Alentejo e alentejanos

 

TRIBUTO AO PROF. GALOPIM DE CARVALHO


(In “…Com Poejos e Outras Ervas” Âncora Editora, 3º edição, 2022)


O substrato geológico e os condicionalismos climáticos que caracterizam a maior província de Portugal foram favoráveis à vegetação que aqui se desenvolveu, parte dela indígena e outra parte introduzida, bem como à ocupação animal, também ela autóctone e importada. O montado e o porco preto dele dependente, a vinha, o olival e a seara de pão, a tetralogia mediterrânea, no dizer de Alfredo Saramago, constituem elementos maiores tradicionalmente referidos nesta paisagem. Mas não são menos alentejanos, quase sempre esquecidos, os campos de arroz da bacia do Tejo-Sado, o extenso areal da linha de costa ou os densos pinhais da franja litoral. Mediterrâneo por natureza e atlântico por posição, como nos ensinou Orlando Ribeiro, os seus parâmetros marcaram as populações que aqui viveram, do mesmo modo que continuam a marcar o alentejano de hoje.

Os vestígios mais antigos da presença dos nossos antepassados-homens em terras do Alentejo remontam ao Paleolítico e estão representados, em especial, por indústrias líticas, neste caso, utensílios em pedra lascada encontrados em abundância nos terraços fluviais de alguns dos seus rios, e por não menos importantes gravuras rupestres, como as agora trazidas às primeiras páginas dos jornais, na sequência dos trabalhos em curso na barragem de Alqueva. Primeiro como recolectores, apanhando bolotas nos então muito mais cerrados montados, pescando e caçando, estes nossos longínquos avós acabaram por se sedentarizar, tendo-se tornado posteriormente pastores e agricultores. Tal fixação levou à construção dos primeiros povoados nas colinas sobranceiras aos principais cursos de água. A densidade de construções megalíticas (antas, menires e cromeleques), característica ímpar do Alentejo, testemunha a importância da sociedade agro-pastoril que aí teve berço há mais de 5 000 anos. Aqui se instalaram durante mais ou menos tempo ou por aqui passaram ligures e celtas, fenícios, gregos, cartagineses e romanos, uns nas suas rotas comerciais e outros em busca do ouro, da prata, do cobre e do estanho, com relevo particular para os romanos. Estes, chegados no século III a.C., deixaram-nos importantes marcas civilizacionais da sua ocupação e domínio político de, pelo menos, meio milénio. Outra importante presença, que também ainda hoje se faz sentir, foi a islâmica, iniciada no século VIII com a conquista de Mértola por Muçá ben Nusayr, pondo fim à dominação visigótica, a última das invasões levadas a efeito por povos do norte da Europa, habitualmente referidos como bárbaros[1]. A ocupação muçulmana teve aqui uma longa permanência, cerca de cinco séculos, até à conclusão da reconquista cristã, no século XIII. De todos estes povos herdámos genomas e culturas.

Anteriormente, o Alentejo, como nome de região, não existia. O termo, que significa para além do Tejo, foi criado pelos conquistadores do Norte do jovem reino de Portugal. O Ultra Tagum, no latim dos eruditos clérigos-juristas, deu Além do Tejo no dialecto romance, que era o que se falava aí, ao tempo dos nossos primeiros reis. Tendo este grande rio por fronteira natural, as terras que lhe ficavam a sul estavam, pois, para além dele.

Antes de serem Alentejo, estas terras constituíram parte da Hispania Ulterior[2], na sequência de uma divisão administrativa criada na Península pelo invasor. Estas mesmas terras foram, mais tarde, a metade sul da Lusitânia, a mais ocidental das três províncias ibéricas do Império Romano. Quatro séculos depois, com a islamização, fizeram parte do Garb, que quer dizer Ocidente, designação naturalmente usada pelos que vinham de oriente, neste caso, os invasores árabes. Mais precisamente o seu nome foi al Garb al-Andaluz, que significa o ocidente da Hispânia. Esta vasta região incluía não só o Alentejo como também o Algarve e a Andaluzia, do outro lado do Guadiana. O termo Andaluz surge escrito, pela primeira vez, numa moeda (dinar) cunhada no início do século VIII, como denominação árabe de Hispânia. A sua origem parece estar relacionada com o mito da Atlântida divulgado por Platão. Crê-se, assim, que a expressão Jazirat-al-Andaluz constante dos textos árabes da época, que quer dizer ilha de Andaluz, corresponde à tradução da versão grega de Atlântida.

A civilização muçulmana deixou aqui, em cinco séculos de permanência, muito dos seus saberes, não só os tidos por eruditos como os do melhor aproveitamento da terra, numa das regiões mais áridas do território, condição climática só igualável no nordeste transmontano. À unidade de coabitação entre estas hoje três regiões (Andaluzia, Alentejo e Algarve) durante mais de um milénio, criada pelos invasores romanos e continuada pelos conquistadores islâmicos, seguiu-se a separação física delineada ao sabor da reconquista e das disputas fronteiriças entre o reino de Portugal e o de Castela e Leão, ao longo do Guadiana. Não é, pois, por acaso, que há bastantes traços comuns entre nuestros hermanos andaluces e os alentejanos, por um lado, e entre estes e os algarvios, por outro.

