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MARCIA KUPSTAS
Sempre gostei de contos de fadas. Na infância, nunca perdia a chance de ouvi-los, pra sonhar com as histórias de princesas encantadas, gnomos, bruxas e… castelos.
Castelos! Na minha imaginação, eram tão lendários como as personagens que nele habitavam. Esta suposição permaneceu, de alguma forma nebulosa, em meu referencial adulto. Foi só quando visitei a Europa e vi castelos de perto que os entendi grandiosos, é claro, mas prosaicos. Construções inseridas na paisagem, às vezes reais, mas certamente realistas.
Estive em Portugal por seis meses e visitei o castelo de São Jorge, de Óbidos, de Almourol… eram imponentes, históricos, peças-chave no sistema feudal e, na atualidade, pontos de atração turística. Se vê-los de perto de certa forma os “desencantou” da minha imaginação, percebi que nada perderam de sua magia para os milhares de turistas do mundo todo, que os visitam. Para a população local, o seu castelo é motivo de orgulho histórico, tal como sua fonte de renda.
Conversava sobre isto com uma amiga portuguesa e comparei os castelos portugueses com as atrações turísticas do Brasil. Numa atitude maria-vai-com-as-outras repeti o bordão generalizado:
_ No Brasil a gente só tem praia. Tirando os recursos naturais, tem pouca coisa construída pelo homem que vire uma grande atração turística.
A amiga discordou:
_ Se o Brasil não tem castelo, tem uma arqueologia indígena incrível, dos povos nativos. Tudo pra incentivar o turismo mundial.
Epa. Aí confesso minha ignorância. Quando a amiga insistiu em afirmar sobre as “fascinantes descobertas que estão surgindo na Amazônia nos últimos anos”, resolvi, ao retornar ao Brasil, pesquisar o assunto.
E descobri, maravilhada, meus novos “castelos no ar”.
Na Internet, li uma reportagem com o sugestivo título: “As linhas de Nazca da Amazônia”. Referiam-se aos geoglifos, espalhados em extensíssima região, entre os Estados do Acre e Amazonas.
Fui pesquisar mais. Refresquei minha memória sobre as linhas de Nazca do Peru, que são desenhos imensos, feitos no chão, conhecidos desde os anos 1930, quando aviões começaram a sobrevoar o deserto de Nazca. São os mais famosos geoglifos do mundo. (Geoglifo é o nome que se dá a este tipo de desenho, com formato variado, geométrico, figuras de animais ou objetos, cujo tamanho monumental só é plenamente compreendido se visto do céu). As nossas linhas foram descobertas bem mais recentemente e não são figurativas, mas geométricas. Porém se revestem do mesmo mistério que as peruanas.
A partir de 2005, conforme agricultores desmatavam trechos da floresta amazônica na região sul do Acre, descobriam mais e mais linhas semelhantes às de Nazca. Hoje há mais de 500 sítios identificados com estes desenhos quadrados ou redondos, visíveis a longas distâncias; é preciso estar a mais de 80 metros de altura para se ver completamente um geoglifo. Foram construídos entre 3000 a 1000 anos atrás, segundo os cientistas que atuam no local. Mas por quem? Não se sabe. Por quê? Também não.
O que os cientistas descobrem a cada dia é que não dá para ficar na repetição de que a Amazônia foi e é um “deserto de gente”. Se a ocupação humana da região amazônica, em nossos dias, é rarefeita, nem sempre foi assim. Uma varredura de satélite sobre a Amazônia constatou vestígios de construção sob a densa mata tropical. Os primeiros resultados apontaram para centenas de construções em áreas cuja população poderia superar dois milhões de habitantes! Talvez o clima fosse mais ameno ou os rios menos caudalosos, mas certamente havia bem mais gente morando ali, há dois ou três milênios. Gente que tinha saber e recursos para enterrar os mortos em urnas elaboradas e construir incríveis obras de engenharia como os geoglifos.
Estes são os meus castelos? Gosto de imaginar que sim, que ainda estamos engatinhando na arqueologia destes lugares. Quem sabe o que nos espera nos próximos séculos? Uma ou várias “cidades perdidas da Amazônia”? Por que não?
O que se sabe é que pouco se sabe sobre o nosso passado. Há quem acredite piamente no Gênesis bíblico e date o “Deus criou o Céu e a Terra” como ocorrido há seis mil anos apenas. Com as teorias evolucionistas e estudos mais profundos do Universo, os cientistas chegaram a outra data, seis bilhões de anos de expansão do Universo. Os arqueólogos supunham que o homem teria vindo para as Américas pelo Estreito de Bering há apenas 12.000 anos. Novas descobertas de fósseis e novas teorias remontam a mais tempo no passado. Então, como ficamos?
Ficamos com a imaginação, mais do que a suposição. Gosto de fantasiar que, daqui a, digamos, duzentos anos, um cronista comece seu texto com algo como “quando era criança, ouvia histórias sobre as cidades perdidas da Amazônia e achava que tudo era lenda. Agora, que visito as ruínas próximas de Rio Branco (ou Macapá, ou Manaus ou Porto Velho) vejo estas pedras antigas que me confirmam a verdade em vez das lendas ”.
