António Cândido Franco, uma obra colossal

 

Tributo a ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO


Editorial
Maria Estela Guedes

 

O termo “colossal” aplica-o António Cândido Franco a Agostinho da Silva. Em meu entender, aplica-se igualmente ao seu biógrafo, e aponta sobretudo para o trabalho tremendo de ACF, ao coligir a massa de informações, que não derivam da sua imaginação de poeta e romancista, sim de investigação histórica. Imagino que a biblioteca da Universidade de Évora seja magnífica, tal como a Biblioteca Pública, obra de Frei Manuel do Cenáculo, um homem devotado às Letras e seus suportes físicos. Imagino que seja boa a livraria pessoal de ACF, e imagino também que os seus contactos com o estrangeiro lhe forneçam os documentos desejados. Basta notar que algum do seu romance histórico apresenta abundante bibliografia e fontes, para ficarmos seguros de que o autor investiu um tempo colossal em pesquisa de arquivo, com tudo o que há de desgastante nessa tarefa. Em Paris, por exemplo, ACF fez pesquisa de arquivo para consultar e transcrever documentos epistolográficos relativos às relações do Surrealismo português com o francês. Nada de mais fascinante do que lidarmos com o manuscrito, sobretudo se estiver virgem; porém, decifrá-lo, quando se trata de escrita difícil ou em línguas estranhas, é muito doloroso. Sem falar de questões de saúde, pois o papel não é matéria limpa, fica sujeito a depósitos de poeira e larvas de inseto, o mais antigo; enfim, tudo o que causa asma e alergias várias e por isso exige uso de máscara e de luvas de cirurgião. Escreve quem passou por isso no exercício das suas funções, reconhecendo assim méritos que para outros seriam invisíveis.

António Cândido Franco, 2021

O que a Revista Triplov oferece como amostra do labor de ACF é pouco; por exemplo, nada traz a lume sobre o trabalho brutal que tem sido publicar A Ideia – Revista de cultura libertária, oriunda da tradição anarquista em Portugal, ultimamente dada à luz em triplo volume anual. É das melhores revistas de literatura e cultura em geral que se publicam entre nós. Trabalho que permite a ACF conhecer certamente a maior parte dos artistas e intelectuais portugueses, em número de milhares, sem contar com a colaboração estrangeira, em especial na matéria de maior afinidade poética, o Surrealismo. Chamar para colaborar na Ideia é um gesto não só de enriquecimento da literatura pátria, mas também de dar visibilidade a autores quantas vezes na sombra de obras de menor divulgação. Se a revista Ideia fosse uma empresa, eu diria que era a maior empregadora literária em Portugal, ou perto disso estacaria. Assim procede porque ACF ama as pessoas e não apenas personagens como as do seu romance histórico. Daí listas de nomes como no Bestiário, daí os retratos, como vemos na colectânea Retratos metafrásticos, para não mencionar hábitos comuns a tantos, como a citação e a epígrafe.

No índice, julgo que temos uma versão completa ou quase do Bestiário -poema de zoologia fundacional aplicada, um catálogo surrealista de autores, a documentar a familiaridade de ACF com a literatura nacional, desde os seus primórdios. Pequeno livro, pois o classifica o autor como poesia, e são em geral pequenos os florilégios de versos, que no caso são linhas de prosa, mas trata-se de uma lista de centenas de autores, classificados como Lineu teria classificado os répteis e os mamíferos, isto é, dotando cada espécime de uma chave diagnosticante. Vejamos uma ou duas citações que nos esclareçam sobre o fundamento científico da obra no seu esqueleto físico e sobre a dimensão e cores da sua alma, no que tange ao que é intangível:

TEÓFILO BRAGA – Elefante cartaginês que serviu a Claude Bernard para acelerar o método experimental de torrar papel e reduzir a pó os dentes de cardo.

EÇA DE QUEIROZ – Flamingo cinzento de ânus azul, com pena lilás no alto da cabeça e ponto vermelho no alto do bico amarelo, que se extinguiu no final do século XX e cujo derradeiro exemplar pode ser visto no Jardim Zoológico de Pequim. Está em processo de identificação um segundo exemplar no Zoo de New Jersey.

GUERRA JUNQUEIRO – Jaguar faminto dos desertos setentrionais do Mé­xico que frequentou o seminário e serve de mola em caleches de campainhão e longo curso. Ou então papagaio loiro das pampas argentinas que todos os dias de manhã toca por brincadeira a corneta do regimento de milicianos de Montevideu.

O Bestiário é um poema singular, como se esperaria de um espírito irrequieto e imaginativo capaz de cultivar nas hortas do céu as suas estrelas, isto é, um espírito que doseia a firmeza dos pés no chão do realismo com a alta metáfora da filosofia e do misticismo. Daí a sua atração por Teixeira de Pascoaes, por exemplo, ou de Agostinho da Silva, ou, mais fortemente até, pelo mito de Pedro e Inês, de que temos, neste tomo da Revista Triplov, uma segunda versão ainda em processo do romance A Rainha Morta e o Rei Saudade : O Amor de Pedro e Inês de Castro.

O gosto pela fundamentação, patente na bibliografia, exibida até no interior das páginas de um romance, nota-se, por exemplo, no dedicado a D. Carlos, quando ACF não receia penetrar no catálogo científico ou pouco mais literário do que isso, como são os trabalhos do rei oceanógrafo, empreendidos sobre as rotas de migração do atum, no iate Amélia. Do outro lado, no Mónaco, o príncipe, seu primo, dedicava-se a idênticas atividades no iate Alice. Literatura árida, rasa, sem o prumo da metáfora, mas ele leu esses textos e avaliou os desenhos e pintura do monarca, por isso enriquece o leitor ao escrever com perfeito conhecimento de causa. O facto de ACF esclarecer que não lhe interessa fazer História, sim contá-la, não obsta a que não beba largamente nas fontes históricas.

ACF, 2016

Temas nacionais, autores portugueses, de quadrantes estéticos diferentes, a exemplo de pintores, são naturalmente privilegiados por ACF, e de preferência saídos da modernidade, caso de Cruzeiro Seixas e de Mário Cesariny de Vasconcelos, de que ACF apresenta biografia neste tomo, e do neste tomo não incluído Luiz Pacheco, acabado de aparecer nas livrarias em volume de páginas tão contrastante com as obras do autor de O Libertino, que de alguém ouvi o comentário que em parte pousou no meu título: “O Luiz Pacheco tem obra que justifique uma biografia tão colossal?”

Não é caso para responder ao que a Luiz Pacheco diz respeito, respondo apenas por ACF: sim, é colossal a obra deste nosso amigo e companheiro de há mais de cinquenta anos.


Revista Triplov

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Portugal – Maio de 2023