À sombra de um mito foragido

FLORIANO MARTINS
Tributo


A NUVEM DE ZEUS

 

Zeus beijou o sexo de Zíngara.

As luzes sopram até o ponto cego

em que as imagens se refazem.

Zeus quer para si outra música,

uma oferenda do mistério,

por onde passe o fio da navalha,

por onde a curva se estreite,

no espinhaço da dança, Zeus

quer o sexo entumecido da noite.

A tormenta espreita o sono

enquanto a cigana aleita

os dorsos da paisagem,

por um lado e outro do abismo,

Zeus, um beijo e a nuvem cai.

 

 

A BRUXA DOS PÉS DESCALÇOS

 

A bruxa atravessa o rio das onças.

De onde saiu o mato não sabe pescar.

Correm as imagens até a outra margem.

Em pequenos suspiros ondulantes,

uma ave sorteia as sementes íngremes.

Os pés da bruxa estão carcomidos

por suas andanças no velho casarão,

onde o rio se recolhe para dormir.

A noite jamais viu uma única onça,

ou mesmo outras medidas de regurgitar

os males do acaso. O sonho soprando

suas tremidas ocasiões dispersas.

A pedra onde a bruxa descansa os pés.

O rio correndo espavorido de um lado a outro.

Quantas onças pastarão essa memória?

 

 

O SONHO DA PLUMA

 

Uma pluma decifra o universo.

Uma pluma atiça o pó do segredo.

Uma pluma soletra o asilo do sonho.

Uma pluma em nome do voo.

Com as horas contadas a pluma

faz de conta que sabe nadar.

O rio da pluma é o mesmo do sol.

A maré da pluma é um mar descrito

pela algazarra dos passos perdidos.

Uma pluma requer muitos nomes,

mas sonega a família do gueto.

Uma pluma exilada e alvoroçada

não quer um parente por perto.

O ninho entoca os sonhos da pluma.

Como rio navegando a si mesmo.

A queda do sol nas mãos do vazio.

Uma pluma desconhece o motivo

de sua rara presença no mundo.

Levita, pousa, insinua a lousa do ser

e escreve muitas vezes que inexiste.

 

 

A FÁBULA DO RISO

 

Meu riso arranha teus labirintos

e a tarântula de seus devaneios.

Eu vim te ver enquanto a presa

amadurece seu destino aviltado.

A velha carroça do teatro comove

o tempo a gemer em suas cores.

A aranha da fábula alguma vez

me disse que nunca soube voltar,

ao subir pela parede só a queda

lhe restava, o abismo da moral.

Rimos juntas e tu eras apenas

a sombra refeita do caos, o vulto

ensopado de mistério que comeu

o queijo que o rato deixou escapar.

 

 

TEATRO CEGO

 

As horas sufocam no camarim.

Entre roupas apertadas, o gemido

por muitas cenas escondido acena

e dois pares de botas desconfiam

que esta será a última sessão.

Quantas vezes não imaginamos

que o teatro seria o abrigo eterno

de tantos planos impossíveis.

A vida não teria outro gosto,

o enredo gasto e sempre o mesmo.

Uma soma de virtudes desfeitas,

um atalho dentro do armário

onde repousam as corujas cegas.

A escadaria saiu dali e não voltou.

Quem ficou para trás adormeceu

e esqueceu na gaveta a cortina.

 

 

ORAÇÃO DESFEITA

 

Bilhetes anunciam barafunda no bosque.

Uma prenda para o inferno, na mão

a sucata de uma estrela, as últimas gotas

de um sermão lido ao contrário.

Demônios comentam sobre o carbono

de seus vultos esvaziados, a letra miúda

lida com muita dificuldade, enquanto

as vozes tamborilam o incêndio do bosque.

Uma encruzilhada de signos devolvidos

a seu enigma derradeiro, cova deslacrada

onde os medos perdem seu pavio

e os mitos laceram as crenças revoltas

de uma humanidade estilhaçada ao sol.

As contas de um mistério cuja sagração

há muito foi devorada pela ira dos monturos.

O homem tem uma pedra sob a língua.

Os bilhetes rasgados não mais permitem

acesso a tempo algum, o bosque em ruínas.

