Artes em partes

PEDRO  LUDGERO GUEDES


ARTES EM PARTES (ou a galeria do corpo)
– um capítulo do livro “nu abrir em nó”

 

you can leave your heart on

por vezes por momentos
esquece o mendigo que é coxo
e normalmente começa a caminhar

tu também
de quando em quando esqueces
as amarras mal cifradas
onde apenas finges pentear o afecto
assim como as duas moedas non gratas
que de ti mesmo exilas
por questões de birra e cegueira
e esqueces a casa nova da boca
que não vendes mas alugas
com sedução ventriloquaz
esqueces também as mãos
(imprudente: não há duas sem três)
os abrigos da pulsação
o grosso modo do sexo
e os pés
que especulam tanto e tão pouco
que sempre que passam em passadeira de pez
se julgam passeando em ponte de zebrano

e assim houdini
não propriamente liberto
mas magicamente nu
podes enfim deixar de ser o Amor
e parecer nada mais que um amante


partitura para oboé d’amor (poème à clef)

esses teus olhos celestinos
a despeito de serem mediadores
entre prelúdio e fuga
guardam dois chavos negros
onde os leigos como eu podem montar
planeta

o céu é da terra a meta-
-morfose
mas da terra foge
logo que a pálpebra da noite
revela os poros da sua rede

ama-me
e eu serei porca sem fim
obnubilado de ouro

fode-me
e o sentido do poema surgirá
uma terceira abaixo


assimetria (ginger e fred)

os olhos do amado
fazem-se sentir como se fossem
as patas de um manso gato
percorrem-nos almofadados
meticulosos
e frios
como convém a tudo aquilo
que connosco não se confunde

de repente
uma queda torna-se urgente
e os olhos caem
não enfáticos (nem dramáticos)
mas simples como berlindes
que não sabem fazer mais que cair
e são esses estalidos
de um sapateado cantochão
(esses tap tap ​​tap)
que sentimos como se fossem unhas
afiadas e colorIdas
a rasgaram-nos a solidão


ainda sobre os olhos

os olhos são as pipocas da alma
quem não os conSumir
(doces ou salgados)
no calor da paixão
só neles achará
grãos de milho encruados
duros
e não recíprocos


o testamento da dor

mesmo em fronha de feira da ladra
a lágrima
​ (almofadada)
​​​por vezes corre

tem contudo de ser logo confiscada
(mesmo em quem goste do seu sabor)

não porque seja amor e morte
de crocodilo
(isso são todas)
é que não deixando Marca
não é codicilo lacoste


expressão

é como tirar um penso
se quiser arrancar
do seu rosto o sorriso
faça-o depressa e de uma vez Só

assim dói menos e não desfigura


heavy metal

demasiado próximos
como só próximos podem ser
os pesos de uma balança
as conversas a que nos dispomos
são não tanto alegorias
mas veros pomos de justiça

dos teus lábios sai um dizer

não penses contudo que isso é simples
ou singular
pois no teu dizer dizes Tanto
que o simples prazer de o enumerar
me convoca sempre para a poesia

um bluff de branca porcelana
sem vocação para quebrar
nele insistimos em beber chá
desde logo se sente
um contraste pica-pau
que é estridente por definição
segue-se um pendolino hesitante
entre fenda de amigo ou de amor
e por fim uma sentença de neve
a partir da qual fazes o boneco
do historial da tua dor

é muito
é pesado

e assim
como estamos próximos
(demasiado próximos)
para que tudo isto afinal caiba
no espaço veloz que separa um beijo
tens de enrolar
enrodilhar
moldar a matéria infinita
num instrumento pequeno compacto
que parecendo o artefacto de uma trompa
é apenas o desnível da voz


trabalhos oficinais

são carris por onde viajam gestos
são flechas de ternura
são as mãos

talvez herança de um Tio malabarista
de tal modo por elas passam tantos fazeres
por vezes baús às vezes deltas
mas o golpe é tanto e a asa tal
dir-se-ia que o fio do braço segura a-penas
o papel do papagaio

(publicado, pela primeira vez, no Jornal dos Outonos Poéticos de V. N. de Famalicão,

9 a 12 de Setembro de 2004)


dura lex sed dura

pelo simples facto de estarmos vivos
somos de nós mesmos (e de antemão)
os assassinos
não nos espante por isso a condenação
de trazermos algemas dentro
(e não em torno) dos
pulsos
algemas que se exprimem sem poesia
através da pulsação

e como o mundo se exprime com rigor
sem precisar sequer de fantasia
liguemos estas duas algemas do imo
através de uma corrente
pois é neste ser corrente
(ser corrido, Corredor)
que em nós mesmos e de nós fora
seremos livres
efectivamente


des pieds et des mains

o pé bate o caminho do possível
é o sopé
que não move montanhas nem à base
de uma fé

escalando o fio de prumo
sem dar corpo ao frio e ao esforço
se chega à mão

bela forma sem senão
o mundo é um quarto Escuro
que ela supõe quarto de fundo


outra assimetria

naqueles romances de cavalaria
que nos versos das cidades são manuscritos
há sentidos apenas obrigatórios
e sentidos desde sempre proibidos
há rimas contínuas e descontínuas
proibições de parar
proibições de morrer

mas o trânsito dos pés
não se faz com tanta coreografia
pois pela vida libertos e esforçados
(vida vidinha, descalça, até real)
os pés fazem seu caminho
sem ao caminho obedecer

não há por isso pé esquerdo
nem pé direito
apenas quixote
e (desde Sempre) sansho pança


l.h.o.o.q. (versão para um homem)

pertence o ónus do ânus
ao credor ou ao devedor?

não e nunca saberemos veredicto
pois nestes negócios do sexo
(em que a barriga é sempre
maior do que o oLHO)
O Cu é calorosamente enigmático


diamond

essa tua anémona de marca hammond
mais do que pop é lollipop

o seu tentáculo e suas redondezas
não querem outra companhia
a não ser os pequenos peixes do prazer

pequenas são também as suas mortes
e cremadas nas orlas do destino

impossível doMar
consiga embora o tempo apaziguar
o sexo em coral


REVISTA TRIPLOV . SÉRIE GÓTICA. PRIMAVERA 2019