TRIPLOV.COM MATÉRIKA SURREALISTA
ARTUR DO CRUZEIRO SEIXAS (POESIA) & MANUEL A.SOUSA (ARTES PLÁSTICAS)
A Tua Boca Adormeceu
A tua boca adormeceu
parece um cais muito antigo
à volta da minha boca.
Mas as palavras querem voltar à terra
ao fogo do silêncio que sustém as pontes
perdidas na sua própria sombra.
E há um cão de pedra como um fruto
que nos cobre com o seu uivo
enquanto pássaros de ouro com mãos de marfim
transplantam as árvores transparentes
para o ponto mais fundo do mar.
As lágrimas que não chorei
arrependidas
fazem transbordar a eterna agonia do mar
como um lençol fúnebre
com que tivesse alguém coberto o rosto metafórico
dos cinco continentes que em nós existem.
Assim é ao mesmo tempo
que sou eu e não o sou
aquele relógio das horas de ouro
que além flutua.
In ‘Homenagem à Realidade’
Poema da Profundidade Horizontal
Pintem uma paisagem dentro de outra
porque nisso está a verdade.
Olhem como avançam cautelosamente
pela falésia a pique;
uma curta aprendizagem
na agulha da torre
bastou.
Olho-te como para uma lente de aumentar,
uma luz para mais iluminar,
como se fosses antes de haver luz
uma pedra preciosa,
a causa das guerras:
dorme sobre os joelhos
e sente
revir ao mesmo tempo
automaticamente
os braços superiores laterais
enferrujados,
como a luz do velho farol.
Beija os dez cães que há dentro de um cão vadio,
os cem homens que há dentro de um homem,
de tal maneira que
o ar fique em chamas
e seja a única salvação
a mão do mar eternamente
na nossa fronte.
In ‘Obra Poética’
Era uma Pedra Feminina
Era uma pedra feminina
muito perto de uma pedra bem masculina
onde
a todo o comprimento do mastro
batiam os dentes das aves.
E o que restava das mãos mais antigas
pedia ainda dinamite
talheres avulso
mastodontes inviolados
alguns jovens em renda para bordar as estradas
hastes primaveris correndo o risco de se tornarem de bronze
acenando
a uma paisagem
hexagonal
maior que a soma de todas as janelas.
In ‘Obra Poética’
Levado pelas águas
sem jamais encontrar o mar
ferozmente atacado por uma flor
olho os dinossauros idilicamente
pastando nas margens. Que vejo eu?
Já não resta fóssil sobre fóssil
e só os náufragos ainda repetem os erros de ortografia
de continente em continente.
As plumagens agitadas das palavras são estandartes
atravessando o espaço e o sono
livres em toda a sua estranhíssima glória.
São os peixes esverdeados
que escondem sob as roupagens os labirintos
e as maquinarias prontas a investir
contra o paraíso.
A experiência impregnou as pedras da sua voz rouca
e as coisas são como um tríptico aberto
mostrando aos canibais perplexos
os nós mais secretos
daquele marinheiro alado.
Desfia-se já o fio que há séculos nos mantém.
Tenho frio
e imploro que me cubram com o dilúvio
ao som de trombetas exacerbadas:
que me cubram a mim e ao eco,
e à memória de tudo isto.
Estou ainda aqui,
e vejo
como um cego vê o mar.
Doem-me na minha carne todos os anzóis do mundo
e lá fora se amanhece
trata-se apenas de uma miniatura a escala do infinito.
Na fachada da tua torre
encoberto pela era descobrimos
patinado pelos séculos o brasão dos sentidos
onde sobre campo azul a saudade parte
e sempre ressuscita.
Sentadas nas soleiras das portas
as mulheres incansáveis
cosem todas as coisas umas às outras.
As mãos correm como cavalos na planície
e um rapaz perde a cabeça
diante do mar.
Neste quarto azul acendem-se as luzes uma a uma
os livros descem das estantes e abrem-se
sobre a grande mesa vermelha
tendo uma mosca
como única testemunha.
O tremor de terra
confunde-se com o movimento dos nossos lábios.
Dos retos descem estalactites sem razão.
É tempo de abrir as janelas e acreditar
que todas as coisas voam.
A noite chega como uma detonação.
O arrependimento é uma chuva opaca,
e tudo impede a verdadeira morte,
a gratificação de uma estrela
esverdeada.
Eu vos digo tanto pior,
tanto pior para os outros animais flutuantes.
É abrir um seio para ver um ovo,
e saudá-lo oficialmente em pleno circo,
é visitar os subterrâneos
durante o número dos trapezistas.
É querer que
a aliança de um pássaro e de um peixe
gerou estes olhos,
gasômetros ardendo
e o absurdo de uma vela,
mal iluminando esta escrita.
Nós vemos que não há copos vazios,
vemos que um terremoto é um beijo alucinado:
ouvimos um tronco docemente adormecido entre a
folhagem,
projetando a clássica sombra alongada,
passageira negra descendo a dunas como uma flauta.
Ponham agora a luz entre as tuas mãos,
pequenas sepulturas nuas,
e o furor da cobra querendo ser um rio,
do rio querendo ser uma cobra,
traz o batimento dos tambores interiores,
o som das flores no cabelo,
os sinos carnais
anunciando a carta desaparecida,
totem de uma ilha deserta.
Artur do Cruzeiro Seixas (Portugal, 1920)
Manuel A. Sousa (Portugal)
TRIPLOV.COM MATÉRIKA SURREALISTA
Matérika – Revista de Arte e Literatura:
http://www.revistamaterika.com/es_materika_13/home.html
REVISTA TRIPLOV . SÉRIE GÓTICA . VERÃO DE 2018
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