As paisagens-cheiro são indescritíveis

MANUEL A. SOUSA
Tributo


Maria Estela Guedes – Lembra-se dos seus primeiros trabalhos? Que idade tinha na altura e onde vivia?

Manuel A. Sousa – Lembro. Perfeitamente… coisas a carvão, colagens, pinturas muito fraquinhas.

Mas sim.

Fazia e divertia-me com a “coisa” — teria entre os 18 e 19 anos de idade.

MEG – Que artistas e escritores funcionam para si como referência? E como companheiros de estrada?

MAS – As referências são inúmeras. Em Cascais havia um grupo de pintores (todos bem mais velhos que eu) que organizavam exposições em espaços fechados e no verão nos parques municipais.

Lembro-me da acção mais marcante (no jardim junto ao velho cinema S. José) que contou com a presença do mestre Almada Negreiros (morador, na altura, no concelho).

Mas o artista que mais me marcou, talvez pela sua irreverência e ter vivido perto de minha casa, foi o Victor Belém.

Também; Mário Cesariny de Vasconcelos, Artur Cruzeiro Seixas (que apoiou o espectáculo “AUGA” com base na poesia de Pedro Oom – primeiro espectáculo da associação “Mandrágora”) e alguns grupos de teatro com destaque para a “Comuna” que surge com uma proposta ousada para a época.

Ainda na área do teatro destaco os escritos de Antonin Artaud, os “Living Theater”, que vi actuar em Lisboa e também (um pouco mais tarde) Tadeusz Kantor.

“Companheiro de Estrada” foi sem dúvida o Victor Belém.

MEGUtopikus Circus, Confraria da AlfarrobaBicicleta e outros, que espero acrescente, são nomes de quê, Manuel?

MAS – São meros projectos que marcam “tempos”. Tão só isso. Coisas efémeras…

“Bicicleta” foi uma revista que se finou há três anos — as edições de pequenos opúsculos (com o mesmo nome) prosseguem até ver.

Este mês editámos “Teatro Breve” de Federico Garcia Lorca e estão em processo coisas de Rimbaud e Apollinaire.

De facto não sei se estão em processo ou no “congelador”, uma vez que esta “coisa” (vírus) parece estar para durar…

E o mesmo está a acontecer com a nova revista — edição de “Mandrágora” — de nome “Crocodarium” que gostaríamos fosse para a gráfica este ano — editámos quatro números e o quinto estava agendado para Novembro. Não vai acontecer. Não é oportuno.

“Utopikus Circus” foi o nome de uma sequência de “performances” condimentadas por artes circenses… coisa dos anos 90 do século passado.

“Confraria da Alfarroba” terá sido um espaço de acções poéticas (no Algarve) que durou pouco tempo. Ainda assim o suficiente para dar corpo a dois eventos, do qual se destaca o “II Encontro de Arte Contemporânea Algarve-Andaluzia” em Tavira (produção da Associação de Artistas Plásticos do Algarve – 2011).

MEG – O Manuel sonha, tem uma utopia. Podemos saber qual é ela?

MAS – Os humanos, todos, sonham… acho que somos ou podemos ser (todos) “domadores de sonhos”…

Uns conseguem domá-los, outros ficam por aí (em banho maria).

Até ver…

“Utopia”?… talvez sim, tivesse a minha, que carregasse “às costas” muitas ideias ditas utópicas. Hoje a coisa diluiu-se. Já não sonho tanto. Prefiro preencher os sonhos com coisas divertidas.

Fazer coisas divertidas.

Coisas que me dêem prazer.

Se são utópicas, sei pouco.

Se são sonhos, muito menos…

Mas acho que não são nem uma coisa nem outra, uma vez que se concretizam (bem ou mal vão-se concretizando) e isso é importante.

O mais importante.

MEG – O Manuel organiza periodicamente exposições de mail art. Que repercussão tem o facto para si e para os artistas? O que o move?

MAS – Há muito que deixei de o fazer, “passei a pasta”, como sói dizer-se.

A primeira exposição de “mail art” que fiz foi em Algés (Palácio Anjos) “I Exposição de Arte Postal”, depois foi a aventura “Anti-herói, maldito, marginal etc & tal” com o Victor Belém em Cascais e a última em Vila Real de St. António.

Após isso, participo pontualmente em eventos para os quais me convidam — não de forma regular.

MEG – E o teatro? Que importância tem ele tido para si e que momentos mais significativos recordaria? Escreve para teatro, encena, é ator, cenógrafo?

MAS – A minha formação é teatral. Completei o Curso de Formação de Actores da Escola Superior de Teatro e Cinema (do antigo Conservatório Nacional – Bairro Alto – Lisboa, Palácio de Garrett) em 1978 e, mais tarde, Estudos de Teatro da Universidade de Lisboa (F. Letras).

Fui actor, encenei e gosto da “aventura cenográfica” e muito do trabalho de iluminação cénica. Nesta última (iluminação) é que há uma certa “utopia”… gostaria saber mais sobre o assunto, para projectar uma outra forma de iluminação. Coisa mais experimental, mais próxima daquilo a que alguns chamam “espiritual”…

Em termos de escrita é coisa tardia. Só nos anos 80 resolvi escrever uma peça para dois actores. De facto, nunca me interessou muito a coisa escrita, de escrever (para lá de cartas para amigos distantes).