Após a reconquista, concluída por D. Afonso III, surgiu a necessidade de reorganização territorial, tendo sido criada a comarca de Antre Tejo e Odiana (Entre Tejo e Guadiana), designação antiga que resistiu ao tempo através da poética de Bernardim Ribeiro, na Écloga de Jano e Franco, e que corresponde grosso-modo, ao actual Alentejo, tendo por limite meridional as alturas definidas pelas serras de Caldeirão e de Monchique.

O alentejano é o produto desta longa e complexa história e, naturalmente, da que se lhe seguiu, marcada sobretudo por um regime de propriedade de muita terra a dividir por poucos (Mattoso e Daveau, 1997), ou como cantou Manuel Alegre (1996), Terra pouca para muitos, terra muita para poucos, um longo percurso condicionado pela paisagem física em que se desenrolou. A diversidade geológica do Alentejo determina que, dentro de uma certa unidade geográfica como é quase sempre apresentada, haja diferenças sensíveis de local para local. Há um Alentejo interior, a oriente, semi-árido, dominado pela azinheira, e um outro, a ocidente, menos seco, influenciado pelos ventos húmidos do Atlântico, onde o montado de cortiça impera. Por outro lado, a escarpa de falha da Vidigueira, um acidente tectónico que limita a sul a serra de Portel, marca igualmente, como um degrau, a separação entre duas superfícies bem assinaladas pelos geógrafos, a de Évora, a norte, mais elevada e acidentada, e a de Beja, mais rebaixada e de mais vastas planuras. Esta realidade física é, talvez, um dos principais argumentos a favor da separação de duas sub-regiões, o Alto Alentejo e o Baixo Alentejo, separação administrativa sem reflexo nem expressão sensíveis na cultura dos seus habitantes. São alentejanos os madeireiros serranos de Portalegre e os seareiros das planícies de Évora e Beja. São alentejanos os cultivadores de sequeiro do sudeste interior e os dos arrozais alagados dos campos aluviais dos seus grandes rios ou os regadores do vale do Caia. Fala-se do falar alentejano, da cozinha alentejana e dos cantares do Alentejo, contam-se histórias de alentejanos e nem consta que uns se digam alto-alentejanos e outros baixo-alentejanos. A propósito das conhecidíssimas anedotas, seria interessante que se procedesse a um estudo sério deste fenómeno que invadiu Portugal nos anos que se seguiram à Revolução dos Cravos e que fizeram as delícias, não só dos meios mais conservadores do resto do país, como dos próprios alentejanos. Estes veem nelas o reconhecimento público, ainda que subconsciente, da força colectiva de um povo decidido a lutar por direitos há muito sonegados, força cuja imediata associação às organizações partidárias saídas à luz da liberdade, a muitos atemorizou ou incomodou. Para esses era, pois, urgente combatê-la, e uma forma de o fazer era desvalorizar os alentejanos, tornando-os estúpidos, indolentes e pouco dados ao trabalho, três “grandessíssimas mentiras do tamanho da roda dum carro”, no dizer do Ludgero, um pastor que conheci em adolescente e de quem nunca mais perdi o rasto.

Alentejanos são todos os da margem esquerda do Tejo e se o nome nada tem de especial, quando dito por alguém da margem norte, constitui um paradoxo sempre que são os próprios alentejanos que assim se autodenominam, uma vez que, sendo e estando do lado sul do Tejo (para eles o lado de cá, e, portanto, aquém do Tejo) se estão a afirmar além dele, como bem lembrou José Mattoso, que acrescenta «como se se tivessem cansado de olhar directamente para si mesmos e apenas pudessem vislumbrar o reflexo que projectam num espelho mais ou menos longínquo». Alentejano é, pois, o nome pelo qual esta comunidade se auto-identifica sem se dar conta que, em rigor, o termo só faz sentido quando dito por estremenhos, beirões, minhotos ou transmontanos. Nunca por eles próprios e muito menos por algarvios. Nestas condições dever-nos-íamos considerar “aquentejanos”, sugestão, aliás, já avançada no século XIII, mas que não fez vencimento. Com efeito, dois documentos assinados em Beja, em 1284, auto-situam-se no “Aaquem Tejo”.

No Alentejo de hoje as aldeias e as pessoas estão a urbanizar-se mercê, sobretudo, de dois factores determinantes – a facilidade dos transportes, que as põe a escassos minutos das cidades vizinhas, e a televisão, que tudo uniformiza. Estes dois veículos puseram fim ao isolamento de séculos, situação que é uma realidade, não só aqui, como por todo país. Porém, não obstante esta modernização, a cultura dos alentejanos, enraizada ao longo de gerações, e a persistência de uma condição ancestral por demais conhecida, fizeram e continuam a fazer deles aquilo que gostamos que digam de nós e que Manuel Alegre tão bela e rigorosamente cantou na linguagem universal dos poetas, no poema “O Estilo”, em «Alentejo e Ninguém», 1996, com que se abriu este capítulo.


[1] – De origem grega (barbarós), o termo quer apenas dizer estrangeiro. O sentido pejorativo da palavra decorre da associação que se fez entre esses invasores e os desmandos e atrocidades que lhes são atribuídos.

[2] – Exterior, no sentido de a mais afastada de Roma, em oposição à Hispania Citerior, ou interior, isto é, mais próxima de Roma.


Revista Triplov

Tributo a A.M. Galopim de Carvalho – Índice

Portugal . Outubro . 2022