 

 

UM OUTRO NOME

 

Uma chuva de pianos apressa a noite.

Suas pernas piam como luzes molhadas.

Uma nuvem esquecida no alto do prédio

se arrasta pelo céu evitando deixar-se

corroer pelo mesmo ímpeto. Uma chuva

e a noite se despedaça em mil teclas

cujas notas se infiltram na alma dos passantes.

As cordas mais travessas dobram os sons.

Um compasso angustiado não encontra lugar

entre a redondeza perfeita das lágrimas.

A cada voltagem de gotas um outro nome

se desenha no espelho arrepiado da noite.

Quem me chama? Quem me escuta tocar?

Um dilúvio renasce a cada flâmula do céu.

 

 

LUZ NO ESPINHAÇO

 

Moluscos crescem como vagalumes.

Conspiram de barriga cheia. Moluscos

rastreando a terra que levam dentro.

Pequenas luzes dragadas na boca das rãs.

Moluscos confabulam suas pérolas.

Rabiscam manuscritos na beira dos rios.

Pedimos a cada um deles que indique

um caminho até o horizonte emancipado.

Moluscos rejeitam toda reza, toda crença.

A algazarra que fazem no mapa da terra

é a profanação de embriões humanos.

Para eles não há vingança ou justiça.

A hera herda seus truques e volta a crescer.

Moluscos habitam o espinhaço do mundo.

 

 

ALIANÇA COM O AZAR

 

Os cegos costuram ciladas.

O caos regurgita os ângulos retos

dos escândalos natimortos.

Olhares postiços dizem que sim.

O nervo do acaso joga seus dados.

Os dedos minerados, a trama vil.

Não se sabe quem escreveu as cartas

deixadas ao pé da sacristia.

Cada uma destinada a um pecado.

Os nomes trocados nos envelopes

aviltaram os símbolos navegantes.

Ninguém ancorou em rumo certo.

A vida por um cetro. Um cego nu.

Quantas vezes passaremos por aqui?

 

 

DEUS SEM TEMPO

 

As luzes congelam os coelhos da infância.

A pelúcia dos afagos da imaginação.

Os laços nas bonecas gemem afogueados,

cada um procurando desfazer o tempo.

As pilhas soletram vozes e movimentos

No espírito de cada brinquedo em revoada.

Quando envelhecidos anunciam que a vida

nem sempre terá o mesmo verso escrito.

Por onde passam as sombras vão exaltando

os caprichos das idades se desfazendo.

Ah quem dera a cordilheira desses gestos

que estocamos para as estações ácidas.

Se o mundo a todo instante se desmantela

não haveria como antecipar os coelhos

a cada luz atribuídos para o fim que não vem?

 

 

RELÍQUIAS TRIBAIS

 

Hades macera ervas para o vermute.

Um prado de alucinações para quem

relute em aceitar os truques do mito.

Quem jaz consente que a noite se esvai

como as notas de um acalanto fugaz.

Quem refaz os caprichos da agonia

tarda a descobrir a flor desvanecida

na própria carne, na relva escura

de um rito que reanima o inevitável.

 

 

NOITES AQUECIDAS

 

Cordilheiras confabulam no Café-Concerto,

sementes orquestradas improvisam um bosque.

Mascávamos nossos nomes de trás para frente.

Uma relva adormecida em teu sexo, uma espiga

e a sombra de um vendaval de promessas.

As taças refazem uma escala improvável,

enquanto os canapés desfiam suas mentiras.

Noite alguma costuma resistir a tal orgia.

Uma pétala flanando em tuas nádegas,

os beiços do orgasmo agitados no salão.

Joelhos bordam pomares em meu peito.

Os teus, em desafio, como uma luz vadia.

Quantos sonhos derramados pelo chão,

quantas flechas que perderam seu alvo.

As cordilheiras decidem voltar para casa,

porém o baile finge o melhor de seus gritos.

 

 

SELVAGERIA OCULTA

 

A noite colhia promessas sem deixar vestígios.

A capela escondia suas dores nos armários.

Um silencioso desatino cobra seus metais

e as naves esquecidas na preamar avulsa.

