BREVE PANORAMA DO SURREALISMO EM PORTUGAL
Direção e organização de Rui Sousa
Bruno Silva Rodrigues
António Pedro tem dois nomes comuns e antigos (já para não falar do apelido “da Costa”). Apontá-lo um homem moderno poderá parecer anedota. Mas quando se viaja pela sua vida, espantam-se os olhos com tanta actividade e tanto frenesim por tanto lado junto de tanta gente. Sim senhor, pelo menos nisto o homem foi moderno.
Nisto de não estar quieto e querer muita coisa experimentar.
Na arte ou na vida, este comportamento dissidente nunca agradou aos modelos sociais que, ontem como hoje, vão sobrevivendo desde que o indivíduo se especialize exacerbadamente. Por vezes, contudo, o sistema mostra-se tão frágil e contraditório, tremendo como varas verdes, que esta fraqueza é um abre-olhos e haverá quem se lance no risco e na direcção de se tornar um ser menos uno-limitado e mais multi-capacitado. Ser à António Pedro, à Almada Negreiros, à Ana Hatherly, à Mário Cesariny, à Mário-Henrique Leiria, à muitos outros que servem para nos resgatar da realidade o sonho de tentarmos ser completos. Seres que descobriram, como Pedro escreveu, sermos nós parecidos às cebolas; que há que descascar para tocar no que lá dentro realmente se aproveita. Cada camada uma experiência. Depois então, livres em totalidade, cor com que o Surrealismo quis que nos pintássemos.
Pedro morreu há meio século, felizmente para o sistema, e como se não bastasse existe o problema da memória curta dos portugueses. Vale, por tudo isto, a pena comemorar a sua existência. Pois quantas das suas voltas e reviravoltas, quantos dos seus erros e desacertos não inspirariam, inspiraram outros a se voltarem a se revirarem?
Para se ser livre é talvez necessário ambicionar-se sair de si pelo encontro com o outro. No caso de Pedro os encontros foram múltiplos, diria quase infinitos e seriam precisas várias páginas para os enumerar a todos. Quer-se saber do Surrealismo nele, mas o Surrealismo é o homem (ou os homens dentro do homem) na sua forma e na sua não-forma. Tenho de apontá-las, portanto, as pedras (algumas delas pelo menos) que arremessou ao destino, em disparos nunca muito direitinhos ou preocupados em acertar (sabe-se lá no quê) e menos ainda em errar (sabe-se lá em quê).
Por vicissitudes várias, Pedro foi saltimbanco nos primeiros anos de vida (e não há maior vivente do novo do que aquele que não tem coiso nem poiso nem plateia fixa). Nasce em Cabo Verde (1909), embarca para Lisboa com 4 anos, ingressa num colégio na Galiza e lá participa em dezenas de peças de teatro (ganhando até medalhas), mas acaba expulso. Pedro expulso (seu primeiro manifesto?) e Breton a publicar um primeiro senhor manifesto. Segue-se a vida em Santarém, depois em Viana do Castelo, expondo nesta cidade, com um amigo, caricaturas de professores, o que lhe valeu um chuto para Coimbra onde vem a escrever o seu primeiro livro. São sonetos e tem 17 anos. Aos 18 regressa a Lisboa e escreve outro livro. 1928 passa-o em Cabo verde e vai mais outro. Casa-se. Tem 21 anos e já são bem viajados, meio inocentes, mas vividos, escritos, tradicionalistas, porém, e sobretudo insuficientes (as viagens, a escrita, os jornais de liceu, as caricaturas).
