FLORIANO MARTINS
Tributo
Somos os habitantes e os visitantes
dessa casa que dá para o caos.
Maria Lúcia Dal Farra
1 A CASA VELHA DESAPARECIDA
A velha casa se reorganizava a seu modo. Cada vez que abríamos uma de suas portas dávamos de cara com uma parede de tijolos impedindo a nossa passagem. Ao fechar e reabrir, ali estava o cômodo em sua integridade, porém com os móveis mudados de lugar. A casa parecia temer alguns de seus gestos. O pequeno varal portátil ao lado da máquina de lavar, o abridor de cartas na gaveta da cômoda, os ponteiros do relógio da cozinha que sempre à meia-noite se grudavam e pela manhã alguém tinha que separá-los para voltar a funcionar. Mas principalmente os sons da chuva que permaneciam audíveis horas depois dela estancar. A casa chamava por si em momentos de aflição, com a voz embaçada, quase sem forças para reagir. Tanto ouvíamos suas histórias que um dia resolvi visitá-la. Ela, no entanto, já não estava mais em seu endereço. Talvez apenas tenha se tornado invisível, ou então saiu à procura de um lugar menos aterrorizante.
2 ALEGORIA FATAL
Osman chegou bem cedo, o sol ainda esfregava os olhos tentando acordar. Deixei a porta da frente entreaberta para que ele pudesse entrar. Trazia consigo uma caixa com a sua ciência fotográfica. Osman era temido por tantas almas aprisionadas em sua câmara. Ninguém ousaria indagar qual o motivo daquela sinistra coleção. Tampouco faço ideia do que ele veio fazer aqui. Ajustou um tripé com a base giratória, sobre ela a câmara. Tão logo se escondeu atrás de uma pilastra, usou seu comando remoto e a cada três segundos a máquina, sempre girando, disparava o flash e tirava uma foto. Foram mais de 100 disparos. Quando começou a ver as imagens reparou que a cena era a mesma de quando chegou, a porta entreaberta. Retirou da caixa o equipamento fotográfico e ele começou as tirar fotos com um disparador giratório automático. Osman suava frio diante do inexplicável. Como aquela câmara havia fotografado algo antes de sua existência? Continuou olhando as demais imagens e arregalou os olhos ao ver que, ao final da sessão fotográfica, ele mesmo conferia o resultado. Ao olhar então, reparou o quanto se espantava, na sequência das fotos, onde podia se ver – seria mesmo ele? –, cruzando a porta entreaberta e colocando no centro da sala uma caixa de onde começaram a sair – um, dois, três – fantasmas que tiravam fotos de cada mínimo recanto da sala. Osman estava trêmulo e temia que ao final dessa nova sessão ele desvendasse em seu rosto, sob os diversos ângulos, um mapa de assombros, nas rugas congeladas do tempo… Mas, como evitar que o futuro não cesse de se repetir?
3 MÍSTICA DO MOFO
Reúno os corpos de todas as saciedades. Restos anônimos do vazio. Espectros defumados e suas migalhas ocultas por toda a casa. Os manuscritos apócrifos de paredes descascadas. Lar de misérias clandestinas. Tudo parece cansado de repetir suas falhas. Os anjos não sabem onde por as asas. Tuas sombras sôfregas que se esgueiram por entre os cômodos sem vida. Eu comecei então a fustigar o abandono para que se deixasse penetrar pela umidade. Aos poucos fui descobrindo algumas pistas falsas: Breton e sua fábrica de cachimbos, os figos delirantes de Miró, as tábuas em branco de Confúcio. Nada disto deve mais ter uso. Outros vícios que reconfortem a alma apavorada do silêncio. Demônios sugam o mistério daqueles que escrevem com a mão alheia. Os que aprimoram dilemas para a ressurreição de seus males. Eu apenas reúno as anomalias de tanta disseminação.
4 TALHER NOSTÁLGICO
Debaixo da escada o armário rege a harmonia das peças mais exóticas. Há muito o azinhavre sobre nossos corpos não nos permite mais fazer amor. A pequena estante de ampolas está repleta de nuvens em cada uma delas. Um dia a vigilância da faca, em outro a mansidão do garfo. Nos dias sonolentos nós mantemos a vigília. Formigas carregam montanhas de um lado a outro. Um elenco de miniaturas improvisava o teatro de suas penas. No escuro ilegível da mais baixa prateleira o taxidermista tentava convencer suas aves empalhadas a voltar a voar. Dentro de uma banheira, onde um espelho se banhava, um mágico confronta seus últimos instantes de vida. A baleia iluminista regurgita os mesmos dois poetas a cada bocejo. Nosso amor perdeu seu brio com tantos pratos vazios. Esta será mais uma noite sem função. Não nos resta senão recordar o catecismo do armário convertendo suas miudezas em espectros iluminados.
