A Rainha Morta e o Rei Saudade

 

Tributo a ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO


António Cândido Franco

A Rainha Morta e o Rei Saudade

Em processo


Escrevi, entre 1987 e 1988, um livro chamado Memória de Inês de Castro. Nesse tempo, tinha outra morada, outra cor de pele, outro cabelo, outra vida. Desde então morri e voltei a nascer; não sou mais o mesmo. Quando folheei recentemente esse volume, dei comigo a ler um livro estranho, que não reconheci como meu e me pareceu apenas uma descuidada colecção de apontamentos. Pertencia a um autor desconhecido, que viveu noutro século.

O caso de Inês e Pedro continuava, porém, a interessar-me e, para o afeiçoar ao que hoje em mim mudara, eu precisava de escrever um livro novo. Foi isso que fiz; o resultado é A Rainha Morta e o Rei Saudade. Não é ainda a rosa perfeita e definitiva, que o amor de Inês e a saudade de Pedro merecem, nem tão-pouco a obra limpa e polida que eu gostaria de deixar, até ao fim das idades, com fragância intemporal, aos pés desta estória, que não é apenas uma tragédia frustrante e depressiva mas também uma magnífica e exemplar narrativa de libertação.

Ainda assim, parece-me que o aqui deixo é um tributo menos bruto, menos apressado, menos atabalhoado, que o anterior. O livro vai de novo dedicado aos meus filhos, Inês e Pedro, porque o lugar que eles ocupam no meu coração, esse, não mudou. Tudo o mais renova, mas isto, do amor e dos filhos, é sem cura.

Julho de 2003


O INSECTO


Venho aqui, à boca deste palco, contar o romance de Inês e Pedro, duas das mais universais figuras ibéricas. Este romance não pertence tanto à História, mas à fábula. As suas personagens lembram mais as que aparecem numa colecção de mitos que numa História em verbetes. É um romance de amor, morte e saudade, cheio de comoção e enigma, que aconteceu nas fronteiras da Ibéria do século XIV, mas pertence hoje a todos os povos e espaços do mundo. Há nele uma lição que é universal. O próprio dos mitos é vestirem acessórios diferentes, repetindo o essencial.

Assim, a fábula de Inês está muito perto dum conto tradicional japonês, que fala da revelação duma gueixa a um príncipe, ou do Tristão e Isolda de Béroult, que trata das forças extraordinárias do amor e das suas feridas. Também a estória que trago a este palco para narrar está cheia de feridas, desejos, filtros, desfalecimentos, visões e  maravilhas. O leitor que me perdoe, mas antes mesmo de lhe apresentar os dois amantes, que são a única coisa viva de tudo o que tenho para lhe contar, preciso de lhe falar dos antecedentes que prepararam a sua chegada, o seu encontro, a sua biografia. É um cenário de papelão, morto e esquecido, que, porém, é preciso desdobrar e animar cuidadosamente com vida, de modo a que os dois amantes possam descer, emprestados por alguns instantes, dos céus à terra, com um espaço seu, revivendo diante de nós o drama sobrenatural da sua paixão.

O rei português adoecera mortalmente com o Outono e viu depois, com presságio arrastado, o Tejo varrido por rabanadas de folhas. As árvores haviam adormecido e o Inverno anunciava-se frio. Foi transportado numa cadeirinha improvisada para Santarém, onde ordenou que o seu corpo fosse sepultado no mosteiro de S. Dinis, termo de Odivelas, que tinha 60 freiras da Ordem de Cister com voto de encerramento e cogula. O infante Afonso, avisado pela mãe, Isabel de Aragão, veio apressadamente de Leiria, onde se encontrava em retiro, depois dos frontais embates com o pai e com o meio-irmão Afonso Sanches, antigo mordomo-mor real, em 1321 e 1322. O rei a tudo se mostrou indiferente e passou os últimos dias a olhar as várzeas molhadas, que se estendiam até Almeirim, com a melancolia própria de quem antes escrevera versos de amor. Agora, quase sonâmbulo, quase calado, esquecido já de tudo, de suspiro na boca, sentimento trasladado em puro som, no meio das imagens dos seus sonhos, ainda mentalmente se perguntava: ai Deus, e u é? E a 7 de Janeiro de 1325, em dia fechado, que mal chegou a despontar, apertado de gelos e névoas, faleceu, com 64 anos, em Santarém, Dinis, rei de Portugal e trovador.

Afonso não assumiu de imediato os assuntos do reino. Ele calculava que a transição seria penosa, passando por uma vigilância estreita ao seu meio-irmão Afonso Sanches, por causa de quem fizera guerra ao pai e e a quem estava agora disposto a fazer a guerra. Assim, depois da trasladação do corpo de Dinis para Odivelas, Afonso partiu numa folga para Sintra com monteiros adolescentes e perros castanhos, de focinhos ágeis e lombos esgalgados. Não levava charamelas e a sua companhia não era uma corte, mas um circo de batedores, habituados a correr até à Roca. Tinha Afonso a fatídica idade de 33 anos.

A serra era um território áspero e lunar, coberto por um denso cogumelo de árvores baixas e resinosas. A proximidade do oceano espalhava uma neblina insinuante, que se escondia nas pedras. Adivinhava-se sob cada uma delas um génio de fumo, que desaparecia depois veloz por entre as copas baixas das primeiras dunas. Os homens, nessa vida solta da serra, gostavam de cantar extravagantes celebrações de vitória; perseguiam a pé os animais e rastejavam com cuidado, apoiados nos braços, de modo a não serem sentidos. Penedos despenhavam-se abruptos sobre ondulados abismos; raízes pendiam vazias, deixando o ventre da terra à mostra. Olhar esses lugares seculares era entrar nos contornos sinuosos das entranhas terrenas; os animais fitavam os homens e estes, nas pedras, ficavam parados, como que estarrecidos e presos à espera.

Nesse Inverno, o sincelo agarrou-se de madrugada às árvores, cobrindo-as duma fina e polida película de vidro. Afonso, nas liberdades da serra, teve a estranheza dum encontro rápido e brusco. A Roca é uma vértebra que se orienta como um eixo. Do lado setentrional, a terra faz uma barriga batida por um vento continuado e desgastante; as vertentes são pregueadas e agradáveis, ainda que inóspitas e solitárias. Foi aí, entre o restolho húmido dos pequenos bosques atlânticos, que Afonso viu surgir das brumas marinhas um animal de pêlo brilhante, coroado de sol, rabo flamejante. A aparição teve o efeito dum rito e Afonso deu, ao animal, luta à mão. Foi uma pega ágil, sacudida por chispas de fogo, que pareciam sair do cabelame do animal. O homem assemelhava, na sua dança cautelosa, um centauro, que se servisse das pernas como eixo fixo e do tronco como manha. Que é afinal o tronco senão uma árvore, a que as pernas servem de raízes? O tronco era nele o pensamento, o artifício, enquanto que as pernas manifestavam a força e o mais natural instinto; o primeiro ardia numa labareda, ao passo que o segundo se enraízava na terra. Foi aí, nas pernas duplamente riscadas de sangue, com pequenos rasgões, que o animal dominou. Fez, porém, dessa vitória o segredo inesperado do seu afastamento, deixando mais estupefacto que desesperado o homem.

O animal afastou-se em direcção do mar; tinha de fabuloso a agilidade do seu pescoço e o raro do seu pêlo. Visto assim, era um leão alucinante e mítico, desses que pertencem às fábulas e aos destinos trágicos e heróicos. A Roca estava povoada de seres mágicos e de acontecimentos raros; os poucos camponeses que nesses lugares cultivavam a vinha e a oliveira desfiavam relatos extraordinários acerca do sítio. Tratava-se do último lençol de terra antes do infinito do oceano, que ligava a vida com a morte. Os monteiros e o rei entretinham-se, enquanto partiam amêndoas e bebiam caldo quente, com essas histórias de pasmo e fantasia. Eles eram nesses momentos uma juventude ainda feliz e despreocupada. As agruras dos casebres, onde as mulheres pariam ao pé das cabras, e os homens contavam casos, estavam envoltas num hálito quente e sossegado, capaz de redimir a falha do lugar e o anonimato da condição. Tu, Afonso, que virias a ser, nas horas amarguradas em que estiveste para matar os teus netos, a figura mais trágica da História de Portugal viveste nessa época um dos intervalos descontraídos da tua vida. Bem gostaria de te deixar nele, mas foste tu que te aborreceste com essa aflição de bravura que tinhas. Demais, o tempo tarda para o leitor encontrar as outras personagens deste conto.

Depois desse encontro, Afonso decidiu voltar para Lisboa e assumir de vez o negócio da governação, instalando-se na corte entre os velhos conselheiros formados nos estudos gerais de seu pai; Álvaro Pais é talvez, na época, o exemplo típico da gravidade séria destes homens sem nobreza, mas incapazes de beberem num palheiro leite mugido. São homens graves, rotundos, de latim apurado e espirros frequentes. Afonso estava pronto a confiscar os bens do seu meio-irmão Afonso Sanches e a tornar-lhe definitivo o degredo na vila de Albuquerque, no termo de Badajoz. Era uma medida dura e pessoal, mas que vingava de vez as mordomias com que o pai, a seus olhos, o remunerara.

A carta que o rei Afonso IV escreveu então ao seu sobrinho Afonso XI, rei de Castela, foi, a par do confisco dos bens de seu meio-irmão, o primeiro acto do seu governo. A arrestação dos bens de Afonso Sanches levou a nova e violenta guerra entre os dois irmãos, que ficou para durar. Só a intervenção da rainha-mãe, Isabel de Aragão, retirada definitivamente depois da morte de Dinis no mosteiro de Santa Clara, em Coimbra, a favor do enteado, acalmou a ferocidade do filho e o levou às pazes. A carta para o sobrinho, por sua vez, que coincidiu com a ordenação regimental das Cortes de Évora, realizadas na entrada da Primavera, foi um pedido a Castela de neutralidade na guerra entre o rei poruguês e o senhor de Albuquerque.

Afonso XI acabara de chegar a uma maioridade quase forçada e recebeu essa missiva no meio das atribulações do seu sucesso. Tinha apenas 14 anos, mas raramente abandonava a sua cota de ferro e o seu montante. Criara-se na labareda do desastre que fora a morte de seu pai em 1312, logo seguida pela da mãe, irmã de Afonso IV de Portugal e filha de Dinis e de Isabel. A regência do reino fora a triste história dalgumas mortes, mas fora também a da teimosa e natural ascensão dum homem extraordinariamente dotado e capaz, João Manuel, nascido em Escalona em 1282, neto de Fernando o Santo, sobrinho de Afonso X, o Sábio, primo-irmão de Sancho IV e regente na menoridade de Afonso.

A estrela de João Manuel brilhava de tal modo sobre as pulverulentas planícies interiores que depois das Cortes de Valadolide, que tiveram lugar no Verão infernal de1325, Afonso XI pede ao fidalgo de Escalona a mão da sua filha, Constança. Esta era uma rapariga espigada, de onze anos, filha do seu primeiro casamento, que gostava de usar sapatilhas altas, passar uma fita de veludo na cinta, suster o peito, dividir o cabelo em bandós e notar, numa superfície espelhada, que as ancas começavam a ganhar volume no tule acetinado do vestido. Era estudiosa e particularmente aplicada no exercício da música; mostrava muita facilidade na compreensão da língua e aprendia sem dificuldade o latim e o grego. Em tudo isto, seguia o pai, que era um dos homens mais cultos do seu tempo. Eram-lhe indiferentes os afazeres domésticos e sentia-se predestinada para as altas regiões do inefável. Que é a eternidade do meu nome ao pé dum cofre mal ajustado ao sítio ou dum vestido amarrotado no chão, pensava altivamente essa menina, que um dia seria infanta de Portugal e misturaria para sempre o seu destino ao de Inês e de Pedro. É com ela que se começam a abrir as portas desta estória aos dois grandes amantes.

A mulher era nesse tempo, antes de casar, mesmo com a cultura de Constança, um trunfo diplomático. Faziam-se e desfaziam-se reinos consoante a existência ou não duma cor de olhos ou dum tipo de lábios. Conferia-se à mulher um poder simbólico, que, apesar de vazio, tinha mais efectividade que qualquer outro. Passiva, silenciosa, a maior parte das vezes ausente, a mulher aparecia como um ser contemplativo que mudava o mundo consoante a sorte do seu destino e dos seus dotes. Não possuía o dom frontal da palavra, o que a afastava dos lugares públicos, nem o da força, o que lhe vedava os da guerra, mas tinha a irrequietude da beleza, que a levava a ser o bojo desconhecido de quase todos os destinos. A mulher, nesse tempo, comparava-se a uma flor ou a um pássaro; cantava em segredo, no recôndito dos quartos e dos seres, como um enigma, uma diferença que todos admiravam e queriam guardar para si, e crescia, adorável e brilhante, na terra virgem duma intimidade inviolável.

Constança Manuel estivera já prometida em casamento a um fidalgo de nascimento funesto, a quem chamaram João o Torto. Este João fazia parte das grandes famílias da Meseta central e passava por bom partido. Era filho do infante João, irmão de Sancho IV, avô de Afonso XI e pai de Brites, mulher de Afonso IV de Portugal. Mas ainda assim, a promessa de casamento era apenas uma promessa de aliança, nada mais. Trocava-se esse voto como se troca, na vida civil, um contrato pouco rendoso por outro mais vantajoso. A vantagem da época não era ainda a moeda, que passava por ser um brasão heráldico e não um sinal de riqueza, mas, de qualquer modo, os homens procuravam as facilidades com que fugiam às calamidades. O aparato com que se trocavam os votos era também o brilho baço com que se caía em desgraça.

João Manuel aceitou, por isso, o pedido de Afonso XI e descuidou para mais tarde uma satisfação a João o Torto. Afonso era um prematuro, e até um primário, mas ainda assim era o rei, o que o lisonjeava como homem de armas e letras. Hoje adianta-se que foi para iludir uma aliança entre João Manuel e João o Torto que Afonso lhe pediu a mão da filha. É possível que sim, mas não contente em tirar ao Torto a mulher, pensou também roubar-lhe a vida. Não eram só os casamentos que se desfaziam como atilhos, eram as vidas que se deslaçavam como baraços escorregadios. Um dia, quando a tarde desceu sobre os penhascos da Mancha, João o Torto avistou, no sopé duma pequena encosta, um misterioso castelo, com janelas que lhe pareceram de oiro e torres em diamante. Foi uma visão funesta; tratava-se duma labareda destilada ao poente, que rapidamente humedeceu em cinza. A Mancha é propícia a essas aparições fantásticas; a pobreza da terra, que vive da transumância dos animais e das almas, cria ilusões, que se desfazem em pó. É próprio do ibérico da Meseta perseguir esses fantasmas até à perigosa derrocada de si próprio; tudo se desfaz, ficando apenas, nesse derradeiro instante, o presságio íntimo dum sinal perdido. O Torto balbuciou uma acusação e no outro dia partiu para Toro, onde o rei o recebia. Ficou instalado num quarto das traseiras e apareceu, horas depois, envenenado. Murmurou-se, mas o caso passou por indigestão. O homicídio era a forma mais rápida de fazer política e é hoje, com os raides  aéreos, a mais banal.