Por que não?
Bem, Estela, até aqui é mais ou menos a crônica que escrevi para um livro que talvez nem seja publicado… mas divido este texto contigo e vou além! Vou te contar deste novo projeto: depois de crônica escrita e imaginação estimulada, eu me perguntei “por que não?”. “Por que não, Dona Marcia, você não vai até o Acre e vê isto com os próprios olhos?”
Fui. Dei-me de presente de aniversário, em setembro, na companhia de minha filha Carla, uma viagem de balão sobre os geoglifos do Acre. Há uma empresa, EME AMAZÔNIA, que realiza os voos de ar quente em região próxima a Rio Branco. O sr. Cassiano Marques de Oliveira, licenciado para este trabalho, conduziu o balão e me afirmou que “voaríamos sobre geoglifos”. Para minha decepção, o ar nos levou pra outro lado e só vimos pastos e um tantinho de floresta… Os voos de ar quente são temperamentais! Desta vez, nada de geoglifos.
Mas, como não acredito em casualidade mas naquilo que Karl Jung chamava de “sincronicidades”, o que era pra ser ruim ficou bom. O sr. Cassiano nos levou, de carro, pra ver geoglifos. São realmente fascinantes e misteriosos… Um exemplo: são sulcos imensos, alguns ultrapassam 400 metros, formando linhas precisas – quadrados, círculos – e NÃO ENCHEM DE ÁGUA!!!! Numa região em que chove torrencialmente por 6 meses, aquilo permanece seco, há mil ou mais anos! Por quê? Como? Quem teria tecnologia de criar algo assim, se os atuais povos nativos desconhecem estas obras e mesmo nossa tecnologia atual teria dificuldade em construir algo parecido?
A ideia de um livro começou a me rondar, feito discos-voadores que circulassem a cabeça de um ufólogo. Por que não inventar uma tia ufologista, que viaja à Amazônia, explicando toda esta tecnologia perdida como confirmação da visita de seres extraterrestres na Antiguidade? Leva com ela uma sobrinha, cética, que descobre fascinada as pesquisas dos arqueólogos e até pode se identificar com uma futura profissão e…
Diante deste esboço de projeto, consegui com o sr. Cassiano o contato com uma professora da UFAC (Universidade Federal do Acre) e fomos falar com ela. Afinal, Raquel Frota já participara de expedições em geoglifos, no Brasil e Peru. Ela nos recebeu, adorou a ideia do projeto e – olha aí de novo as sincronicidades junguianas – disse que eu deveria procurar o “maior entendido em Arqueologia da Amazônia”, que Eduardo Goes Neves morava em S. Paulo, lecionava na USP e, desculpando-se por não ter me pedido licença, já havia falado com ele a meu respeito e mostrou sua resposta em WhatsUpp. O que o professor respondeu? “Conheço sim a escritora Marcia Kupstas. Tem muitos livros para jovens e foi minha professora no Colégio Bandeirantes na década de 1980”.
Ah, era pra acontecer! E de tal modo que, em janeiro de 2019 (agora, dia 26), estaremos com a equipe do prof. Eduardo num sítio arqueológico próximo a Porto Velho, em Rondônia, quando irão escavar uma urna (talvez funerária) de 1200 anos! E em fins de maio há o projeto de ir, com minha filha e a prof. Raquel Frota, investigar a relação entre as “linhas de Nazca” da Amazônia brasileira e peruana, seguindo por terra de Rio Branco até Cusco; a ideia é visitar sítios de arqueólogos peruanos em geoglifos semelhantes. Tudo isto já foi discutido com as editoras da FTD EDUCAÇÃO, empresa que até aceitou me dar um pequeno adiantamento, como auxílio a minhas pesquisas, além do compromisso de uma futura edição da obra que resultará desta investida.
Então, amiga Estela, é isto. Da nossa conversa em Portugal, do seu “puxão de orelha” tão bem vindo em minha ignorância sobre a arqueologia brasileira, ao voo de balão e ao contato com pessoas tão interessantes, estou não só diante do embrião de um novo livro como às portas de uma grande aventura. Aos 61 anos de idade, com joelhos estourados e hipertensão. Mas otimista. Comprei bengala de escalada. Vou acompanhada de gente jovem e decidida. Estou igual criança diante de caixa de bombom, regalando-me com a doçura de leituras novas e desafios fascinantes. A vida é bela!
Não é mesmo?
Beijos da amiga Marcia Kupstas
EXPEDIÇÃO AO ACRE
Voo de balão – Acre – preparativos
Voo de balão – Acre – preparativos
Marcia e voo de balão – Acre- setembro 2019
Voo de balão – vista de um lago – set. 2019
A construção dos geoglifos data de dois mil anos
Dentro do balão ao ser enchido
Carla anda pelo geoglifo – Acre – setembro- 2019
Carla e o geoglifo – Acre – setembro 2019
REVISTA TRIPLOV . SÉRIE GÓTICA . PRIMAVERA 2019