5 BEATRIZ
Nunca houve nenhum trem que me trouxesse aqui. O bosque cerrado que a vista alcança se reproduz por incontáveis quilômetros. Nenhuma estrada. Qualquer um diria ser impossível chegar a esta casa. Eu vim três vezes. Há muito desapareceu de minha memória como cheguei e como fui embora. Marquei com uma faca na madeira da janela três traços. Três faróis que não me dizem se fui trazida pelo meu desejo ou se a casa me convocou. O que mudou na terceira vez é que já não necessitava usar as portas para passar de um cômodo a outro. Tudo era mais fácil e meu corpo ganhou uma leveza que eu jamais imaginara. Aos poucos me acostumei com o desaparecimento súbito dos andarilhos que visitavam a casa. O homem que veio apenas deixar um livro sobre a mesa da sala. O jovem desnudo que por três noites seguidas vinha dormir no último quarto no andar de cima. A negra que ficou por quase um mês, com quem eu pude conversar sobre seu passado. A perseguição inclemente dos filhos que ela tivera com um padre. Ela me disse que sentiu a vida se afastando subitamente. Jamais houve tempo para entender o que se passou. Nenhum de nós vive o suficiente para saber quanto ainda pode realizar. Tenho recebido essas visitações como um sinal de que não devemos nos enganar pela crença ou desânimo, pelo sonho ou o arrependimento. A vida persegue o movimento sinuoso como a árvore no quintal contempla o rio que devora a si mesmo. Não sinto mais o meu corpo, porém é intensa a minha presença onde quer que eu vá.
6 OSMAN
Há sonhos hipnóticos em que a casa se triparte e nos leva rumo ao passado que mais estranhamos. E em um tablado desfigurado os três vultos se embaralham de um modo impossível de alguém sair daquele enredo de portas e janelas. Móveis se revezando em seus incontáveis cômodos. Diálogos entrecortados e vozes fugidias viessem de quadros ou álbuns de família. Porões regurgitando formigas e símbolos indecifráveis. Por vezes algumas sombras parecem comidas por vermes. A sombra da cozinheira negra e gorda pesa mais que a dona, e nem sempre a acompanhava por onde andasse, sobretudo quando ia ao quintal apanhar cajus. A minha memória ainda hoje queima castanhas a seu lado. Certamente as três casas eram apenas uma. Quando me enterraram no cemitério próximo ao mar, sorri abrindo meus olhos para aquela revelação. E deitei-me então na velha cama do quarto dos fundos. Descansarei um pouco, antes de começar a escrever a minha história.
7 O ARQUITETO
O assoalho improvisava uma raga assustadora. Os restos arrastados de Gaudí por nossas ruas imaginárias. A caligrafia onírica com que alimento as páginas apagadas de meu diário. A sombra esverdeada de uma árvore. Quantas noites até que a lua se mova de um desejo a outro? Os livros se foram todos, temendo os truques do esquecimento. Não vou envelhecer sozinha nesta paisagem esmaecida. À espera do último capítulo, em que as palavras se rearticulem, meditem sobre o dilema do inevitável. Quando veio me visitar o Arquiteto, eu não sabia o que ele tinha em mente. Tirou a medida de minhas rugas, encaixotou os utensílios menos carcomidos, lacrou janelas e portas. Alguém descreveu a cena como uma árvore abraçando a casa desmoronando em seus galhos. Confesso não saber exatamente o que houve comigo naquele dia. O vento no quintal abriu o apetite para devorar minha alma inteira. A grande árvore anotava de memória as dúvidas mais sinistras. O último beijo que ela me deu eu já não pude sentir. Desde então sangro nos móveis colunas soleiras… O rio não floresce mais em meu íntimo. O rio foi morar dentro da árvore, quando ela foi embora, sem deixar uma só folha no chão.
