RICARDO DAUNT
Convoco mais uma vez os leitores da Triplov para conversarmos sobre o Orpheu. Creio ser necessário, a despeito das abundantes reflexões, achegas e ensaios escritos sobre esse movimento, quer em Portugal, quer no Brasil[1], quer, embora esporadicamente, em universidades de outros países, que prossigamos no encalço de uma perspectiva que merece revisitação.
Temos, é forçoso mencionar, que compreender a posição do Orpheu na Europa, enquanto movimento, e para além dela. O Orpheu, com efeito, não foi uma manifestação de artes portuguesa stricto sensu. Foi, na verdade, um movimento europeu que teve lugar em Portugal, mobilizando a arte e a poesia portuguesa, impregnando-a de experiências que aportaram no país, fruto de mundivivências de seus mais destacados integrantes.
Comecemos por aqueles nomes voltados para as artes plásticas. Santa-Rita Pintor formou-se na Academia Real de Belas Artes, em Paris, em 1910. Nessa época conhece Sá-Carneiro, o que explica sua presença em Orpheu 2. Sua arte é europeia, de matiz futurista, com influências de Braque e Picasso.
Souza-Cardoso, que figuraria no abortado terceiro número da revista Orpheu, provavelmente a convite de Almada, embora formado na Academia Real de Belas-Artes de Lisboa, já em 1910 vivia em Paris, privava com Modigliani, com quem viveu e expôs em 1911; com Apollinaire, Robert Delaunay e Sonia Terk Delaunay e outros. Expõe nesse ano no Salon des Independants, publica desenhos no ano seguinte, expõe em Nova Iorque em 1913 e no ano seguinte em Londres.
José de Almada-Negreiros, embora artista plástico, comparece nesse agrupamento, devido à capacidade inequívoca de aglutinar interesses. Amigo de Robert e Sonia Delaunay, assim como de Souza-Cardoso, criador polivalente como ficou comprovado neste livro, a contribuição almadiana para o modernismo já seria imensa se apenas o tivesse premiado com a primeira experiência portuguesa na exploração do monólogo interior direto, que elaborou em “Saltimbancos (contrastes simultâneos)”, publicado em Portugal Futurista, na mesma época em que Joyce o faria no capítulo final de seu Ulysses. Entretanto, no âmbito do movimento órfico (ou órphico, como a maioria prefere), sua colaboração foi decisiva, quer nos contos (sic) instantâneos, nos exemplares interseccionistas, no sensacionismo-futurismo, na prosa ensaística de intervenção, no manifesto de molde futurista e no que denominamos satanismo[2]. Antecipou em diversas passagens traços do dadaísmo, que nasceria em 1916. Por ter vivido mais que os pares mais importantes do Orpheu, e muito também devido a seu temperamento e persistência, manteve a chama órfica até o último dia de sua vida.
Muitos anos também viveu Pedro Guisado, vindo a falecer somente em 1975. Como temos afirmado, a sua modernidade mais bem concretizada surge um pouco antes do surgimento do Orpheu. Ao se deixar contaminar pela estesia de autores órficos como Pessoa (ipse) e sobretudo Mário de Sá-Carneiro, Guisado adota uma sintaxe que acusa influências evidentes do último e certo conceitualismo do primeiro. A presença de elementos de raiz não-portuguesa, por assim dizer, denotando influência estrangeira, é de empréstimo, episódica. A espinha dorsal do poeta é símbolista-decadente, de estirpe lusitana. Sua inventividade contudo é inegável, mesmo optando pelo soneto, treze ao todo – mesmo acusando a influência muito evidente de Mário e de Pessoa, deste último em grau menor –, ao registrar sua participação no número inaugural da revista.
Há três nomes que não são de Portugal Continental, no Orpheu. Armando Cortes-Rodrigues, Eduardo Guimaraens e Ronald de Carvalho. Brasileiros os dois últimos, açoriano o primeiro.
Ronald realiza a passagem do Simbolismo/Decadentismo na direção do paulismo, espreitando o sensorialismo de Sá-Carneiro ao mesmo tempo em que explora a lírica intelectualizante de um Pessoa paúlico e pessimista. Ao concordarmos com tais afirmações, devemos considerar igualmente a influência indireta daquela poesia metafísica inglesa que formou a base racional-afetiva de Pessoa contaminando sua poesia – e do mesmo modo a herança filosófica de William James no autor de “O marinheiro”.
