BREVE PANORAMA DO SURREALISMO EM PORTUGAL
Direção e organização de Rui Sousa
JOANA LIMA [1]
«Liberdade. Amor. Poesia». É através da voz de Mário Cesariny em Ama como a Estrada Começa, o documentário de Perfecto E. Cuadrado, que o vulto mais mediático do Surrealismo português resume a tríade de valores que regeu o movimento. Embora não se conheçam entrevistas feitas a António Maria Lisboa, a quem bastaram vinte e cinco anos (1928-1953) para que, num ar contaminado pelo silêncio a que o regime ditatorial compelia, se distinguisse como o líder deste raríssimo instrumento de subversão que foi o Grupo Surrealista Dissidente – «o mais importante poeta surrealista português, pela densidade da sua afirmação e na “direção desconhecida” para que aponta»[2] -, esta tríade é enigmaticamente gritada ao longo da sua obra. Tão nebuloso ponto cardeal, situado algures entre o Abjecionismo e a alquimia literária rimbaldiana, poderá ser encontrado através da presença desta tríade na arte poética Erro Próprio, mapa da “Metaciência” de A. M. Lisboa, ou guia para essa religião de mistérios que é a poesia, constituída por três planos/passos de um percurso poético ideal e idealizado pelo autor – o «PLANO CIRCUNVALADO»[3], o plano da «INICIAÇÃO»[4], e o plano da «ESTRELA»[5].
A pista para o mapear será a pergunta central do Abjecionismo português, formulada por Pedro Oom – «Até que ponto pode chegar um homem desesperado quando o ar é um vómito e nós seres abjectos?». E a chave a resposta de António Maria Lisboa – «SOBREVIVER, mas Sobreviver LIVRES, pois não existe sobrevivência na escravatura, mas na não aceitação desta. “Ser Livre” é possuir-se a capacidade de lutar contra as forças que nos contrariam, é não colaborar com elas.»[6]. Enquanto Oom se entrega à angústia[7], António Maria Lisboa tenta sobreviver. A esta tentativa de superação, esta transfiguração do desespero, é dado o nome de “Metaciência” em Erro Próprio, onde, no início, é feita uma alusão clara ao Abjecionismo e, no fim, é idealizado um percurso poético a cumprir para conseguir a superação dessa condição em que «o ar é um vómito». Esta ideia é partilhada com Maria João Cameira que afirma serem dadas «três definições, sustentadas por imagens aparentemente absurdas, que resumem o que pretende ser o percurso poético do sujeito dentro desta poética»[8] no final da segunda parte de Erro Próprio.
O primeiro substrato do percurso poético idealizado por Lisboa é o «PLANO CIRCUNVALADO», que remete para a imagem de um fosso que circunda e isola um determinado espaço, o espaço do poeta que se prepara para iniciar o seu percurso na poesia. Sendo «O PLANO CIRCUNVALADO (…) o objetivo a atingir para o homem se situar na vida como um poeta»[9], é possível encontrar uma correspondência entre este e a «Árvore de Sangue», metáfora da árvore da vida, «símbolo da vida, em perpétua evolução, em ascensão para o céu, [que] evoca todo o simbolismo da verticalidade» e «serve também para simbolizar o carácter cíclico da evolução cósmica: morte e regeneração»[10]. Ancestralmente, sabemos ainda que «a árvore põe também em comunicação os três níveis do cosmos: o subterrâneo, com as suas raízes abrindo caminho nas profundezas onde penetram; a superfície da terra, com o tronco e os primeiros ramos; as alturas, com os seus ramos superiores e o seu ponto mais alto, atraídos pela luz do céu»[11]. Entende-se, assim, o «PLANO CIRCUNVALADO» como o início de um movimento vertical assente na sucessão de três planos – o subterrâneo, o da superfície, e o das alturas -, um movimento que evolui asceticamente, um espelho do percurso poético idealizado por Lisboa – o «PLANO CIRCUNVALADO», o da «INICIAÇÃO», e o da «ESTRELA».