8 CENA BEM PRÓXIMA
Uma segunda luz de teto interrompe a escuridão. No centro da sala a pequena mesa posta para o jantar e duas mulheres acomodadas. No centro da mesa uma caixa quadrada com pouco mais de um palmo de base. Ao ser aberta pela criada, surgem três novos objetos: os rascunhos de Virgílio, o estojo jamais encontrado com as tintas negras de Franz Kline e a sopeira de ouro de Maria Sangrenta. Tão logo a criada serviu a sopa de finíssimos macarrões, dois mapas se formaram em pratos fundos. Os mapas eram idênticos, embora um deles fosse a imagem invertida do outro. Havia, no entanto, no mapa ao revés um estranho ponto negro que crescia a cada olhar. A criada e sua senhora se davam as mãos, temendo o que intuíam viria em seguida. Olhos fixos no ponto negro no prato da criada, ele começou a crescer, transbordando pela mesa e logo por toda a cena, devolvida à escuridão antiga. Os mapas não guardam segredos. Nós é que precisamos aprender a decifrar suas mensagens.
9 O PARAFUSO E A COBRA
Talvez seja comum encontrar em todo porão uma grande caixa lacrada cuja curiosidade acaba por nos levar a escavar seus mistérios. Os olhos se enchem de utensílios: a lâmina de barbear de Buñuel, o cachimbo de Einstein, as velas de Goya. Saindo para o quintal era possível ver o rio bem próximo, cuja mecânica secreta de suas águas ludibriava o tempo. No dia em que deixei de esperar por alguma visita do acaso, as águas se foram, deixando em seu lugar um punhado de galhos e pedregulhos que certamente iriam dar no mar. Do fundo do oceano emerge uma serpente dando mil voltas, nela mesma. Talvez fosse apenas uma lenda, ou um milagre em busca de parceiro. Talvez fossem duas figuras e não apenas o personagem solitário que o nosso olhar suspeitava. De certo o que sabemos é que o rio nunca mais foi o mesmo. E quando espano a prateleira onde se encontram aqueles três objetos, ainda escuto um rangido que não consigo identificar.
10 RELATO DE BOLSO
Por mais que eu sempre deixasse uma porta aberta, a noite não passava dali. Não havia como devolver os corpos celestes ao altar da memória. A noite aprimorava o esquecimento de cada volta do relógio e os tremores ocultos de qualquer sentença. Os ponteiros cravados na soleira. Fantasmas sangrando pelo corredor. Antigos moradores que não tiveram como escapar e em mim se reúnem como a fonte de uma energia redescoberta a cada morte. Escondi plumas e tintas por inúmeras gavetas. Ampulhetas regurgitam o tempo que não conseguem cumprir. Quem sabe uma última criada pudesse escrever um livro sobre quantas vezes a noite tatuava na própria pele a frustração por não me conhecer senão como uma névoa, uma lenda, uma pintura rupestre. Uma tempestade de areia simulava um aterro de sombras. As paredes se despiam e nada em mim cessava de renovar-se. No entanto, a noite, por mais que eu deixasse uma porta aberta, dali não passava.
11 QUEBRA-CABEÇA
A mão do mito é uma esponja com fundo falso. O leiloeiro bebe seu xarope e canta. Cada peça se apoia numa tabuleta com seu lance mínimo. O cinzeiro de Giacometti, a maçã de Burroughs, as luvas de Helena Blavatsky. O mito é indomável e se recusa a saltar na cartola do coringa. O cuco desfaz as horas para dormir um pouco mais. A bailarina de madrepérola flutua no rótulo da água ilustrada. O violino esconde as notas falsas na lapela do ilusionista. O mito se livra das malas. Não quer mais viajar. Ele toca fogo no respeitável público. Uma voz escoa da boca do canhão e implora que não o deixemos sozinho. O martelo e sua imponente enxaqueca. O leiloeiro pigarreia e encerra o lote. O mito não mais se reconhece. As ruas caminham para dentro. A noite reverte tudo o que foi um dia.
12 CAPRICHO RITUAL
Mal amanhecia os peixes saltavam das nuvens para o rio. Diante de um cascalho na forma de uma lâmina cega duas fêmeas conversam:
– Até onde levarás esse espelho?
– Enquanto houver água corrente, sempre uma de nós pode querer contemplar os sentidos camuflados de sua vida.
– Haverá água sempre, corrente ou não, assim que precisarás de muitos mais espelhos.
– Por isto vim conversar contigo. Com quantas bolhas achas possível conseguir um bom espelho?
– Daqueles em que se pode ver tudo o que queremos?
– Daqueles que nos mostram coisas que nunca fizemos.
– Ah os mitológicos!