Pedro “moderno” nasce nos anos 30 e marca os anos 30. Mostra-se um “orpheu” dedicado, quando de Orpheu já só o eco. Um primeiro uniforme encontrado debaixo da pele. Conhece Fernando Pessoa, mas é com Almada Negreiros (com quem convive pelo menos desde 1927, antes deste partir para Madrid) que estabelece o maior laço (e que será um longo abraço). Só poderá ter sentido um forte abanão ao penetrar e ser penetrado por aqueles olhos de gigante que não cabiam no mundo. De gigante para gigante (Pedro era anormalmente alto) parece ter passado a responsabilidade de representar o que de moderno ainda existia ou podia existir. No 1.º Salão dos Independentes (1930), por exemplo, que Pedro organiza, são homenageados os vivos e os mortos mais modernos do Modenismo nacional. Nunca mais parará ele então de organizar exposições em memória deste(s) ou daquele(s) e de deixá-los cair pela pena da sua escrita abaixo até ao papel/tela.
Pedro “dimensionista” surge pois naturalmente sob esta malha. Mas para trás havia já descascado outras peles. O Pedro “teórico” do Nacional-Sindicalismo, no início dos trintas, que se pôs a escrever artigos apelativos de uma ordem anti-democrática e anti-parlamentar, reveladores da sua adesão a um modelo totalitário, mas mais importante do que isso, afirmando um homem envolvido com o fatal momento político de Portugal. Um homem crente nas suas ideias e sem medos de as verbalizar, mesmo quando, mais tarde, as reequaciona, ao dar-se conta das manhas de Salazar (e por isso dali para a frente passa a combatê-lo, desde logo com uma suposta tentativa de criação de um modelo alternativo junto dos democráticos, em 1935 e com participação na tentativa de golpe de estado, no mesmo ano). Dizia, o Pedro “director de jornais”, o “escritor compulsivo”, com a edição de mais dois livritos, para além de muitos outros textos (em prosa sobretudo) e outros tantos projectos literários que ficaram na gaveta, o incómodo “crítico de arte”, assinando Cristóvão, o “agente literário e artístico” que cria uma gráfica, depois também galeria de arte moderna (a UP), e, claro, o “visitante de Paris”, onde terá estadia entre 1934 e 35.
Em Paris contacta com artistas de todo o planeta, dos que experimentam e arriscam talvez ainda mais do que ele. Conhece Breton, com quem faz uma amizade que perdurará, ficando um e outro para sempre unidos nos anais históricos ao morrerem no mesmo ano. Conhece também Marinetti, mas o que verdadeiramente o cativa é a proposta de resgatar a arte da sua prisão dimensional, dando-lhe novas luas. Assina pois o manifesto dum tal Dimensionismo ao lado de uns menos tais Delaunay, Kandinsky, Picabia, Duchamp, Miró, entre outros. Veja-se como esse transdimensionamento é experimentado também na comédia em um acto que escreve por lá, em 1934, e publica cá, na revista Lácio, em 1938. Peça ao jeito de Pirandello (o qual receberia o Prémio Nobel nesse ano e teria estado em Paris precisamente em Dezembro de 1934, homenageado pela sociedade de letras), prenúncio de outros textos (e metatextos) dramáticos que inventará e encenará.
Empenhado no movimento de que se faz emissário, publica tradução sua do manifesto e põe-se a mostrar, exibir e explicar as suas criações dimensionistas: poemas e quadros-poemas em duas dimensões, como aqueles 15 poèmes au hazard que havia precisamente dado a conhecer aos parisienses na exposição Les Surindépendants (25 Outubro – 24 Novembro 1935), um deles reproduzido na revista Les artistes d’aujourd’hui (15 Dezembro) e aí qualificados como originais; ou poemas-quadros-objetos em três dimensões, como os peculiares Objecto metafísico de meditação e Poema no espaço (1935), que não estão muito longe dos poèmes-objects surrealistas, ou estarão? Embora criticados em Portugal, precisamente por falta dessa originalidade, o certo é que estes trabalhos cortam com a poesia certinha de antes, a mesma que, aliás, em 1936, compila em Primeiro volume 1927-1935, como que para fechar um ciclo. Para além disso definem um marco a partir do qual tudo viria a ser feito acima da dimensão que existe, portanto, por “sobre” o real.
