TRIBUTO A ANA HADDAD
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Programa de Estudos Pós-Graduados em História da Ciência (Instituição-sede da última proposta de pesquisa) . Brasil
Admirar, nos dizem os dicionários, (local em que as palavras estão imobilizadas e ávidas para um possível movimento), é encantar-se. Admirar é contemplar algo com arrebatamento. Em qualquer ato de admiração a humildade está presente. Ou seja, o reconhecimento do sublime, ou belo, ou imponderável, que nos ultrapassa e está diante de nossos sentidos. Nas palavras de Spinoza: “A admiração é a imaginação de alguma coisa à qual a mente se mantém fixada porque essa imaginação singular não tem qualquer conexão com as demais (…) Considerada em si mesma, a imaginação de uma coisa nova é, portanto, da mesma natureza que as outras e, por este motivo, não coloco a admiração na lista dos afetos, nem vejo razão para fazê-lo, pois esta distração da mente não provém de qualquer causa positiva que a distrairia das outras coisas, mas apenas porque falta uma causa que a determine a passar da consideração de uma coisa ao pensamento de outras” [1].
A capacidade de admirar é para poucos. Porque admirar algo é despojar-se de si e admitir, para nós mesmos e para o mundo, que existem coisas muito além do que poderíamos imaginar. Estamos falando de uma admiração cujo recorte de visualização enxerga aquilo que até então não tínhamos imaginado. Muito diferente do “admiro-me”. Em outras palavras: admirar a si mesmo. Narciso. Infelizmente jamais faltou e nem faltará para a alegria daqueles que não conseguem ir além de si mesmos. Afinal…não custa lembrar com Pessoa, entre outros, quando afirma que somos apenas o que nos supusemos. Grande verdade. Lembremos de Deluze quando declara que o homem sublime e superior consegue vencer os monstros , sabe expor os enigmas. No entanto, ignora o enigma e monstro que ele mesmo é. E pondera: tais homens, os sublimes, não carregam, como um fardo, o peso dos valores superiores. Criam valores novos que dão leveza à vida e a tornam afirmativa no que ela tem de melhor.
Nessa medida, Baudelaire é exemplar. O grande poeta francês exerceu a capacidade da admiração praticamente em toda a sua vida. Com isso, se o lermos pelo conjunto de obras, veremos que existe uma estética da admiração em seus ensaios, poesia e tudo o mais que legou para a humanidade. Mas não podemos deixar de admirar, nós mesmos, o trecho de uma famosa carta que ele enviou a Wagner, no dia 17 de fevereiro de 1860, após ter assistido três concertos do compositor no Théâtre des Italiens: “A primeira vez em que fui nos Italiens para ouvir suas obras, eu confesso que estava meio indisposto e até, confesso, cheio de preconceitos; mas posso ser desculpado; fui com tanta frequência enganado; ouvi tanta música de charlatões pretensiosos. Pelo senhor, fui imediatamente vencido. O que experimentei é indescritível, e se o senhor tiver a bondade de não rir, tentarei traduzi-lo. Inicialmente pareceu-me que conhecia essa música e mais tarde, refletindo, compreendi de onde vinha essa miragem; parecia-me que essa música era a minha, e eu a reconhecia como todo homem reconhece as coisas que está destinado a amar” [2].
Como não admirar o fragmento da carta de Baudelaire? Um primor de reconhecimento tão universal que seria facilmente extensível a outras dimensões que envolvem a admiração. Baudelaire jamais se cansou, em seus belos ensaios, de destacar aqueles que realmente eram dignos de uma contemplação e leitura em todos sentidos. Aqui vai mais um exemplo belíssimo: “Torturo o meu espírito para lhe arrancar uma fórmula que exprima bem a especialidade de Eugène Delacroix. Excelente desenhador, prodigioso colorista, compositor ardente e fecundo, tudo isso é evidente, tudo isso já foi dito. Mas a que se deve a sensação de novidade que provoca? Que nos dá ele a mais que o passado? Tão grande como os grandes, tão hábil como os hábeis, porque é que nos agrada mais? (…) Numa palavra, Eugène Delacroix pinta sobretudo a alma nas suas melhores horas” [3].
Admirar significa exercitar os nossos sentidos. Mas, ao mesmo tempo, medir, o quanto somos capazes de olhar para o outro. (Para os encontros que a vida nos oferece e, muitas vezes, ignorados). Baudelaire não foi e não será o único a ter tal capacidade. De ver e nos mostrar aquilo que passa ao largo da maioria por uma subtração, intencional ou não, de olhares cuja superficialidade não permite a percepção do que deveria ser digno de exaltação.
Se fizermos um breve passeio pelos textos das mais variadas tipologias veremos, com felicidade, que os grandes escritores que, de fato, permanecem, sempre tiveram um olhar capturador. Ouçamos Marco Lucchesi: “O que mais amo em Platão? A dinâmica pura, a diuturna correção de rumos, o desafio da ‘segunda navegação’. Mas se precisasse salvar um só elemento, uma ária de ópera, escolheria o lugar do número irracional. A grande aporia transformada numa chave de profunda integração” [4]. Ou nas palavras de Sartre: “O mundo de Dos Passos é impossível – como o de Faulkner, o de Kafka, o de Stendhal – porque é contraditório. Mas é por isso mesmo que é belo: a beleza é uma contradição velada ” [5].
A admiração é um exercício estético que enobrece a nossa percepção porque dignifica, mais ainda, o belo e o estende para a humanidade.
[1] Spinoza, Benedictus de. Ética. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013. p. 241.
[2] Lacoue-Labarthe, Philippe. Musica Ficta (figuras de Wagner). Tradução de Eduardo Jorge de Oliveira e Marcelo Jacques de Moraes. Belo Horizonte (MG): Relicário Edições, 2016. p. 47.
[3] Baudelaire, Charles. A invenção da Modernidade: (Sobre Arte, Literatura e Música). Tradução de Pedro Tamen. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2006. p.173.
[4] Lucchesi, Marco. Vestígios: Diário Filosófico. Belo Horizonte: Tesseractum, 2021.p. 58.
[5] Sartre, Jean-Paul. Situações I. Tradução de Cristina Prado. São Paulo: Cosac Naify, 2005. p.45.