Arcas encoiradas 3

NUNO REBOCHO


Revista Triplov, Série Gótica, outono de 2017


A safra juvenil e o “despertar dos mágicos”

“Konsomolskaya Pravda” era como o porta-voz do Estado Novo, o “Diário da Manhã”, se referia às páginas “Juvenil” que, na década de 60, existiam na imprensa diária portuguesa – a do “Diário de Lisboa”, dirigida por Mário Castrim, às terças-feiras, e a do “República”, orientada por Costa Dias, às sextas-feiras. Se a “crisma” ilustrava o receio que o salazarismo tinha por estas manifestações da juventude mais ou menos intelectualizada, estava longe no entanto de dar fundamento à atoarda de algum controlo comunista que sobre elas houvesse. Na verdade, Castrim teve momentos de maior e de menor aproximação ao Partido Comunista (basta lembrar que José Dias Coelho, quando assassinado pela PIDE, vinha de casa de Castrim, a Alcântara) que o mantinha então à distância. Nunca soube porquê.
Foi o Vítor Meira, meu inseparável no Liceu Camões, quem me interessou pelo “Juvenil” do Diário de Lisboa. Fomos à redação da Rua da Rosa, no Bairro Alto, conversámos com Castrim e ficámos assíduos colaboradores. Foi um deslumbramento e completou o safanão que o Alexandre Alhinho me dera nos encontros em sua casa, a Campo de Ourique – sacudira as teias de aranha de quanto congeminava que a poesia fosse, numa péssima imitação dos clássicos. A moçambicana de Noémia de Sousa, temperada com alguns poemas de Reinaldo Ferreira, foi calçadeira para começar a remoer Pessoa e os seus heterónimos. Foi um terramoto de conceitos, uma verdadeira libertação.
O ingresso no “Juvenil” quase coincidiu com o meu relacionamento com alguns escritores, como Antunes da Silva – cuja casa comecei a frequentar, com o Meira, na Damaia de Baixo – e Ferreira de Castro, que me recebia à sua mesa na pastelaria “Veneza”, na Avenida da Liberdade. Rodeavam-me aos poucos os amigos que encontrara no Juvenil – o Hugo Beja e a Sibila Aguiar, sobretudo estes dois. Hugo deu-me o conhecimento da Antónia Gadanha, que rapidamente se tornou minha namorada, paixoneta que teve por madrinha a Maria Almira Medina. Antónia escrevia, mas era no desenho e na cerâmica que se distinguia. Formada na Escola António Arroio, vivia um clima artístico que não era o meu. Talvez fosse isso que empurrou à rotura que aconteceu. Reencontrei-a muito mais tarde, nos anos 90, vinda de Inglaterra para onde emigrara, casara e teve filhos e prosseguiu carreira. Veio a Portugal expor, reviveu o relacionamento com Almira e quis ver-me. Matei saudades.
Dos tempos de convívio com a Almira e a Antónia, resultou que episodicamente fui (com elas) diretor da Página Cultural do Jornal de Sintra, propriedade do pai de Almira, e estive com ambas no Encontro das Páginas Culturais da Imprensa Regional, organizado pelo jornal “A Nossa Terra”, de Cascais, de que – muitos anos depois – fui chefe de redação. O jornal cascalense era então coordenado por Fernando Grade, que conheci nesse encontro. Da “conspiração” urdida sobrou que o Prémio de Poesia, atribuído por proposta da Almira, foi para Armando Ventura Ferreira que publicara uma excelente “Astronave”. Infelizmente, o promissor Encontro das Páginas Culturais não teve continuidade.
A minha leitura de “A terra do nosso pão”, de Antunes da Silva (como a releitura de “A selva” de Ferreira de Castro, que já vasculhara em Lourenço Marques na biblioteca de meu pai), foi deveras acrítica – eram escritores com quem travara conhecimento e, noblesse oblige, ficava obrigatório que nestes livros poisasse os olhos, evidenciando aos outros que os lera e com isso fazendo figura. Só muito depois entendi as caraterísticas fundamentais de cada uma das obras. Recordo com saudade as prosápias e a imagem da Castrim e de Costa Dias, coxeando cada um para o seu lado, a descerem o Chiado, suportados pelas suas bengalas. Brincava: se ambos não escolhessem convenientemente os lados adequados, acabariam à cabeçada.
As debilidades da juvenil formação cultural não impediam que desajustadas arrogâncias redundassem em polémicas entre nós tecidas: foi o tempo das “críticas” que tinham como resposta as “críticas às críticas” que, por sua vez, exigiam “críticas às críticas das críticas”. Eduardo Prado Coelho, Jorge da Silva Melo, Luís Matoso, eu e outros esgrimíamos em prosa as insuficiências de que não tínhamos consciência. Mário Castrim, é justo dizê-lo, tinha a paciência de aturar as enfatuações que destilávamos.
