MANUEL RODRIGUES VAZ
Completaram-se 108 anos no passado dia 31 de Janeiro que, em 1910, na Vila de Chinde, Moçambique, nascia Fernando Monteiro de Castro Soromenho, filho de pai português que foi governador de Luanda e de mãe cabo-verdiana, o qual, depois de ter passado a sua infância e juventude em Angola, se veio a tornar, durante a sua segunda estada em Portugal, um dos pioneiros da ruptura com a até aí chamada literatura colonial.
De vários modos esta síntese que carregava com ele virá a determinar a sua vida e a sua obra, à medida que foi tomando consciência da situação das gentes nos países por onde foi passando.
Tendo ido para Angola (Huambo), com menos de dois anos, por volta de 1916, quando tinha seis anos, os seus pais decidem enviá-lo a Portugal, junto com seu irmão Nuno, dois anos mais novo, para cursar o ensino primário e secundário como aluno interno num colégio localizado no Sardoal, onde viveu até aos 15 anos e concluiu o quinto ano do liceu.
Aos dezassete anos, Castro Soromenho arranjou emprego na Diamang (Companhia dos Diamantes de Angola) como angariador de mão-de-obra e, quando atingiu a maioridade, tornou-se funcionário da administração colonial. Condenado a tal futuro – como branco administrativo seria Joaquim Américo (Terra Morta) ou António Alves (Viragem), um usurpador obstinado, um falhado, um carcereiro entre degredados – começou a escrever o que ouviu ou viu nas suas deambulações, histórias e história da Terra Negra.
Ao contrário do que acontecia com a maior parte dos colonos, Castro Soromenho lia, estudava. As suas raízes não estavam no passado, mas na meta que procurava alcançar. Saiu de Angola ao fim de dez anos de permanência consecutiva e nunca mais voltou. Ao chegar a Lisboa em 1937, Castro Soromenho já tinha feito jornalismo em Luanda e publicado o seu opúsculo de lendas africanas, Nhári, o drama da gente negra e Rajada e Outras Histórias. Posteriormente, torna-se redactor do jornal Diário de Luanda. Na capital portuguesa começa logo a colaborar em diversos jornais nomeadamente noa semanários Humanidade, Seara Nova, O Diabo e Dom Casmurro, e nos jornais diários Diário Popular, A Noite, Jornal da Tarde, O Século e O Primeiro de Janeiro.
Nos círculos jornalísticos e literários da capital portuguesa encontrou um grupo de companheiros, quase todos mais velhos e desenraizados, agrupados em torno de um ideário anarco-sindicalista, onde pontificavam Ferreira de Castro, cujo livro A Selva viria a tornar-se um marco da literatura portuguesa, o santomense Mário Domingues, o mais prolífico dos escritores portugueses cuja obra precisa urgentemente de ser estudada e divulgada, e Julião Quintinha, que publicou África Misteriosa e foi autor de uma biografia de Mouzinho de Albuquerque.
Em 1949, casou-se com Mercedes de la Cuesta, na Argentina. Em virtude de fazer críticas ao regime salazarista, foi obrigado a ir para o exílio, em França, em 1960. Mais tarde foi para os Estados Unidos da América, onde foi professor na Universidade do Wisconsin e ministrou o curso de literatura portuguesa. Regressou a França em Agosto de 1961 e colaborou com as revistas Présence Africaine e Révolution. Em Dezembro de 1965, foi viver para o Brasil, em São Paulo, em cuja Universidade foi professor e ajudou a fundar o Centro de Estudos Africanos, tendo falecido nesta cidade brasileira, em 18 de Junho de 1968.
Tendo-se extasiado perante as tradições de sociedades que lhe pareciam estar ameaçadas pela cultura ocidental e perante a sabedoria dos povos dessas sociedades, como os «lundas, esses poetas da planície», Castro Soromenho ousou ainda levantar uma voz dissonante da voz do regime. Pagou essa sua opção consciente e sentida de homenagem aos povos negros de África com o silêncio oficial sobre a sua obra, com a proibição ou censura da maioria dos seus trabalhos, nomeadamente Terra Morta, o primeiro volume da trilogia Camaxilo.
Jornalista, ficcionista e etnólogo, é considerado um escritor do movimento neo-realista português, mas pelos temas escolhidos e pela narrativa, distancia-se muito, foi onde ninguém mais chegou em Portugal, pelo que é e deve ser considerado igualmente, um romancista da literatura angolana.
Alguns dos novos “jovens turcos” da intelectualidade angolana não lhe perdoam o seu começo de vida como angariador de mão-de-obra. Recusam integrá-lo como escritor angolano ou africano, esquecendo-se da totalidade da sua obra, que foi efectivamente dedicada à causa angolana, exactamente porque viu e viveu directamente a opressão e a injustiça. Nada mais injusto, portanto, continuar a pôr-lhe reticências.
