês, seja por via do artista-esponja que absorve da terra africana elementos que, segundo ele, acompanham-no por toda a vida, de modo que tornou o outro parte de si mesmo. Quando demoliram o Palácio dos Fantasmas, em 1959, valeu ao edifício uma nota no jornal, que talvez pudesse ser considerada um elogio fúnebre. O periódico anuncia a destruição do casarão que ficou célebre aquando da exposição “ultra-néi-realista” (1959: s.n.p.). Em 1962, o Diário de Angola publica “para uma historiografia do surrealismo português”, texto assinado por Alfredo Margarido, o mesmo que provocou os leitores anos antes. Isso permite a assunção de tal marca indelével provocada pela presença de figuras como a de Seixas no país. Pode-se perceber o quão pouco compreendido foi o evento, mas bastante influente no terceiro espaço que ocupa uma sociedade híbrida, neste momento uma Luanda colonizada, que não deixa assim de possuir uma cultura luso-angolana, tal como propôs a exposição de Cruzeiro Seixas.
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REVISTA TRIPLOV
série gótica