O «PLANO CIRCUNVALADO», o subterrâneo do percurso poético, encerra então três ações – primeiramente a visão de uma transformação, em seguida essa transformação, de dois desenhos num só desenho («dois minúsculos desenhos (…) conjugaram-se num outro representativo duma jovem desesperada»), e no fim, a partir dessa acção, a abertura de um novo caminho, o acesso a um novo plano, puro («os longos cabelos perfuram o lado não maculado da serpentina»). Estas ações, entrelaçadas, na medida em que as precedentes permitem as que lhes sucedem e validam-se por estas, representam uma necessidade e uma finalidade. A transformação dos dois desenhos em um, representando o ciclo de «morte e regeneração» inerente à «evolução cósmica» que a «Árvore de Sangue» simboliza, relaciona-se com a necessidade que um poeta que queira trilhar o percurso poético idealizado por Lisboa tem de conhecer o universo como um heraclitiano devir eterno, como constante reciclagem das coisas e dos seres, um universo em que tudo existe e é transformado como os desenhos referidos pelo autor, um universo em que não existem apenas duas antinomias, como sugerira Breton, mas um universo em que as antinomias são infinitas, como sugere o Abjecionismo. O despojamento da visão convencional (ocidental) do mundo permite um novo conhecimento do mundo, o mundo como transformação, e este conhecimento permite aceder a um outro plano, ao «lado não maculado da serpentina», à idealização assim metaforizada, consubstanciando-se estas três acções no primeiro degrau do percurso poético, a liberdade. Para atingir este plano inicial, para construir este fosso figurativo em torno de si mesmo, o poeta necessita de «criar barreiras, isolar-se da realidade comum e deixar de ver com “lentes não carbonizadas”»[12]. Após este despojamento e esta construção de barreiras, estará preparado para cumprir as outras e ascender ao seu primeiro degrau desse percurso ascético que culminará no plano da «ESTRELA».
Efetivamente, este esquema de ascese parece corresponder aos «“três tradicionais estádios do caminho místico: Purgação, Iluminação, União”»[13], ou do caminho alquímico em nigredo, albedo, e rubedo. O segundo substrato do percurso, à superfície, a «INICIAÇÃO», encontra correspondência na «Iluminação» hermética, no albedo, na medida em que, tendo como instrumento um «vocabulário hermético [que], por vezes tão confuso, não esconde senão uma única realidade: a da progressão em direção à luz»[14], na descrição dos «NOVOS AMOROSOS», António Maria Lisboa procede à «revelação e descrição sábia do agente criador do fogo pantomorfo, do grande meio do poder oculto, da luz astral numa palavra»[15], agente mágico que em Erro Próprio corresponde ao «NOVO AMOROSO», o poeta alquimista que nasceu «do Fogo e para o Fogo»[16], beijado pelo Fogo, e que é unido pelo Fogo a outros «NOVOS AMOROSOS». Atravessando o Fogo toda a existência e caminho do «NOVO AMOROSO», e iniciando António Maria Lisboa a sua arte poética com referências a um texto hermético, é possível identificar o Fogo pantomorfo de Erro Próprio com o de Hermes Trismegisto e, consequentemente, com a luz dos textos alquímicos, metáfora de conhecimento, pureza, e perfeição. Éliphas Lévi explica que, na Tábua de Esmeralda, «Hermes ensina depois como desta luz que é também uma força pode fazer-se uma alavanca e um dissolvente universal, em seguida também um agente formador e coagulador»[17], ideia partilhada por Heraclito. Assim, nesta fase da «INICIAÇÃO», os «NOVOS AMOROSOS» são impulsionados pelo Fogo para atingir o Fogo em si, a pureza e perfeição poéticas, metaforizadas na «ESTRELA», transformando-se em «ETERNOS AMOROSOS».