As duas fêmeas seguiam conversando enquanto o rio estocava seixos onde fixar as imagens que vinham boiando. O mundo inteiro nos visita antes que tenhamos a mínima ideia do que somos.
13 LAMPARINA SECRETA
Plutone era um deserto encantado. Era também demasiado sério, não falava com quase ninguém. Antes de dormir, sonhávamos um com o outro. Foi como o conheci. Ao morrer, afogado em suas lágrimas, guardou bem escondido em seu porão um diário, cujas páginas recordavam o futuro minuciosamente. Plutone, em sua sensatez quase implacável, por muitos sóis anotou incontáveis passagens subterrâneas que nos levavam de uma margem a outra de sua existência. O infinito é a mais trapaceira de todas as ilusões. Agora que leio o seu diário, começo a duvidar do papel que Plutone tenha representado em minha vida. Guardo as suas lágrimas em uma caixa de areia na prateleira mais alta de meu sonho. Somente ali, onde não durmo nunca, é que consigo recordar quem foi Plutone.
14 A ARTE DA REPETIÇÃO EM CINCO CÔMODOS
ALCOVA | Comecei a retirar de espelhos e fundos falsos de gavetas as imagens primordiais de abismos que habitam em mim. Os rebocos inadequados com que o tempo foi refazendo as paredes. Sobre a mesa de cabeceira dois porta-retratos há muito não trocam uma palavra entre eles. O renascimento dos deuses foi amaldiçoado pela técnica e o ar apodrecido. Frialdade jocosa, o perfil tenebroso dos mitos. Quem dormiria em mim sem ser despertado pelos fantasmas mais deploráveis? Fui proibida de gozo e outras suculências. Condenada a me repetir como uma fantasia onanista. E tenho que ser infatigável, arranhar os espelhos até que não reflitam mais uma nesga do que penso.
COZINHA | Antonieta veio passar uns dias comigo. Ela estava com uma cova aprimorada de angústia em seu peito. Uns dias à beira do rio certamente lhe faria bem. Foi ao quarto deixar a mala e se despir. Ficar nua e descalça era algo que há muito não fazia. Retornou à sala com uma pequena caixa de onde retirou o piano e começou a tocar. O armário de louças, enlouquecido, arremessava por toda a cozinha pratos, xícaras, travessas. Todos os ossos de Antonieta zuniram como uma colmeia ameaçada pelo incêndio. Ao adentrar a cozinha, mal contendo o assombro, ela encontra o cômodo regido por harmonioso silêncio, os móveis todos em seu lugar, apenas do teto pendia, do que parecia ser a corda de um piano, o corpo inerte de um boneco de ventríloquo que havia tirado a própria vida. Antonieta então sussurra ainda trêmula seu desejo de vida longa ao morto recente. Os verbos perdem a noção do tempo e, para acalmá-los, ela decide preparar um chá. Enquanto isto, na sala, o piano retoma a melodia interrompida pela gritaria das louças.
SOTÃO | Anita modelava em cera os personagens e mobiliário de uma farsa que adorava improvisar dentro da casa. Algumas criaturas são movimentadas por finos cordões, porém outras ganham vida na medida em que se sentem parte do enredo. A casa hoje está sob os cuidados do esquecimento, em um canto escuro do porão. Uma plateia de ratos roeu os fios, caindo ao chão os personagens sem vida. Algumas animações ainda dominadas pela mecânica da resistência depuseram os corpos caídos sobre uma grande mesa. Toalhas e cortinas foram encomendadas em um atelier de aranhas. Um único ato daquele enredo havia resistido ao abandono do tempo e era então repetido à exaustão, dando apenas uns minutos para descanso dos atores. Anita jamais soube que havia construído aquela maquete. Durante os anos que viveu em mim, gostava muito de brincar improvisando cenários e tramas. Ainda hoje eu me ressinto de sua morte. Um par de aranhas teceu sua veste mortuária.
ESCADA | A grande árvore acendia suas luzes ao fim do dia. Um enxame de velas zumbia por meu corpo inteiro. Ondulações de um enigma que subia e descia sem rumo. As escadas não foram feitas para chorar pelo fôlego esquecido. A minha era coberta com um véu, como uma tenda e sua floração de nuvens. Uma vez que alguém que pisava o primeiro degrau, já não havia para onde voltar. Cada mapa escolhia um visitante a quem mostrar uma trilha repleta de códigos de sobrevivência. Clarice oscilante como um pêndulo desorientado se sentou no décimo degrau. Umas poucas lágrimas lavaram a névoa de seus olhos. Aos poucos viu pousar na flor de sua imaginação o esqueleto de uma ave ancestral. Quando a ave pôs um ovo em seu ninho de brancura líquida, Clarice foi possuída pelo vislumbre de que sairia de mim renascida. Ela então sorveu suas lágrimas e continuou a descer.