Não fez Pedro por confundir o seu Dimensionismo com o Surrealismo, mas foi mesmo assim, confundidos, que seriam. E por via das dúvidas, o seu amigo Dutra Faria haveria de fazer questão de dizer ser esta “arte cósmica” o ismo que ultrapassa todos os outros incluindo o “Superrealismo” (De Marinetti aos Dimensionistas, 1936). Talvez tivesse alguma razão, isto é, talvez Breton uma década mais tarde se tivesse apercebido de que lhe faltava esse saldo dimensional, ou assim poderia ser lido, quando abre ao movimento, ao regressar a Paris em 1946, as comportas do oculto e das artes mágicas que ao cosmos vão e do cosmos voltam. Seja como for, a verdade é que Pedro não ficou imune a tudo o que viu e ouviu em Paris e muito era Surrealismo. A confirmá-lo estão os diálogos automáticos que, ainda com Dutra Faria (e também Carlos Tinoco), se põe a experimentar, colocando-os mesmo à consideração do público no Diário de Lisboa (“Mecânica Literária: os diálogos do super-realismo”, 08 Maio 1936). Uma première surrealista por cá?
Em Paris frequenta cursos de desenhos (como não querer pintar naquele cidade-atelier?) e não tendo camioneta para tanta novidade, vai depois querer trazer para Lisboa o Climat parisien, dirigindo à chegada uma Feuille internationalle d’art moderne que ainda teve dois números e que pretendia altifalar o sopro moderno do mundo. Mais um: o Pedro “divulgador”. Não espanta que tenha começado lá a primavera das pinturas, telas amadoras assinadas simplesmente Pedro, cheias de coisas desconexas e carnais, com jogos de cor e luz contrastantes, a primeira das quais datada de 1934 (Le Crachat embelli, sonho fálico e andrógino exibido em 1936 na UP – Vinte Poemas dimensionais e outros desenhos). Se pinta “coisas”, bem provável é terem qualquer coisa de (in)consciente surrealista.
São quadros que se vão multiplicando e que ultrapassam, em cerca de 15 anos, a centena (fora os que se perderam num incêndio uma década mais tarde) e que vão aparecer em várias exposições, de 1936 (lembre-se aqueles à vista na 1.ª Exposição dos artistas modernos Independentes, 15 a 30 Junho) em diante. Mas o Pedro “surrealista em embrião” não quer ainda sê-lo, anda ainda à procura de si nos outros. Pelo que, na sua UP, procurou sempre expor, com naturalidade, as criações alternativas dos que também erram sem se importarem, seres surrealistas já descascados ou ainda por descascar, pelo menos quanto à sede de independência e liberdade, como sejam Almada (1933), Vieira da Silva (1935) ou Júlio (1938).
Nesta década, Pedro experimenta, divulga, critica, contrapõe. E pelo meio tenta formar uma companhia de teatro. É tudo um continuar a apalpar, sem rótulos para já. Mesmo que confunda ainda mais os críticos, em Dezembro de 1938 (revista Juventude), ao publicar poemas ladeados de mais desenhos (datados de 1936) a puxar o surrealismo à conversa, num trabalho intitulado Onze poemas líricos de exaltação. Mesmo que, exactamente um ano depois, também em Juventude, dê já à leitura um texto que viria a ser o capítulo V de Apenas uma narrativa, embora como se fosse um conto e como fazendo parte de uma colectânea que se chamaria Antrofagia e outros contos. Mesmo que, ainda, defenda o movimento de Breton num opúsculo (Grandeza e Virtudes da Arte Moderna: resposta à agressão do Sr. Ressano Garcia, 1939) e lhe reproduza algumas palavras no catálogo da exposição de 1940 na Casa Repe em Lisboa, exposição que organiza e em que surge ao lado de António Dacosta e Pamela Boden (1905-1981). Note-se que já num 1.º Salão dos Estudantes de Coimbra em Lisboa (Casa das Beiras, 5 a 20 Março 1939), com Almada e Cândido Costa Pinto, ou na 4.ª Exposição de arte moderna (SPN, Dezembro 1939), Pedro havia também apresentado algumas das suas telas mais estremunhadas.
