MANOEL TAVARES RODRIGUES-LEAL
Tributo
Org.: Luís de Barreiros Tavares
As mulheres – poemas de amor e amizade[1]
De um caderno sem título
I
(à Maria)
Hábil de azul
que habita
o dia
sob o sol
indolente
se queda e dormita
Inédito – Lx.25/3/68
II
(à Maria)
De desejo me alago
da água do teu corpo
me recordo
do lago do teu corpo suspenso
apenas o penso
Inédito – Lx.19/3/68
III
(à Maria)
Voassem pelos vidros
braços
um espaço de lábios
onde sílabas soassem
velas velozes
de palavras
Inédito – Lx.1/4/68
Do caderno «Ensaio de Ausência»
IV
(Para a Isabel)
Anoitece, amanhece
e a poesia desperta, madruga,
nua,
com cicatrizes na minha pele impoluta, porém possuída.
Inédito – Lx. 9-2-66 – 19-10-75
V
(À Ana) [ex-mulher]
Em anel de ausência te abres
em álcool de loucura te bebes.
Dizer-te sim, que do voo das aves
incólume ilimitada desces.
Inédito – Lx. 25-11-74
Do caderno «A Composição da Presença»[2]
VI
À Mila (morto o rosto)
a noite anuncia-se no cume das mãos acesas:
música de cio e néon, anonimato. absorto rosto
o rosto íngreme navega amargo mosto (morto rosto). como ignorar o movimento – o silêncio – originário (o orgasmo).
os alicerces da loucura: o pânico,
os rostos multiplicados em espelhos e seu brilho estreme?
Inédito – Parede – 9-1-72
VII
(À Maria de São Pedro)
O corpo abre-se ao voo vegetal ao som intenso da carícia
baía onde hábeis dedos perpendiculares fendem
a quente superfície das águas então o dia antigo
desperta os dedos são deuses inocentes
que o luar de alegria liberta
Inédito – Lx. 16-5-72
VIII
Poema à Diana (Diane), uma rapariga canadiana
Amanhece amadurece a arquitectura
de brancura do teu corpo
pouco ou textura de exacto desejo. Era
o átrio de ternura ou o ávido manejo das armas do amor? Desejo
que se despe e flutua: lençóis de nula luz,
manhã de túneis de menstruação a arquitectura da doçura
o esquecimento em acção.
Inédito – 17-2-72
IX
(Para a Myriam)
“Il y a toujours un peu de folie
dans l’amour. Mais il y a toujours un peu de
raison dans la folie.” – Nietzsche
De Myriam soube o curso sóbrio das consoantes do desejo. As colinas
insones de um olhar obsessivamente azul. As sílabas de neve dos habitantes
do seu país natal. O som do corpo de Myriam repousava no sangue dos longínquos
poentes pungentes da Bélgica. O mar (o de Myriam) afagava o marfim
da sua grave brancura. Com Myriam não percorri os jardins antiquíssimos do desejo.
Aves aves do desejo divinizado que seus dedos desvendavam. As narinas embriagadas
Pelas breves brisas do litoral. Ó espelhos do Sul nos quais se miravam os olhares de quartzo
de Myriam. Ó quente espectáculo das pétalas do espanto. Ó crepúsculo de loucas praias
do Sul. Outono da nossa nudez nupcial.
Lx.13-7-72[3]
Do caderno Evocação de uma «Mulher em Visita»
X
Em Sesimbra
a mão antiquíssima do mar pousa,
repousa no brilho liso e recente da alva praia.
então a imagem pagã dos deuses mortos acorda os múltiplos espelhos da água.
Inédito – Sesimbra – 25-3-73[4]
XI
(O corpo acende-se, rende-se)
o corpo acende-se, rende-se
ao rumor do verão. é cedo para o outono.
ouço-te, trémula carne.
onde princípio. oh meu derradeiro beijo…
Inédito – Lx.4-8-78
Do caderno «Apresentação de Paula»
XII
Ela tem 16 anos, eu 34…
As vogais da idade são importantes.
Não é só o ócio amoroso de um quarto.
Explicito: não, não é só a mulher, fruto fremente,
mas a madrugada que me assiste, nudez e instante.
E há o quarto mundano que se tece, e de que, eu, traído amador, me aparto…
Inédito – (poema XXXIII) Lx. 11-6-76
XIII
Virgem ou não, que importa?