RIO | Dentro de mim mora um rio. Era outono em meu diário, as folhas todas caíram dentro do rio. Nenhuma página em que eu pudesse anotar novos esquecimentos. O rio dá a volta em meu corpo inteiro, e devora a própria cauda. Dentro do rio mora um peixe que há muito não sai de casa para pescar estrelas. O peixe joga baralho com a noite e não me deixa ver suas cartas. Faz frio na nudez de meu diário. A grande árvore acesa pousava um ramo de fábulas na pele ondulante do rio. Perdi o tempo emocionado com aqueles relatos de água e luz. O rio me diz que o peixe põe seus ovos enquanto a noite lacrimeja. Eu me olho no céu como se fosse um espelho. Rio, peixe, noite, árvore… Quando o outono se for eu voltarei a me lembrar de todos.
15 PRIMEIRO PALCO
Um dia resolvemos improvisar cenários que ocupassem o lugar das lacunas em nossa memória. Era como se tentássemos nos lembrar do que nunca existiu. A grande sala de estar seria o melhor palco da casa. Totalmente às escuras, aos poucos acendia uma luz de teto, direcionada para um de seus cantos. Uma banheira, uma cadeira, duas mulheres ocupando as funções da senhora tomando seu banho e a criada a ensaboando com uma esponja. Quem eram aquelas duas é algo que jamais soube. O silêncio da cena parecia ser composto por fragmentos de inúmeros ruídos não identificados. A ação recortada em seus fotogramas, como um filme remendado. Não se entendia as falas da criada, porém a senhora sussurrava repetidamente uma frase: Tanta coisa nós deixamos para trás que interpretamos nossa vida apenas como retalhos. A cadeira parecia ser puxada para fora do cenário. A criada se levantou para evitar uma queda. A cadeira foi engolida pela escuridão, enquanto a senhora repetia: Tanta coisa, tanta coisa…
16 ÓLEO MÁGICO
Carmina chegou mais cedo. Há muito não havia ninguém em casa. Vasculhou todos os cômodos à procura de algo. No quintal os sapos se banqueteavam com os mosquitos que puseram seus ovos em uma poça de óleo. Os mosquitos deslizavam sapo adentro como uma cega esmaltando a ladeira. Aos poucos os sapos foram se acumulando atrás de uma pilha de carvões, empanzinados com tanto óleo. Uma faísca que pulava por ali ressuscitou os carvões e salpicou a escuridão de luzes esvoaçantes. Carmina tinha agora tudo ao alcance de sua vista e logo encontrou o que buscava. Uma pequena caixa onde eram guardadas as sombras dos mosquitos. Esmagou cuidadosamente o conteúdo da caixa. O jantar estava pronto. Agora podia dormir e sonhar com os cômodos da casa trocando de lugares, cada um deles procurando a própria sombra.
17 DILEMA FINAL
Novamente uma luz dissipa o escuro, agora na outra ponta do cômodo, onde vemos uma cama de solteira e uma cadeira. É a hora em que a criada lê para a senhora. A cada parágrafo lido vão surgindo manchas oscilantes cujo contorno logo é possível identificar. Decerto são alguns personagens do romance: o velho despenteado com a sanfona, errando todas as notas da música; um auxiliar de Morandi limpando as garrafas em suas telas; a dentadura saltitante que sempre que abre a boca jorra um espelho… A criada se assusta, mas a senhora se diverte. Logo a criada se adverte que aquele amontoado de personagens e objetos vai exigir uma explicação para sua razão de ser em meus vários cômodos. Não há fenômeno físico mais intrigante do que aquele desprovido de sua metafísica. Ela então ri, imaginando o trabalho colossal que terão os exegetas daquela fantasia. Enquanto isto a senhora boceja, já quase fechando os olhos. Acena com a mão para que a criada deixe a leitura, pois ela quer dormir. – Camila, me dê aquele sonho que eu tive ontem e apague a luz.