Pedro “surrealista” nas suas múltiplas incursões, parece impossível negá-lo. No seu autodidatismo em mostrar sonhos aos outros, o mesmo. Talvez também na negação em ser este Pedro, efeito que enganou alguns e continua a equivocar outros? Alguns no Brasil, por exemplo, que o viram assim (embora também lhe chamassem futurista, o que se compreende menos) quando este por lá esteve durante quase um ano (1940-1941) e por lá aproveitou para desenhar o Corcovado e a sua cabeça decepada a voar pela paisagem (Nós dois no Brasil, 1941). Pedro “surrealista” é uma vestimenta que se sucede ao Pedro “repórter de campo” em périplo pelas colónias em África (Julho a Agosto 1939), acompanhando o presidente e relatando para os jornais o que viu e não viu. E ao Pedro “pateador”, ao lado de Almada, numa conferência de Ressano Garcia em que este se refere negativamente à arte moderna (Abril 1939, SNBA).
No Brasil expõe individual (Rio de Janeiro e S. Paulo) e colectivamente (S. Paulo) várias dezenas de obras (alguns jornais falam em 50, um dos catálogos enumera 39) ou o seu “rudimentarismo” pictórico, como E. di Cavalcanti (Estado de S. Paulo, 13 Agosto 1941) as noticiava, nada que impedisse uma delas de ficar no Museu Nacional de Belas Artes do Rio. “O Português Surrealista” (Planalto, 15 Agosto 1941) (o)brigava-se a colher finalmente o que semeara, como o seu plantador em AUN. Quem o mandou organizar um happening surrealista, uma “festa do mau gosto”, desafiando os seus convidados a trajarem no pior gosto possível (relata esse jornal e também Paulo Almeida no seu De Anita ao Museu, 1976)? Entre os disfarçados talvez estiessem Oswald de Andrade, Jorge Amado, Mário de Andrade, Jorge de Lima ou Giuseppe Ungaretti, personalidades com quem privou, tendo os três últimos versado opiniões relativamente ao que Pedro lhes foi lá mostrar. Ainda assim, numa entrevista que podia ser uma lição sobre a vanguarda portuguesa até então, Pedro esforça-se por se manter individual na sua multiplicidade e a descascar-se sem querer saber se era isto ou aquilo tudo o que encontrara. Por isso havia de voltar a dizer-se dimensionista, a explicar-se, para que os equívocos se desvanecessem (como se as palavras fossem a obra):
Eu não pertenço a grupos […].
O grande apport surrealista […] foi a descoberta da sub-consciência que o automatismo revelava, e, por ela e por ele, o grande encontro do Homem na magia dos seus símbolos. […] O que mais me separa dos surrealistas é a aceitação do facto ‘Arte’, com todas as suas consequências: controle da inteligência na associação das imagens, aceitação e estudo dos processos técnicos tradicionais, isto é do resultado da cultura pictural, que os surrealistas, pelo menos teoricamente negam e condenam como restrição à livre expressão individual. O que deles me aproxima é o sonho, os dados irracionais como ponto de partida, é o encanto sobre as coisas duma imaginação barroquizante, delirante se for preciso e possível, a única faculdade do espírito que, com certeza, só o homem possui à face da terra (Dom Casmurro, 19 Abril 1941).