Mesmo um ensaísta equilibrado como José Carlos Venâncio, na sua Uma perspectiva etnológica da Literatura Angolana (Ulmeiro, Lisboa, 1992), considera que embora através da personagem Joaquim Américo, de Terra Morta, o autor faz a denúncia do colonialismo, no entanto «nunca se identificando (“por dentro”) com a angolanidade, o que leva a perguntar se, de facto, Castro Soromenho se sentiu um escritor angolano».
Testemunhos directos de quem com ele conviveu directamente dão conta, porém, da mágoa de não ser considerado isso mesmo, sentindo-se muito por ter sido ostracizado.
O cineasta angolano António Faria, autor de uma curiosa Introdução ao Cinema Angolano, e que com Castro Soromenho privou vários anos, afirma num recente artigo publicado na revista luso-francesa Latitudes, que «A enfadonha ostentação em torno da “negritude” não impediu totalmente que a obra do escritor branco fosse apresentada. O gelo anti-racista derreteu com a tradução de Terra Morta (Camaxilo, na edição de Présence Africaine, com prefácio de Roger Bastide), mas foi marcante a “decepção” pela brancura epidérmica do seu autor. E foi nessas circunstâncias que Castro Soromenho participou no 1º Congresso Internacional dos Escritores e Artistas Negros, organizado em Paris, em 1956, pela revista Présence Africaine. Castro Soromenho compreendeu as razões dos outros e superou essas e outras decepções, terá visto nisso a reacção natural da afirmação de culturas nacionalistas, de auto-estima e amor-próprio.»
A situação repetiu-se em 1962, numa outra manifestação cultural do mundo africano, ao qual o romancista aderiu, o Congresso dos Escritores Afro-Asiáticos, que se realizou no Cairo, na África onde nasceu a civilização branca. Ele foi, segundo o escritor angolano Manuel Lima, “imperdoavelmente, o grande esquecido”. Voltando a António Faria: «Castro Soromenho não deixou de considerar também o que lhe fizeram então como uma injustiça e o quanto isso o magoou. Mas a sua obra literária, com uma exactidão surpreendente, estava feita e publicada. Só a exactidão, na arte, na literatura, na ciência, na política, no pensar, é revolucionária. Ele tinha chegado lá antes de ter atingido os cinquenta anos.»
Mário Pinto de Andrade considera, no intróito duma entrevista que lhe fez em 1954, que: «Castro Soromenho é um escritor experimentado na literatura de ambiente africano, em terras da Lunda e Quiocos. Inteiramente alheio – acrescenta – a toda literatura de exaltação incondicional das lendárias figuras de “colonos”, pode-se afirmar sem margem de erro que é o primeiro europeu a iniciar com Terra Morta o romance não-colonial mas africano “tout- court”.»
E o conhecido professor brasileiro Fernando Mourão, profundo conhecedor da sua obra, vai mesmo ao ponto de afirmar: «Castro Soromenho recria esteticamente (no romance Terra morta), afastando-se do chamado romance de tese, não só a África especificamente negra, como, na segunda parte, o processo de ruptura, de uma dupla ruptura, num primeiro momento dando lugar a um sincretismo e, num segundo momento, já em nosso século, à imposição forçada da cultura do colonizador, momento de nova transição em que, se os interesses do colonizado não coincidem com os do colonizador, os deste também não coincidem com os da Nação Colonizadora, representada pelo administrador na obra do escritor. Obra localizada no espaço e no tempo, sem pretender generalizar, o que, aliás, é um de seus aspectos fundamentais.»
O crítico norte-americano Russel Hamilton reconhece, por sua vez, que «É verdade que Soromenho não abandonou por completo certas perspectivas etnocêntricas; mas em compensação, nos romances da sua segunda fase ele demonstra honestidade e coragem ao revelar-se, abertamente, anticolonialista (…) Soromenho revela a sua consciencialização política no seu tratamento das relações entre colonizados e colonizadores». A respeito desta segunda fase da sua produção literária, diria o romancista em entrevista concedida em 1960 ao jornal Cultura, então editado em Luanda: «Desde que nos meu romances surgiram novas realidades sociais e se me apresentaram as suas contradições, logo se impôs, naturalmente, uma nova técnica e um novo estilo literário. O neo-realismo teria de ser o novo caminho.»
O professor Manuel Ferreira, também ele escritor e especialista em literaturas africanas de expressão portuguesa, é, entretanto, peremptório: «A uma primeira fase em que é dado o sentido do social, lendário e histórico, das comunidades tribalizadas, encaradas ainda de um ponto de vista estático, ou seja, dentro da produção do realismo mágico, sucede-se uma segunda fase, orientada para a representação de espaços e grupos humanos confrontados com condições de vida modificadas pela presença do europeu. (…) As narrativas de Castro Soromenho provocaram uma virada de cento e oitenta graus no romance africano de expressão portuguesa. (…) Outros se lhe vêm associar mas poucos atingiram o nível por ele alcançado internacionalmente através de traduções em várias línguas e alguns estudos que foram dedicados à sua obra e personalidade, havendo ainda a realçar a sua literatura de viagens».