O casamento não era ainda o matrimónio. O primeiro era assistido por um numeroso conjunto de circunstâncias, que faziam dele um acto de secretaria, enquanto o segundo requeria menos razão e mais idade. Foi no fim do Verão desse ano de 1325 que o jovem rei Afonso XI recebeu, em Valadolide, a benção de casamento com Constança Manuel. Valadolide é uma cidade triste, onde desembarcavam, como chegadas do infinito, as mais poeirentas carroças da Meseta. Ainda hoje é assim. Não se dá pelo mar e só a poalha da terra sopra por entre as apertadas e sujas ruas da cidade. Constança Manuel acabava de despertar para a adolescência; sentia, pela primeira vez, uma melancolia sem definição, que era a consciência mesma da memória. Entrançava o seu cabelo loiro, olhava-se nua ao espelho, dispunha dum conjunto de coifas, que quase não cabiam no escaninho onde as guardava, usava já uma cinta para o busto e era uma menina culta, com boa memória, que continuava a estudar com proveito latim e música. Tinha uma bela voz de soprano e começava a dedilhar na perfeição a harpa e o alaúde.

O adiamento do matrimónio, se a deixou na aparência indiferente, despertou-lhe no íntimo uma esperança. Viu o jovem Afonso XI entre as colunas do átrio do palácio de Valadolide, quando este despedia os homens dos concelhos. Era um rapaz pálido e atlético, de modos despachados, que deixara cair, sem que isso se visse demasiado, as letras a favor das armas. Um fogo abrasado passou a subir-lhe ao rosto, quando, no sossego do quarto, com a janela aberta sobre a lisura dos campos, saias retraídas sobre as coxas lisas e brancas, um códice no regaço, pensava nele. O coração é um sinal de alarme, que toca ao mais leve registo; a exaltação, por sua vez, é sempre um estado que mistura em si a ânsia e o desconhecido.

Foi adiado o matrimónio entre os dois para o ano de 1329, altura em que Constança completava 15 anos. A menina não se deu ares de incomodada com a transferência, mas recolheu-se muito à intimidade, passando o mês de Setembro no peitoril da sua janela, a olhar o céu agitado de pássaros. Tirando isso, fazia exercícios de rabeca e viola de arco, que lhe vincavam a melancolia e arrancavam, de comoção e gosto, algumas lágrimas. Notou que o seu estado coincidia com o limite duma estação; o Verão chegava ao termo e com ele começava a baixar aquele incêndio abrasador, que iluminava as entranhas da noite. A casa deixava de ser a única sombra e não mais era preciso molhar a ponta dos dedos em godés de prata para refrescar o calor do corpo. As bacias seriam arrumadas pelas criadas na parte baixa da casa e os últimos dias de Setembro trariam, junto a um perfume calcinado, uma agradável frescura vesperal.

As folhas começavam a cair, os primeiros ventos levantavam na terra partículas de cinza e removiam no céu novelos de nuvens, quando Constança regressou a Penafiel, não longe de Aranda do Douro, onde brincara em menina. Mal teve tempo de descer as encostas do rio, pois o pai decidiu de imediato a sua partida para Toro, e mandou-a chamar.  Conhecia mal Toro, mas a impressão que guardava do lugar não se afastava muito daquela que tinha de Aranda do Douro. O rio corria aos pés do povoado e as janelas de sua casa davam para as suas encostas. As mulheres vestiam-se de negro e os homens eram baixos e escuros. Falava-se pouco e cismava-se entre dentes. Faltava talvez o vento gelado que soprava de Sória, com um aroma de baga de mirto pisada. O jovem rei gostava de estanciar na cidade e Constança encarou com alegria a possibilidade de o encontrar misturado à pelica dos camponeses do povoado. Estas pequenas exaltações faziam-lhe lembrar certas frases de Cícero ou Séneca que o pai lhe dava a ler e comentar.

Ao abandonar Penafiel, foi assaltada por pressentimentos, que tomou à conta de palpitações; batiam-lhe no peito como se lhe batessem à porta do ser. É pelo peito que tudo entra; o peito é a porta do ser. Passou o dia a dobrar vestidos e a guardar jóias e anéis. Deitou-se nua em cima da cama ao cair da noite, mas teve dificuldade em adormecer. Ouvia o movimento dos criados em baixo selando malas e preparando as bestas para a partida da madrugada seguinte. Dormiu um sono leve, cortado pelos sobressaltos da partida. Teve um sonho, nítido e exacto, que nunca mais esqueceu.

Dizia assim o sonho: um bando de pássaros passava em direcção do Ocidente; desprendiam-se do céu como folhas e corriam desabridamente, deixando sulcos no ar. No ponto ocidental para onde convergiam havia uma pétrea torre pentagonal, que se debruçava sobre um mar revolto. Constança vê-se acenar, dentro do sonho, a uma janela da torre. Deixa depois tombar o seu longo cabelo pela parede exterior, como se dum curso de água se tratasse; é um rio, que não chega, porém, para seu espanto, a desaguar no mar vizinho. Quando fita o chão que rodeia a torre, aquilo que vê são areias brilhantes como oiro.

Há sonhos que despertam em nós a evidência de acontecimentos vividos. Acorda-se deles com a estranha impressão do existido; demoram tempo e dão trabalho a sairem da retina essas imagens, que têm mais força que as acções havidas. A Constança, restava-lhe aguardar, com a natural curiosidade da sua juventude, naquele umbral do dia e da idade. Quem diria que aquela menina intelectualmente dotada, nervosa e sensual, ansiosa por amadurecer e amar, sobrinha-neta de Afonso X, filha do homem mais vigorosamente culto da Península, viria a morrer infeliz, esquecida, quase anónima, num altivo castelo português, no alto duma penha pedregosa? Tornou-se, porém, uma heroína portuguesa, pois foi ela que teve o privilégio de apresentar Inês a Pedro. Habitue-se, pois, o leitor à sua presença sensitiva e requintada e veja nela uma figura central e extraordinária deste conto. Não foi assim, semi-nua, virginal e heróica, moída de pesadelos eróticos e santidade, que a viu, nos cantos do extravagante e grande poema que lhe dedicou e que leva o seu nome, Eugénio de Castro, o discípulo português de Péladan?

Continuemos, eu e o leitor, a desdobrar o cenário desta estória, preparando o espaço para a chegada do par de amantes, Inês e Pedro, que está no seu centro. A estação fria de 1326 foi áspera e crua. O Inverno castelhano tem variações bruscas de temperatura que transformam o planalto, dum dia para o outro, num lago gelado ou num átrio polvilhado de neve. O peso dos castanheiros abate e o maciço que vai da Penha de França, misterioso contraforte salamanquino, até Albarracin, já na vertente oriental catalã, fica entregue ao uivo feroz dos ventos álgidos. Castela tem alguma coisa deste espírito rude e invernal, monótono e marcial, que mistura um teatro de guerra a uma solidão austera e atraente de estepe. A Primavera sente-se, de seguida, como um pequeno e curto degelo; os dias são tecidos por uma luz inefável, que parece o Sol liquefeito a correr, em forma de seiva, nos braços das plantas e dos homens. Trabalha-se então com afinco a terra, tosquiam-se as primeiras lãs, levam-se os rebanhos para terras mais altas e húmidas. A Meseta é monótona e castiça, mas, de vez em quando, a surpresa tropeça diante de nós. Toro, situada nos córregos do Douro leonês, é o exemplo da ocupação do estranho, não da vivificação do próprio. A cidade tem bonitas casas leonesas, ao modo de Zamora ou de Miranda do Douro, duma cantaria escura e perfeita.

Foi aí que Constança entreteve a esperança de encontrar Afonso XI. Este, depois do homicídio do seu primo, João o Torto, deu por desnecessária uma aliança com a casa dos Manuéis. A quebra dum elo significava que toda a corrente se desmoronava; João Manuel parecia-lhe agora um elo isolado duma corrente enfraquecida, a que não pagava a pena ligar demasiada importância. O casamento era um trunfo diplomático, que convinha guardar e fazer render. Afastou-se da casa dos Manuéis, evitou olhar demasiado Constança, deu a entender, através de recados, que a união conjugal era para desfazer. Percebeu-se o assunto e o perfil de Constança, acabado de sair da meninice, melancolizou. Ainda assim, o rubor subia-lhe ao rosto, quando pensava no rei. Encostava-se às paredes altas do quarto, olhava os espaldares da cama, alimentava devaneios futuros e inocentes com o rei. Vestia nessas alturas uma túnica fina e transparente de cassa. O amor era só uma pequena brasa ou uma pequena duna de areia mole aquecida pelo sol da nostalgia. A morte viera já alisar os ápices do desejo, dando-lhes uma aresta aguda e incómoda, mas não apagara ainda, com a esterilidade, o lume desse húmus. O sentimento continuava, assim, a dar as suas flores, miúdas e engraçadas, que Constança coleccionava nas páginas dos seus códices.

Afonso de Castela riu, quando soube da tristeza de Constança Manuel. Lembrava-se dela como se lembra uma criança, com desculpa e compaixão. Não lhe queria mal; sentia mesmo a sua tristeza como uma coroa de glória pessoal. A renúncia fora política, como sempre era, e nada tinha de passional ou físico. Tratou de ver mais Constança, mas isso, aos olhos de todos, acentuou o seu desinteresse por ela. A tarde, em Toro, era, sem excepção, um lugar de sonolência e contemplação, em que as mulheres enchiam o colo de lã para cardar e os homens se deixavam ficar a olhar as oliveiras próximas do rio. João Manuel decidiu partir apressadamente com a filha de Toro, quando soube que o rei se inclinava para um casamento português. Essa procura exasperada de alianças matrimoniais com Portugal pressupunha uma representação teatral de unificação, pouco mais. O próprio Afonso XI era filho duma infanta portuguesa, filha de Dinis e de Isabel, e irmã de Afonso IV de Portugal.

De qualquer modo, Constança recusou-se a acompanhar o pai. Deu como desculpa perda excessiva de sangue, dores menstruais, vágados regulares e prostrantes. Sentia-se incapaz de qualquer vida social. O pai aceitou a escusa e deixou-a sozinha em Toro. Corriam os primeiros dias do ano de 1327, a cidade estava quase deserta, o rei partira com algum aparato  para o sul. Constança abriu a porta à tristeza e à mágoa, que são as duas formas adulteradas do amor. O amor é a sublimação da mágoa, enquanto que a tristeza é a liquefacção do desejo. As rosas, mesmo miúdas, não florescem sem espinhos; são, no fundo, pequenas gotas de sangue, que brotam do sofrimento. Constança desfez as duas tranças que lhe caíam até à cintura e lhe davam, já nessa altura, um ar de pequena matrona travessa. Fechou-se no quarto, debulhou-se em lágrimas, rasgou lavores e bordados, que sentia inúteis e maçadores, recusou comida e companhia. Trabalhou, porém, nos cancioneiros e apurou cantigas no alaúde, que as aias vinham escutar com encanto e admiração. Aprendeu a dançar, cheia de gravidade, a pavana. Era uma forma de se distrair e serenar, compensando o sofrimento com a distracção sensual. Passou assim alguns dias, até que, em fins de Fevereiro, com as mascaradas dos primeiros dias de Sol, acedeu a deixar Toro. O pai regressou para vir buscá-la. Encontrou-a sentada na cama, semi-sorridente e culpada, com o seu ar de mulher precocemente viúva.

—Perdeste a mão de esposa do teu primo Afonso. É preciso agora que te deixes levar pela mão do teu pai. Logo que este passo esteja dado tudo se poderá reparar. Não te calha agora a desobediência ou a pertinácia, nem te vai a tristeza ao corpo. É preciso que o tempo aclare os feitos e o teu coração inocente possa ser dignificado pela justiça do activo.

Constança arranjou forças para sair do silêncio:

—Nada sei dizer, meu pai. Nada encontro nas palavras que valha a pena e no peito só encontro uma dor, que ontem não sabia ter. Parto, porque já nada me prende ao lugar onde, longe das vistas, pensei um dia vir a contar dia a dia a proximidade das bodas. Parto, porque aprendi que não se doma a ferocidade com o que pode passar por brandura.

Mas, no governo da sorte, são distintas as circunstâncias e indistintos os castigos. Partiu João Manuel para Penafiel, onde deixou a filha, e depois para a corte de Aragão, oferecer os seus préstimos a Jaime II, que era ainda seu cunhado, irmão da mãe de Constança. Neste entretanto, recebeu o rei português a proposta do rei castelhano casar com a infanta Maria, seu primeiro botão, nascida em 1313, quando Dinis reinava e poetava. No mesmo pé, oferecia o castelhano  ao herdeiro de Portugal, um menino de seis ou sete anos chamado Pedro, Branca, filha dum tio seu, infante de Castela. O rei português estava em Coimbra, nos paços de Santa Clara, junto da mãe, quando recebeu a notícia. No fim da carta, Afonso XI rematava com esmero, oferecendo-lhe atenção meticulosa e apertada vigilância aos movimentos de Afonso Sanches, meio-irmão do rei português e antigo preferido do pai, que viria a morrer dois anos depois, em 1329.

Albuquerque é, no seu tipo próprio, que não exclui o humano, um símile dos antigos menires e há na vila uma vaidade feita de solidão antiga e austeridade. É um lugar retirado e desconhecido, refúgio de bandoleiros ou exilados. Inês de Castro, que se criou na vila, guardou na brancura do perfil, alguma coisa da nobreza austera e pura do lugar. Nesta altura do nosso conto, acabara ela de nascer; era um bébé saudável, de pele muito branca, com pouco mais dum ano, filha natural, a quem ninguém ligava muita importância. Assim como assim, tudo o que sucedia nas grandes casas de João Manuel, de Afonso de Portugal ou de Afonso de Castela era por ela que acontecia. Quem se interessaria hoje em relatar os sucessos de Branca se não fosse Inês? E até de Constança Manuel, que foi rainha de Portugal e a flor da arte do seu tempo, quem dela hoje se lembraria se não fosse Inês? Alguém se dá ao trabalho de recordar o nome da esposa do nosso primeiro Sancho, filho de Afonso Henriques? Há rosas que subjugam cedros e sorrisos que desarmam exércitos. Inês nasceu num estábulo obscuro, nas traseiras do mundo, mas pertenceu à extraordinária classe dos humildes ou dos socráticos, que tudo ganham porque são talvez os primeiros a querer perder.