Os «NOVOS AMOROSOS» são seres poéticos em devir, e o seu caminho, tal como o processo de alquimia literária e depuração gnóstica que António Maria Lisboa propôs e concretizou, é um laboratório e um labirinto. Para além de identificar o Amor e a Liberdade enquanto «elementos míticos»[18], como «procedimentos poéticos»[19] para os surrealistas, Tânia Martuscelli lembra as justas palavras de J. B. Martinho relativamente à faceta gnóstica da poesia de António Maria Lisboa: «A Poesia seria para ele “essencialmente uma espécie de caminho para a gnose, com o concurso dos ‘símbolos mágicos’, da ‘Cabala’, da Magia”, o que tornaria o poema um “lugar de operações mágicas, de aparições, de transmutações, um autêntico ‘Laboratório Mágico’”».[20] Assim, a sua poesia é um caminho para o conhecimento, e esse trilho é feito de alquimia literária, de apropriações e transmutações de textos anteriores, que transformam a sua obra num «Laboratório Mágico»[21].
Depois da genealogia dos «NOVOS AMOROSOS», a imagem que lhe sucede, dos «NOVOS AMOROSOS» correndo pelos bosques, ligados pelo Fogo, unidos aos elementos, construindo a Natureza numa Nova Natureza, que, de tão livre e lata, abrange todo o Universo, e permitindo que, quando em união com ela, possam caminhar para «outros Universos Ignorados», sugere o carácter labiríntico da poesia de A. M. Lisboa:
«Na madrugada transmutam a Natureza e com ela constroem um Novo Sol onde se abrigam e desejam a Nova Natureza do dia seguinte para fazerem um Novo e Magnífico Sol. E assim até se erguerem do leito de nuvens e caminharem pelo seu pé na reconquista de outros Universos Ignorados. E assim até que a Verdadeira Vida de que somos abortos seja erguida sobre os alicerces de que eles são os portadores esplêndidos.»[22]
A transfiguração impressa nestas linhas é poética, e traduz as diversas fases da criação artística baseada na experimentação. Através dela o poeta, «NOVO AMOROSO», construtor de «um Novo Sol», resguardado na subversão e na força da «Nova Natureza», tenta incessantemente uma segunda e uma terceira e uma quarta transmutação da obra de arte, metaforizada no Sol, símbolo de Fogo e de luz, de verdade e conhecimento. Note-se que para António Maria Lisboa a construção de um «Novo e Magnífico Sol», de uma vanguarda que se transformará em tradição, nunca será o auge da experiência poética. Apesar de o «NOVO AMOROSO» se encontrar num «leito de nuvens», a ascese plena apenas acontecerá quando ele for capaz de passar a uma nova fase da criação poética, aquela em que, caminhando para a «ESTRELA», para «Universos Ignorados», carregue os «alicerces», a possibilidade, da «Verdadeira Vida». Se concordarmos com a concepção de Y. K. Centeno, que identifica labirinto com «um lugar sagrado de transformação»[23], com «um laboratório» onde «se coagula, se dissolve, ora a terra, ora a água, faz-se passar a matéria do negro ao branco, para poder chegar ao fim da Obra»[24], e um «símbolo de percurso, da Busca e da Via na sua totalidade»[25], poderemos compreender esse «Laboratório Mágico» que J. B. Martinho concebe como labiríntico. A. M. Lisboa, criando um complicado trilho poético para os «NOVOS AMOROSOS», à imagem dos escritos herméticos, faz da sua obra labirinto.
Após descrever o movimento fulcral dos «NOVOS AMOROSOS», o autor de Erro Próprio explica como teve conhecimento desta teoria, iniciando uma narração da fonte da sua teoria amorosa, delírio onírico ou aventura surrealista despoletada pela acção de desenhar «duas figuras»[26], num local «apoético por excelência»[27]. Cremos que a descrição que A. M. Lisboa faz da sua epifania, teoria amorosa, é um exemplo perfeito da sua surrealidade, já que decorre de uma «Realidade Absoluta»[28], apenas possível através da imersão do mistério na banalidade, do onírico no empírico, como agente da destruição do conceito de realidade, operando a «conjugação futura desses dois estados, na aparência tão contraditórios, que são o Sonho e a Realidade»[29], noções copiadas de Breton. O relato desta epifania inicia-se num lugar onde a poesia é nula, metáfora do «PLANO CIRCUNVALADO», com o nascimento de um acto «espontâneo, livre e amoroso»[30] – tão absurdo quanto o desenhar rabiscos (Lisboa) ou o sair para a rua e começar a disparar tiros (Breton) – que lhe possibilita o acesso a um novo nível de existência poética. Num «instante»[31], inicia-se a subida na pirâmide da metafísica do poeta. E esta acontece sem esforço nem chave; para aceder ao próximo degrau é apenas necessário agir, ser-se capaz de um acto livre, possibilitado pelo desregramento total tentado num «PLANO CIRCUNVALADO». Esta ideia, depois de ser várias vezes aflorada na primeira parte de Erro Próprio, é gritada por Lisboa quando escreve «uma vez por todas, o Compromisso do Poeta é com o AMOR e o acto um acto LIVRE no TEMPO-ÚNICO!»[32].