Certo parece ser que a fama que gozou pelo Brasil terá servido de prolegómeno à ideia de formular a sua AUN. Terá lido excertos dela ao crítico António Cândido, em 1941, conforme este confessa na resenha que lhe vem a fazer na revista Clima (Julho 1942), na qual afirma que Pedro lhe enviou cópias destas “narrativas” e que estas viriam a adquirir um sentido de unidade uma vez reunidas num só texto, como Cláudia Pazos Alonso nos veio revelar (Just a Story, 2015). Fica assim mais clara o porquê do excerto de AUN publicado em 1939 como fazendo parte de um outro projecto. É que Pedro trabalhava a sua criatividade jorrante e múltipla, isto é, racionalizava-a esteticamente tomando consciência destes fluxos, num processo que o afastava, de facto, da ambição em representar a pureza subconsciente, limpa de intelecto, que resultaria em obras automáticas e em tintas furiosamente lançadas sobre telas. Terá tomado consciência de que as suas várias narrativas eram apenas diferentes faces dessa sua face surrealista? O mais certo é que, por terem enfiado Pedro no saco do Surrealismo, ele pegou em alguns textos meio destrambelhados e mostrou ser capaz de criar uma obra teoricamente surrealista. Acto falso, talvez? Talvez. Um surrealista não se faz, é-se, como muitos já afirmaram. Aqui Pedro fê-lo, noutros momentos foi-o.
Falso ou não falso, parece-me um lúcido desvendar dos vários Pedro desse Pedro que o Pedro escondeu e de outros que quis mostrar, sendo-o ou não o sendo, conforme lhe apetecia. E é disso mesmo que se trata, de uma questão de apetites (e repastos, digo eu), como afirmaria no catálogo da exposição do Grupo Surrealista de Lisboa, 1949.
O processo de viagens dentro de viagens e de experimentações sobre experimentações, que Pedro fez e Pedro foi, está sintetizado em AUN. Conta-se aí a história de uma personagem que dá a volta completa, e aos trambolhões, à vida, numa existência por vezes real por vezes surreal. Tem períodos de acalmia num estilo narrativo corriqueiro, sem novidade, para depois acelerar nas imagem encavalitadas e desenfreadas e insólitas como as que alimentam inconscientes. Tem ilustrações colocadas à porta de cada capítulo, mas estas não sintetizam coisa alguma, abrem a curiosidade, talvez, criam e descriam expectativas, ou enojam, consoante a sensibilidade de cada um. O livro traz ainda Mário de Sá-Carneiro à epigrafe e, no prefácio do autor, um elogio ao Aquilino, o dos sonhos, e ao Mário de Andrade, o libertário dos conceitos literários académicos. Traz tudo isto e traz, claro, várias leituras. Trará a Nadja de Breton, A Engomadeira do Almada, o Macunaíma de Mário de Andrade? Traz ainda nas entrelinhas a crítica ao medo miudinho e à subserviência do povo, à academia e aos seus artistas-ovelhas e também, claro, o perfume do seu Minho com ilhas e serras para além das nuvens, onde vivem pintores gémeos pederastas e antropófagos. Sendo uma obra escrita mais pensada do que despejada, ela recorre, mesmo assim, a vários princípios narrativos de teor surrealista e psicanalítico, como a incoerência semântica e o recurso ao “infamilar” (uncanny). A racionalidade que, apesar da aparente casualidade, marca AUN, valeu-lhe a crítica dos surrealistas dissidentes: Mário Cesariny à cabeça, o qual não a inclui na lista dos eventos surrealistas em Portugal (A Intervenção surrealista, 1997). O que na verdade não espanta, pois das várias resenhas à publicação da obra, em 1942, quase nenhuma faz uso da palavra surrealista/Surrealismo. Para António Cândido e Simon Watson Taylor, no entanto, ela é digna de integrar a órbita cronológica do movimento. O autor inglês publica mesmo um capítulo traduzido na revista Free Union / Union Libres (Londres, 1946) – revista que compila trabalhos surrealistas executados durante a guerra (de Pedro é ainda reproduzido o quadro Repasto imundo, 1939) –, em que se anunciava a edição da versão integral pela editora do surrealista belga E. L. T. Mesens, amigo de Pedro (mas já lá vamos).