São sílabas de viagem e solidão…
É um rasto indelével de vagina
e rosto, ambos em ambígua, animal rotação…
A noite me pede escrita irreal, talvez astral.
E Deus me concede o dom de ver-te verde,
vegetal, poente de adolescente, de beber-te.
E és puta e mulher. Desejo a tua gruta
e tu ma dás. Só a alma perscruta,
adivinha. Descreve aquela escultura antiga.
Inédito – Lx. 18-6-76
Do caderno «Luz de Dezembro»
XIV
(À Paula A. S.)
Por que vens Paula, nomeados os dias,
Procurar-me em minha casa meditada até ao limite.
São os teus dezasseis anos em ebulição de beleza. Sou eu
Teu dardo profundo. Buscando auréola de sémen.
Vou indo para a praia interdita. Luz delicada. Audível. Houve um nome.
Inédito – Lx. 5-7-78
XV
Para a Maria João
(Pranto do poeta)
Como de amor se interrompe. Se inscreve.
Acesa e azul a corola da madrugada que madruga.
Riso lindo, pequena ruga. Quando se acende, evola, se urde
desejo antigo. Quando os flancos de neve respiram sob a agudeza do dardo ou oscilam sob
o beijo breve…
Inédito – Lx. 12-12-78
Do caderno «Zona Azul»
XVI
Do sexo clandestino
nem eu o sei
bebendo cafés fortes
fumando
aqui ando e célere passo
Em as ancas da cidade e da mocidade
estudo direito
e reprovo já nem louvo o novo instante
E em a noite intacta
surge a Cristina
moça linda
olhos iluminados
de silhuetas febris
onde sorris
o rosto castrado
de olhos azuis
E eu vou para casa
sem direito nem asa
Porém a verdade com as coisas me casa
e a madrugada me rasa
pénis testículos carnívoros
Legenda: na merda sou feliz
bebo bicas
fumo forte
E em um gesto generoso
já te foste minha amada
O resto nem ouso
vou para casa
com um pássaro lindo
o café é absinto
Inédito – Lx.11/7/89
De cadernos temporariamente não identificados[5]
XVII
E ao demorar-se o verão
sorri a diva
que amar-te é vão
quer viva
quer morra de solidão
sonhar a viva
a cicatriz dos que se vão
mas que a morte sirva
de lição
a quem a ela sobreviva
Inédito – Portimão – 14-8-68
XVIII
Poema ‘fábula menor’
Será hoje o passado que repousa na pele,
de maneira que o quadro marítimo do teu rosto se equilibrasse em
a memória distante e iníqua.
Equidistante do centro – , a ciosa quietude das coisas mansamente desemboca na luz esplêndida.
Observo o amarelo meteórico da areia esparsa na praia…
Inédito – Portimão 1968
XIX
(à São)
Não houve saliva em nossos beijos à despedida.
Por quê, meu bem? O beijo meramente é e coincide com a oferta do dia.
Meu bem, beija-me com a abstracta boca de aventura e vida.
O resto é porvir que não se prevê. Porque se difere, e a oblação de beijos como eu
em lume a diria.
Inédito – (1978)
[1] Alguns poemas dedicados às mulheres: amigas, amantes e sua ex-mulher.
[2] Na página de rosto deste caderno encontra-se a seguinte nota do autor: “Foi enviado ao Pedro Tamen pela Maria Velho da Costa [1938-2020]. Não foi recusado pelo Pedro Tamen. Mas ele queria que eu pagasse o custo da edição e publicação na Presença-Poesia. Cerca de onze contos em 1972-73, que eu não tinha disponível nessa data.”
[3] Inscrição no manuscrito precedendo o poema. Publicado em Antologia de Poesia Portuguesa Contemporânea, Lisboa, Chiado Editora, Outubro de 2018 e na Nova Águia, n.º 23, 1º semestre. Sintra, Zéfiro, 2019.
[4] No topo do manuscrito há a seguinte, provavelmente de 1999, dadas as notas precedentes e subsequentes com a mesma caneta e com essa data: “escrito em Sesimbra à noite no Hotel Espadarte, com a Ana [ex-mulher] a dormir na cama e eu, sentado, a escrever (inutilmente)”.
[5] A recolha destes últimos poemas, como de alguns outros, foi feita a partir da sua digitalização prévia. Mas, por lapso, não constava ainda a referência dos cadernos, tarefa que exige um trabalho árduo posterior.
MANOEL TAVARES RODRIGUES-LEAL