A alma de Inês foi tão grande que, simples camareira ou dama de companhia, mísera e mesquinha como lhe chamou Camões, ela se tornou soberana coroada depois de morrer, e foi de seguida cantada por Garcia de Resende, António Ferreira, Camões, Lope de Vega, Guevara, John Ford, La Motte, Gottfried  Bürger, Ezra Pound, Henry de Montherlant. E Fernão Lopes, que foi o primeiro a falar dela e a comparou a Ariadne e Dido. O próprio Dante Alighieri teria modificado o fecho do seu poema se tivesse nascido cem anos mais tarde; e não só Dante alteraria o seu poema se tivesse nascido um século depois, como o próprio Miguel Ângelo mudaria, na Capela Sixtina, a Sibila Délfica se tivesse podido ter Inês como modelo.

E é por isso, que Inês figura ainda hoje no Museu das Figuras de Cera, em Copenhaga, ao lado de Pedro, mostrando ao mundo que a sua alma foi tão grande que a vida para ela continua depois da morte. Quando tudo for pó e nada, és tu ainda, Inês, à espera de ressuscitares. Não te chegou universalizares, com a fábula do teu amor, a Ibéria até aos confins da humanidade; precisaste de a universalizar até aos confins dos astros. Mas tudo isso só aconteceu, porque ela um dia encontrou acidentalmente o desejo de Pedro.

Tens de ter paciência, ó leitor. Se queres que te conte a fábula de Inês e Pedro, tens de ouvir primeiro a história morta destas personagens que se chamam Branca e Brites, Afonso de Portugal e Afonso de Castela. E outras ainda, tão mortas e esquecidas como elas, hão-de estar a chegar ao tavolado triste e carcomido desta estória, com setecentos anos de idade. Eu sei que elas não te merecem interesse nem ponderação, que são para ti um peso e um enfado, mas pensa que sem elas as figuras luminosas e eternas de Inês e Pedro não teriam chão onde florescer. Sê pois paciente e lê-me com atenção.

Despachou Afonso IV os mensageiros com a notícia de que a proposta calhava ao seu agrado. Era seu desejo, dizia, ver a filha casada com o rei castelhano, seu sobrinho pelo lado da mãe, mas acrescentava que lhe pesavam os anteriores compromissos assumidos pela coroa com a casa de João Manuel. Respondeu o castelhano que tinha as necessárias dispensas eclesiásticas, limpando todas as anteriores obrigações, e lembrou ainda que punha grande gosto no casamento de Branca de Castela com Pedro, infante herdeiro de Portugal. Replicou o português que descansasse o sobrinho, pois o infante herdeiro, com 7 anos, havia de casar com sua prima, Branca, que tinha pouco mais ou menos a mesma idade.

O empenho do rei castelhano em casar sua prima, Branca de Castela, vinha porventura duma dívida que contraíra para com o pai, entretanto falecido, e que fora seu tutor. O pai de Branca, Pedro, seu tio, fora o irmão querido de seu pai e mordomo-mor durante o seu reinado. A sua morte fora inesperada e teve a cobri-la uma palma de martírio. Afogou-se no rio Genil, um afluente do Guadalquivir, já em pleno reino árabe, depois de pretextar qualquer proeza. O trágico ensombrou o acidente e um outro infante, pai de João o Torto, tio do primeiro infante, morreu também na expedição. O infante deixava no berço uma criança doente e sumida, que Afonso colocou debaixo da sua protecção.

Branca era, em 1327, uma menina triste e sem nenhum desembaraço. Apresentava no rosto um desenho sombrio, que lhe fechava a expressão dura e seca de pequeno insecto. Usava uma touca escura de que nunca se desfazia, que lhe cobria as orelhas e lhe deixava apenas de fora os olhos mortiços. Maria de Portugal, pelo contrário, era uma rapariga rija, de boas cores, que herdava do pai o pulso e da mãe o recato silencioso. Camões qualificou-a depois de formosíssima, mas é possível que isso não passasse de sofisma. Antes de deixar Portugal, teve um sonho que a tocou como uma visão real. Viu, no seu quarto de Lisboa, uma árvore crescer até se tornar desproporcionada. Sobre a terra, em vez de frutos começaram a cair gotas de sangue.

Em Maio de 1328, na vila de Alfaiates, a leste da cidade da Guarda, muito perto da fronteira, entre besteiros, fidalgos e homens de Concelho, Maria, a princesa portuguesa, casou com o rei castelhano, que obteve para isso dispensas do papa João XXII. Esse papa personificou o fausto da corte de Avinhão, onde se perseguiram e queimaram franciscanos e outros mendicantes menores. As anatas e os censos eram recolhidos por colectores pontifícios, dando lugar a um trabalho de chancelaria, que ocupava uma extensa massa de funcionários agregados. O papa era um velho que usava anéis de pedras venezianas nos dedos papudos, incluindo no polegar, e limpava os grossos beiços luzidios com lenços impecáveis de chambre.

Alfaiates, perdida entre pedras e bamburrais, era uma vila raiana, no distrito da Guarda, que definia, nos finais do século XIII, fronteira com Castela. A situação privilegiada, entre Coimbra e Salamanca, explica a sua escolha para a boda. O rei castelhano partiu da leonesa Cidade Rodrigo, onde tinha um palácio com uma ampla varanda de pedra amarelada, que se punha escarlate como a púrpura, quando o Sol caía para os lados de Portugal. Trazia com ele um séquito de fidalgos e baixelas e uma vontade grande de regressar a Sória, onde deixara pendente um assunto. Esteve dois dias em Alfaiates e depois desculpou-se à infanta portuguesa.

—Senhora, dias de passatempo se querem os dias que vão de gosto. O prazer não conta os dias, ao contrário do pezar, que os enumera um a um. Mas enquanto uns, dispõem de bodas, outros dispõem de armas. Permiti-me pois a pressa e dai-me já, em vossa companhia, o consentimento da partida.

Branca, por sua vez, chegou pouco depois a Portugal. Era um dia frio e vinha embiocada numa touca de lã. Os portugueses, com Lopo Fernandes Pacheco à frente, chanceler do rei, foram buscá-la a Fonte Guinaldo, localidade castelhana. Quase não a viram; ela acenou dum reposteiro e recolheu-se. Vinha com contrato celebrado e boda realizada, faltava apenas a união conjugal. A ânsia de tais festas e tais papéis era a ainda a pressa com que a diplomacia contava os dias e as marcas. A corte não se interessava por casamentos, mas por intrigas de alcova ou política; dispunha do matrimónio dos infantes como quem dispõe, no final dum jogo de cartas, dum trunfo forte e reservado.

Os infantes eram entretidos em paços selvagens de província, de pouca importância política ou militar, onde se entregavam a uma liberdade semi-vigiada, que passava por infindáveis correrias por sítios ásperos e broncos. Bebiam água pelas mãos em concha, cheiravam o repelente cheiro dos sovacos, aprendiam a montear, gritavam para dentro das grutas, banhavam-se nas águas frias dos ribeiros, comiam descalços nos pastos, olhavam desconcertados o mar, acamaradavam com cabreiros e almocreves, tasquinhavam uma côdea dura e um naco de peixe fumado. Ganhavam assim uma têmpera rija e popular, que lhes servia depois nos serviços da guerra. A primeira dinastia portuguesa, com uma única excepção, teve alguma aura de salteadora e marginal; falava, a princípio, um português impuro e depois, quando o afeiçoou às brumas do noroeste peninsular, nunca perdeu o travo cinzento e canino, que trouxe, como vanguarda militar, das florestas escuras e frias da Borgonha central. A excepção foi a corte de Dinis e de seu pai, Afonso III, onde o pássaro de Minerva poisou e cantou.

Branca passou por Lisboa. Era em Novembro e a menina agoniou-se com o travo húmido de sal que ventava dos lados de Alcochete; ficou com os brônquios inflamados e indisposta com a cidade. Não deu por Pedro, seu esposo, então com 8 anos, nem perguntou por ele; não punha nisso a mais pequena curiosidade.

O pequeno infante português nascera no reinado do avô, o rei Dinis, em pleno conflito militar do pai, herdeiro da coroa, com o avô. Viveu, por isso, desde a nascença, afastado da corte de Lisboa, em pequenas vilas de província, primeiro no Ribatejo, onde Afonso e Brites estanciavam muito, e depois na Atouguia, onde se habituou ao regaço de camponesas serviçais e bojudas. Eram mulheres grossas, de braços roliços e papada, que cortavam carnes, manuseavam o machado e ateavam lume. Mostravam o desembaraço dos homens, quando pegavam na rabiça do arado e auguravam um destino promissor ao pequeno príncipe, ao mesmo tempo que lamentavam, com palavras agastadas, a guerra civil que opunha o infante Afonso ao rei seu pai. Mostravam, à luz do Sol, peitos batidos, mas tenazes, escuros, que o leite tornava ainda rijos e direitos. Alimentavam todos os anos um filho e sentavam-se nas leiras do paço provincial a debulhar a fava. Desde o berço que se habituaram a ver em Pedro, loiro como o pai, um ser que lhes era próximo e quase familiar. Muita da futura popularidade deste rei, afeiçoou-se aqui, entre moços de monte e amas-de-leite.

Brites, mãe do infante, irmã de Fernando IV de Castela e mulher de Afonso IV de Portugal, recebeu Branca no paço de Santarém, onde a deixou ficar umas semanas, na esperança que ela aí se adaptasse melhor que em Lisboa. Santarém, com a cidade alta e murada, a porta de Atamarma, a medina estreita, os penhascos sobre as curvas do rio azul, a  várzea extensa e bem desenhada, com as vilas de Almeirim e Alpiarça em frente, os arredores cheios de oliveiras e lagares, guardava para ela um perfume da severidade castelhana. Em Santarém, não se sente o cheiro da maresia e os pequenos barcos do rio podem lembrar os batelões de madeira que atravessam o rio, nas partes baixas de Toledo, ao pé dos laranjais. Branca de Castela era uma menina enfermiça, de 9 anos, que devia aguardar uns anos, junto da sogra, a união matrimonial com Pedro.

Pedro estava na Atouguia, ou Tauguia, hoje Atouguia da Baleia, que foi o seu paço de infante, perto dos coutos de Alcobaça, onde ainda se vê a muito intrigante igreja de São Leonardo. O monumento é um daqueles que a tradição transformou em lugar intemporal de culto, atribuindo-lhe antepassados godos e depois árabes. Nada sei disso, mas ainda assim tenho presente a raridade românica do perfil da sua caixa, onde se enfaixa o dente duma baleia pescada nas proximidades. O templo, nessa época, antes do violento assoreamento das águas, que sepultou nas areias o porto da vila, ficava junto do ancoradouro das barcas. Toda a parte baixa da vila respirava nesse tempo uma frescura marinha, que as gaivotas ajudavam a manter com o bater silencioso das asas, os gritos aflitos, e que na actualidade se perdeu com o assoreamento. A vila é hoje, perdida nesses detritos que o mar acumulou, uma relíquia do passado, um fóssil enterrado nas dunas, que pouco tem a ver com o corpo primitivo de que falo. É um monumento, a quem roubaram tudo, menos as pedras duma janela, que estão lá, dignas de veneração, soterradas na areia.

O porto da Atouguia gozava, porém, na Idade Média de imenso prestígio e influência; dedicava-se à exportação de vinhos, sal, frutas e alfaias agrícolas. Servia toda a rica e muito populosa região central do país e comunicava excepcionalmente por estrada com Alcobaça, Leiria e Coimbra. O porto das naus ficava a umas centenas de metros do Largo da vila, onde se abriam, sobre o lado norte da igreja, as escadarias de pedra tosca do paço real, mandado construir por Dinis. Chegava-se à vila por um caminho de areia, passando por dunas baixas, onde uma vegetação rústica e perfumada de urzes e camarinhas aparecia e desaparecia todos os anos; navegava-se ainda até à vila, caso fosse necessário, por um braço de água salgada, conhecido pelo rio da Lagoa, que ligava o porto de mar ao ancoradouro das barcas. Nas suas margens, de que ainda restam vestígios nos arredores da actual vila, arrumavam-se embarcações de madeira, toscamente construídas nos estaleiros da vila. Eram chatas de remos, próprias para pescar na costa, que  homens de olhos claros e tez encardida e rosada puxavam depois para a areia, deitando-se à sua sombra, enquanto as mulheres os esperavam, irrequietas e apressadas, com os braseiros acesos.

Pedro habituou-se desde pequeno à Atouguia, que considerou sempre o seu berço, apesar de ter nascido nos paços da cidade de Coimbra e ter passado depois por várias vilas da linha do Tejo. O seu nascimento coincidiu com o princípio da guerra civil que opôs o pai ao avô e os pais não o quiseram ver nesse fogo cruzado. Com seis meses, robusto e resistente, afastaram-no primeiro para o Ribatejo e depois para a Atouguia. Mais tarde, quando o avô morreu, e a guerra recomeçou, ainda mais feroz, desta vez por causa do confisco dos bens de Afonso Sanches, deixaram-no de vez na Atouguia ao cuidado dum aio de confiança. A criança amargou com isso a ausência de mãe e pai, de quem ficou sempre estranho, e ganhou uma liberdade selvagem, que também teve as suas alegrias. A excepção foi o convívio parco, mas regular, que Pedro teve com a avó nos paços do mosteiro de Santa Clara de Coimbra, onde ela vivia retirada, ainda que sem votos formais, e onde o aio o levava de espaço a espaço.

Quando Branca chegou a Portugal, Pedro encontrava-se entretido a participar nos trabalhos do arsenal. Construir barcos era para ele uma distracção infantil. Exercitava nisso a sua curiosidade de menino, onde se misturava a travessura e o desgosto. Era um dionísiaco, não só por ser neto dum folião que se chamava Dinis, mas por pertencer a uma estirpe cultural, que fez da dor primordial a missão do seu destino. Sofreu muito, e logo desde criança, mas, de tanto sofrer, estava destinado a descer aos infernos como Orfeu e Dante, cantando depois disso embriagado a remissão da morte e a vida eterna. Trouxe, assim, uma nova esperança à vida, dando ao mundo uma nova certeza, além da morte; foi, sem parecer, um bicho divino, que se sacrificou para dar mais luz à luz. Depois dele, a morte deixou de existir e foi substituída pela saudade. Foi ele que arrancou Inês à morte e ao esquecimento; sem o seu espírito, Inês não passaria da pequena camareira de quarto, obscura e anónima, a que todos a destinavam e em que ela própria consentia. Isso viria mais tarde, quando a descobriu maravilhado e percorreu com ela os labirintos da memória, desvendando-lhe os segredos mais recônditos; agora, em menino, já com o desgosto das primeiras lembranças e a dor da forçada ausência dos pais, entretinha-se a pregar partidas e a mexer nas aparas de madeira dos arsenais.

