Tributo a ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO
FLORIANO MARTINS
Uma conversa com António Cándido Franco
sobre a presença do Surrealismo em Portugal
António Cándido Franco (Portugal, 1956). Poeta, ensaísta e editor. Estudioso do Surrealismo e da obra de Teixeira de Pascoaes. Em poesia publicou Murmúrios do mar de Peniche (1977), Corpos celestes (1990) e Estâncias reunidas: 1977-2002 (2002). Entre os títulos ensaísticos destacam-se Viagem a Pascoaes (2006) e Notas para a compreensão do Surrealismo em Portugal (2012).
FM | Simbolismo, Modernismo, Futurismo – com quais desses momentos melhor se identifica o Surrealismo em Portugal? O crítico brasileiro, de origem austríaca, Otto Maria Carpeaux (1900-1978), em sua História da literatura ocidental, aponta a ausência de um verdadeiro Simbolismo em Portugal, ao mesmo tempo em que situa Mario de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa como dois poetas de formação esteticista, mas de ambições que já antecipam o Surrealismo. Por onde começamos?
ANTÓNIO CÁNDIDO FRANCO | Quando lemos alguns dos poemas de Oaristos (1890), por exemplo o décimo primeiro, ou “A Epifania dos Licornes” de Horas (1891), ou ainda “Um Cacto no Polo” do mesmo livro, percebemos que a poesia de Eugénio de Castro, um poeta hoje quase esquecido, mas que na época foi admirado por Ruben Dario e pelos simbolistas franceses, chega para impugnar a asserção de Carpeaux (e, claro, para tirar muita novidade à poesia de Pessoa – que em alguns momentos se limita quase a glosar a poesia de Eugénio de Castro).
Faltou-te porém referir o Saudosismo, que é talvez a afinidade involuntária do Surrealismo português. O Saudosismo pode ser encarado como um desenvolvimento português do Simbolismo ou dos aspectos mais misteriosos dele. O poeta crucial deste movimento, Teixeira de Pascoaes, foi o antecedente poético de Mário Cesariny; entre os poetas portugueses logo anteriores que ele tinha à disposição, e muitos eram (Antero, Gomes Leal, Junqueiro, Nobre, Eugénio de Castro, Ângelo de Lima, Pessanha, Pessoa, Sá-Carneiro, Florbela, Raul Leal, Almada, Régio), foi Teixeira de Pascoaes que ele elegeu.
As relações entre o Saudosismo e o Surrealismo estão infelizmente por estudar. O próprio Saudosismo, sobretudo na evolução da sua linha interna, aquela que vai por exemplo de 1912 a 1942, quer dizer, do momento do seu nascimento à publicação dum livro tão excepcional como Duplo Passeio, é muito mal conhecido e em geral tende a passar despercebido (como a tua pergunta confirma).
FM | O que evidencia a revolução surrealista em Portugal e como ela se insere em um mapa da Península Ibérica? Penso aqui nas relações entre Cesariny e Buñuel, que bem poderiam ter sido ampliadas, considerando afinidades históricas. Cesariny chega a comentar tangencialmente acerca de Juan Larrea, J. V. Foix, José María Hinojosa… Porém nunca houve entendimento entre as duas vertentes surrealistas. Algum motivo determinante?
ANTÓNIO CÁNDIDO FRANCO | O choque do Surrealismo em Espanha e em autores de língua espanhola (como César Moro) foi temporão. Basta pensar na importância que Buñuel e Dalí têm nos primeiros anos de afirmação do Surrealismo francês. Nada de parecido aconteceu em Portugal ou em criadores da língua portuguesa, e isto mau-grado Péret ter passado quase dois anos no Sul do Brasil nos anos heroicos que se seguiram à criação do Surrealismo. Logo o destino dos dois movimentos foi distinto e raras vezes coincidente. Ainda assim Mário Cesariny, além de traduzir Buñuel e ter relações próximas no seu círculo, penso em José Francisco Aranda, teve uma afinidade expressa e um convívio intenso com Eugenio Granell, o grande criador catalão, que viveu exilado muitos anos em Nova Iorque. O mesmo se passou com Cruzeiro Seixas.
FM | As cartas de António Maria Lisboa constituem uma fonte de iluminação sobre inúmeros aspectos referentes ao Surrealismo em Portugal. Poucos anos antes de sua morte, já descrente da perspectiva de reestruturação grupal do movimento, lemos em uma carta destinada a Cesariny ali imprimir seu desejo de ver seus amigos uma vez mais a seu lado, desta vez não com a sombra de um Breton. E em uma de suas últimas cartas, já no Sanatório da Quinta dos Vales Covões, em Coimbra, 1952, comenta com Mário Henrique Leiria acerca de uma fundamental dificuldade dos surrealistas: sair da fácil expressão, do hábito a que dialeticamente se deram e onde anti-dialeticamente permanecem, finalizando: Breton será mil vezes culpado. Até onde acerta António Maria Lisboa, não propriamente acerca de uma culpa de Breton, mas antes de uma falta de identidade no tocante ao Surrealismo em Portugal?