Para além da correspondência entre as «Noites de Lua Cheia» do prólogo de Erro Próprio e as «Noites Fantásticas» de «Luar» contidas na descrição da «INICIAÇÃO», que indica o estado iniciático como o inerente ao «NOVO AMOROSO», no prólogo de Erro Próprio existe outra referência que aponta para a mudança do «PLANO CIRCUNVALADO» para o plano da «INICIAÇÃO», para a transformação do homem comum em «NOVO AMOROSO», materializada em António Maria Lisboa e metaforizada na Árvore de Luz. Após ter passado «o umbral»[33], e assim penetrado num novo plano, A. M. Lisboa depara-se com uma «Árvore de Luz» no «centro do Largo, que conhecera doutra forma»[34], enquanto «Árvore de Sangue», elemento-chave do «PLANO CIRCUNVALADO». A transformação da caracterização desta árvore, de sangue em luz, relata um movimento de purificação, mesmo que esta não seja concluída, muito semelhante ao descrito pelos tratados alquímicos, representando o sangue as impurezas do nigredo a nível alquímico e do «PLANO CIRCUNVALADO» a nível poético, e representando a luz a purificação do albedo a nível alquímico e da «INICIAÇÃO» a nível poético. E o registo da epifania termina com a visão de um novo plano, o propósito do sonho, o seu fim, onde, «ao centro»[35] tal como a «Árvore de Luz», está «o Fogo dos Séculos»[36], substituindo-a neste novo e derradeiro plano poético. Estando o sujeito poético ladeado pelo Sol e pela Lua, sugere-se a imagem de uma árvore genealógica em que «o Fogo dos Séculos» é simultaneamente o berço e o point-suprême dos «NOVOS AMOROSOS», e, assim, a metáfora da «ESTRELA», onde habitam os «ETERNOS AMOROSOS»[37], que tocam a «Verdadeira Vida»[38].
Neste labirinto onírico, A. M. Lisboa cria uma imagem aparentemente absurda, com um tom de humor negro raramente registado na sua obra mas que parece essencial para a sua compreensão, em que anões se perseguem com «pequenas forquilhas»[39], circularmente, no esforço de se ferirem e de se tornarem mais visíveis. Ainda que a descrição dos «NOVOS AMOROSOS» seja complexa e textualmente anterior, parece ter sido teorizada a partir da visão destes anões que, num movimento contínuo, em devir, se usam mutuamente para que possam persistir num ciclo de agressão e fortalecimento. O acto de ferir o outro, ao contrário do que seria esperado, não acarreta qualquer tipo de dor, antes um fortalecimento do que fere, já que a sua arma aumenta de tamanho, e a vivificação do que é ferido, se torna mais brilhante. Esta é a descrição de um crime aparentemente amoroso, em que não existem vítimas, semelhante à acção desempenhada pelos «NOVOS AMOROSOS». Sendo-lhes intrínseca a relação entre maravilhoso e amor, como espelhos que permitem reflexos mútuos (o maravilhoso atinge-se amorosa e artisticamente; os «NOVOS AMOROSOS» só o poderão ser pelo corte de amarras com o quotidiano e imersão no maravilhoso), o amor desponta enquanto procura ascética em tom de expedição iniciática da «Verdadeira Vida»[40].