Era uma criança calada, atravessada de secretas mágoas, que se prendiam com os carinhos minguados que recebera em casa. Chorava, na cama, quando estava só na escuridão do quarto, sem saber de quê. Bastava  saber os pais longe e pensar que havia gente e bichos que morriam, era tudo. Pedro era, além de triste, irrequieto e curioso das coisas do campo e do mar. Punha um gosto particular em acompanhar o trabalho de remoção das madeiras, vendo decapitar os grandes pinheiros das areias do interior. Gostava da solidão das florestas, dos gritos dos animais selvagens, do cheiro da resina e da seiva vegetal, da berraria dos homens, da força dos machados, aspectos que o despertavam para a vida. Observava o trabalho dos calafates e a construção dos esqueletos das futuras embarcações. As raparigas, ainda miúdas e delgadas, fiavam as velas ou entrançavam as cordas. Pedro passava por um menino curioso e afoito, que tinha a paixão dos barcos e dos cães.

Passou o Inverno desse ano e a Primavera do seguinte no ruído popular destes afazeres. Na corte não lhe sentiam a falta; haviam-lhe dado como aio Diogo Lopes Pacheco, um moço de 24 anos, que privava, por intermédio do pai, Lopo Fernandes Pacheco, com o rei, e punham o assunto como arrumado. Era um companheiro diligente e liberal, com alguma coisa de cerimonioso e de severo, que sorria desconfiado da intrepidez do infante. Em frente, as ilhas começavam a sair, com os primeiros dias de Sol, da bruma; mostravam uma massa de terra nítida e visível. Pareciam querer prolongar o mundo para lá dos limites aceitáveis pela razão e formavam um soberbo arquipélago de fantasia, que se espreguiçava na direcção norte-sul. Peniche ainda era nesse tempo uma ilha, porção de terra na orla do mar, quase ancorada já ao continente, por algumas línguas de areia, que a vazante punha a descoberto. Tratava-se da parte frontal desse capricho marítimo, ali diante dos homens, desafiando-lhes a imaginação e a curiosidade; e o mesmo acontecia com o ilhéu do Baleal. Com o bom tempo, os pescadores abriam as velas de pano cru dos seus barcos e faziam-se ao mar, com os braços destapados e os pés descalços. A Primavera tornava mais nítidas as águas e acalmava a palpitação do turbulento coração marinho. As ondas vinham bater mais mansas nos vastos areais da praia do porto das naus e, por vezes, calavam o seu ardor, mostrando-se correntias. O mar era então uma superfície quase lisa, espelhada, onde as chatas deslizavam com vagar, por entre bancos de areia.

O infante gostava de abrir a janela do quarto e olhar o pequeno ancoradouro, onde cães de pêlo crespo e salgado se enroscavam, enquanto os cachopos descidos da vila atiravam pedras à água da boca larga do rio. A vila era um rectângulo, atravessado por um traçado de ruas estreitas. As casas pertenciam a calafates e armadores, gente de ofício ou cabedal, que vivia do comércio, do artesanato ou do peixe. Cultivavam-se as terras do interior e a gente do mar enfaixava também os pés na lama e calejava, desde criança, os dedos no cabo do sacho ou na pedra dos campos. A vila aparecia rodeada de pomares bem tratados, fertilizados pelo aluvião do rio; o rabo do arado complementava a vela ou o mastro. A terra emprestava aos homens uma cor encardida, terrosa, que o sol ajudava a fixar. Agora, na Primavera, os pomares ficavam viçosos e verdes e os pássaros regressavam aos bandos. Foi então que Diogo Lopes Pacheco disse ao infante que a mãe o esperava, com folga e espaço, em Lisboa.

Ao contrário dos infantes, para quem a nódoa no burel não crescia nem importava, as infantas eram desde miúdas industriadas na arte da casa e do silêncio. As soberanas tomavam-nas a seu cargo, ocupavam-se delas como filhas, a quem tinham de ensinar as difíceis tarefas públicas de resguardo e mando. Era uma convivência calada, severamente compreensiva e tolerada de parte a parte. Muitas vezes, os sangues mentruais dessas raparigas desabrochavam, em caudais fartos, longe da casa materna; eram as sogras que lhes davam, pela primeira vez, os linhos brancos de embeber e lhe passavam para as mãos as cintas com que seguravam o busto. Preparavam-nas para o matrimónio real como se preparava uma noviça para tomar ordens, com silêncio e concentração. A dignidade dum código precisava de ser aprendido, não de forma escolar, como quem aprende a ler ou a escrever, mas de forma natural, como quem toma ar ou bebe água.

Branca de Castela não se adaptou também a Santarém. Detestara a névoa marinha de Lisboa, que lhe magoara os brônquios, e achou Santarém uma imitação desprezível das cidades fluviais do centro da península. Sentia afinidades com Brites, com quem tinha aliás parentesco muito chegado, mas tudo o resto lhe era enfado temível. Recusou-se, desde o início, à língua portuguesa, que nunca falou. Ao fim de algumas semanas, dizia a custo duas ou três palavras soltas e voltava de novo ao seu mutismo brusco, fechada sozinha no seu quarto, onde escondia os seus achaques. Não tinha o gosto da pompa sensível, com vistosos bordados a oiro e púrpura, como questionavam as meninas do seu estado, nem o prazer da mobilidade, que era o luxo da época. Brites, sua tia, irmã de seu pai, Pedro, aceitou-a assim assustadiça e mole, mas não a pôde conservar indefenidamente no retiro de Santarém. Voltou com ela para Lisboa, na esperança de melhor trato. Ainda assim, a menina mal se viu ao pé das areias do mar tomou tal desgosto do lugar que se enfiou dias a fio no quarto a chorar. As neblinas do rio, a temperatura quente do Outono, a humidade das paredes, o bolor das roupas, tudo a incomodava; secavam-lhe o quarto com braseiros e perfumavam-lhe a roupa com cheiros de ervas. O mar, com os seus ventos salinos e fortes, perturbava-a, deixando-a mais mirrada e seca, como se à nascença o seu destino fosse o túmulo e não o berço.

Pedro viu-a pela primeira vez na Sé de Lisboa, no mês de Abril de 1329, pouco depois da mãe o mandar chamar pelo filho do chanceler. Preparavam a festa do primeiro dia de Maio, e Branca andava com outras meninas a florir altares, embrulhada numa capa de pelica e de touca dura atada no queixo. Viam-se-lhe os dentinhos de rato, finos e longos, meio estragados pela farinha de mel, dentro da boca de lábios de papel e os olhitos piscos e embaciados, que sofriam de miopia aguda. Contrastava com as outras meninas, que, da sua idade, tinham os bracitos nus, os cabelos enfeitados com rosas e a cinta apanhada por uma faixa de carneira macia, bordada a ponto fino, que lhes modelava já as formas. Em vez de chorar, que era sinal de sentimento e despertava carinho, fitou o infante com ar de enfado, que era a expressão duma quase idiotia. Branca afastou-se finalmente nos seus passinhos curtos e medidos, sem dizer palavra, os braços escondidos na pelica escura, como se fugisse num dia muito escuro de Novembro, por entre o tojo malcheiroso. Pedro procurou no claustro a mãe, mais intrigado que inquieto. O aio dissera-lhe que aquela menina era a sua esposa.

—Senhora, vossa filha não leva estrelas de Maio, nem traz no cinto a tez das flores.

A mãe passou-lhe a mão pelos cabelos e fitou-o incomodada. Conhecia mal aquele filho, que as circunstâncias da guerra interna haviam afastado, e, em geral, não entendia, mas aceitava, os seus desesperos e birras. Sentia por ele todo o carinho que não lhe dera e que agora, pressentia, já chegava tarde. Achava desconcertante ter baptizado aquele filho com o nome de Pedro em memória do irmão, que era pai de Branca. Remembro ainda que no dia em que chegou a Santarém a notícia do desastre da veiga de Granada, onde meu irmão Pedro perdeu a vida, chegou-me também a suspeita, depois certificada, da gravidez deste filho, que assim lhe herdou o nome e a memória, pensou melancolicamente Brites.

—Há orfandades que se lêem nos olhos — anunciou Brites, enquanto lhe continuava a passar as mãos pelos cabelos. — Seu pai, meu irmão, o senhor Dom Pedro, deixou a vida quase quando tu a ela chegaste. Desamparou assim da vida esta menina numa idade em que mais se floresce do que se caduca. Cravou-se-lhe no rosto uma tristeza mais sentida do que sabida e que é hoje nesta menina mais do natural que do adquirido. Esperai, e com ela ainda ireis, se assim aprouver ao Altíssimo, noutro ano, às espigas de Abril.

Desabaram nesse dia chuvadas repentinas e frias, que mais faziam pensar nas festas do Outono, quando se bebe um vinho claro e fraco, acompanhado de castanhas e erva doce, que nas de Maio, em que os santos se toucam de flores e os homens e as mulheres trazem das eiras os primeiros calores fortes do cio. Nesse instante, Pedro adiantou-se à criança, que emudeceu por instantes. Não percebia muito bem o que era estar casado com aquela touca ridícula, mas bem via nas águas que galgavam barricas e traves uma outra linguagem, mais caudalosa e incontrolável, que se avizinhava. Hora de metamorfose, em que toda a radícula mais chã se pode espantar das suas asas alvoraçadas. Assim, Pedro, depois desse encontro, sem dormir, à espera da alvorada.

Constança Manuel quando ficou em Penafiel tinha nos olhos a pisadura do seu primeiro desgosto de amor. Esta mulher soube o que era o amor e o seu destino desde cedo se divide entre o martírio e o heroísmo. Tinha pouco mais de doze anos e um perfil de senhora, sensual e altivo. Os cabelos caíam-lhe até à cintura e tinha já nesta idade a dignidade solitária e fria duma mulher nórdica, tocada, porém, por uma melancolia calorosa, quase ardente. Havia na sua lhaneza a distinção das coisas superiores; o castelhano, temperado pelo sangue levantino, guarda no modo algum aspecto deste brio, que passa por arrogância ou ferocidade bravia e é afinal solidão afável ou castidade austera.

Em Penafiel, Constança tratou das suas roupas, visitou antigos hábitos, recordou Aranda e Sória, onde se criara em criança. A princípio pareceu despertar para a vida, mas depois fechou-se de novo no quarto, pálida e chorosa. O pai veio buscá-la e levou-a para a corte de Aragão, onde estava muito bem relacionado. Reinava Jaime II, irmão de Isabel, esposa de Dinis, rei de Portugal; era um homem brilhante que fizera do catalão a língua comercial do Mediterrâneo. Morreu por esta altura e, com a subida ao trono de Afonso IV de Aragão, João Manuel afasta-se com a filha de Saragoça e desce para Múrcia. Constança Manuel passeou então por Albacete e entreteve-se a bordar carneira com meninas árabes vindas de Alicante. Eram mulheres ágeis, habilidosas, alegres. Diziam graças e riam muito; entraram rapidamente na intimidade de Constança, que as achou dotadas para a companhia e o doesto. Falavam sentadas no chão, com o estojo da costura entre as pernas, as mãos no regaço da saia; acentuavam as palavras maliciosas ao ouvido de Constança e desmanchavam-se depois a rir. Constança levou-as para Múrcia, onde iam todas as tardes passear na Fonte dos Álamos, um parque com uma espessa e luxuriante vegetação.

João Manuel era nesse tempo o mais poderoso senhor de Castela. Fora cunhado de Jaime II de Aragão e o seu pai fora o último dos doze filhos do rei Fernando o Santo. Precisava de casar Constança e de a fazer rainha. Albacete, Elche e Múrcia fizeram-lhe recordar o Algarve. Pensou então escrever ao rei de Portugal, propondo-lhe dar em casamento a filha. Conhecia o enlace de Branca com Pedro, mas acreditava que a sua importância na política peninsular bastava para o desfazer. Caíam as primeiras orvalhadas sobre os palácios da Andaluzia, em Novembro de 1330. Durante o dia, o céu tinha uma cor lavada e primaveril; os pássaros cruzavam as marismas do sul em grandes bandos, indiferentes à força do Outono. A tepidez afável do mês obrigava as mulheres a refugiarem-se, ao começo da tarde, debaixo da sombra de grandes toldos brancos, que eram montados na entrada do palmeiral do parque. Começavam a correr os primeiros rumores sobre a esterilidade da formosíssima Maria e era já pública a mancebia com que o rei vivia, aos 19 anos, com Leonor de Gusmão, que lhe começou logo a dar filhos. Era uma rapariga dum recato tímido e estudado, com alguns talentos físicos e artísticos, que o rei começou desde logo a tratar como verdadeira senhora, mostrando como gostaria que  fosse ela a rainha. A classe política começava a ser escolhida entre os seus parentes mais próximos, o que era de molde a desgostar ainda mais João Manuel.

Escreveu então a Afonso IV de Portugal.  A carta ia como segue.

“Dom Joam Manuel por graça de Deus filho de Dom Manoel, irmão do muy sábio e querido Afonso X, rey de Castela e Leão. Ao temido varão e poderoso príncipe Dom Afonso, rey de Portugal e do Algarve, a cuja graça e verdadeira amizade me recomendo. Assim como a qualquer homem é aprazível conhecer o peito do amigo, assim também é deleitável descobrir-lhe o próprio coração. E porque no casamento de vossa filha Maria, como já decerto sabeis, de alguma coisa vos arrependeis, vos digo que não me sai do coração a afronta de el-rey de Castela ao repudiar a minha filha Constança. Na companhia dos ofendidos e na multiplicação dos queixosos buscam seu alívio os magoados. Mas, aqui vos digo, a menina é o mais lustroso esmalte de fermosura e quem sabe se desvio foi da própria fortuna o não consentir esta em tal união. Com esta resignação, vai meu pensamento para vosso filho, infante Dom Pedro de Portugal e do Algarve, sobre o qual a fortuna não consente ultraje e em cujo casamento, antes de toda e qualquer união matrimonial, vós deveis hoje pôr todo o vosso cuidado e preocupação, pelo muito que a sucessão da coroa importa à conservação do reino. O leve imagina que tudo sabe, o louco que tudo pode, mas só quem não errou não tem a prudência e o ensino de quem já foi arguido e castigado. Digo-vos mais senhor: Constança, donzela e menina, bisneta do grande e santo Fernando III, é pérola que o Sol não perde de vista e que bom engaste será no fino oiro da coroa portuguesa. Concluo em vos dizer que no casamento de nossos dois filhos me apraz tudo o que vos aprouver, como pai e como rey.”

A mancebia de Afonso XI não passara despercebida em Portugal. Brites tivera nota dela, mesmo antes de Leonor de Gusmão dar à luz, em Setembro de 1330, o primeiro botão do rei. Depois disso, a situação fora comentada por toda a corte e o rei não se fechava a mostrar o desagrado e a preocupação pela situação da filha. A mancebia era admitida dentro de certos limites, que coexistiam com a situação de genro e marido e não podia aparecer aos olhos públicos como desprezo pela mulher legítima. Foi a preocupação pela situação da filha que o levou a encarar com simpatia a proposta de João Manuel. Neste seu negócio, deixava de lado os desagrados do filho para com Branca de Castela, que Brites lhe transmitira. Isso para ele não punha nem tirava em tal assunto, em que as partes interessadas não eram os que casavam mas os que de lado ficavam.