A noite falava sozinha. Os céus desabados

sobre as sílabas de seu lamento solitário.

Quem vem de tão longe buscar esse pranto

aniquila as proezas tecidas a caminho.

O verbo recorta a noite em mil fatias.

No espinhaço das tempestades soletra

o aguaceiro com que os vestígios se pegam.

 

 

VÉUS DO MISTÉRIO

 

Os afetos fornicam à sombra dos dias,

à sombra dos barcos, ao sopro das luzes,

as células vorazes do tempo, entre lagoas

de nuvens esgarçadas. Os afetos enlaçam

tantos desejos ao cair das tempestades,

ao fluir de sêmens sorrateiros, em meio

às cintilações de tua pele, teu gemido,

a nudez tecelã de teus abraços. Os afetos

acentuam as noites que confiscamos

para nossos gozos mais forasteiros,

o mundo lá fora acendendo suas perdas,

teus seios no mar, a nuca esvoaçante,

a paisagem de teus pentelhos e a oração

mais delicada com que o tempo se cala.

 

 

CERVO LASCIVO

 

Meus cornos invocam melodias mágicas,

com eles aprendi a regar tuas lâminas.

Com uma pedra amolo sorrisos, a febre

de teus lances quando sobes em mim.

Meus cascos apagam os rastros da aurora.

O tempo cintila suas fábulas enfeitiçadas.

Nos refugiamos em casebres suspensos,

no alagado dos espíritos que nos guiam.

Galhos retorcidos sábios antecipam a luz

das pequenas curvas de teu dorso nu.

Galopas as vértebras em pleno desatino.

Meus pelos se enroscam em tua língua.

A vida que vivemos é um mito foragido.

 

 

ATLAS VULCÂNICO

 

Os sigilos gritam para as gárgulas de fogo:

– Não abusem da altura de seus voos de pedra

que as torres se curvam para os olhos famintos

do tempo e seus castelos emplumados.

Os sigilos comem a farinha mofada dos dias

e morrem engasgados com o ponteiro das horas.

Mesmo assim, ainda gritam para as estátuas

imperiais no pátio de seus medos: – Não abusem

dessas rochas que ocultam as tormentas

e amassam em suas águas os enigmas precários.

Os sigilos não voltam a passar por aqui.

Sua terra se desfaz a cada grito, a cada segredo.

 

 

UMA OUTRA HISTÓRIA

 

As paixões saracoteiam no banco de trás,

os carros gemem por todas as portas,

eu bebo o suor de tuas distâncias náufragas,

os corpos sangrando a evolução da ternura,

a selvagem comprovação de que os mitos

primeiro rasgam as carnes do tempo, antes

de qualquer anúncio do astuto poderio

de seus aforismos. As paixões esvoaçam

as vestes dos ritos, a carruagem trêmula,

a lasciva cobiça dos amantes servidos

em bandejas na parte de trás das fábulas,

lá no escurinho onde as cartas confabulam

e roem as trevas antecipadas, o fio negro

da primeira lágrima com que nos espreitam.

 

 

COMILANÇA

 

Tua alma rola no regaço dos meus anseios,

eu te procuro no matagal de tantas nuances,

nos arvoredos dardejantes de tuas aspirações.

Tua alma abre suas pétalas, ouço seus ramos,

os palpites clandestinos de teus leitos abertos,

onde as pequenas chagas começam a brotar.

Tua alma revela minhas últimas recordações,

antes que deixemos de uma vez por todas

os lençóis acobertarem os furtos insaciáveis.

 

 

SERMÃO DO MAR VERMELHO

 

Trinta crânios batizados nas águas do Mar Vermelho.

Trinta medos cumprindo suas penas. Trinta hóstias

Recolhidas na praia tingida de desespero. Na manhã

seguinte enumeramos as perdas, os deuses entalhados

na madeira carcomida coberta por uma espuma fétida.

Trinta vozes comendo os sargaços de tanta trapaça.

Trinta vestes rasgadas sussurrando ao vento sua ira

e os algoritmos do pânico. Trinta búzios recolhidos

como um suvenir dos pecados. Todos os dias no Mar

Vermelho deus emporcalha o mundo com seus credos.