A lírica de Cortes-Rodrigues, por sua vez, flutua entre a decadência e a matriz paúlica pessoana, valendo-se de um misticismo religioso de evasão. Também acolhe influências de Mário de Sá-Carneiro, concebendo um sensacionismo aparentado ao último. Ao mesmo tempo a experiência que mantém com o mundo circundante leva sua lira ao esgotamento. Violante de Cysneros, seu “outro”, de existência curta, que comparece no número 2 de Orpheu, afasta-o da conferência do passado pessoal e do excessivo intelectualismo de alguns de seus versos assinados com o nome próprio, bem como da indisposição metafísica que testemunhou em Sá-Carneiro.
Apesar de afastar de seus horizontes a preocupação quanto à postura, modernismo que colheu em Orpheu, o que de Cortes-Rodrigues restou entre as páginas dos dois números da revista de mesmo nome guarda de segunda mão a diversa influência europeia de Pessoa e Mário. Se não recebesse de segunda mão tais infusões, persistiria no curso do simbolismo-decadentismo que marcou presença no final do século anterior, ponto de partida para a maioria dos poetas que deixaram seus nomes nas páginas de folhetins, revistas e jornais literários do princípio do século XX.
Eduardo Guimaraens reafirma, ele também, vínculos e influências da tradição decadente-simbolista, acusando ainda leituras de simbolistas franceses, cuja lira aportou ao Brasil sem grande alarde.
Muito se falou sobre o jogo heteronímico. Inspirado na devastação do sentido clássico da verdade, empreendido por William James, o desdobramento do “eu” pessoano em outros, distintos, foi acolhido pelo movimento do Orpheu em parte. Apenas Álvaro de Campos marcou presença ao lado de Pessoa (ipse).
Entretanto, ainda, no âmbito da discussão do processo heteronímico, temos a presença de um comportamento de despiste ou embuste intelectual, que tem como objetivo fnal injetar uma falsa verdade autoral para amplificar, alargar, reordenar e intesificar a liberdade da imaginação criadora, favorecendo a emancipação do autor de sua plataforma existencial, atrelada, portanto, a sua identidade e personalidade civil. Denominamos esse comportamento de hipercritismo fingido órfico[3].
Por conseguinte, há dois programas de fingir em Pessoa. O da pulverização do sujeito lírico em vários, distintos, com diversa personalidade poética (que fundamenta o jogo heteronímico), e o que em vez de construir sujeitos autorais distintos (no âmbito da criação poética), gera reflexões de ocasião, que não correspondem necessariamente à concepção de mundo autoral, mas são uma invenção oportunista.
Enquanto poeta, Campos insere-se naturalmente no âmbito do jogo heteronímico poético. Enquanto crítico, se funda como hipercriticista fingido órfico. É a figura essencialmente provocadora de embates. Os vasos comunicantes entre ele e Pessoa (ipse) são de enorme complexidade. Por vezes beneficia-se Campos da presença de motivos órfico-cardosianos quando então estimula-o uma temática de tédio existencial, desviando-se aí da matriz original, de seu criador, para acatar por meio de uma recepção direta a influência mais radical de Sá-Carneiro. Inadequado ao meio, não o resgata do tédio o ópio, a inação alienante, a ironia autodepreciativa ou a fúria falsamente triunfal da ode. Campos tem no horizonte imediato a possibilidade de fruir da vitória da vida e da emoção sobre o pessimismo e o desalento, bem como dos acenos do vitalismo nitzscheano e whitmaneano, mas a sombra pessoana que o acicata também o inibe em parte.