Há poucas peças interessantes para gente jovem — na altura estava como professor de expressão dramática num liceu lisboeta onde mais tarde programei, com colegas, o “Curso Profissional de Teatro” — nível ensino secundário.

Gostava de experimentar a montagem de um espectáculo inédito com dois alunos para levar a um encontro de teatro no Alentejo. Escrevi uma peça pela primeira vez e… resultou (acho eu).

Foi reposta no início deste ano com os mesmos intervenientes mas tivemos de parar. Surgiu o vírus, o fecho dos espaços e as máscaras obrigatórias…

O mesmo aconteceu com um espectáculo que estava a montar na “outra banda” (Moita). Cenário e guarda-roupa resolvidos, no entanto, ensaios suspensos.

MEG – Para si, a arte não se resume a uma prática solipsista. O Manuel gosta de coletivas, de trabalho de grupo.  De onde lhe vem o gosto? Das vanguardas, do teatro ou de práticas políticas?

MAS – Dadaístas e Surrealistas defendiam uma “arte feita por todos”, como profissional de teatro aprendi cedo a trabalhar em colectivo e também me envolvi bastante em projectos associativos desde a adolescência  (inclusive desportos).

O trabalho colectivo interessa-me mas isso não invalida criar coisas mais personalizadas, mais centradas no “fazedor de coisas”.

MEG – O Manuel também é editor, em papel e na Internet. Já colaborei consigo, gostava que me falasse das suas edições em papel. Revistas, livros seus, e deixasse links para sítios na Internet.

MAS – Há as edições “Bicicleta” (de que falei antes). Mas há coisas mais pessoais, os meus textos dramáticos por exemplo.

Gosto de “livros d’artista” onde procuro conjugar a imagem e o escrito, os que contemplam um trabalho gráfico “a gosto”, que transportam o livro para uma outra dimensão a do “objecto estético”.

E por vezes acontece.

MEG – Eu gosto muito do seu trabalho, na generalidade da parcela que conheço; na particularidade, dou sempre muita atenção às imagens criadas com letras, palavras, escrita. São paisagens, retratos e objetos feitos de escrita. Que paixão é essa? Essa prática é um outro lado da poesia?

MAS – … Não sei. Há coisas que tenho dificuldade em explicar… Acho que sou/fui influenciado por uma “caldeirada” de estéticas; o dadaísmo, o surrealismo, a poesia experimental/visual, os concretistas, as edições underground dos anos 60, a pop art… são fontes onde vamos beber ideias, sonhos e utopias.

São paisagens estéticas que, por vezes, se podem casar em harmonia.

Há também a arte da performance que privilegia o corpo como objecto-paisagem.

António Maria Lisboa diz que “tudo são imagens…” É facto. Captamos imagens na leitura, nos sonhos, em fotos velhas, em papel de jornal amarrotado, em objectos degradados…

Gostaria de ter espaço para guardar e trabalhar objectos encontrados e deteriorados pelo tempo, pelo vento e sobretudo pelo mar.

Há coisas que são já objectos-arte, que dispensam a intervenção humana.

MEG – De Cascais para Faro e de Faro para Cascais são viagens na minha terra, como diria Garrett. E, antes de 1974, andar pela Guiné, por Angola, etc., também eram viagens na nossa terra. Que marcas lhe deixou África?

MAS – De Cascais a Faro e volta é um percurso regular, faço-o muitas vezes e as janelas do comboio são, para mim, uma bela tela (gosto de levar comigo a máquina fotográfica).

África é outra coisa…

África é uma enorme “paisagem de cheiros” que sentimos vibrar até quando atravessamos o Mediterrâneo no percurso Algeciras-Ceuta…

As “paisagens-cheiro” são indescritíveis.

Mas há as outras; as praias em Moçambique, os pântanos da Guiné… e há a terra vermelha de Moçambique, a terra seca de Cabo Verde…

Vivi parte da infância em Moçambique (3 anos)… Moçambique tem também sabores-paisagem e uma paisagem de vozes — gostava voltar lá para perceber melhor o que me escapou com os olhos e ouvidos de criança.

Quando adulto mandaram-me para a Guiné… era já outra coisa, um outro olhar; mais crítico, mais politizado, mais outras coisas.

Mas o cheiro era semelhante.

A situação é que era bem diferente.

A Guiné, nessa situação, tinha um sabor a revolta e inconformismo.

Ainda assim, houve momentos de fuga para uma ilha do arquipélago dos Bijagós.

Não.

Decididamente essas últimas não foram viagens na nossa terra.

Foram, sim, viagens.

Tão só isso.

MEG – Algumas das suas iniciativas identificam-se pelo nome de meios de transporte. Gosta de viajar? Por que caminhos mais fascinantes já andou e como afetam a sua obra? Que viagem gostaria de realizar, uma vez terminadas as restrições devidas à pandemia?

MAS – Viajava não muito, mas o suficiente para perceber outras imagens. Quando refiro imagens não me limito ao olhar… há também cheiros, diálogos, objectos, acções humanas…

Sim; “tudo são imagens” e as imagens são ferramentas fundamentais no processo.

Fizemos espectáculos teatrais e performances em Espanha, França, Polónia, Bélgica e Itália…

Sobrevoar a Polónia é como sobrevoar uma tela de Vieira da Silva.

Incrível!…

O calor humano sente-se em Espanha, Itália e, por vezes, Bélgica — mas Roma é, decididamente, a minha cidade de eleição.

 


Revista Triplov . Série Gótica . Outono 2020