 

 

CHAVES DA QUEDA

 

As casas ruminam à beira do abismo.

Nossos corpos desabam abraçados,

deslizando com os móveis aturdidos,

as pedras que colamos em cada canto

certos de que os acidentes não viriam.

As noites desenhadas pelo incenso

roíam a roupa de secretos desamparos.

Mordíamos uma casa de cada vez.

Toda uma vila de voragens magnéticas.

As calhas aprendendo a ler as chuvas.

Os sonhos engoliram a seco essa dor.

As casas não despertariam amanhã.

O abismo retalha a morada da agonia.

 

 

SÚBITO LABIRINTO

 

Meus nomes escorregam na ribanceira do sonho,

como flores agitadas devorando as estações.

As primeiras pedras deslizam corredeira abaixo,

como névoas açoitando as encostas e os breus.

Ouvimos bem longe o chamado dessas quedas,

os sustos com que povoamos os despenhadeiros.

Fogos-fátuos retratam a poeira desgastada do sol,

como lenhas crepitantes que regem a tez do rio.

As águas descrevem as sementes dos sonhos,

como lacres que acidentam a terra que cobrem.

Flutuemos nas balsas ligeiras que nos abraçam.

Não viemos até aqui para esquecer o cio da noite.

 

 

UMA FATIA DA AFLIÇÃO

 

Os milagres sufocam em masmorras,

reabrem as cicatrizes do desejo, dizem

que estão ali para uma última ronda

entre as flores carcomidas do inferno

e o rebanho de cinzas das tempestades.

Os milagres pendidos nos varais atiçam

as feridas impressas em sujos lençóis.

Um amálgama de desespero e castidade.

Trevo de sete folhas gravado no chão,

ladeado por uma poça de sangue escuro.

Quantos vultos desgarrados da palma

desses enigmas que sondam as grades

das celas inúmeras em que os milagres

voltam a pensar em uma fuga repentina.

 

 

TELA SÚBITA

 

A paisagem rebenta em minhas veias.

O céu dilata minhas súplicas, a bênção

desses véus esvoaçantes que arguem

crimes e loucuras que andei dissecando

enquanto rias descendo meu corpo.

Quero ver tuas letras no alto das árvores,

os seios das copas iluminadas pelo sol.

Nuvens aninhadas entre folhas e ramos,

a umidade elétrica de nossos beijos.

Em teu ventre todas as estrelas caem.

Uma cadência deliciosa nos afaga.

Somos os últimos amantes refugiados

no esplendor de uma pintura borrada.

 

 

PINCELADA CONVULSIVA

 

Os dias costuram teias antropofágicas.

Os dias não são páreo para teus casebres.

Os dias desembaraçam a angústia do tempo.

Os dias chamejam os cômodos mofados.

Os dias se debruçam como aves migratórias

e distinguem os indícios de cada outono.

Os dias fenecem após um ciclo de orgasmos.

Os dias que assombramos com os hálitos

cruciantes de um ardil de serpentes, os dias

em que mal saciamos a ânsia dos pecados.

Os galhos descem das árvores para morrer.

 

 

FIM DE NOITE

 

O palco baila sob os nossos pés.

Cavamos seus argumentos acesos

em memória das frases engolidas.

A persuasão decifrada de um rito.

As sombras vadeando no cenário.

Dos camarins revoam os gemidos,

uma disciplina de máscaras afoitas.

Um próximo ato e as pernas saltam

para dentro das escrituras profanas.

Eu sou a tua terra disseminada.

Tu és o facho viçoso de minha gula.

Na cena final fingimos que morremos,

e o teatro ruge a sua última farsa.

 

Floriano Martins (Brasil, 1957). Poeta, ensaísta, editor, tradutor. Dirige a Agulha Revista de Cultura e o selo ARC Edições. Colaborador das revistas Altazor (Chile), Matérika (Costa Rica), La Otra (México), Blanco Móvil (México), Triplov (Portugal) e Acrobata (Brasil). Estudioso da tradição lírica na América Hispânica e do Surrealismo.
Contato: floriano.agulha@gmail.com.
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