Cesariny, que colocou os seus esforços na organização e clarificação da obra de António Maria Lisboa, disse acerca do Grupo Surrealista Dissidente que «À palavra de Rimbaud: “La vraie vie est absente”, juntamos o axioma mágico da grande conspiração contra a permanência das coisas, guilhotina de amor sobre a infantilidade dos gestos de repouso: “No círculo da sua acção, todo o verbo cria o que afirma.”».[41] A poesia de António Maria Lisboa, desvelada no movimento de corte e engrandecimento dos anões de Erro Próprio, é essa guilhotina de amor. Toda a sua palavra, transformadora, é um gesto subversivo de amor, e a sua viagem na palavra poética uma digressão profunda na metafísica do poeta surrealista que, como «NOVO AMOROSO», previamente liberto do abjecto num «PLANO CIRCUNVALADO», o guilhotina magicamente, e que, afirmando os seus cânones poéticos de uma forma pouco convencional na tradição literária, através da sua destruição e reconstrução se volve em «ETERNO AMOROSO», inscrevendo-se ele mesmo na tradição, amoroso processo presente no corte-homenagem dos heróis literários de A. M. Lisboa, Lautréamont e Rimbaud, presente em “O amor de Isidore Ducasse Cmte de Lautréamont”[42] e “O amor de Arthur Rimbaud Mestre do Silêncio”[43].
Toda a poesia e teorização de António Maria Lisboa apontam para um percurso cuja segunda fase, iniciática, se rege pelo total «desregramento de todos os sentidos» profetizado por Rimbaud, concretizado na ideia de que «a poesia deve ser feita por todos» de Lautréamont, criando uma nova matriz de beleza poética, e preparando o degrau poético seguinte – o da «ESTRELA», plano de transformação do «NOVO AMOROSO» em «ETERNO AMOROSO». Ao subverter o conceito tradicional de alquimia, A. M. Lisboa cria a sua ciência de liberdade, a «Metaciência», indefinível segundo as concepções ocidentais de conhecimento, estando essa lógica bem expressa em «o Poeta Metacientista sabe que para se alcançar esta posição só é possível por um exercício iniciático.»[44]. Essa «totalidade da Vida-Única», permitida pela particular arte poética do autor, está próxima daquele que se transformou em «NOVO AMOROSO».
Se em Erro Próprio, depois do delírio surrealista, que se revela uma epifania, ter terminado, A. M. Lisboa anuncia a «materialização (é o termo) dos NOVOS E MAGNÍFICOS AMOROSOS»[45], a apropriação linguística e poética de poemas de Rimbaud e Lautréamont pela parte de A. M. Lisboa é precisamente a «materialização» do surrealista português em «NOVO E MAGNÍFICO AMOROSO». Como num labirinto em que passado e futuro se confundem, Erro Próprio confunde. Primeiramente, apresenta uma espinhosa teoria poética, enublada por simbologias; no seu final, como se fosse ela mesmo um obstáculo a superar para aqueles que a ouvem ser lida e que se encontram num «PLANO CIRCUNVALADO», explicita de uma forma mais clara os passos a seguir para a transformação destes em «NOVOS AMOROSOS», sendo estes o «recolhimento»[46], as «leituras atentas»[47], a «procura desesperada de novos horizontes»[48], o «afastamento imediato da chamada vida prática»[49], ou contrariamente, a «dispersão absoluta»[50], o «esquecimento de toda a sabedoria acumulada»[51], e a «exaltação da ignorância que tudo aprende»[52]. Se um futuro poeta seguir as indicações dadas por António Maria Lisboa, agindo activa e amorosamente, tornando-se como ele «NOVO AMOROSO», provando «ter valor para saber coisas que excedem tudo o que a nossa civilização tem criado de mais extraordinário»[53], estará apto para receber os «Eternos Amorosos», aqueles que tocaram na «ESTRELA» de A. M. Lisboa, na «unidade perdida» de Rimbaud, vivendo a «Verdadeira Vida». Estes «habitantes do Fogo»[54] serão Rimbaud e Lautréamont, por terem exercitado a liberdade verdadeira durante a sua vida, despidos da razão «louca» e de convenções morais e éticas repressoras. Ao contrário dos seus modelos literários, António Maria Lisboa, respirando um «ar abjecto», metáfora da ditadura que ensombrava o panorama político e as liberdades individuais da década de quarenta do século XX português, não viveu uma vida prática extrema.