1942 é também o ano da 1ª Exposição dos artistas ilustradores modernos (Abril – Lisboa, Maio – Porto) em que Pedro mostra reunidos os seus quatro livros ilustrados (ou com criações verbo-visuais) mais vanguardistas e, claro, cheios de “sonhurrealismo”, num evento em que também estão António Dacosta e Vieira da Silva, entre outros. Nesse ano e no seguinte saem os dois números da sua revista Variante, que é também uma espécie de galeria, nova sintetização da sua avaria e da de outros (são por lá reproduzidas obras de António Dacosta, de Bosh, de Tarsila do Amaral, de Almada) com espaço até para a publicação de partituras de música, num gesto sempre múltiplo, sempre uno.
E é em 1943 que Cesariny, em carta para Cruzeiro Seixas, menciona ter privado com Pedro em Moledo do Minho (Dezembro), mas, pouco depois, Pedro é contratado pela BBC e parte para a capital britânica (Janeiro de 1944), deixando na 8.ª Exposição de arte moderna do S.P.N. realizada nesse mês um estudo de mais um sonho seu, que nunca chega, que se saiba, a ser tela. Novamente: estudar/estetitizar em vez de verter de imediato o fluxo criativo – eis mais uma revelação do Surrealismo condicionado de Pedro por aquelas alturas. Homem em busca, sempre em busca, perdido no mistério do palimpsesto interior que só a vida das experiências e das viagens pode ajudar a desvendar.
E logo em Londres, epicentro da Segunda Grande Guerra, Pedro descobre-se em mais algumas: na experiência da rádio e na do grupo entre pares surrealistas, ou que querem ser surrealistas. É que Pedro vira soldado de microfone, numa estação inglesa muito ouvida pelo povo português porque este lhe atribuía fidedignidade informativa, em contraste com a disseminada propaganda alemã. Uma multidão que esperava pelas Crónicas de Segunda-feira (no ar durante quase dois anos) de Pedro. E Pedro dá mostras de ser o Pedro mais “livre” até então: livre por viver a democracia, livre por viver (e assumir) o Surrealismo, que vem a beber activamente nas reuniões do grupo surrealista de Londres. Pouco por lá no meio deles consegue fazer, porque pouco de grupo homogéneo havia no grupo, como ironicamente também em Lisboa viria a acontecer, como em qualquer grupo surrealista, veio a constatar-se, tenderá sempre a acontecer. Mas consta que foi apreciado pela sua experiência e maturidade surrealistas e que propôs a produção de um tipo de publicação à guisa de enciclopédia. Teria esta o nome de “ABC”, se tivesse havido condições para a montar. Uma ideia repescada e transformada por Patrick Walberg e Marchel Duchamp na Le Da Costa Encyclopèdique, coisa acéfala cujo título homenageia Pedro, como diria Silvano Levy (The Scandalous Eye: The Surrealism of Conroy Maddox, 2003). Mas deste “da Costa” não sairia lá nada, apesar de Pedro ter sido convidado por Patrick Waldberg a participar nela, e apesar do próprio Pedro ter ele próprio desenvolvido um projecto semelhante (Dicionário prático ilustrado, em espólio). E pode-se dizer que encontra por Londres um espelho seu em E. L. T. Mesens, um dos líderes do grupo (o outro era Jacques-Bernard Brunius). Com Mesens fica também arquivada a tradução da gorada edição completa de Just a Story (AUN traduzida para inglês) que só sairia da gaveta 49 anos após a morte de Pedro em edição bilingue, isto depois das três edições do livro em Portugal e de duas traduções, uma francesa, outra italiana (1987 e 1995).