18 DISSABORES DO CUCO
Eu sou a ilusão do tempo. A miragem em que as águas arrastam tudo em seu caminho e não regressam jamais. O moto contínuo da vaidade. A memória do que se esconde dentro e fora de cada movimento. Virtuose de engrenagens mais sutis que zombam de arrependimentos e ansiedades. A porta do quintal entreaberta. Beatriz de cócoras contando seus grãos. Sua espera inesgotável de que o dia volte a ser outro. Já fui um demônio da circularidade. Até que Dalí garimpasse o ouro de meus antepassados. Beatriz não tinha mais ninguém a quem contar seus arrepios. Eu a escutava por horas, até que o sol amarrasse os cadarços do dia. Era grave estar presente naquele momento. Ela brincava com meus ponteiros, tocava-me o corpo inchado de tanta relutância. O mundo repinta mil vezes as mesmas cartas que distribui por onde passa. As paredes decidem o que fica dentro, o que fica fora, de qualquer sacrifício encenado ao crepúsculo. Beatriz me disse seu nome mais vezes do que pude contar. Eu perdia a noção do instante ao repeti-lo. Quem era ela é uma dúvida que já não me conforta. Tanto nos disfarçamos em inúmeros personagens que ao chegar a nossa hora simplesmente não estaremos mais aqui. A ilusão é um cão de guarda do tempo.
19 TIMOTHY E STEPHEN
Dentro de uma caixa havia uma floresta desfigurada e os sussurros de seus fantasmas. Na outra era possível ouvir o vozerio metálico das tesouras dos gêmeos Quay, discutindo como reanimar velhos truques dissecados. No interior da terceira caixa certamente se ocultava uma sombra quimérica aguardando ser revelada. Ao menos era isto o que nos garantia o prospecto de uma antiga lenda. Ouvindo a conversa de dois visitantes, eu descobri que se aquelas três caixas fossem colocadas na posição correta, o encaixe liberaria um cenário em movimento em que as tesouras ensinavam as árvores a identificar a sombra de cada uma. Talvez por isto, o museu dispunha as três caixas encerradas em cubos individuais de acrílico, para evitar que o encontro delas provocasse uma leitura distinta do que até hoje consideramos ser a realidade.
20 O FAQUIR
De súbito ela concordou em posar para mim. Cabelos soltos. Inteiramente nua. A pele banhada. Ela e a poltrona compunham a melhor paisagem que meus olhos conheciam. O carvão na tela foi encontrando a expressão ideal de seus contornos. Meu olhar estava possuído pelos traços. Na medida em que o corpo migrava para o quadro a poltrona ia se sentindo solitária, e eu só percebi o que estava acontecendo quando ouvi alguns murmúrios e ergui o olhar. Restava apenas um pouco de suas pernas, joelhos, os dedos de uma mão e um último detalhe das pontas de seus longos cabelos. Ao concluir e deparar-me com a solidão da poltrona, cheguei a pensar que a pintura me daria um sorriso. Nenhum movimento. Exceto a minha estranheza de que seu corpo tão belo, representado à perfeição, estava sentado no vazio. A poltrona permanecera na sala. Tentei desenhá-la na tela, porém os carvões ficaram mudos. Eu então os espalhei no chão e me deitei sobre eles, à espera que absorvessem meu corpo e me pusessem na tela para amparar a modelo. Devo ter adormecido. Ao acordar o que vi até hoje não pude compreender. Desde então, permaneço sentado na poltrona.
21 GUIZOS MIRACULOSOS
O mofo era o grande artista da casa, por suas abstrações assustadoras. Eu me vejo nelas como uma andarilha carpindo mistérios de um cômodo a outro. Porém o que vejo de mim é o que torna a noite mais negra e o dia um desfiladeiro de sombras e vultos inomináveis. Creio que a memória foi o primeiro pássaro a fugir do ninho. Não ficou sequer o alpiste. Eu fui sobrando feito um oratório que há muito Deus não visita. Ando tão esquecida de mim, até mesmo a morte deve ter perdido meus registros. Eu própria não posso lhe ajudar a me encontrar. Quantas vezes repeti meu nome diante daqueles murais abstratos, desesperadamente tentando ao menos evitar que esta parte de mim fosse embora. Porém daquelas paisagens turvas não vinha resposta alguma, nem mesmo umas flores de eco. Há momentos em que não podemos fugir daquilo que deixamos de ser.