Referindo em Isso Ontem Único que «nunca como agora o Amor foi tão significativo/ tão único/ da realidade real/ da negação negada,/ da perda total que procuro»[55], A. M. Lisboa conhece a ausência da vida verdadeira. Apoiando-se no que Breton escreveu («“A vida verdadeira está ausente”, já dizia Rimbaud.»), reconheceu na poesia uma forma de mudar a vida, reinventando o amor, apenas possível sob a forma de amor literário. Confirmando o amor como fuga da realidade do quotidiano para uma surrealidade habitada pelos «ETERNOS AMOROSOS», povoada por aqueles que tal como ele foram da Natureza a uma «Nova Natureza»[56], do Sol ao «Magnífico Sol»[57], através da transfiguração amorosa e criminosa da tradição que sempre foram perdendo e encontrando, Jean-Arthur Rimbaud e Isidore Ducasse de Lautréamont, um plano «horizontabismado»[58] pelos «NOVOS AMOROSOS», por si, António Maria Lisboa ama ao recriar e transformar a tradição poética com «O Amor de Arthur Rimbaud Mestre do Silêncio» e «O Amor de Isidore Ducasse». Conjugando «um novo verbo, um verbo neutro»[59], António Maria Lisboa comunica «a sua aventura interior»[60], que, com raízes e amores tão consistentes, «finalmente não anda perdida de tudo»[61], nem será uma mera alucinação mística.
Partindo dos seus subversivos modelos poéticos, aplicando-lhes uma alquimia do verbo que recebeu deles como herança, recriando a própria transfiguração do conceito de alquimia, amando como um anão criminoso que fere outro para o fazer brilhar mais e para se fortalecer, num movimento de homenagem e de auto-afirmação, Lisboa fez-se «Mago», personificou «o poeta-vidente, o poeta-mago, o poeta-sacerdote (ou seja: o poeta-filósofo)»[62], o «Fantasma», que, recriando uma «memória», uma tradição, em vez de apenas a lembrar, a transformou, concluindo assim a «INICIAÇÃO» e materializando-se no «NOVO AMOROSO» que nasceu «do Fogo e para o Fogo»[63], que se sabe parte do eterno devir dos seres e das coisas, que deliberada e amorosamente se inscreve nesse ciclo cósmico e nesse percurso poético em forma de pirâmide sem cume. Pressentindo a sua inscrição na literatura, depois de ter emergido do «PLANO CIRCUNVALADO» para a sua «INICIAÇÃO», António Maria Lisboa vislumbra a «ESTRELA».
[1] Texto já publicado na antologia A Dinâmica dos Olhares – Cem Anos de Literatura em Portugal, Coord. Ernesto Rodrigues e Rui Sousa, Lisboa, CLEPUL, 2017. http://www.lusosofia.net/textos/20180403-a_dinamica_dos_olhares_ernesto_rodrigues_rui_sousa___copiar.pdf ).
[2] Mário Cesariny, «Dado Biográfico», in Poesia, Lisboa: Assírio & Alvim, 1995, p. 3.
[3] António Maria Lisboa, Poesia, Lisboa: Assírio & Alvim, 1995, p. 42.
[4] Ibidem.
[5] Ibidem.
[6] António Maria Lisboa, Poesia, Lisboa: Assírio & Alvim, 1995, p. 34.
[7] “Uma vez fui a casa dele e fiquei gelado. Aquilo não era uma casa, era uma coisa despida de tudo, com uma flor de plástico no corredor: nada. O Pedro Oom desistiu de tudo.”. Mário Cesariny “Entrevista a Mário Cesariny”, Jornal PÚBLICO, 19 de janeiro 2002, p. 9.
[8] Maria João Cameira, A Visão Imaginária do Feminino em António Maria Lisboa, Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Lisboa, 1995.
[9] Ibidem.
[10] Jean Chevalier & Alain Gheerbrant, Dicionário dos Símbolos, Lisboa: Editorial Teorema, 2004, p. 89.
