MANUEL A. SOUSA
Tributo
a quietude é um calvário
é a cinza feita carne (ou vice versa). foi o que me disseram
eu, porém, só disse: – permite-me que te engula num trago…!
queria desfazer-te em mim. queria apenas que fosses um eu mais. um eu mais… dentro de mim
mas – há sempre um mas nestas cousas – o som do alaúde das inundações chegou envolto em sedas e salivas
ψ
– dói-me a vida por cima dos terraços de outono e por entre noites de luas minguantes…
foi o que disseste e, porque o disseste, demos início ao rito
os lençóis esvoaçaram no trigal e a nossa ingenuidade morreu ao ser beijada
a nossa carne afirmou-se
a nossa carne foi…
foi esse dia
depois…
tudo se alterou quando ouvi o teu riso
ψ
esta história está repleta de capítulos. capítulos que se navegam como pautas. capítulos que mergulham profundamente nos sonetos mais sórdidos. capítulos que se aventuram nas nossas memórias africanas. capítulos…
perfeitos
os capítulos desta história não se misturam com as nossas vidas
as particulares
e eu…
nunca disse nada. nunca quis dizer nada. mas disse
disse: – renasci da lucidez dos poetas de bordel!…
escuta-me!… não faço parte das novelas e relatos que consomes nas tuas viagens com escala em supermercados. não passo dum pequeno e insignificante projecto. um perverso projecto. sabes? deixei, há muito, cair a máscara das certezas ao chão. quero é divertir-me
apenas e só isso…
– o senhor é um fabulador…!
disse-me então o vendedor de jornais
e eu… corrigi: – não. sou uma puta que se maldiz frente ao espelho…
frente ao espelho somos invadidos pela lucidez
frente ao espelho somos até o nosso próprio orgasmo
e jamais nos renunciaremos
frente aos espelhos somos sempre perfeitos. somos a nossa própria obsessão
ψ
com o amor dos hipermercados na memória…
a psicose (nessa época) estava na pátria, no sagrado, nos incêndios, nos divórcios e na igreja
eu, saudava cristo e o rosto dele sorria quando virado para as estrelas – ninguém me sussurrou outras esperanças…
com efeito, tudo avança como sombras
no início começámos a beber. mas apenas como um rito de passagem. pois. tudo depende dos sabores. do sabor certo. quer dizer…
sabor a sinos que repicam vezes sem conta. uma porção de vezes…
quantas?
sei lá. não as contei. nem me decido a contá-las
sei apenas do maço de “gitanes” donde, de quando em vez, saco um cigarro. acendo-o, aspiro e tusso…
tusso sempre
os cigarros franceses são como pêndulos dentro de mim…
olham-me e perguntam-me como consigo fumá-los
mas gosto!…
mas fumo!
acho que consigo fumar tudo. qualquer coisa com gosto, qualquer coisa que possa identificar as badaladas que soam e assinalam as horas que passam e que trespassam as minhas noites
as contas é que são pesadas. mas…
continuo a viver e, porque continuo, acabo por descobrir no meio da poeira dos móveis pessoas normais
e isso é muito importante
é bom saber que entre a poeira que nos cerca pode existir gente…
até gente normal
in: “Cantos do corvo negro” – edição de “bicicleta” (Cascais)
MANUEL A. SOUSA
Cantos do corvo negro
Edição de “bicicleta” (Cascais)