CUNHA DE LEIRADELLA
Tributo
Finalmente, após inúmeras hesitações, o homem guardou os documentos espalhados em cima da mesa, fechou a gaveta à chave e levantou-se. Vestiu o casaco, puxou as calças na cintura, ajeitou o nó da gravata e atravessou a sala sem olhar para os colegas. Parou à porta e olhou a maçaneta. Trabalhava naquele escritório como assistente de contabilidade há quinze anos e nunca tinha entrado na sala do diretor sem ser chamado. Respirou fundo e bateu de leve no vidro fosco.
Segundos depois, a lâmpada de luz verde da padieira acendeu-se. O homem ajeitou outra vez o nó da gravata, alisou as lapelas do casaco, e cuidadosamente abriu a porta.
– Dá-me licença, senhor doutor?
Sentado atrás da secretária, o Dr. Ferreira lia um jornal.
– Sim?
O homem olhou o vulto imóvel, encoberto pelo jornal.
– Senhor doutor…
– Sim?
O homem pigarreou e ajeitou o nó da gravata. O Dr. Ferreira fechou o jornal, dobrou-o e colocou-o em cima da secretária.
– Sim?
O homem entrou e fechou a porta. O Dr. Ferreira fez um gesto com a cabeça, a apontar uma das cadeiras, e o homem sentou-se.
– Senhor doutor, eu…
Calou-se, e o Dr. Ferreira recostou-se no espaldar da poltrona. O homem ajeitou outra vez o nó da gravata e ajustou o vinco das calças nos joelhos.
– Senhor doutor, eu…
– Sim?
O homem mexeu-se na cadeira e passou um dedo por dentro do colarinho da camisa.
– Senhor doutor, o assunto que eu desejava…
Calou-se e pigarreou.
– O assunto que eu desejava falar com o senhor doutor…
Calou-se outra vez, respirou fundo e passou as palmas das mãos suadas nos joelhos.
– É um assunto meu, particular, senhor doutor, e eu…
Calou-se de novo e desabotoou o casaco. O Dr. Ferreira acendeu um cigarro e deu uma passa. O homem abotoou o casaco, o Dr. Ferreira colocou o cigarro no cinzeiro, pegou um lápis e começou a rabiscar numa folha de papel. O homem respirou fundo e ajeitou o nó da gravata.
– Senhor doutor, eu…
Olhou o Dr. Ferreira, que continuava a rabiscar na folha de papel, e calou-se. O Dr. Ferreira pegou o cigarro, deu outra passa, e recomeçou a rabiscar. O homem baixou a cabeça e ajeitou o vinco das calças nos joelhos. O Dr. Ferreira parou de rabiscar, e com gestos vagarosos esmagou o cigarro no cinzeiro de cristal. O homem baixou a cabeça e tentou afrouxar o nó da gravata. Apesar do ar condicionado, o suor escorria-lhe pelas costas. O Dr. Ferreira recostou-se no espaldar da poltrona, a olhar o homem. O homem levantou a cabeça, olhou o Dr. Ferreira, respirou fundo e desabotoou o casaco.
– Senhor doutor, eu vim falar com o senhor doutor sobre a possibilidade de um aumento. A Milú e eu vamo-nos casar, e…
Calou-se, baixou a cabeça e alisou as calças nos joelhos. O Dr. Ferreira não se mexeu nem disse nada. O homem respirou fundo outra vez e levantou a cabeça.
– Senhor doutor, a Milú é que me disse que eu podia…
No fim do expediente o homem fez duas coisas que nunca tinha feito. Esqueceu-se de guardar os documentos na gaveta da secretária e pegou um táxi para ir à casa da noiva. Estava tão impaciente que nem esperou o taxista dar-lhe o troco, e o elevador chegar ao térreo. Subiu os quatros lances da escada a correr e colou o dedo na campainha. E só parou de tocar quando uma mulher, envolta numa toalha de banho, abriu a porta. O homem abraçou-a, ainda ofegante.
– Ah, Milú, tu tinhas razão. O senhor doutor Ferreira deu-me o aumento. Deu-me até mais do que eu pensava.
A mulher fechou a porta e o homem abraçou-a outra vez.
– Como é que tu sabias, hã, Milú?
A mulher encolheu os ombros e riu-se.
– Ora, Tó.
O homem riu-se também, tirou o casaco e sentou-se no sofá.
– Que felicidade a nossa, hã, Milú?
Afrouxou o nó da gravata e desabotoou o colarinho da camisa.
– Ah, Milú, estou tão feliz, mas tão feliz, que nem sei como é que estou. Juro-te.
A mulher passou-lhe a mão na cabeça e sorriu.
– Então deixa-me vestir, que tenho de ir à manicure.
A mulher soprou-lhe um beijo na palma da mão e saiu da sala. O homem recostou-se no sofá.
– Milú, olha, antes que me esqueça. O senhor doutor Ferreira disse-me que faz questão de ser o padrinho do nosso casamento, ouviste?
Cruzou as pernas e olhou a porta por onde a mulher tinha saído.
– Ó Milú, sabes que eu nunca pensei que o senhor doutor Ferreira fosse assim? Nem quando tu eras secretária dele, ele falava assim comigo, juro-te.
revista triplov
INDICE / SÉRIE VIRIDAE / 01 / CUNHA DE LEIRADELLA
Portugal / junho 2021