A dada altura, o João Rafael Nunes e o cunhado de Teresa Horta (cujo nome não recordo) aliamo-nos ao Eduardo Prado Coelho, ao Jorge da Silva Melo e ao Luís Matoso para reuniões-debate no Largo do Rato, nas traseiras do que hoje é a sede do PS. A coberto da tentativa de discussões científicas, ousávamos trazer à colação temas que, ao cabo e ao resto, chocavam com os preconceitos do regime – foi o caso do conceito de “raça”. Recusávamos-lhe qualquer fundamento: era o racismo próprio do lusitano colonialismo que estava em causa num momento em que as guerras da libertação das colónias estavam no auge. Muitos anos mais tarde, reencontrei o Prado Coelho na Póvoa do Varzim, num “Encontro de Escritas” – o tempo diluíra antagonismos velhos, o que me deu prazer. Levara décadas a malquistar-me com meio mundo e outras tantas a refazer amizades entretanto perdidas, queria ficar bem comigo próprio. O mesmo aconteceu com o Jorge Silva Melo.
Do tempo do “Juvenil” restou uma firme amizade com Alice Vassalo Pereira (hoje, Alice Vieira). A escritora desde logo dera nas vistas pela qualidade da sua prosa, acabou por se casar com Mário Castrim que acompanhou nos seus últimos anos. E, embora então não o tenha conhecido pessoalmente, o Torquato da Luz escrevia desde Vila Real de Sant António: houve troca de correspondência que prenunciou o relacionamento havido quando, nos anos 70/80, foi meu diretor no “Jornal Novo”.
À medida que resvalei para o radicalismo, o que teve consequências ideológicas, cresceu a minha oposição a Castrim. Tudo começou com o aparecimento no “Juvenil” de uma corrente de católicos de esquerda, vindos da JEC e da JOC, que criticava o vincado “intelectualismo” da Página. A lufada de ar fresco transparecida ia ao encontro das ideias que, por essa época, vinha defendendo. Obviamente que a saudei. Rafael Nunes, e outros que comigo comungavam, ergueram pendão e saímos “disparando” contra Castrim. Convenci o Alberto Costa das razões que estavam pelo nosso lado e, uma tarde, na redação do Diário de Lisboa houve confronto entre ambos: Costa acusou-o de abastardar a juventude e foi essa a última vez que estive com Castrim. A cegueira ideológica alimentou-nos a injustiça contra o nosso antigo guru, fazendo tábua rasa do muito que muitos de nós lhe devíamos e do papel que corajosamente assumiu. Sinto que a nossa atitude o magoou deveras.
Os tempos do “Juvenil” foram os da grande proximidade com o Hugo Beja. Sonhador, poeta, apaixonado, desenhador, era acolitado por uma tia residente no bairro da Madre Deus – os transportes demorados e as grandes distâncias ficavam ainda maiores nessa época, mas o que distava da periferia lisboeta à Baixa de Lisboa não molestava o convívio que tivemos, embora muitas vezes exigisse longas caminhadas a pé desde o longínquo bairro até ao Rossio. Hugo tornou-se rapidamente um companheiro inseparável.
Definindo-se como autodidata, Beja devorava livros: era o que se qualifica como um “homem das arábias”. Interessado por Química, sem ter as necessárias habilitações frequentava o curso de Medicina no Hospital de Santa Maria. Em breve se formou um grupo em torno da Maria Almira – Antónia, Hugo e eu apaparicávamos a poetisa e ceramista, também professora na António Arroio. Morava num segundo andar da Rua das Taipas. Em consequência das incidências da Página Cultural do Jornal de Sintra, os relacionamentos alargaram-se ao Armando Ventura Ferreira e à tertúlia que se formara na leitaria Passo. O autor de “A Astronave” passou a tratar-me de “Rimbauzinho” e, em troca, devido aos seus hábitos e aos seus cabelos brancos, chamava-lhe “Renard argenté” e “Princês”.
Por essa altura, tomei-me de paixoneta pela Tina (Maria Ernestina). Muito mais velha do que eu – tinha 33 contra os meus 17 anos -, era casada com tenente destacado para a guerra de Angola, mãe de um filho. Morava ao pé do Jardim Zoológico. O natural deslumbramento deu-me também leituras de textos que de todo ignorava: quase toda a obra de Jorge Amado. “Seara Vermelha”, “Terras do Sem Fim”, “Teresa Cansada de Guerra”, “Jubiabá”, “Os Subterrâneos da Liberdade”, “Gabriela, Cravo e Canela”… A minha ligação com a Tina, apesar de apenas ter durado um ano, desvendou-me aspetos fundamentais para a minha formação.