Em Londres, Pedro renova os seus sonhos e quando regressa quer largá-los por aí fora, da sua terra de camarinhas para sul. Mas é preso na fronteira e embora logo libertado com o apoio de amigos e do consulado britânico, não se safa a uma vigilância apertada doravante. Mesmo assim pensa em montar jornais, novamente orientados para desprovincializar o país e quer escrever e escreve que se farta – sobre arte, sobretudo, várias crónicas, 33 fascículos intitulados “História breve da pintura” (Mundo literário) e um livro sem grandes antecedentes em Portugal: Introdução a uma história de arte (1948). Arte, muita da arte que viu e logo muita dela cheia de ganas de Surrealismo. Dá-lhe também para escrever textos automáticos (pelo menos desde 1946, segundo dois exemplos deixados em espólio) que já praticara com os surrealistas de Londres. E continua a pintar e a expor o que pinta, incluindo uma obra de referência, outra súmula, desta feita visual, em que reúne muitas das imagens expressadas em peças anteriores: Rapto na paisagem povoada (1946) – um quadro que guarda para si e para o qual cria uma moldura cheia de mãos (certamente todas as que teve e apertou). Demoraria contudo mais um ano até que Pedro afirmasse a tal carne sob carne sob pele sob pêlo que tocou sem nunca ser, ou, se quisermos, que foi só com o corpo e que agora parecia querer ser em alma: surrealista autodito.
Para isso contou com o decisivo vento do destino que vinha da juventude, de uma nova geração (o tal encontro com os outros, necessário para se ser), malta dura e dinâmica que vibrara lendo o Breton renovador de 1946. Com alguns deles (Cesariny, Moniz Pereira, Vespeira e Fernando de Azevedo), antes ainda da aventura do Surrealismo em grupo (em Portugal, como vimos), terá abaixo-assinado, ainda em 1946, o texto “Justiça e Liberdade”, dirigido ao Presidente da República, contra o embuste que foi o prometido processo de democratização por Salazar. Era o castelo do movimento colectivo a formar-se na ilusão de que o Surrealismo podia estar em cada um e ser cada qual e ter ainda para todos as mesmas maneiras de comer à mesa e de se vestir ao Domingo. Pedro deveria ter sabido mais, dada a experiência britânica, mas eles são eles e nós… Enganou-se ele e os outros ou não se enganaram nenhum deles, porque todos amavam a liberdade absoluta, passe as nuances pessoais com que esse amor livre (e ao livre) se cosia.
De resto, a consciência da impossibilidade do movimento formal precisou da experiência da constrição inerente aos agrupamentos para emergir. No movimento surrealista organizado em Portugal, Pedro é amado por uns, maltratado por outros, mas não fica indiferente a ninguém. É para ele que Cesariny envia a sua carta de adeus ao grupo, apontando que o grupo não era grupo e muito menos surrealista. Razão suficiente, claro, para uma cisão ética e para a criação do grupo alternativo, “Os Surrealistas”, mas outras razões haveria talvez de haver. Conta-se agora uma história que Helder Macedo já contou (Relâmpago, Abril 2010) do que se recordava de lhe ter contado Mário-Henrique Leiria, história portanto, muito a puxar para a ficção e bem a propósito num artigo destes. Cesariny porta-se mal e tem “uma indiscrição nocturna mais evidente”. A “chamada ‘polícia de costumes’” prende-o. Envia S.O.S. a Pedro, amigo fiel. Pedro, fiel e amigo, é fiel, paga, salva, mas é também Pedro “falador” e parece que não se cansou de falar nisso. O Pedro que pinta sexos cheios, seios e cus a torto e a direito, mas firmemente casado desde 1930, que convivera com os libertinos E. L. Mesens e George Melly lá por fora, não soube guardar decência. Encontrada a surrealidade que virou rivalidade? A maior de Portugal, talvez. Dois homens múltiplos, surrealistas de formas e tamanhos diferentes até na visão da amizade.
Ter-me-ei esquecido de algum Pedro do Pedro? Não há dúvida que sim, mas não importa. Recordar homens múltiplos que falam a tanta gente e multiplicam por muitos os seus defeitos e as suas qualidades, é tão importante, nos dias que nos fogem, como ampliar (ou para ampliar) a energia dos que chegam agora a estas lides.
REVISTA TRIPLOV
série gótica