De matriz europeia, quer pela mesma influência de Whitman, quer pelos arroubos verbais saudando a vida industrial contemporânea, a “Ode marítima” se apoia sobre um desenvolvimento sensacionista-futurista. Realidade sonhada e corpo físico do que sonha não se dinstinguem em inúmeras passagens; o contraponto com “O sentimento dum ocidental”, de Cesário Verde, para o entendimento da dependência do orfismo face ao movimento das artes europeu, de mesma época, é um detalhe. Não é entretanto menos importante. A tradição portuguesa não é apagada do movimento, de modo algum, quando afirmamos que o Orpheu é um movimento europeu! É também português e europeu o desejo de regressar à infância, a um refúgio idealizado em que não há dor, mesmo sendo fugaz e sem a devida capacidade para coibir a mobilização do espírito face à diversidade dinâmica do que depara no navio imaginado.
Sempre, contudo, adota-se pacificamente a expressão “poesia interseccionista” tal como Campos o fez para denominar tanto a “Ode triunfal” quanto o “Opiário”. Aceita-se também a mesma denominação para os poemas de ‘Chuva oblíqua’, que comparecem no segundo número da revista Orpheu.
Ao longo do título mencionado[4], amiúde voltamos a examinar o sentido da palavra “interseccionismo”[5]. Ficou evidente que sua genética tem raízes em conceitos primeiramente expressos no corpus do empirismo de William James e em segundo lugar difunde-se devido a sua repercussão no mundo das artes e das letras, na França, em que pontificaram Robert Delaunay e Apollinaire. Em Campos, perpassa algo da ilogicidade de Almada, sempre revigorante e oportuna, e que talvez também decorra do jogo de palavras que o próprio interseccionismo propõe a ambos. Para ir mais longe, não podemos deixar de revisitar na memória a produção metafísica inglesa do século XVII, que Pessoa absorveu em Durban, e que muito provavelmente foi a mais determinante de todas as influências assimiladas, ao lado de Laforgue, cuja estesia fora trazida pelas mãos de Sá-Carneiro, com toda a certeza que é possível ter. Mais uma vez, temos a modernidade portuguesa nutrindo-se primeiro da lírica inglesa; depois, da poesia francesa.
Já sabemos entretanto que a concepção de modernidade varia conforme seu intérprete. Luís de Montalvor, por exemplo, combinava topoi decadentes a uma leitura da sensibilidade de Mário de Sá-Carneiro. Filiado por sua natureza a temas vinculados à poesia epigonal do início do século XX, sua estesia não logrou alinhar-se àquela produção órfica mais renovadora, não obstante o que sugere de mais intenso pareça advir de suas leituras de Mallarmé.
Ângelo de Lima valorizava a sintaxe e os vocábulos de sua invenção, que são utilizados conforme seu imediato apelo emocional. Valoriza certa sonoridade de fácil concepção, que frequentemente marca presença em seu trabalho. Quando, ao contrário, imprime clareza maior em seus versos, as rimas são pobres, por vezes infantis e o desenvolvimento da enunciação poética é truncado mais pela incapacidade de organizar e hierarquizar ideias, do que pela busca do anticonvencional. Para efeito deste registro, não basta justificar seus procedimentos estéticos, associando-os a sua problemática mental de residente em Rilhafoles – mas ela é um fato. De qualquer modo, em vista disso não surpreende que a alma romântica aflore desacorçoada, escape e transborde também para o âmbito de sua poesia.
Também diretamente ligado à França, o poeta Raul Leal concebia seus versos em francês, o que diz tudo, ou ao menos o suficiente sobre o peso da influência direta que recebeu da literatura da França. Não obstante, o trabalho impresso no segundo número de Orpheu, uma novela, fora escrito em português.
Nós a denominamos, na mesma obra já mencionada, “vertigismo dislexical”, apropriando-nos da terminologia criada por ele. Se por um lado Leal valorizava ali as correspondências baudelairianas, o autor nos oferecia, em substituição ao senso simbolista do sutil, uma estesia de congestionamento verbal, enigmática e obscura sintaticamente, que se empenhava na busca de um estágio espiritual superior e vertígico (sic) da existência. Não há limites para o sonho e este é o motor que lança o espírito para uma proposta de vida superior. Busca Leal algo que as palavras não podem traduzir, pois seu intuito é o da exploração extrema do sentir, o indefinido e sem limites por sua própria natureza. Imagens por vezes contraditórias não faltam para o auxiliar na busca pela recompensa que adviria pelo fato de atingir o além inalcançável. Tudo isso convalidado por um momento da expressão da arte europeia em que barreiras de toda sorte estavam sendo demolidas.