Jovens poetastros, Hugo e eu trocávamos a miúde ideias e procurávamos desenvolver as descobertas que as intuições nos consentiam. Uma tarde, deslumbrámo-nos com as potencialidades de um poema que me “saíra” – de “Xblung” o titulei: “Xblung hiroxima estoirou…”. De discussão em discussão, nasceu aí possibilidade de conceção de um quadro com tintas que, quimicamente, pudessem modificar a sua cor – seria uma nova modalidade de “quadro em movimento”, mudando a sua natural fixidez e ficando em constante e automática mutação de cores. Todavia, não passou de ideia: não tínhamos dinheiro, nem conhecimentos, nem meios para ir além da hipótese.
Levámos o poema a Ventura Ferreira, que se interessou por ele e compartilhou connosco questões que o inquietavam. Foi a génese do que se denominou de “Movimento Desintegracionista”. Reuniram-se em volta deste projeto, além do Armando, do Hugo e de mim, o Costa Mendes, o Fernando Grade, o Júlio-António Salgueiro e do desenhador e gravador Mário Elias. Armando e eu escrevinhámos o manifesto, o Elias concebeu as gravuras – para a capa e para ilustrar cada um dos autores. Juntámos e selecionámos os poemas. O Armando, o Costa Mendes e o Grade (os únicos que o tinham) coligiram o dinheiro e surgiu livro – apareceu o que, durante alguns anos, enfaticamente se considerou o “último movimento literário existente em Portugal”.
A coletânea era desequilibrada. Armando e eu seríamos os mais integrados na estética e nos postulados que defendíamos. O Hugo era exotérico, resvalando para proposições mais ou menos “filosóficas” nos poemas que concebia. O Costa Mendes, de poética tão rígida como o aço com que trabalhava (era agente técnico de engenharia), aproximava-se de intenções neo-realistas Coitado, morreu de apoplexia em 1975 quando, entusiasmado, foi esperar Álvaro Cunhal no seu regresso do exílio. O Salgueiro (que conheci na “República” de São Ciro, à Estrela – apresentado pelo José Antunes Ribeiro – numa das noites em que lá pernoitei fugindo à grave crise que ma atormentava) era, na minha opinião, o mais promissor de nós todos. Ainda o oiço a recitar o seu poema: “é comunista, saia do bar; não, sou artista, posso ficar…”. Casado com uma ex-prostituta, de quem teve uma filha, foi mobilizado para a guerra em Angola e morreu ingloriamente em combate. Alguém, dizendo-se seu amigo, ficou com o seu espólio e foi ganhando dinheiro com algumas edições avulsas. Ainda que saiba quem isso fez, recuso-me a denunciar o seu nome até porque é um sofrível poeta. No entanto, considero indigno e inqualificável o seu comportamento.
Vivia eu então uma situação delicada. Rompera com o meu pai; saído de casa com apenas 17 anos, dei explicações e, enquanto não vieram as férias estivais, fui-me aguentando. Depois, as coisas complicaram-se. Percorria as casas de amigos, passava episodicamente por “repúblicas”, dormia em vãos de escadas, bancos de jardins, ou dormitórios, e até na “pensão da corda” (armazém existente em Arroios onde, por muito poucos escudos, se dormitava encostado a uma corda passada de parede a parede até às sete da manhã, quando a corda era desatada e todos acordavam). O Hugo lembrou-se de pedir abrigo ao Mário Elias, na barraca onde este vivia – num bairro de lata ao pé da Cidade Universitária de Lisboa. Estive lá uns dias: era um pequeno casebre no qual, numa única sala, dormiam o Elias e a mulher, mais quatro pessoas (incluindo o Hugo e eu) e um corvo. Com um permanente sorriso no rosto, Elias era – à sua maneira – feliz, sempre mergulhado na sua leitura de Allan Poe.
Sorrio-me quando, nos dias de hoje, jovens lastimam o desemprego para que são atirados, as vicissitudes com que se debatem para arranjar casa, a precariedade das ocupações que encontram, os recibos verdes. Desconhecem o que a minha geração viveu, supondo que ela foi um mar de rosas. Não sabem o que foram as guerras coloniais, os cuidados a que a polícia política nos obrigava, e o preço que nos custou a sede de sermos livres e a ousadia de desafiar o fascismo. Cada tempo tem as suas dificuldades próprias, nenhuma é pior ou melhor do que a outra. São diferentes. Desagradável é sempre passar fome e pernoitar ao relento, ao frio e à chuva.