22 MESA BRANCA
O mar trouxe até o rio o corpo eletrificado de uma mulher. Ninguém a podia tocar, sob o risco de um choque fatal. Ela então recolhia gravetos e ossos de animais mitológicos por onde passava. Uma multidão impressionava-se com a beleza de sua nudez. Ao se aproximar de uma de minhas janelas vislumbrou a mesa redonda de jacarandá, coberta por uma branquíssima toalha, e os quatro cavaleiros que sobre ela estendiam os braços a repetir seu nome. Qual nome? Ela não sabia. Já não se lembrava de onde viera ou o que ali estava fazendo. Qual lugar? Somente o silêncio a embaralhar as feições de todos. A cena parecia suspensa no vazio. Cibele… Um dos quatro cavaleiros tentou vesti-la com a toalha, porém ela não entendia qual o significado daquela ocultação de seu corpo. A mulher então tocou seus seios de onde começou a jorrar um líquido leitoso multicor sobre o cenário, tornando aquela parte de mim inidentificável. Logo em seguida mergulhou naquele novo espaço criado, e viu surgir crescentes ondas que a levaram dali jamais eu pude saber para onde. Os dias se passaram, ao ponto de não se saber quantos, até que a sala voltou ao normal, agora inteiramente vazia.
23 CARMINA
Quando queria deixava a seu passo um rastro de tulipas, o piso repleto de taças negras, que logo começam a transbordar luzes como fontes visionárias. O sol perdeu suas cores no rio. As noites adelgaçadas formavam uma orquestra de morcegos. Ela não ia nem vinha. Ninguém sabia como a paisagem reagiria a seus esgares. Os sapos valsavam seus melhores coaxados. Juro que vi Raul Bopp convencendo bambus a serem flautas. O céu respingava por toda a carne do cenário seu desejo de ter Carmina de volta. As mangas tingiam o chão com a mais doce voz de seus milagres espremidos. Pequenos fios atavam os ossos na forma de um puma. Ao passar a mão sobre as cartas uma delas sussurrou algo como um caminho indicado. Runas cantarolavam ao segui-la: Na torre mais alta / coberta de esmeralda / te aguarda um faquir / com a senha que falta. Sapos costuravam a boca das meninas antes de ler o Eclesiastes, para não ouvi-las gritar ao serem desvirginadas. O quebra-cabeça vai se formando durante o caminho. Cubos de luz recapitulam as pequenas pontes esquecidas. Rios vermelhos lambem o espinhaço do céu enquanto são cruzados. O esqueleto de um puma segue à frente. Para onde quer que olhemos, não víamos mais o passado. Quem sabe Carmina já estivesse na casa à nossa espera.
24 REFÚGIO
Deixei a noite cair no porão. Não creio que ela possa mais sair dali. Um rumorejo de ventos fervidos em uma bacia de lamentos. Cada vez que eu me repito acordo com os móveis fora de lugar. Um cálice convertido em botija. As tempestades de Turner dentro de uma garrafa. O esqueleto de um peixe nadando na pia pantanosa. A noite poderia nos redimir se soubesse como escapar de sua queda. Todo destino é trapaceiro e nos submete aos piores suplícios. Quando eu vim para este lado do rio a grande árvore ainda era uma semente regurgitada no mato por uma coruja. Nós três recitamos o horizonte ao contrário. Uma lâmpada acesa no quintal. As águas levemente onduladas descrevendo os sonhos lunares. Um sapo dizendo que ama a boca de um pote. Era uma vez uma noite caída na mais funda escuridão. Por ela procuramos em mil páginas do mais extenso negrume. Uma faca rasgando o breu até desaparecer completamente e só voltar a ser vista no interior de um espelho. Não há como tirá-la dali sem que seu reflexo dilacere a negra cena. Não podemos voltar ao que fomos, nem mesmo seguir em frente buscando quem nos faça esquecer o que ainda não somos. Vamos de um lado a outro. A noite adormece no porão.
25 BANQUETE
A gaveta encharcada de cenas excluídas da memória. Sobre a cama empoeirada as bonecas cortavam as unhas dos pés e pintavam os olhos. Ninguém sabe como a mente funciona nesses momentos em que tudo é vazamento sem controle. Soluços, tesouros rastejantes, a sombra impertinente que duvida de tudo. Cibele. Antonieta. Clarice. Anita. Carmina. As janelas gritam intuindo o desfecho desse enredo. A penumbra se encolhe com pena de si mesma. Um árduo constrangimento de ossos embaralhados. Ninguém sabe a quais deles pertencem tanas cenas suspensas. Quem fala com a voz da outra. Qual delas remói uma perda vulgar. Quantas choram e se amam. Quantas idolatram e temem. A adúltera. A idiota. A recatada. A fugitiva. A mortificada. Noites amontoadas no palco com suas páginas viradas. A cama queimando seus fios lentamente e nenhuma compaixão do acaso. – Cuidado. Osman está chegando. Ele quer brincar conosco.
