Saudade de futuro
MODERNISMO PORTUGUÊS
Organização de Antoneli M. B. Sinder e Daniel M. Laks
Apresentação
Saudade de futuro
“Contudo que saudade do futuro, (…)”
Fernando Pessoa, em seu Livro do Desassossego
As décadas iniciais do século XX marcaram-se, tanto no panorama político quanto no artístico, por uma dinâmica futurizante que privilegiava a construção de novas formas de habitar os espaços. Nesse sentido, o Modernismo português dedicou-se a investigar formas originais de sensibilidade que pudessem atualizar os padrões culturais nacionais para os novos tempos que se anunciavam. Dentro da lógica da dinâmica entre o local e global, os modernistas portugueses se relacionaram com movimentos artísticos iniciados em outros espaços, rechaçando em alguns casos e aderindo em outros, para produzir suas próprias adaptações adequadas à noção de identidade nacional. As relações com o futurismo talvez sejam as mais conhecidas neste quesito, principalmente a partir de obras como o “Ultimatum Futurista às Gerações Portuguesas do Século XX”, de Almada Negreiros; “Ode Triunfal” e “Ode Marítima”, de Álvaro de Campos; “Manucure”, de Mário de Sá-Carneiro, a Revista Portugal Futurista e o “Manifesto Anti-Dantas”, de Almada Negreiros, algumas das quais estavam indiretamente dirigidas ou evocavam as juventudes portuguesas.
O tema do futuro e suas possibilidades é retomado no Portugal de 2021, quando a cidade de Lisboa foi escolhida, entre mais de 150 cidades no mundo, com uma das cidades do futuro. Embora ainda haja muito espaço para investimentos, aperfeiçoamento, mudanças e avanços, Lisboa se destacou bastante, entre outras razões, por seu cuidado com o meio ambiente, infraestruturas, transporte, alimentação, estilo de vida e vastíssimas oportunidades de cultura.
Diante do tanto que se vem experimentando de aterrador desde a pandemia de COVID-19 vivida a partir do ano de 2020, parece que depositamos em algum tempo diferente do atual algo que possa gerar novas sensações e emoções: seja a lembrança do que se vivia, na saudade; seja a esperança em se viverem outras realidades, no futuro. O presente parece ter ficado cada vez mais inapreensível e distorcido. Ainda assim, é desde aqui que escrevemos e perguntamos: o que pode ser o futuro agora? O percurso dos textos deste volume vai de apreensões e indagações do clássico às pulsões do contemporâneo.
O texto de Jorge Vicente Valentim, Judith Teixeira, um clássico do modernismo, aborda um aspecto pouco investigado em relação aos trabalhos ligados ao modernismo: examina o trabalho avant garde da escritora Judith Teixeira (1888-1959) que se inscreve num tempo de intensas transformações, apontando sua reverberação entre os séculos XIX e XX e seus diálogos em espaços diversos reivindicados pelo feminino.
Em A ficção de António Lobo Antunes: a presença de Ângelo de Lima, Alexandre Montaury Baptista Coutinho investiga a presença de Ângelo de Lima na obra de António Lobo Antunes. Montaury articula, em derivações estéticas, a ficção de António Lobo Antunes à figura de Ângelo de Lima, cujos trabalhos volitaram, de modo heterogêneo e não exclusivamente, entre poesia e artes plásticas. Com isso, Montaury recupera um aspecto importante do movimento de Orpheu em Portugal, que foi a sua presença até hoje nas artes, apesar da brevidade de sua permanência enquanto grupo organizado.
Silvio Renato Jorge Modernismo Brasileiro e Modernismo Português: as seduções autoritárias destaca, por um lado, a marcante circulação literária entre escritores brasileiros e portugueses, que se expandia em respostas a questões mais amplas que as exclusivamente brasileiras ou as exclusivamente lusitanas. Por outro lado, Silvio Renato Jorge avalia também essas inscrições artísticas nos espaços sociopolíticos em que esses diálogos luso-brasileiros se davam, trazendo as relações entre arte e política no panorama dos modernismos de língua portuguesa sob uma perspectiva comparada.
Em Traçar o semblante da modernidade, no percurso inquieto das imagens, Izabel Margato explora a fragmentação dispersa em poetas do Modernismo Português para revisitá-los à luz de formas que Baudelarie, Cesário Verde e Fernando Pessoa deram à Modernidade. Izabel Margato (re)traça o semblante do poeta moderno em imagens que se movem, em esboços que podem reconfigurar e sobreviver a(o) passado, em movimentos que atravessaram épocas e seguirão.
No artigo Expressão intersemiótica como signo da autoconsciência histórica da modernidade em Almada Negreiros, Daniel Laks associa as diversas linguagens estéticas do projeto artístico de Almada negreiros à autoconsciência histórica da modernidade, apontando para investigação de limites das categorias de representação e situando o pensamento do autor de grande importância no grupo de Orpheu no panorama do pensamento português da época.
O artigo de Camila Alavarce e Gisele Martins, A inquietude como legado: rastros das indagações pessoanas e simbolistas na literatura portuguesa contemporânea, trata da edificação de uma postura filosófica que indaga o mundo e o eu e convida esteticamente a uma reflexão que acolhe a diferença, preserva a pergunta e a desconfiança em permanente diálogo na ficção contemporânea. Camila Alavarce e Gisele Martins se interrogam ainda “de que modo” a literatura portuguesa contemporânea considera e atende à herança de momentos artísticos anteriores.
Neste momento em que, depois de tantas ruínas, podemos voltar a viver o presente e imaginar futuros que nos inspirem, (re)discutir projetos individuais e coletivos, na interface entre ética e estética se faz necessário e engrandecedor. Por isso, este número de TRIPLOV dialoga, com a vanguarda do Modernismo português, do ponto de vista historiográfico, e conversa de perto com as diferentes temporalidades impostas pelo presente tencionado, impreciso e perplexo, para realizar um exercício de projeção, crítica e criação de futuros através de diferentes linguagens artísticas.
Antoneli Sinder
Daniel Laks