Tornavam-se, portanto, insuportáveis as dificuldades vividas. Tive conhecimento de que, em Setúbal, o João Nascimento tinha possibilidades de me colocar numa litografia. Fui para lá – apenas pude atravessar o Tejo, pagando o bilhete de um cacilheiro. Era um domingo, tentei pedir boleia e bem o tentei até ao fim de tarde. Pelas 18 horas, percebi que não conseguia transporte. Mas necessitava de estar às 8 do dia seguinte na cidade de Bocage para me apresentar ao prometido trabalho. Resolvi ir a pé pela antiga estrada que partia de Cacilhas passando por Alcoitão: mais de quarenta quilómetros. O mais difícil era a passagem dos contrafortes da Arrábida. Mas cheguei a Setúbal, a tempo e horas. Fui à praia próxima dar um mergulho e lavar-me, roubei umas peças de fruta e apresentei-me ao serviço. Passei a dormir no vão de escada de um consultório até abrir a estação de camionagem dos Belo. Mas nunca dei parte de fraco ao Nascimento, a quem sempre ocultei a angustiante situação. Dele apenas aceitei que me oferecesse algumas refeições e aproveitava as praias para me banhar e lavar a roupa que quase enxaguava no corpo.
Ao cabo de um mês, rumei um pouco para norte. Encontrei em Corroios, na Quinta do Chiado (hoje já devorada pelo renques de prédios aí construído) parentes meus pelo lado materno que me deram ocupação a guardar ovelhas, em troca de um magro salário, alimentação e dormida: preferia o ofício de pastor que me distanciava do serviço militar e da Junta Médica a que devia comparecer. Estava como refratário e temia, a cada momento, ser apanhado pelas patrulhas que percorriam o país à cata dos muitos que procuravam se escapar às guerras.
O Hugo teve conhecimento do meu paradeiro e um dia apareceu-me, atrapalhado, na Quinta. Queria igualmente safar-se da recruta que o ameaçava e pediu-me que lhe desse apoio para esgueirar-se até ao Algarve, de onde pretendia fugir para Marrocos. Falei com um meu primo e, sem lhe referir que estava em mente uma deserção, convenci-o a dar-lhe auxílio para que o Hugo pudesse a chegar a terras algarvias. Durante algum tempo fiquei convencido de que o Beja estaria a salvo, bem longe. Vim depois a saber que recuara nos seus intentos, regressara a Lisboa e se apresentara à tropa: foi para os serviços auxiliares e destacado para as colónias.
O problema do serviço militar foi, nos anos das guerras coloniais, uma ameaça para a juventude que, a todo o custo, dele se procurava eximir. Por minha parte, comecei por ser refratário, passei a faltoso e, quando preso e julgado em tribunal plenário, declarado “indigno do serviço militar” – foi um alívio! Todavia, após o golpe de Estado de 25 de abril, “amnistiaram-me”: chamado às sortes, os médicos despacharam-me para os serviços auxiliares. Revoltei-me: fui falar com o coronel Carlos Fabião ao Quartel do Trem Alto e expus-lhe o que me criavam. “O 25 de abril acaba por me castigar, dizendo que me amnistia – pretendem que eu faça tropa aos trinta e tal anos de idade, depois do fascismo me ter rotulado de indigno! Cinco anos de cadeia, de borla…”. Fabião compreendeu e o Movimento das Forças Armadas isentou-me desta obrigação.
Muitos anos mais tarde, trabalhava eu no Quelhas, na RDP, reencontrei Hugo no Centro Português de Serigrafia. Era o braço direito do meu amigo João Pratas. Apoiava-o na organização de exposições, preparação de catálogos e publicações. Quase paredes meias comigo, na Madragoa, muitas vezes almoçámos no restaurante que tínhamos crismado de “Morte Lenta” e aproveitámos para falar do “tempo que passa e seus desvairos”. Lembrámos tanta coisa que vivemos juntos, as amizades que perdêramos pelo caminho. Ainda era um sobrevivente do “Desintegracionismo”, convencido de que eu persistia nas mesmas águas, como ficou provado na introdução que escreveu ao meu livro de poemas “A invasão do corpo”: influenciado pelo Grade (que estimava) e por Cesariny, Hugo Beja destilava o seu quê de surrealismo. Porém, continuava o mesmo sonhador.
As suas divergências com os Pratas – que nunca entendi, nem me interessavam – fizeram que abandonasse o Centro de Serigrafia e se transferisse para as bandas de Sintra. Soube que viveu algum tempo no México, casara e tivera uma filha. Ainda o recordei nas minhas conversas com o Mário Elias que, acompanhado pelo seu burro, se refugiara em Mértola, onde ganhou apoio da sua Câmara Municipal.

Nuno Rebocho