Esperou notícias de Castela e da filha, que vieram ainda mais carregadas e preocupantes. Aconselhou-se com Lopo Fernandes Pacheco, tomou o pulso a Brites, que não lhe negou o jogo, antes o advertiu para o presságio de desastre que era Branca de Castela. O rei decidiu-se a escrever pela positiva ao fidalgo de Castela; sentia-se apaziguado em desfeitear o sobrinho e genro, que lhe parecia um miúdo presunçoso, que não lhe merecia um dedo da filha querida. Num dia de Fevereiro de 1331, em que o frio azulava a carne, despachou de Lisboa a seguinte carta.

“Dom Afonso, por graça de Deus rey de Portugal e do Algarve. Ao duque de Penafiel, temeroso adiantado de Múrcia, cuja mercê e verdadeira amizade agradece e a ele se recomenda. Tendes vós inteira razão; muito ensina um erro, quando argue e castiga. Só não dói a alma a quem não envergonha a mentira. Acredito que dentro de Hespanha está Constança como a mais linda pérola dentro duma concha. Portugal, se a perdeu até aqui de vista, como o Sol perde a pérola, não mais há-de deixar de fazer para a descobrir, até que o príncipe meu filho seja merecedor de tal riqueza. Vencidas as dúvidas, concluído o acerto, afinadas as partes se há-de consumar e ajustar este nosso casamento.”

Há plantas que em vez de crescerem em viço e rebentos ainda mais definham com o tempo; põem-se amarelas e chôchas na estação em que deviam estar verdes e suculentas e, quando chega o tempo dos frutos, dão uns botões doentios e purulentos, de casca engelhada e caroço bafiento. Com doze anos de idade e três de casa real portuguesa, Branca multiplicava-se em achaques, o cabelo esfarelava-se, a pele secava, a carne sumia-se, os olhos piscavam e entortavam, o nariz gotejava uma secreção esverdeada, os ombros encolhiam, as costas abaulavam, o juízo não arejava. Guardavam-na em casa com Brites, que era a única capaz de trocar com ela algumas palavras no castelhano da Serra de Gredos, avivando-lhe a memória de lugares e pessoas, que lhe eram familiares e queridos. Era esta a sua única conveniência, recordar os arredores de Madrid, onde brincara com a ama e os parentes. Soluçava então nessas alturas umas lagrimitas deslavadas e ralas; levava depois as mãozitas magras e ossudas, envelhecidas de rugas, aos olhos piscos, que em geral se inflamavam. Usava sempre, quer fosse dia de Natal ou Domingo de Páscoa, a sua pelica negra, que lhe dava um ar de coleóptero, e a sua touca dura e seca, que reforçava o seu todo de estofo.

Pedro convencia-se que nunca desposaria tal mulher, que lhe parecia um espantalho dos campos em tempo de cebolo; não punha nisso nada mais que a ausência e alguma irreverência, mas isso chegava para dar a perceber desinteresse e repulsa. Crescera em dois anos o que certos moços crescem em quatro ou cinco; começava a organizar as primeiras grandes montarias na região e dispunha para isso de falcões amestrados e dos seus primeiros homens de mão. Fugia a Diogo Lopes Pacheco, que lhe impunha um quadro de severidade e disciplina, que intimamente lhe desagradava. Fidalgos como Diogo Lopes, bons cabos militares e bichos argutos da diplomacia, serviam de freio aos infantes e estancavam neles o gosto exibicionista; impunham-lhes um ritmo enérgico, nada letrado, mas, ainda assim, regulado por horários rígidos, em que se terçavam armas e se adestrava na areia o volteio. O infante sacudiu desde muito novo essa alçada importuna, furtando-se sobretudo à rigidez fria das escalas; preferia a companhia dos rapazes da sua idade, sobretudo na vila da Atouguia, onde era querido e adulado. As mulheres dos armadores, bem abotoadas nos seus jaquetões de pano, cabelo armado em coifa, gostavam de gritar à sua passagem ditos de emoção e empenho.

Era uma outra estroinice, essa que o infante conheceu desde tenra idade, nas ruas da Atouguia. Não se furtava a ela. Quem como ele teve da família os mimos tão minguados, primeiro pela guerra civil que opôs o velho rei ao infante seu filho, e depois pela guerra, não menos assanhada, entre Afonso e Afonso Sanches, acabava por prezar esses carinhos rudes e populares como quem agradece no deserto uma gota de água. Batia palmas, distribuía acenos, movia corridas. Habituou-se a ver nas mulheres seres rudes e pouco enfeitados, que se ocupavam em amanhar peixe ou em trabalhar nos pequenos pomares que rodeavam a vila. Tinham qualquer coisa de viragos e, apesar duma religiosidade desconexa, nada mostravam de fracas ou débeis. Apresentavam um tipo viril, que parecia resultar duma aculturação entre um tipo frio vindo do norte, com olhos cor de cinza, e um tipo meridional, de perfil puríssimo e tom sombrio. A mulher para o infante era um pequeno tornado, que atiçava tições. Eram-lhe pois indistintos os afazeres matrimoniais de seu pai; só muito ao de leve ouvia falar deles. Preferia de longe pensar nos seus cães, a quem dedicara muito do seu afecto de menino solitário e desvirtuado pela longa guerra civil.

Foi por esta altura que descobriu a Serra da Atouguia, hoje conhecida por Serra d’ el-Rei. Ficava sobre a igreja de São Leonardo, engastada para norte, nos primeiros contrafortes das terras altas e era abundantemente arborizada, por uma vegetação densa de carvalhos. O terreno era áspero e rude, com matas agrestes e grutas feras e côncavas nas penhas. Os animais abundavam, pois havia fartura de água e fertilidade de pasto. Os homens haviam arroteado aí algumas terras e cultivavam uma cevada rija e morena, lado a lado com árvores de fruta, pereiras e macieiras. Eram homens mais escuros que os da Atouguia; haviam chegado do interior, dos lados do Tejo, onde os mouros colonizaram. A rainha Isabel, esposa de Dinis, fizera aí um retiro, onde se entregava a pequenos trabalhos de mão, enquanto o rei estanciava em Leiria ou Alcobaça e recebia prelados e mesteirais, que lhe mandavam as filhas servir vinho e figos secos em baixelas de prata. A casa da Serra tinha uma varanda alta de pedra, donde se avistava o mar.

—Praz-me o recato bravio desta casa — disse Pedro ao aio. — Não me aborrece de cá me recolher de quando em quando.

Diogo Lopes replicou que desde a morte de Dinis que a avó não a habitava, fechada que estava na margem do Mondego, diante de Coimbra, no mosteiro de Santa Clara. Pedro não se deixou convencer.

— Embora. Quero a casa cuidada e limpa — respondeu o infante, dando a entender o seu gosto pelos lugares retirados e selvagens.

Afonso IV esperou algum tempo antes de escrever ao sobrinho de Castela. Queria, por um lado, que os boatos sobre as enfermidades e indisposições de Branca lhe entrassem bem nos ouvidos e, por outro, dar-lhe folga sobre o assunto da filha. No que a esta dizia respeito, as coisas pareciam ganhar algum caminho. Maria de Portugal tivera, em 1332, um primeiro filho, Fernando, que viria a morrer pouco depois, mas que chegou a ser jurado herdeiro. Em Maio de 1332, apesar de continuar a viver maritalmente com a Gusmão numa corte de fiéis, o rei coroara-se, lado a lado com Maria, na catedral de Burgos, o que deu alguma tranquilidade a Afonso de Portugal e a Brites. Assim, a carta que escreveu para Castela, em Janeiro de 1333, era breve, cuidada, respeitosa, cordata. De qualquer modo, o rei queria o desquite matrimonial de Branca. O sobrinho, Afonso de Castela, deu-lhe uma resposta prudente, em que preferia falar das ameaças africanas que dos negócios matrimoniais.

Estávamos no início da Primavera de 1333 e o cerco posto pelo sultão de Marrocos, Ali Boacem, à praça de Gibraltar trazia numa convulsão o centro da Península. Toda a Reconquista se fundou num mal-entendido e Cangas de Onis ou Covadonga não são o sinal de nada, porque a Península muçulmana é muito mais autêntica que a visigótica. A cultura árabe, radicada em torno da grande cidade de Córdova, permitiu o florescimento duma cultura cantonalista, que é muito mais peninsular do que o espírito imperial dos godos. As pequenas repúblicas árabes foram lugares de inteligência e tolerância, onde se criou e desenvolveu um espírito híbrido, que é talvez o melhor da enfiadura ibérica. A Península muçulmana, que é a do Califado, deu ao homem ibérico a certeza de que ele teria um destino extra-europeu, dando-lhe simultaneamente a confiança e a prudência necessárias à realização dum tal destino. O esplendor da bacia do Guadalquivir, a força dos contrafortes da serra algarvia, as marinas naturais de Alicante, Valência ou Tarragona constituirão sempre o arquétipo mais pujante e evoluído do homem ibérico.

Por isso, a aventura de Ali Boacem foi insensata. Era a derradeira tentativa de reconstituir não aquilo que fora o velho califado peninsular, mas o império ultra-autoritário dos Almorávidas e dos Almóadas, para quem a Península nada mais era que um entreposto militar de combate. A primeira vitória do sultão de Fez aconteceu quando Gibraltar lhe caiu nas mãos, em Junho de 1333. Afonso XI desceu do minarete de Sevilha, mandado construir pelo grande Almansor Iacub, reuniu os homens, ladeou as marismas, atravessou o Guadalete e depois de passar em Medina Sidónia, onde reforçou o exército, pôs cerco a Gibraltar. Mal sabia este Afonso que um dia, muito mais tarde, morreria diante daqueles mesmos muros. Por agora, os abrasados calores de Verão não o ajudaram e acabou a firmar tréguas desvantajosas com o sultão de Fez e o rei de Granada. Com as pazes afinadas, Afonso regressou às vilas de Guadalajara e Segóvia, onde por muito ferverem os ardores do Sol não fervem menos os ânimos.


A CILADA


As acções humanas não recebem os aplausos de quem as obra, mas de quem as vê. Enquanto Afonso XI descansava no sopé de Gibraltar à espera de lhe escalar os muros, falava Afonso IV em Almeirim com Lopo Fernandes Pacheco sobre o difícil negócio do casamento do infante Pedro. Tanto o rei como o chanceler concordaram em convocar cortes para Santarém, com o fim de desfazerem de vez os compromissos do infante com Branca de Castela e tecerem os novos com Constança Manuel. Os procuradores e os homens de concelho afluíram a Santarém, depois do Natal. Traziam a ideia duma fraternidade em que todos participavam como iguais, quer usassem a mitra episcopal ou a pelica friorenta do burguês. Afonso falou-lhes do infante e da necessidade de lhe arranjarem outro casamento. Inquiriram-no, com burburinho.

O chanceler ia replicar com um relato circunstanciado, mas foi ele que respondeu secamente.

—Incapacidade matrimonial.

Branca raramente fora vista pelos populares das cidades; vivia num estado de absoluta clausura, que prefigurava um destino rígido de recolhimento. As suas congestões eram violentas e particulares; passavam na sua vida como momentos duma forte e tremenda solidão. Fechava-se então horas seguidas, de janelas cerradas e pés descalços nas lajes frias. Embrulhava os tapetes e não abria a porta a ninguém, nem mesmo a Brites. Depois, de madrugada, quando o furacão interior a deixava quase prostrada, era vista a mendigar, curvada e ramelosa, de pelica e touca, um caldo quente nas cozinhas. Metia dó o seu desarranjo; os seus 14 anos pareciam andar trocados com as décadas dalgum velho ladino. Tinha a secura dum coleóptero teso e o seu peito era liso como uma planície.

O Inverno de 1334 foi chuvoso e lamacento. Os homens foram ficando em Santarém; há muito que o caso de Branca estava arrumado, mas o chanceler entreteve-os com os problemas das cidades. Eles não se queixaram e foram-se deixando ficar até à Primavera seguinte. No fim de Março e princípio de Abril, raiaram os primeiros dias de Sol cru e forte; sentiram ganas de voltar ao trabalho da terra e ao comércio. Partiram e no regresso dos procuradores que haviam ido da Atouguia soube o infante, pelo aio, que Branca voltava para trás, para as penhas de Gredos, que tanto a faziam chorar de soledade. Respirou de alívio, mas não ligou ao assunto mais que um suspiro. Habituado à liberdade bravia dos ermos e dos latidos dos seus cães, o infante repelira Branca desde o primeiro momento mais pelo esquecimento que pela paixão. Não há, por isso, no primeiro gesto de desagrado de Pedro para com Branca, na Sé de Lisboa, qualquer rebeldia consciente, mas apenas o enfado de pensar em assuntos que fogem da Atouguia, onde punha por então toda a afeição.

Pedro passou o Verão desse ano em incursões descontraídas aos cercados da Serra do Bouro. Desde a Primavera que tinha por hábito correr toda uma cercadura de pequenas encostas que subiam da Atouguia até Óbidos. Era um rapaz de 14 anos, ombros largos, pernas grossas, braços rijos, dedos compridos e finos, que começava a deitar pêlos na cara. Fazia-se acompanhar por uma matilha desencontrada de cães e pelos moços de monte, que viviam no paço ou nos arrabaldes da vila. Diogo Lopes Pacheco, serviçal e atento, desculpava a leviandade, mas continuava a ser o elo sem quebra entre a corte e o príncipe. Aceitava a travessura, mas procurava industriá-lo nas obrigações do porvir. Era um homem sem inquietações, que conseguia ser quase obsceno sem com isso se incomodar, e a quem Pedro ficou a dever o sentido de governação, que mais tarde veio a mostrar.

O lugar dos príncipes é nessa idade um lugar solitário; o coração começa a pesar-lhes entre a liberdade e a obrigação, sem que eles entendam a razão de ser da segunda. Medem a obrigação do casamento ou da coroa com um misto de revolta e incompreensão, e querem-se livres e soltos para toda a vida. Casamento e estado não lhes falecem. Assim, esse Pacheco, que atravessou o século como uma trave-mestra, para só vir a falecer com mais de 90 anos, foi talvez o pai substituto de Pedro; por isso, quando o sangue de Inês alimentou as labaredas da guerra e da crueza, a fortuna o escondeu nas suas dobras, protegendo-o da revindicta de Pedro, que no fim da vida, embalado pelas recordações da primeira juventude, lhe perdoou e restituiu os bens.

