AMADEU BAPTISTA
Cu+Sn (Cobre +Estanho) Bronze
Por Margarida Santos
Estamos aqui reunidos num propósito claro: apresentar um livro. Decerto não conseguirei dar o fulgor que o convite do poeta AB requer, porque dificilmente saberei falar desta poesia, que aconteceu em 2015, após duas visitas do poeta a uma exposição minha denominada «Eu amo Tu» e ao meu atelier, onde se encontravam e encontram expostas obras em bronze.
Dito isto, a primeira palavra que pronuncio é dirigida ao poeta, a palavra GRATIDÃO. Gratidão por ele me dedicar a mim e à minha obra em bronze a inteireza da sua interpretação. Obrigada pelo seu olhar perspicaz, que evocou tragédias da mitologia grega, citando a história da mais bela mulher de Esparta, Helena, unindo-a à pungente história das minhas mulheres. Obrigada pela abordagem modelar que cinge a pele e a carne humana dos corpos à carne fria do metal. Obrigada, Amadeu!
As minhas mulheres, inicialmente esculpidas em barro, quiseram-se concluídas em metal nobre para atingirem a possível imortalidade. Para isso, eu não as poderia ter produzido em qualquer outra matéria, senão o bronze. Na sua postura, nasceram de uma criatividade fundamentada no ser humano, decorreram de uma fatalidade, de uma ausência, de uma perda, foram atraídas por uma linhagem tradicional em que a harmonia e a integridade interagiram para assumirem o sofrimento da incompletude humana. Em nenhuma das obras se declara a amputação dos membros superiores, no entanto nenhuma mostra os braços ou as mãos.
Atravessando o Tempo na busca incessante da intemporalidade, as esculturas criaram raízes na tradição da escultura figurativa da Antiguidade Clássica Grega, amadureceram, passaram pela recente experiência dos escultores-pintores impressionistas como Matisse ou Giacometti, para se apresentarem numa linguagem formal única de estilo autónomo no tempo actual. Penso ter sido essa imagética que cativou o poeta e o impulsionou a que sobre elas escrevesse.
Ler este livro é entrar, com uma roupagem diferente, a da Palavra, no cenário de uma galeria de arte ou museu onde, habitualmente, se encontram obras acabadas em matérias plásticas. Ler este livro é aceder a uma visita guiada a um conjunto de bronzes, por um poeta maior da língua portuguesa, que as interpela e as interpreta. O poeta-guia, num silêncio criativo que o leitor ouve, coloca-se numa postura de contemplação, de escuta, de diálogo e de metamorfose daquilo que vê e põe, quem o acompanha/ lê, a par dessa sua fruição pessoal.
Cito (poema 19, pág. 28)
Este bronze é de carne e flutua
Sobre as sombrias vielas de Alexandria.
Se pudesse falar dir-nos-ia em grego
Musical o que o desejo é,
Como no seu interior há um coração
Que brilha e, nas noites mais quentes,
O cio se expande pelos seus membros
E desse alumbramento fica refém.
Nós olhámo-lo como se acreditássemos
Que o sopro embriagador o devolve à vida.
Paralisada figura talvez de um poeta
Que pede que escureça
E a antiga aventura recomece.
Aqui, quem lê é quem vê. A leitura transpõe o normal sentido da visão para o sentido único de quem vê com os olhos, mas sabe ver com o coração e interpretar consentaneamente com a sua cultura pessoal. O olhar do poeta foca-se na essência da obra, absorve-a, e vai construindo, figura a figura, um discurso narrativo que nunca coloca as palavras noutro patamar que não seja paralelo ao das estátuas. A escultura está exposta e, expondo-se, mostra o corpo nu da mulher na complexidade do seu todo. Numa concentração exaustiva e lírica, o poema mostra-o exaltando as mágoas e as feridas, no feminino, da existência humana.
O livro é composto por 32 poemas que, no meu entendimento, se apresentam como um poema único dedicado a cada uma das estátuas. Fá-lo num fio condutor de ritmos e sequências de versos que as identificam uma a uma, mesmo que se não saiba com precisão a qual delas se refere. Cada um dos poemas numerados dá origem ao poema seguinte e assim sucessivamente, num discorrer intuitivo, que reporta similitudes a figuras proeminentes de histórias mitológicas. O seu ritmo é aproximado ao da criação das estátuas sendo que, na criação delas, uma precede a anterior e dá continuidade à seguinte.
Ler esta poesia é estar no centro de um espelho onde se refletem personagens que se desdobram em personalidades poéticas. Há um desbobinar do tempo sobre o mesmo tema e o uso de uma única forma estilística, com recurso constante ao pronome demonstrativo «esta», responsável pela coesão da poesia. Designa «esta figura», «este bronze», «esta estátua», sem nunca referir os nomes atribuídos pela autora a cada uma delas. Trata-se de um depoimento profundo, que inculca livremente não apenas o que vê, mas o que sente, o que pensa, o que o interpela, o que o faz respirar, nas peças que o tocam, fornecendo-lhes uma identidade sensitiva. A, tanto usa a sua intuição, como o seu conhecimento e a sua compreensão da humanidade para dialogar livremente com cada estátua, como se também elas lhe murmurassem ao ouvido o enigma da sua própria existência humana, transposta no metal.
Cito (poema17, pág.26)
«Esta figura ensina-nos a escutar
A luz. Ensinar a escutar a luz
É ofício de poeta. Como pode
Uma figura de bronze ensinar
A escutar a luz? Considere-se
A luz como matriz, um início,
Até mesmo um recomeço,
Um fogo que nos faz perder o fôlego
E há-de saber-se que a luz
Que a figura que nos ensina a escutar
Nos inunda os olhos e ilumina
O coração.»
Se as peças encerram em si mesmas as emoções, o poeta verbaliza os sentimentos e as experiências delas, numa linguagem fluente, que as remete para a luz e a sombra, para a forma e a matéria, para o longo processo criativo e de fusão que as gerou, até chegarem ao público.
Quando se debruça na observação, o poeta assegura a procedência intrínseca das suas origens no mundo da antiguidade clássica grega e segue a abordagem pelo significado da imortalidade através do fogo, do metal, da transcendência, …quase sempre relacionadas com lendas em que entram deuses, heróis, músicos, poetas, e fazem a escultura transpirar assombros. É extraordinária esta poesia evocativa! Que envolve as formas em bronze indagando-as num monólogo que se transforma num diálogo de assombros… Não tendo braços, elas erguem os braços ao céu, sem se moverem voam, estando paradas têm a ubiquidade de estarem em sítios diferentes, estando quietas insistem no movimento aéreo, no seu estatismo movem-se, em silêncio cantam, sendo pesadas flutuam, sendo de bronze são humanas tal como nós…, silenciosas contam histórias e eis senão quando na boca de uma delas um herói grego conta a dramática história da sua vida. Como é luminosa e clarividente esta fruição poética!
AB revê-se num espelho que lhe devolve a sua própria cultura helenística, numa identificação límpida e serena, irmanando-se com o enigma das estátuas, o espanto delas, o movimento delas, a força delas. Bem-haja o poeta que afirma que, cito (excerto do poema 1, pág.10). «… é da arte que todos somos filhos»
Margarida Santos
Setembro 2024
Revista Triplov . Dezembro de 2024