[11] Ibidem.
[12] Maria João Cameira, A Visão Imaginária do Feminino em António Maria Lisboa, Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Lisboa, 1995, p. 44.
[13] Y. K. Centeno, Literatura e Alquimia, “Ensaios”, Lisboa: Presença, 1987, p. 13.
[14] Ibidem.
[15] Éliphas Lévi, História da Magia, S. Paulo: Pensamento, 1999, p. 74.
[16] Tânia Martuscelli, A Singularidade de António Maria Lisboa na Poesia Portuguesa, Dissertação apresentada à UNICAMP, São Paulo: UNICAMP, 2002, p. 23.
[17] Ibidem.
[18] Ibidem.
[19] Ibidem.
[20] Ibidem.
[21] António Maria Lisboa, Poesia, Lisboa: Assírio & Alvim, 1995, p. 199.
[22] António Maria Lisboa, Poesia, Lisboa: Assírio & Alvim, 1995, p. 23.
[23] Y. K. Centeno, Literatura e Alquimia, “Ensaios”, Lisboa: Presença, 1987, p. 98.
[24] Y. K. Centeno, Literatura e Alquimia, “Ensaios”, Lisboa: Presença, 1987, p. 100.
[25] Ibidem.
[26] António Maria Lisboa, Poesia, Lisboa: Assírio & Alvim, 1995, p. 24.
[27] Ibidem.
[28] António Maria Lisboa, Poesia, Lisboa: Assírio & Alvim, 1995, p. 16.
[29] Ibidem.
[30] António Maria Lisboa, Poesia, Lisboa: Assírio & Alvim, 1995, p. 34.
[31] António Maria Lisboa, Poesia, Lisboa: Assírio & Alvim, 1995, p. 24.
[32] António Maria Lisboa, Poesia, Lisboa: Assírio & Alvim, 1995, p. 37.
[33] António Maria Lisboa, Poesia, Lisboa: Assírio & Alvim, 1995, p. 24.
[34] Ibidem.
[35] António Maria Lisboa, Poesia, Lisboa: Assírio & Alvim, 1995, p. 25.
[36] Ibidem.
[37] António Maria Lisboa, Poesia, Lisboa: Assírio & Alvim, 1995, p. 26.
[38] Ibidem.
[39] António Maria Lisboa, Poesia, Lisboa: Assírio & Alvim, 1995, p. 24.
[40] António Maria Lisboa, Poesia, Lisboa: Assírio & Alvim, p. 23.
[41] Mário Cesariny A intervenção surrealista, Lisboa: Assírio & Alvim, 1997, pp. 155-156.
[42] António Maria Lisboa, Poesia, Lisboa: Assírio & Alvim, 1995, pp. 77-78.
[43] António Maria Lisboa, Poesia, Lisboa: Assírio & Alvim, 1995, pp. 75-76.
[44] António Maria Lisboa, Poesia, Lisboa: Assírio & Alvim, 1995, p. 199.
[45] António Maria Lisboa, Poesia, Lisboa: Assírio & Alvim, 1995, p. 26.
[46] Ibidem.
[47] Ibidem.
[48] Ibidem.
[49] Ibidem.
[50] Ibidem.
[51] Ibidem.
[52] Ibidem.
[53] Ibidem.
[54] Ibidem.
[55] António Maria Lisboa, Poesia, Lisboa: Assírio & Alvim, 1995, p. 91.
[56] António Maria Lisboa, Poesia, Lisboa: Assírio & Alvim, 1995, p. 23.
[57] Ibidem.
[58] António Maria Lisboa, Poesia, Lisboa: Assírio & Alvim, 1995, p. 77.
[59] Antonio Tabucchi, La Parola Interdetta, Turim: Einaudi, 1971, pp. 68-69.
[60] Ibidem.
[61] Ibidem.
[62] António Maria Lisboa, Poesia, Lisboa: Assírio & Alvim, 1977, pp. 348-381.
[63] António Maria Lisboa, Poesia, Lisboa: Assírio & Alvim, 1995, p. 23.
REVISTA TRIPLOV
série gótica