26 ALGAZARRA
Foram muitas noites perseguidas pelas formas mais esquivas. O revés de cada coisa imaginada revelando outra mecânica secreta. O ar seco, quebradiço, bisbilhotando as mais fortuitas intenções. Inúmeras vezes subimos e descemos os vãos do infortúnio. O pequeno gravador de mesa reproduzindo a voz de Osman. Seus verbos cansados como garras sem ponta. Longe dali não resta senão continuar idealizando as formas tangíveis de tantos vultos arredios. Criamos um mundo assombrado por lacunas. Tememos acordar encalhado no vazio. Enxertamos ruídos, balbúrdia e outras plantas venenosas, qualquer truque que nos impeça de ser devorados pela solidão. De um modo ou outro, o mundo será sempre incompleto, dentro e fora de mim. Jamais nos habituamos àquilo que não somos. As chaleiras de Hermeto. As garrafas de Pollock. As sapatilhas de Degas. Cada um de nós acoberta sua impossibilidade. Escoamos o excesso para que a vida se torne consumível. O rio se repete como uma cornucópia. A grande árvore soletra suas folhas como insondáveis testamentos. Eu me reconheço em cada visitante, assim como nos móveis e utensílios, no assoalho e nas telhas. Nada me impede de mudar sempre de lugar. Ainda ontem estive aqui.
27 ÚLTIMA SESSÃO
Um único ponto de luz em meu corpo rejuvenesce o esquecimento. Os fios suspensos desafiam a densidade da noite. Meus suores tingem de dúvida o desmazelo da mobília. Lance de utensílios atuando para eles mesmos. Osman risca no ar uma plateia vazia. Os mortos não se reconhecem no espelho. Espalham sua dança pela sala e convocam os potes de Beckett, as fantasias de Maldoror, os manuscritos de Sade. Nada me fascina mais do que esses rabiscos na carne putrefata do tempo. As minhas idades vão se perdendo a cada sessão. Fábulas folguedos cantorias. Osman desembaraça seus fios e arrisca sutilíssimas piruetas. A luz navega oscilações por meu corpo trêmulo. Quando se forem todos, não me restará um farrapo de cena. Talvez eu ouça os gemidos da grande árvore seduzida pelo rio. Nem sempre é suficiente apenas lembrar. Um ponto de luz range em meu ventre, onde a plateia permanece vazia.
28 MONÓLOGO
O armário da cozinha abria e fechava suas gavetas vazias. Por baixo da porta da geladeira com a tinta estourada jorrava um líquido negro e viscoso. A cortina envelhecida esvoaçava como se a janela estivesse aberta. Uma corrente de ar vagava por mim acendendo as velas mais inesperadas. As tábuas arrancadas do piso me atordoam. Se eu vou ao quintal encontro um vulto envolto em farrapos ruminando seus martírios. Por vezes me indago como suporto tanta vida desfeita. Dona porca mora sozinha perto do rio. Aprendeu a comer peixe e a cantar. Por vezes suspira, como se algo lhe faltasse. Porém ao ver as folhas da árvore caindo ela sorri e recorda o quanto a vida se desfaz e ressurge. Na pedra avultada sob a árvore uma menina amarra com fino nylon os ossos de seu cãozinho atropelado. Em outra dimensão os dois se encontram e brincam como se fossem frutos da eternidade. Eu queria que o rio me levasse para longe. Talvez simplesmente para saber como é regressar a algum ponto. Porém apenas envelheço. Imóvel. E a vida só me visita quando está desfeita.
Floriano Martins (Brasil, 1957). Poeta, ensaísta, editor, tradutor. Dirige a Agulha Revista de Cultura e o selo ARC Edições. Colaborador das revistas Altazor (Chile), Matérika (Costa Rica), La Otra (México), Blanco Móvil (México), Triplov (Portugal) e Acrobata (Brasil). Estudioso da tradição lírica na América Hispânica e do Surrealismo.
Contato: floriano.agulha@gmail.com.
Visite:
Agulha Revista de Cultura:
http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com
Escritura conquistada:
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2021/01/escritura-conquistada-poesia.html
Atlas Lírico da América Hispânica:
https://revistaacrobata.com.br/atlas-lirico-da-america-hispanica/