Os primeiros dias de Outubro trouxeram horas de chuva e de claridade lassa. Os camponeses mostravam pressa em se recolher ao fim do dia e levavam de madruagada, quando iam para os campos, o capelo enfiado na cabeça. Aproveitavam a folga do almoço para armarem laços aos peixes nas dos vastos areais da costa, do lado do ilhéu do Baleal. Pedro deixou-se ficar em casa dois dias e decidiu depois ir a Almeirim e a Alpiarça, onde, nos primeiros dias da guerra civil entre o seu pai e o seu avô, tivera uma ama de peito.

Partiu na companhia dum grupo de rapazes e, quando atravessou o Tejo em Santarém, sentiu-se preso à planície extensa, onde pastavam manadas de touros e se guardavam hábitos ancestrais. Os homens picavam os animais e passeavam sentados nas selas dos seus cavalos, mão esquerda no arção; ali, quem andasse a pé não chegava ao fim. A planície deu-lhe alma e novidade. Deixou-se ficar, em Almeirim, saboreando o perfume do mosto e o paladar dos figos.

—Venham para a Touguia — pediu ele ruidosamente a um grupo de picadores, quando pensou regressar. — Dou-vos terras e ocupações e o que vos peço é que levem para a vila uma manada graúda de gado bravo. Quero fazer um touril no terreiro de entrada, do lado dos campos, com estacas de pedra.

O touril da Atouguia foi o primeiro acto cultural de Pedro, com simbolismo geral. Pedro está nele de corpo e alma. Ele tanto é, com as suas iras e os seus desgostos, o sol negro da noite que o touro corporiza, como, com a sua capacidade de transcenção e o poder da sua memória, também é a força humana decidida a descer aos infernos, para fitar de frente essas trevas monstruosas. Acto gratuito e acidental, esse momento revelou, porém, a frio, o seu destino futuro.

A construção do recinto encheu-o duma expectativa, que era para ele uma forma desconhecida de melancolia. Gostava de se encostar ao umbral de pedra da sua varanda, que abria sobre o poente, e pensar no touril. Era um rectângulo de terra, que parecia ter as dimensões do universo.

Estávamos no Outono e a lua banhava de claridade mansa os campos. Peniche e o Baleal distinguiam-se, ao anoitecer, junto da costa, como duas massas vivas e palpitantes. As manhãs nasciam serenas, cheias de luz, e os pescadores aproveitavam os dias calmos da estação para atravessarem o canal, que o Inverno não tardaria a tornar intransitável. Dirigiam-se a Peniche, que não passava então duma ilha habitada por gaivotas e outras aves marinhas. Deixavam-se ficar durante o dia na ilha, onde tinham pequenos barracões de pedra branca, atulhados de redes, cordas e madeiras roídas. Aproveitavam assim para revisitar as pedras da ilha, arrumar os barracões, armar os últimos laços na maré vazia.

Foi numa dessas embarcações que Pedro atravessou o canal. Era hábito seu desde há mais dum ano acompanhar as chatas à ilha, passeando depois pelas moitas e pelos carreiros, visitando as grutas e os furados. Seguia acompanhado, mas acontecia também partir sozinho. Desta vez ia só, com o pensamento no touril e nos touros negros de Alpiarça, que pastavam altivos na parte alta da vila. Os homens riam-se, gritavam uns para os outros,  remavam compassados e lestos por entre os bancos de areia. Eram homens de pele pergaminhada, mais rosada que escura, que se emocionavam com facilidade. Apreciavam em Pedro o seu jeito popular e a facilidade viril, que exigia um trato rude e áspero. Nessa noite, pensava dormir num dos barracões da praia virada a sul, por entre caixas, redes, laços, anzóis, pedras, âncoras e panos tingidos de castanho. Regressaria, como de costume, no outro dia, pois, nesta época, era hábito as barcas retornarem à Atouguia antes do anoitecer.

Noites de lua nova são noites em que se passa da expectativa à contemplação. Dormiu, por isso, sossegado durante muitas horas. Ficaram na soleira do barracão as brasas dum fogo, que, na solidão escura da terra, desenhava a imagem dum céu estrelado. A noite acabou por esfriar os carbúnculos e, de madrugada, ao acordar, o infante acabou a recordar, olhando a sobra das cinzas húmidas, um sonho, que lhe parecia preso à retina. Eram imagens flagrantes, límpidas, desconexas. Reviu a figura duma mulher de cabelos ondulados, cor do fogo. Era uma mulher que estava, como um turbilhão em repouso, sentada no meio duma floresta. A meio do sonho, ela levantava-se e, debaixo duma lua cheia, tocava num cavalo de pêlo claro e ancas fortes, que desaparecia com ela na floresta em direcção do luar. Pedro levantou-se de olhos abertos e com a impressão de despertar no interior do sonho.

Há sonhos que impressionam pelo enredo da fábula e o tempo do seu sucesso. Outros, chocam pela vitalidade das imagens, que nos surgem mais vivas que a realidade física. Um sonho assim, em que o vigor das imagens tem o poder dum terramoto, é como uma aparição; levantam-se das suas paredes certezas inelutáveis, premonições inabaláveis. É ele que nos predispõe ao privilégio e não à fuga, pois é a revelação duma existência nova em nós.

Essa mulher, revelada nos sais de prata da noite, foi para Pedro o despertar duma novidade, de que ele não tomou, porém, consciência. Era possível traçar o quadro sexual da sua vida futura apenas com essa imagem e com os touros negros da Atouguia, que ainda hoje figuram no brasão da vila. Deixo isso de lado, mas, ainda assim, digo que foi ela o arcano que lhe revelou o desejo. Foi através do seu sonho que Pedro viu pela primeira vez a mulher, tomando-a na sua lógica fatal e redentora, que é também a sua glória angélica. De qualquer modo, isso aconteceu no segredo do seu pensamento e se o desejo chegou a aflorar à sua consciência ele não quis, nesse momento, dar-lhe solução. A mulher continuou para ele a ser uma incógnita, que não lhe interessava resolver. Mostrou, por isso, mais curiosidade pelo animal do sonho que pela mulher. Quem diria, Pedro, que seria numa noite como essa, de lua nova, que tu virias, já nos últimos anos da tua vida, a desvendares os derradeiros segredos da mulher, que só na escuridão se podem ver e que tu foste o primeiro a encarar de frente?

A incomodidade entre Portugal e Castela começou nas primeiras semanas do ano de 1335, com a recusa de Afonso XI deixar vir para Portugal a filha de João Manuel. Chamou-a à cidade de Toro e lembrou-lhe, com sugestões caladas, certas promessas que dez anos antes lhe fizera. Não lhe propunha escandalosamente casamente ou mancebia, mas olhava-a longamente. Mandava-lhe ao quarto laranjas doces de Múrcia ainda com flores brancas e delicadas nos ramos e entretinha com ela uma relação de silêncio, que bem se podia associar ao amuo dos namorados. Constança tinha então 22 anos e um cabedal raro de vida sentimental. Penteava amiudadamente, com ar descuidado e melancólico, o seu longo cabelo. Pousava os pentes de oiro em cima de baús almofadados e dirigia-se à janela, donde contemplava os horizontes. Repetia isto todos os dias; era uma donzela distraída do mundo e das suas galas, vivia para recordar o passado e esperar uma revelação. Agora, em Toro, gostava de contemplar as águas do Douro, que lhe traziam, a boiar, as combinações esperançosas da sua infância feliz. Sentia-se prisioneira, ou pelo menos refém, mas a proximidade de Afonso inspirava-lhe uma paz, que, apesar de emblemática, lhe espiritualizava o sacrifício da sua vida. Nada havia entre eles, mas a tensão militar entre João Manuel e o rei obrigava este a um jogo prudente, em que a vontade de Constança representava um trunfo considerável a seu favor.

Em Portugal, a tensão enervou o rei, que julgou o sobrinho um fedelho mal-intencionado, a precisar porventura duma lição um pouco mais dura. Branca de Castela foi enclausurada numa cela da Sé de Lisboa, que lhe mortificava o espírito. A varanda abria sobre o Tejo e ela foi obrigada a conviver com as névoas matutinas, que a deixavam com dispneia. Brites tentou interceder, mas não conseguiu outro tratamento que a clausura forçada. A rainha-mãe, Isabel de Aragão, viu na represália um prenúncio de guerra. Era uma velha senhora, sexagenária, de cabelo branco e ar de menina volátil. Tinha hábitos austeros, mas uma disposição engraçada para viver. Levantava-se de madrugada, recolhia-se de manhã para orar, mas gostava de passar as tardes em longas conversas com quem a quisesse visitar. Era um fenómeno conhecido em todo o país e havia gente que vinha do Minho ou do Algarve só para lhe perguntar o que ela pensava do mar, da chuva ou das pedras. Era uma visionária, que discorria horas a fio, com calor e dinamismo, a partir das coisas mais insignificantes; o saber era nela uma expressão do infinito, que evaporava números e formas, e não uma taboada de rivalidades ou uma forma de se apresentar. Atravessou várias guerras fraticidas e em todas elas se manteve de fora, dando-nos a ideia de que o seu lugar não pretendia competir com o dos homens. Agora, diante de nova convulsão, assentou partir a pé para Compostela, de modo a dar um primeiro sinal de reconciliação entre a coroa portuguesa, governada pelo filho, e a castelhana, regida pelo neto.

O solstício de Verão é como uma noite de lua cheia; é dia claro em todo lado e à noite é como se houvesse Sol. Foi a 21 de Junho de 1335 que Isabel pegou no bordão de romeira, na veste anónima de peregrina, no  fardel de pedinte e deixou Coimbra a pé, acompanhada apenas de duas noviças de Santa Clara e dum irmão da Confraria do Espírito Santo de Alenquer. A viagem estava pensada por etapas, pernoitando-se ao ar livre ou no hospício das casas religiosas. Vivia-se de esmolas e ofertas, de nada mais. As 40 ou 50 léguas que separavam Coimbra de Compostela eram, assim, uma prova, percorrida no sombrio recolhimento do andar diário, que se escondia da publicidade ou do ruído dos solares nobres.

A partir de Aveiro, o grupo deu-se conta do arrefecimento das noites e das constelações apontadas a norte.  Fizeram-se mais raros os dias de Sol cru e depois de Guimarães os caminhantes sofreram chuvas inesperadas e caudalosas. Chegaram a Compostela em meados de Julho, quando de todos os caminhos e direcções começavam a surgir homens e mulheres, com os mesmos sinais, que vinham festejar a festa do 25 de Julho, que lembra o irmão do evangelista João. Com os campos acabados de segar, a festa tem um traço pagão, lembrando um ritual céltico da luz e da fecundidade, que o cristianismo depois adaptou. Por isso, Miguel de Unamuno dizia que na pequena urna de prata da cripta da catedral de Compostela não estão os ossos do apóstolo, mas sim os de Prisciliano, bispo do noroeste peninsular, que, como Viriato, Roma condenou à morte. Não sei o que o grande Unamuno sabia dessas coisas, mas, nesse finisterra do mundo antigo, os camponeses ainda hoje guardam, por via das espigas do milho e do centeio, a memória viva do Sol em altos túmulos de pedra.

Isabel e o pequeno grupo ficou em Compostela até finais de Agosto. Passaram os primeiros dias de Setembro na colegiada de Iria Flávia e iniciaram depois o regresso a Coimbra. Em Pontevedra, emissários de Afonso XI encontraram-se com Isabel. O neto prometia-lhe contenção e paz. Não lhe falava em Constança Manuel, mas dava-lhe a entender que a filha de João Manuel iria em breve para Portugal.

—Agradecei a meu neto o seu favor de paz — despediu-se Isabel dos emissários.

Em Vila do Conde, esperava-o o conde de Barcelos, Pedro Afonso, irmão de Afonso Sanches e meio-irmão de Afonso IV. Viera esperá-la para lhe fazer companhia até Coimbra, peregrinando com ela. Era um homem correctíssimo, de fala doce, com uma pequena cova no queixo. Tinha os dotes poéticos do pai. Estava casado em segundas núpcias com uma senhora aragonesa, Maria Ximenes; falava-se mais catalão no seu paço de província que na corte de Lisboa. Vivia no solar de Lalim, ao pé de Lamego, sob o céu da igreja de Almacave, arredado das lutas de influência e de poder. Aí, na linha do Douro, havia de compor muitos dos casos que constituem a mais antiga crónica medieval portuguesa. Há na arte uma força de austeridade, que leva à descoberta duma disciplina que tem alguma coisa de voto de silêncio. O poeta aproxima-se do místico, porque ambos vivem não daquilo que os rodeia, mas daquilo que sonham e imaginam.

Em Coimbra, tinham o rei à espera. Estava-se em Outubro e o Sol aquecia os campos desprotegidos, acabados de vindimar. Sentia-se o mosto adocicado e pegajoso no ar, onde zumbiam moscardos. Afonso beijou longamente a mãe, que mostrava um ar cansado e contente. O rei tinha boas notícias a dar.

— Folgo, com o casamento do infante com Constança Manuel e anseio por que tudo corra sem embargos nas próximas semanas — suspirou Isabel, com o seu ar delicado de menina.

O ano de1336 entrou, no centro do país, forte de águas. Algumas pontes ruíram e transitava-se com dificuldade no interior. Ventos ciclónicos haviam provocado derrocadas e árvores arrancadas pelas raízes atulhavam os campos. Muitos caminhos ficaram intransitáveis. Os camponeses resguardavam-se, ateavam braseiros de vide, entrançavam vime, modelavam barro, grudavam pipos, limpavam lagares, aconchegavam os animais, com os quais viviam paredes-meias. O rei estava ainda com Brites em Coimbra, no paço de Santa Clara, onde Branca de Castela ficou também instalada; a menina devia seguir para Gredos mal Constança Manuel viesse para Portugal. O rei castelhano insistiu no casamento por procuração de Pedro e Constança. Aprontou-se tudo para os primeiros dias de Fevereiro; foram os procuradores portugueses a Cuenca e vieram os castelhanos a Évora. Constança foi autorizada a ir a Cuenca. O rei português mandou chamar o filho, que se mostrava alheado do que se passava. Diogo Lopes Pacheco teve alguma dificuldade em tirar Pedro do paço da Atouguia. O infante chegou a Coimbra acompanhado dum alão de pêlo claro e desinteressado do assunto do seu casamento.

—Meu pai, ireis desculpar, mas é sem ânimo que encaro este casamento. O coração não me é conforme neste jeito e para ele vos peço outra compreensão e outro juízo, que deve ser de pai e não de rei.

Pedro era agora um rapaz membrudo, que deitava corpo de homem. Estava corpulento, com mãos pesadas, dedos finos mas calosos, resultado do trato diário com pedras, silvas e javalis. Calçava borzeguins de atacadores e vestia calças apertadas de couro negro e camisa larga de baetilha; o cabelo caía-lhe já sobre os ombros, ondulado e luminoso. O pai quase não o olhou. Aquele filho não era para ele quase nada. Não dera, a bem dizer, pelo seu nascimento, e só dele se ocupava porque, acidentalmente herdeiro do trono, era um naipe político influente.