Volvendo nosso olhar para os múltiplos paralelismos entre a obra de Mário de Sá-Carneiro, de Pessoa e de Laforgue, é deveras muito significativa e sintomática a subversão que Campos realiza ao chamar de odes seus poemas mais arrebatadores, assim como Laforgue o fez com seus lamentos. Se a poética de Laforgue subverte o sentido literal do discurso lamentativo, inserindo no contexo do verso a ironia, destruindo as hierarquias poéticas, em busca de introduzir no poema certo caos[6], as odes de Campos não apenas propõem uma subversão formal da métrica e do tom lírico, em benefício da assimetria e do desequilíbrio estrutural, mas também acatam, como Laforgue, a linhagem poética que beneficia o rompimento das hierarquias poéticas. É importante também recordar que o engenho do poeta francês, inserido portanto na tradição da poesia metafísica que ganha nomeada na geração de John Donne, se faz presente em Campos e Sá-Carneiro não apenas em seus respectivos legados órficos, mas perpassa suas respectivas obras em toda a extensão.
Chegamos por conseguinte ao fim deste breve ensaio, esperando que o leitor possa se beneficiar em alguma medida das reflexões que empreendemos aqui. Contudo, o debate sobre o Orpheu deve continuar, iluminando não apenas as mentes dos investigadores, extirpando, se possível, seus equívocos e preconceitos, e enriquecendo nossa vida pensante.
Contudo, ainda é necessário dizer de modo enfatico que as relações do Orpheu com a poesia e arte europeias não o comprometem, nem relativizam sua importância indiscutível na história da nossa cultura e arte. Muito pelo contrário. Foi através da abertura para o mundo que as artes portuguesas se desembaraçaram de propostas saudosistas e outras, que vicejaram até a viragem do século XX, e se emanciparam, alcançando o seu significado do qual, por que não, tanto nos orgulhamos.
Ricardo Daunt
Escritor, poeta e ensaísta
[1] Inclusive, o nosso Orpheu: prosa, poesia e arte (ensaio). Ensaios. Triplov. Lisboa. Publicação eletrônica, setembro de 2012.
URL: www.triplov.com/letras/ricardo_daunt/orpheu/ORPHEU PROSA POESIA E ARTE_DE_RICARDO_DAUNT-1
[2] Cf. Op.cit, passim e também p. 92
[3] Id., ibid. passim.
[4] Orpheu: prosa, poesia e arte. Sugerimos também que o leitor, no intuito de examinar as raízes do movimento do Orpheu, examine também nosso outro ensaio, denominado” Especulações adicionais sobre as raízes do movimento” em Sobre o Orpheu (ensaios), Triplov (revista eletrônica): p. 53-149 . Lisboa, 2012.
www.triplov.com/letras/ricardo_daunt/orpheu/SOBRE_O_ORPHEU_ENSAIOS_DE_RICARDO_DAUNT-1, ou ainda, o mesmo texto nosso, reproduzido na revista da Academia Brasileira de Letras, com as seguintes referências: Apontamentos sobre o nascimento do Orpheu. Revista Brasileira. Rio de Janeiro, Academia Brasileira de Letras, 46: 225-47, jan.-fev.-mar., 2006.
[5] Pode o leitor examinar o nosso ensaio Amadeo de Souza-Cardoso e Fernando Pessoa: simultaneísmo órfico e interseccionismo. Aproximações. Vértice. Lisboa. Editorial Caminho, 136: 51-60, set.-out. 2007, que cuida do exame comparativo entre Souza-Cardoso e Pessoa. É de se reiterar, ainda desta vez, que o simultaneísmo órfico nas artes plásticas corresponde ao interseccionismo, na lírica. Vide também comentários sobre o papel seguramente importante exercido por Delaunay e Apollinaire, no sentido de definir e estimular a discussão sobre esse tema, na França.
[6] Chamamos a atenção do leitor para o nosso T. S. Eliot e Fernando Pessoa: diálogos de New Haven, Sâo Paulo, Landy, 2004, pp. 106 e ss. – em que tratamos da poética laforgueana.
© Revista Triplov . Série Gótica . Inverno 2017