ANTÓNIO CÁNDIDO FRANCO | É natural que um poeta com a dimensão invulgar dum António Maria Lisboa se quisesse autonomizar de Breton, isto depois de o procurar e de com ele ter aprendido muito ou mesmo tudo. Caso tivesse sobrevivido à doença que o levou em 1953, aos 25 anos, convenço-me que não teria tido qualquer questão em se associar ao folheto com que o grupo de Cesariny homenageou A. Breton, no momento da morte deste, em 1966. O texto, chamado (Neófito) Não há morte na morte de André Breton, está hoje recolhido no livro As mãos na água a cabeça no mar (1985). Só um movimento consciente de si, atento às suas infinitas possibilidades, muito rodado na estrada do mistério e do amor, podia produzir tão altiva e bela homenagem.
FM | Há um comentário de Adolfo Casais Monteiro – A palavra essencial, 1972 – sobre composição e espontaneidade em que recorda que, tal como em toda a literatura, também nas criações surrealistas havia uma diferença abissal entre a poesia espontânea de uns e a espontânea… vacuidade dos restantes. Como lidou o Surrealismo em Portugal com essa aparente ambiguidade?
ANTÓNIO CÁNDIDO FRANCO | Ao contrário do que pensava Casais Monteiro, o Surrealismo não era uma questão de talento. O terreno matricial do Surrealismo não é o da estética (literária ou artística), mas o da ética humana, que procura conciliar a liberdade explosiva das pulsões interiores com a ordem clássica e exterior da sociedade. Pode-se ser surrealista sem se ter escrito uma única linha; pode-se ser surrealista sem se ter pegado uma única vez num pincel; pode-se passar de todo ao lado do Surrealismo depois de se terem escrito muitos poemas ou pintado muitas telas surrealistas. A vacuidade, para quem se situa no plano da aventura interior, como sucede com o Surrealismo, só pode ser a dos artistas. Também houve destes em Portugal, e de peso, a começar por António Pedro e a acabar em José-Augusto França, passando ainda por Jorge de Sena. Trataram o Surrealismo como uma questão de ter ou não ter jeitinho. Passaram assim ao lado do que mais importa.
FM | Seria possível imaginar um Surrealismo outro em Portugal sem a figura tutelar de Mário Cesariny de Vasconcelos?
ANTÓNIO CÁNDIDO FRANCO | Sem Cesariny, o Surrealismo português ainda seria o mesmo, se o António Maria Lisboa que tivemos ainda tivesse podido, sem ele, Cesariny, ser o que foi (até no diálogo com Pedro Oom), o que se duvida, pois cada um deles foi uma parte do outro e não podia porventura ser o que foi sem ela. Sem Cesariny e sem Lisboa, o Surrealismo português teria sido porém outro, muito menos autêntico e muito mais estético. O que se perdia em aventura e exaltação ganhava-se em truque e habilidade. A poesia, que no Surrealismo português se elevou altura ímpar, digna da mais alta aventura humana, teria decaído em simples literatura descartável.
FM | Quais relações podemos encontrar entre Surrealismo e o happening, como já o propusera Ernesto de Sousa em 1969, ao reunir poemas de Almada Negreiros, Mário Cesariny, Herberto Helder e Luiza Neto Jorge? E quais desdobramentos relevantes podemos comentar?
ANTÓNIO CÁNDIDO FRANCO | Se o happening se situar apenas no domínio da arte multimédia, ou mesmo da poesia dita literária, consagrada pela História da Literatura, não me parece que tenha alguma coisa a ver com Surrealismo. Se entrar pelo campo magnético da expansão de fenómenos psíquicos desconhecidos aí o contato estabelece-se. O teatro ritualístico e mágico de Judith Malina e de Julian Beck parece-me modelar de como o happening, pondo a nu a alma, se pode tornar uma forma de viver em coletivo o Surrealismo.
FM | O que o tema Surrealismo significa hoje em Portugal?
ANTÓNIO CÁNDIDO FRANCO | Para uns significa criação estética e está por isso confinado a um período limitado que vai da década de 1940 à década seguinte (e pouco mais); para outros significa uma porta aberta, que nunca mais se fechou, para metamorfosear o mundo e conhecer sem limites o interior do homem.
[Esta entrevista integra o volume Viagens do Surrealismo, terceiro tomo de uma trilogia do Surrealismo, de autoria do brasileiro Floriano Martins.]
Revista Triplov
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Portugal – Maio de 2023