—O rei é pai por afeição, mas é senhor por obrigação. Estimam-se os homens como filhos, mas é também por isso que se governam como vassalos. Irás dar a tua mão a Constança Manuel e saberás a seu tempo o acertado desta escolha. É como pai que te caso, mas é como rei que ponho o maior cuidado no que à conservação do reino importa.

Pedro olhava para os campos. Estava sentado na borda duma arca de madeira de castanho e o seu coração estava limpo de paixões. Conhecia a Lagoa de Óbidos palmo a palmo e tinha corrido tempos antes, nos dias ventosos de Janeiro, os areais do litoral, desde a Atouguia até à foz do Sizandro. Era disso que agora se lembrava. Havia um negro de cabelo branco que lhe aparecera na Ericeira e lhe escancarara a boca num riso alvo e inteligente. O seu coração pertencia a esses lugares calados e a essa gente anónima e estranha, que sedimentava e crescia na sua vida. A experiência com Branca de Castela aborrecera-o e a mulher era para ele um enigma solto, que não lhe interessava por ora desempatar. Noutra ocasião ter-se-ia lastimado da sua sorte, agora não. Sabia que nenhum lamento lhe poderia frustar a paixão do campo.

—Não respondes, Pedro?

O alão farejou com inquietação o ar. Pedro retirou então os olhos dos campos e fechou-os. Abriu-os depois e fitou a estatura avantajada do pai, que conhecia e media mal. Discorreu sem calor.

—A liberdade que há naqueles montados é em tudo superior ao ordenamento que os homens põem nas coisas. Vejo na solidão da natureza um respeito que me surpreende e prezo por isso a sua conveniência.

Afonso tinha a mão esquerda presa no joelho. O passado nunca é como o futuro, ainda que no seu íntimo eles nem sequer se diferenciem. Acreditava conhecer a idade do filho, que nascera num período conturbado e marcante da sua vida, que, ainda assim, preferia esquecer para sempre. Recordava-se mal da gravidez de Brites, que coincidira com um luto, e do nascimento do filho, onde pusera muito pouca fé. Dois varões haviam-lhe morrido pouco tempo antes e acreditou, sem saber porquê, que esse era também o destino daquele. Não foi, mas às vezes assim parecia, já que se lembrava mais dos outros do que deste.

Além disso, havia, como uma pomba altiva e galante, Maria, a primeira filha, que lhe foi sempre, em todas as horas, difíceis ou doces, um bálsamo e retiro. Tinha por ela um grande carinho, feito de convívio e concordância. E depois havia ainda Leonor, a derradeira, nascida já durante o seu reinado, que era hoje, depois da partida da primeira, a filha de todas as horas. No meio, sem arrimo e desconjuntado, estava esse filho varão, que ele nunca tivera tempo de conhecer nem disposição de amar, mas que, assim como assim, era o seu sucessor. Preferiu aceitar o desinteresse como um sinal de submissão.

—Não respondas, Pedro. Dá-me apenas o que te peço, já que é o rei que to pede como pai.

Realizou-se o casamento por procuração do lado português e do castelhano. Provaram-se vinhos em Évora e celebrou-se missa pontificial em Cuenca, a que o próprio rei assistiu, acompanhado pela esposa e pelo filho herdeiro, também chamado Pedro, que nascera dois anos antes. Ia a Primavera a caminho do fim quando os procuradores regressaram aos seus países de origem. Previa-se que Constança regressasse a Penafiel, donde seguiria depois para Portugal. Partiu com a comitiva do pai em finais de Maio, quando corriam os primeiros rumores da agonia de Isabel de Aragão. Não fez nada para evitar Valadolide, onde estava a corte de Castela. O esplendor dos festejos restituira-lhe alguma altivez ao semblante cansado e não achou despropositado mostrar-se ao rei. Tinha vestes rígidas de brocado e uma coroa de prata fina nos cabelos. O pai, a princípio temeroso, ainda a procurou contrariar, mas depois viu nisso uma desforra inofensiva. Passaram por Valadolide.

Ora, o pranto não produz murmúrio e é preciso esperar pelas festas de ostensivas galas para que alguém se digne olhar para nós. Afonso, fortalecido pelas notícias da agonia de Isabel, sua avó pelo lado da mãe, ousou então o inesperado. Aprisionou de novo Constança, com o pretexto de que João Manuel não lhe pedira autorização para passar nas suas terras, e mostrou-se indiferente aos protestos do pai, que se refugiou, mais agastado que pusilânime, junto do rei de Aragão. Por seu lado, Constança achou romanesco o lance e não se deu sequer à fuga. Era uma mulher trabalhada pelo risco e pelo sentimento, que ambicionava o amor e gostava de se ver envolvida em disputas passionais.

Em Portugal, a notícia foi recebida ruidosamente como uma declaração de guerra. Branca foi de novo encarcerada nas clarissas de Coimbra, mas Afonso IV sentiu a ira tolhida pela aflição da mãe. Isabel de Aragão veio de Coimbra para Évora, doente e quase paralisada, para reconciliar novamente o neto, Afonso de Castela, e o filho. Ficou em Estremoz, sem se poder levantar. Todas as manhãs duas aias lhe vinham abrir a janela da câmara. Já não falava, mas, ainda assim, agradecia com os olhos. Gostava de sentir no quarto os espíritos voláteis que vagueavam pela planície e lhe traziam, sem perceber porquê, recordações de armadores catalães que conhecera na infância. Esperava-se a todo o momento o seu passamento e tanto Afonso como Brites se obrigavam a estancear por perto. A resistência que a rainha velha oferecia à morte era a sua última prova a favor da paz; a sua longa agonia foi o último gesto do seu apostolado. Foi com ele que se adiou a guerra entre Castela e Portugal e se apaziguou a ira do primeiro embate.

Um dia Brites deu com ela a gesticular no vazio; dava ideia de se apagar pouco a pouco. Brites, que trazia toalhas húmidas para lhe refrescar o corpo e serenar a fronte, preocupou-se. Isabel morria poucas horas depois, a 4 de Julho de 1336, com 66 anos.

Era uma mulher culta e aquilo que mais a desgostou ao longo da vida não foram as contendas constantes a que assistiu entre pais e filhos, mas a ignorância que a rodeava. Isabel de Aragão deve ser vista como o fruto duma terra, que, na mesma época e no mesmo lugar, criou homens como  Raimundo Lúlio, Muntaner ou Arnaldo Villanova. Lúlio, a quem de resto conheceu, e que a chegou porventura a visitar em Portugal, é a simetria masculina desta mulher; a sua Ars Magna  é o reverso da taumaturgia isabelina. A força de Isabel reside no poder de transmutar os limites do obscuro e os seus milagres podem ser vistos como casos alquímicos conseguidos.

Um dia, na sua casa de Lisboa, que é uma gruta de pedra guardada por um leão, Mário Cesariny segredou-me que esta mulher em vez de santa era cátara.

—Olhe que seu bisavô, Pedro II de Aragão, cunhado de Raimundo VI, conde de Toulouse, combateu a cruzada papal contra os cátaros de Simão de Monforte e foi o seu avô, o liberal Jaime I, amigo de Lúlio e Villanova, que a educou até aos sete anos — disse-me ele em jeito de segredo.

É a Isabel de Cesariny que aprecio, não aquela que Trento quis que ela reguladamente fosse. O que possa haver nela de comprovadamente herético não chega a chocar, pois o catarismo foi nesta mulher uma forma de aspiração cósmica, que o catolicismo teve depois necessidade de reconhecer, ou para lhe anular a continuidade, ou para lhe apagar a origem, salvando-lhe, porém, os efeitos. Toda a História de Portugal está assim por escrever; é como se nunca tivesse existido uma Academia Portuguesa de História ou um Herculano, rijo e honesto, mas incapaz de perceber os segredos que são a vida dos factos. Que delicadeza tão gnóstica e tão pura o teu olhar tem, ó rainha cátara de Portugal, na estátua jacente que está no teu túmulo, no convento de Santa Clara, em Coimbra. Quem não vê na tristeza dos teus lábios selados o sangue derramado e o segredo dos mártires de Montségur, que Zurara, na Crónica da Guiné (cap. LI), escreve Monseguro? E quem não vê nesses teus espantosos olhos abertos, que fitam fixamente o além-céu, a ânsia gnóstica de desencarnar? Só os cegos, os que crêem de olhos fechados e, por isso, nunca te viram.

A sua morte prolongou por mais alguns momentos a trégua entre Portugal e Castela. Mesmo morta, feita cadáver, Isabel ainda impunha regras de convivência e amabalidade. A irmã do rei de Castela, Leonor, veio a Santa Clara, para onde trasladaram, no meio dos calores brutais de Julho, o corpo de Isabel. Afonso teve ainda esperança de que o sobrinho deixasse sair Constança Manuel da prisão doirada de Valadolide. Escreveu-lhe, mas a resposta foi lacónica. Afonso XI justificava a retenção de Constança com a ilegalidade do seu casamento com Pedro.

Em Setembro, cumpridos dois meses sobre a morte de Isabel, Afonso pôs termo à trégua. O conde de Barcelos saiu de Lamego, por ordem do rei, à frente dum pequeno exército, que atravessou o rio Minho e cercou o castelo de Entienza, onde se acolhera o bispo de Compostela. Logo depois, Afonso IV atravessou o Tejo, pôs cerco a Badajoz e assolou Aracena. A guerra estava declarada e o rei português contava que o flanco oriental de Castela fosse pressionado pelo jovem rei aragonês. Portugal e Aragão são as pinças de uma tenaz, que, quando apertam compassadamente, fazem uivar de dor o leão castelhano.

A guerra era, ao lado de dois ou três sucessos ocasionais, um estado de espírito, que desenfreava a paixão e tomava proporções de flagelo. Assim foi no ano de 1337, quando Afonso de Castela passou por Elvas, Arronches, Veiros, Aviz, Vila Viçosa e Olivença, deixando um rasto de cinzas e estragos. Casais foram incendiados e uma pequena multidão pôs-se em fuga para Évora e Santarém, onde o rei estava. As estradas encheram-se desta gente pobre e desmazelada, que acabava de perder tudo na guerra. Passavam descalços, embrulhados em trapos ou cascas de árvore, levando ao colo, debaixo da chuva, galinhas ou alguidares de barro. Havia velhos que ficavam sentados nos caminhos, exaustos e famélicos, de olhos parados na planície, mão estendida para o infinito, implorando não se sabia bem o quê, enquanto a água desabava, de quando em quando, em bátegas grossas e frias. Os cães vinham cheirar o seu odor azedo a urina e fezes e desandavam depois de cauda a abanar.  Era deplorável o estado dessa horda de desalojados. Alguns ficaram mumificados nos campos, encasulados no frio dos caminhos; outros chegaram, nus e esquálidos, a Santarém, onde o rei os mandou vestir e alimentar.

O rei incomodado regressou a Lisboa. As naus de Manuel Pessanha acabavam de descer das costas galegas, onde haviam incendiado alguns portos e feito alguns prisioneiros. Preparavam-se para saquear Sevilha, subindo de imprevisto o Guadalquivir, esse outro Tejo, onde os amendoais fazem as vezes dos laranjais. Estávamos em Maio e o Minho acabava de se livrar de outra invasão castelhana. Apodreciam cadáveres de homens e animais entre os rebentos do centeio e viam-se corpos enforcados, a balançarem nas latadas de pedra das quintas. Corriam névoas e crianças perdidas, nos caminhos de Braga, com os lábios rebentados de fome, passavam as chorar. A situação piorava dia a dia. O rei mandou chamar finalmente o infante, que estava com 16 anos. Decidira reforçar as acções e aplicar esforços nas próximas  operações.

—Aragão mantém esforços contra o adiantado de Múrcia e João Manuel, agora Duque de Vilhena, entrou já nos campos de Albacete. Vamos carregar em Sevilha e olhar a Andaluzia da Giralda. Preciso que tu acudas a todo este reboliço e que temperes o braço no ferro.

Estavam nos claustros da Sé de Lisboa, numa varanda ampla que dava para as águas do Tejo. Era ali que, nos dias quentes, a família real bebia água com limão e mel. Montavam toldes, olhavam as velas que atravessavam o rio para Almada e deixavam-se ficar, moles e indiferentes, a apanhar o fresco que subia do rio. Era um lugar quase familiar, onde o rei se encontrava diariamente com Leonor, a sua filha mais nova; Brites, por sua vez, passava mais tempo nos claustros da Sé que no paço do castelo. Recebeu ali o filho para lhe falar da guerra. Tinha quase a certeza que ele se iria desinteressar do assunto; preferiu, por isso, recebê-lo no ambiente da família, sem as formalidades da chancelaria do paço e a atenção dos conselheiros e secretários.

O infante chegara nesse dia de Torres Vedras e não contava demorar-se. Regressava à região do Oeste no outro dia. Parecia-lhe inconcebível que a Península se agitasse daquela maneira por causa dele ou do seu casamento com uma desconhecida, mesmo bisneta de Fernando o Santo. Era um assunto para ele despropositado e sem interesse, ao qual não dedicava tempo nem esforço, mas que ao mesmo tempo lhe parecia uma justíssima lição dada ao pai. Punha, assim, no revés do seu casamento uma íntima satisfação. Tudo o que desejava era poder voltar para os seus cães, para os seus cavalos e para os longos passeios pelos casais de Óbidos ou da Lourinhã. Não sabia que dizer ao pai. Levantou-se. Tentou fixar a atenção na ondulação do Tejo, onde lhe pareceu ver, a boiar, um cadáver de gaivota. Alongou os olhos e viu do outro lado do rio o amarelo das areias de Alcochete. Era uma linha luminosa e clara. Por fim, deixou cair uma sentença conhecida, que era talvez uma desculpa para o seu desinteresse e satisfação. Castigava os propósitos do pai, que ele tinha por rudes, sem precisar de levantar um dedo.

—Há remédios que agravam o mal. A guerra é um deles.

Afonso era um homem de quarenta e poucos anos. Sentia-se bem no lugar de rei e pensava que se ajustava ao cargo. A guerra era apenas um sinal do excesso de seriedade com que o fazia. Faltou decerto a esse rei um sentido artístico, ou tão-só recreativo, que lhe temperasse a gravidade do carácter. Reinava há mais de dez anos e estava habituado à guerra. No seu íntimo, não ligava muito ao que Pedro pudesse pensar do seu casamento com Constança Manuel; esse casamento era para ele um assunto de Estado, não um problema familiar. Mesmo a guerra só lhe interessava como forma de pressão; não fazia dela uma paixão cerrada. Era um prudente, sem ser um fraco. Vivia as vitórias com um sentido comedido dos efeitos e as derrotas não o afectavam. Tinha um sentido de missão quase tirânico e, apesar da sua natureza moderada, era capaz de subscrever as piores atrocidades, desde que servissem aquilo que para ele era o bem do povo e do reino. Foi isso que mais tarde fez com Inês de Castro.