Realmente ele foi um dos maiores prosadores da literatura do espaço que chamamos lusófono, tendo-nos legado uma obra sui generis, porque centrada quase exclusivamente nas temáticas e nas narrativas perspectivadas segundo as tradições e a cultura dos povos nativos de África. Mesmo ainda como funcionário da administração colonial traça-nos um cenário perspectivado nas tradições dos povos nativos do interior de Angola, numa visão desapaixonada e apaixonada ao mesmo tempo, em que faz a denúncia do perigo de tradições, culturas e hábitos estarem ameaçados perante o incremento do colonialismo.
Como ele próprio diria numa entrevista: «No primeiro ciclo procurei revelar os padrões de cultura do negro tribal. Desde os primeiros contos até à Calenga que venho trazendo a humanidade africana e não elementos decorativos de paisagem, à literatura portuguesa. (…) Ao iniciar com Terra morta um novo processo, um novo ciclo, tentei precisar o choque de duas civilizações e o seu resultado por via da destribalização, com todas as consequências a favor da política colonial. (…) O resultado deste choque foi o aparecimento do negro desenraizado da vida tribal e não integrado na civilização europeia e o do mestiço nos seus primeiros passos de homem marginal. Ao redor deles, o povo sertanejo apegado aos seus padrões culturais, resistindo às pressões estrangeiras”.
A trilogia Camaxilo, que Roger Bastide promoverá exemplarmente para francês, traduz já uma segunda fase da produção literária de Soromenho, em que descreve uma situação marcada por povos confrontados com mudanças profundas nas suas vidas, muitas vezes através da violência, consequência da imposição de um regime colonialista no qual se assiste a um sempre doloroso choque de civilizações.
Como dirá o ensaísta Mário Pinto de Andrade, que foi um dos principais dirigentes nacionalistas angolanos, «Castro Soromenho lembra-me, pelo palco dos seus romances, o sertão, um outro nome grande da lusofonia, um dos maiores escritores brasileiros de sempre, pela criatividade na invenção da linguagem, que tão bem “cantou” o sertão brasileiro. Um escritor que, curiosamente, surpreendentemente, infelizmente, inacreditavelmente, inadmissivelmente, não está publicado em Portugal. Refiro-me ao genial João Guimarães Rosa.»
Sobre a posição de Castro Soromenho em relação a Angola, as declarações de Paulo Teixeira Jorge são esclarecedoras: «embora o escritor não fosse propriamente um militante, ele próprio também nas conversas ia fazendo sugestões para realmente projectar ainda mais a imagem do MPLA. Inclusivamente, na documentação que se recebia, ele também, às vezes, trabalhava conosco a elaborar este ou aquele documento, comunicado, etc, para chamar a atenção para o apoio ao MPLA. (…) Com Marcelino dos Santos e Mário de Andrade ele participou muitas vezes na divulgação de escritores ou obras de autores africanos para a editora Présence Africaine. Muitas vezes nesses encontros abordavam-se temas de poesia, literatura, porque Soromenho estava preocupado com a divulgação das obras dos dirigentes do MPLA, que eram escritores». No mesmo sentido, afirma Costa Andrade «Castro Soromenho, com Mário de Andrade, catapultam a literatura angolana, a própria e a dos nomes grandes da Mensagem, com destaque para o prisioneiro de S. Antão, Poeta Agostinho Neto, a dos jovens então da Cultura, para as páginas e os livros de várias línguas, significando a primeira mensagem revolucionária e literária do povo angolano levada às suas audiências.»
Escritor angolano, que tem de ser também considerado como escritor moçambicano, porque, além da sua condição de africano, afinal foi em Moçambique que viu a luz, Castro Soromenho é bem um caso emblemático do intelectual português que quer ultrapassar o seu meio e ir mais além. Pelo que não é de estranhar que o centenário do seu nascimento que em 2010 devia ter sido comemorado condignamente se tenha caracterizado pelo esquecimento e abandono. Ele merecia indiscutivelmente mais, muito mais.
RODRIGUES VAZ
Comunicação lida no Restaurante O Pote, em Lisboa, no habitual almoço das quartas-feiras, da Tertúlia À Margem, no dia 17 de Outubro de 2018
BIBLIOGRAFIA
Lendas negras (contos) (1936)
Nhari: o drama da gente negra (contos e novelas) (1938)
Imagens da cidade de S. Paulo de Luanda (1939)
Noite de angústia (romance) (1939)
Homens sem caminho (romance) (1941)
Sertanejos de Angola (história) (1943)
A aventura e a morte no sertão: Silva Pôrto e a viagem de Angola a Moçambique (história) (1943)
Rajada e outras histórias (contos) (1943)
A expedição ao país do oiro branco (história) (1944)
Mistérios da terra (etnografia) (1944)
Calenga (contos) (1945)
A maravilhosa viagem dos exploradores portugueses (etnografia) (1946)
Terra morta (romance) (1949)
Samba (conto) (1956)
A voz da estepe (conto) (1956)
Viragem (romance) (1957)
Histórias da terra negra (contos, novelas e uma narrativa) (1960)
Portrait: Jinga, reine de Ngola et de Matamba (1962)
A chaga (romance) (1970)
©revista triplov . série gótica . inverno 2018