Por agora, vivia a guerra como uma lição, de que não desistia. Manuel Pessanha, um genovês ao serviço da corte portuguesa desde 1317, partiu para as costas da Andaluzia, mas a sua esquadra foi apanhada de imprevisto no Algarve, ao largo do Cabo de S. Vicente. O almirante foi capturado, levado vergonhosamente para Sevilha com o filho e todas as naus portuguesas aprisionadas. Isto passou-se no Verão de 1337 e a contenda continuou nos meses seguintes, com acções espalhafatosas de ambos os lados.  Afonso de Portugal via no rapto de Constança a infelicidade da filha, a inconguência do genro, o desrespeito do reino, a mancha da nora.

Afonso de Castela, por sua vez, vivia a guerra como um capricho de vaidade, a que de resto ligava uma importância secundária. Era um excelente cabo militar, que se divertia com as retiradas estratégicas e as acometidas inesperadas. Nem se dava ao trabalho de ver Constança, que continuava retida em Valadolide, com um sentido que balançeava entre o heróico e o irrisório. Nada lhe faltava naquele exílio doirado, onde por vezes, ao tratar da pele e dos cabelos, se sentia uma nova Helena de Tróia; pusera a Hespanha em fogo, desde o Pirinéu até Lisboa, sem que para isso levantasse um dedo. Era um sentimento melancólico e grandioso ao mesmo tempo. Nesses momentos, entusiasmava-se. Ia passear para as ameias do castelo ou olhava o aveludado do seu corpo nu ao espelho.

—Quem será o meu poeta — interrogava-se então, enquanto se galanteava.

Mas depois recaía numa apatia sonolenta, sem lembranças nem emoções, que era apenas a sua condição de mulher aprisionada na solidão dum enredo que nem sequer lhe pertencia por inteiro.

Chegaram nessa altura à Península os primeiros rumores da agitação dos merinitas no norte de África. O leitor já sabe, Ali Boacem conquistara Gibraltar em 1333, assinara paz vantajosa com o rei de Castela. Regressara depois disso a Fez como um bravo, coberto de glória, à frente de centenas de prisioneiros cristãos, que ficaram durante três dias expostos no souque do centro da cidade. Foi visitado por emires que vieram do Egipto e da Líbia e lhe ofereceram bonitas réplicas escritas da antiga história dos Almorávidas. A partir daí começou a acalentar o sonho  de refazer a vitória de Zalaca; tinha para si que Afonso XI era o Afonso VI que lhe havia calhado. Acreditou durante anos que lhe seria possível desembarcar na Península e reconquistar toda a bolsa do Guadalquivir, com Córdova e Sevilha. Nos finais de 1337, começou a acastelar nos arredores de Fez um exército, visando a conquista da Península.

Castela lembrou-se então de Gibraltar e alarmou-se. Estava em guerra com Aragão e Portugal, em duas frentes distintas, uma  a leste e outra a ocidente, e não se sentia capaz de abrir uma terceira, a sul, contra um inimigo poderoso. Afonso XI, por indicação da família Gusmão, encontrou de imediato um compromisso com Aragão, por intermédio de João Manuel, que viu na situação uma folga para a filha. Sempre perdulário, Afonso XI pouco cuidou de Portugal neste assunto. Sabia que mais tarde ou mais cedo, Constança deixaria Valadolide, mas caprichava em adiar o momento. Acreditava que a trégua com Aragão, seguida de aliança política e militar, lhe garantia segurança suficiente diante do sultão de Fez e que podia deixar correr as coisas na fronteira ocidental. A intervenção de Génova ao lado do sultão abalou estas certezas e Afonso foi aconselhado a desfazer os equívocos com o sogro, ganhando uma nova aliança militar, de modo a cerrar alas na linha do Guadalquivir.

Afonso de Portugal não gostou do sentido estratégico do genro e sobrinho. Achava-o, no fundo, um presumido, sem capacidades para o cargo; via-o ceder demasiado diante das paixões e das extravagâncias para o poder avaliar como rei. Considerava-o um pequeno barão, um tiranete sem sentido da governação, que tanto se portava mal em casa como na rua, cuja única qualidade era o seu talento militar. Não estava pois decidido a ceder ao seu sentido de oportunidade e viu no lance uma ocasião de o castigar. Parece que Maria interveio junto do pai a favor do marido e isso foi suficiente para mudar a política do monarca. Limitou-se a pedir ao genro uma confirmação escrita do casamento do filho, cuja legalidade Afonso XI pusera em causa nas várias respostas que antes dera às suas interpelações.

O genro deu-lhe um sinal de boa-vontade; quis enviar-lhe de imediato Constança, mas foi ele próprio que deixou em aberto o seu regresso para depois dum acordo militar. Acertaram então que Constança viria para Lisboa depois de assinadas as pazes. O casamento do filho inseria-se numa política de governo, em que o rei português ambicionava aparecer, no tabuleiro peninsular, como um rei forte, mas que exercia reguladamente o seu poder, sem ceder à neurose da vingança de interesse pessoal. Esse gesto aparentemente contraditório destinava-se ainda a explorar a excessiva ingenuidade dos noivos, habilitando-os, por analogia, para o serviço do reino.

O almirante Pessanha foi libertado no Outono de 1338 e Afonso IV nomeou-o seu representante militar junto do estado-maior do genro. O país preparou-se para a guerra clássica das mesnadas, com tributação de soldados aos ricos-homens e aos senhores da Igreja. O acampamento do exército real foi montado em torno de Lisboa, em dois pontos chaves, Alcochete e Vila Franca de Xira. Para lá deviam confluir as colunas mercenárias, vindas de todo o país, com excepção dum terço formado entre Beja e Faro, que só mais tarde, na passagem do Guadiana, entroncaria no exército real.

Em Julho do ano seguinte, o rei português deslocou-se a Sevilha para conferenciar pessoalmente com Manuel Pessanha, assinar o tratado de pazes com Castela, discutir os pormenores da campanha militar e conhecer o neto Pedro, filho de Maria e Afonso de Castela, então com 5 anos. Mostrava uma liberalidade de trato e uma contenção, que surpreenderam o sobrinho e genro. Levou consigo Álvaro Pais, o escritor franciscano que foi bispo de Silves, e que, num passado ainda próximo, procurara servir de medianeiro entre tio e sobrinho na questão de Constança. O neto pareceu-lhe uma criança nervosa e contumaz, de trato difícil. Ainda assim, combinaram que, durante a campanha militar, o infante seria armado cavaleiro por seu avô. A paz foi assinada pelos dois monarcas na presença de João Manuel, do almirante catalão Gilberto de Cruilhas, do conde de Barcelos e da sua filha Maria, esposa do sobrinho, que veladamente se queixou ao pai do favor que o marido continuava a dispensar a Leonor de Gusmão.

Constança, pelo seu lado, continuava em Valadolide, inquieta de amores, quase ignorante do que se passava na cidade do Guadalquivir, mas resignada com a rotina. O mundo resumia-se para ela ao seu próprio sacrifício e já não era pouco. Tinha 25 anos, uns olhos tristes e desbotados, uma pele quase fanada. Não punha com essa idade qualquer esperança no porvir e esse foi porventura o seu heroísmo. Vivia de lembranças e de sonhos, não de esperanças.

Na Primavera de 1340 mandaram-na para Lisboa, onde a sogra a esperava, mas nada alterou o seu comportamento. Encontrava no silêncio uma forma secreta de equilíbrio, que revelava o seu arquétipo de reserva e intimismo. Bastarão pouco mais de cinco anos para que esta mulher arda de todo e se apague para sempre na escuridão da noite. Foi a flor fugaz duma única Primavera. Ficou dela um poema magnífico, o de Eugénio de Castro. O que a História, em poucas linhas, dela conta é irrelevante, mas as palavras do poema que leva o seu nome redimem a escuridão e o sofrimento da sua vida, tornando-a um privilégio. Raras vezes uma vida terrena se transforma numa estrela celeste, mas esse poema é uma estrela mítica, que transformou a vida de Constança num nome luminoso. Quem assim hoje brilha, bem pode guardar consigo o enigma da sua raridade. Ó jovem exilada de Penafiel, Toro e Valodolide, que te fizeste infanta de Portugal e depois poema, foste a flor instantânea das penhas soledosas que Antonio Machado cantou nos seus versos rijos e bem mereces o retrato esplêndido que de ti deixou o teu poeta, Eugénio de Castro.

No fim do Verão de 1339, a concentração naval no estreito foi explosiva. Genoveses, marroquinos, andaluzes, catalães, portugueses apertavam-se nesse tira minúscula de água salgada que separa a África da Europa. O primeiro embate deu-se ao largo de Ceuta, onde os nocturnos são mais peninsulares que africanos, tal como as encostas de Tarifa são mais africanas que europeias. Tarifa é afinal tão marroquina, como Ceuta pode ser peninsular. Cada palmeira da Mauritânia é andaluza ou algarvia como cada poça de água da Andaluzia é um oásis do Sáara.O choque prolongou-se depois em cadeia, sem que nada se mostrasse ainda assim decisivo. Joffre Tenório, o almirante castelhano, foi derrotado e morreu ao pé de Algeciras, os catalães foram obrigados a retirar, enquanto os genoveses limpavam o estreito.

Os exércitos, por sua vez, continuavam estacionários e sem movimento. Enquanto na Península a concentração dos soldados se fazia nos três corredores longitudinais, em Fez o sultão empilhava às portas da cidade alambiques para destilar água de rosas e flor de laranjeira, arrumava os braseiros com que aqueceria os seus Invernos andaluzes e acantonava a caminho do Rife os sudaneses que mandara vir das caravanas do deserto. O seu exército ocupava quase todo o extenso planalto que vai de Fez a Meknes. Como homem, era um pouco bronco e a cada bismallah, que fazia antes do repasto, sorria, pensando mentalmente no pequeno conforto interior que teria ao olhar o Guadalquivir da Torre do Oiro.

Lentamente, os exércitos dos três reinos cristãos peninsulares foram-se agitando. Cada um deles, no seu corredor, se organizou. O objectivo era, daí a meses, convergirem os três sobre a linha do Guadalquivir, um vindo do levante, outro do centro, outro das costas ocidentais. No centro, foi uma marcha atabalhoada, dificultada pelas chuvas da Primavera, em que os manchegos se embrenharam com algum terror na luz matutina do sul. Levavam com eles um misto de deslumbramento e obstinação, que encontrava no espírito bélico de Afonso XI uma representação fiel. Esse rei tinha o defeito da prepotência pessoal, mas assegurava, através do empenho militar, a unidade dos cavaleiros, que foi a tranquilidade que depois o seu filho Pedro nunca conseguiu. Era pouco ou nada, mas naquele tempo chegava para aguentar um rei. Por sua vez, o exército do sultão franqueou sem dificuldade o estreito, protegido pelas barreiras dos barcos genoveses.

Na Primavera de 1340, o sultão estava já diante de Tarifa, à espera que a povoação caísse e um importante cordão de terra lhe pertencesse, de Málaga a Sevilha. Trazia com ele um mar enorme de gente, onde se contavam um sem número de mulheres, de crianças, de velhos. Era uma região em movimento, que parecia ter mais por fim o povoamento que o saque. A passagem do estreito do sultão, a mancha gigantesca que o acompanhava, o reboliço em Granada, o cerco de Tarifa apressaram a marcha dos exércitos que desciam do norte para o Guadalquivir.

O exército português foi o último a pôr-se em movimento, com excepção do terço algarvio que foi mandado adiante. O rei português recebeu Constança em Lisboa pouco antes do assédio de Tarifa e decidiu-se, depois dalguma hesitação, a resolver o casamento do filho antes da guerra. Branca de Castela foi devolvida ao rei castelhano, que pediu aos homens do tio para a devolverem  directamente ao mosteiro de Las Huelgas, em Burgos, donde nunca mais saiu. A anormalidade dessa mulher também tem alguma coisa de singularmente grande em toda este conto de Inês e Pedro, mesmo que nenhum poeta se haja lembrado ainda dela e o seu nome permaneça obscurecido e maltratado. Ela é a anã misteriosa, a criança velhinha, o insecto humano, que abre na fábula, com mãos de raízes, as portas do maravilhoso e do enigma.

Constança pareceu ao rei português uma mulher incompreensível, mais interessada no sentimento que no poder. Não a esperava assim, literata e mística, como afinal lhe saiu. Idealizara-a nos anos anteriores com os traços com que depois Henry de Montherlant a fixou no seu drama sobre o caso de Inês. Queria uma mulher de Estado, fria e decidida, um pouco ao modo de Brites, mas teve uma flor de paixão, torturada e solitária. Nunca lhe compreendeu o sofrimento, ainda quando dele se serviu para governar, o que aconteceu por várias ocasiões. Brites, por seu lado, nunca conseguiu entrar na sua intimidade e a relação entre as duas mulheres nunca passou de formalidade. Nada tinham em comum, a não ser a língua. Constança foi entre nós um corpo magoado e estranho, que aqui veio definhar e abrir ao mesmo tempo; morreu ao fim de cinco anos, para renascer muito anos depois no céu da poesia simbolista de Eugénio de Castro.

O rei estava para partir para a guerra, Lisboa estava a transbordar de gente desordenada e de passagem, mas, ainda assim, Afonso IV quis que o casamento se realizasse. Constança pensou que a guerra era para os homens uma forma de cegueira, mas foi-lhe indiferente a constatação. Vivia o matrimónio com o filho do rei como antes vivera a morte do Torto ou o abandono de Afonso XI. Nem sequer chegava a achar curioso o seu destino; Portugal, Lisboa, o matrimónio eram apenas mais um episódio do seu sacrifício, a que se habituara como um silêncio, e que tanto lhe parecia um acto de heroísmo, que viria a encontrar um outro Homero, como uma questão ridícula, que não lhe merecia sequer uma lágrima, quanto mais um pensamento.

O irresolúvel mal-estar entre o rei português e o herdeiro aprofundou-se muito neste período. Afonso dispunha de muito pouco tempo para convencer o filho da guerra e do matrimónio, essa sofrida e desencontrada aliança que se dá na corte portuguesa na Primavera de 1340. Intrometeu a influência de Diogo Lopes Pacheco, em quem tinha absoluta confiança, mas sentiu o filho rebelde. Acordaram, por fim, no matrimónio e deixaram cair a guerra. Só uma situação de grande tensão pode justificar que o príncipe herdeiro, então com 20 anos, cheio de vitalidade e força, houvesse ficado de todo à margem da campanha militar. A indiferença com que ele encarou a nova guerra entre muçulmanos e cristãos não chega para compreender essa ausência. O pai cedeu-lhe, no meio de confusas negociações, a paz a troco do matrimónio. Estavam ambos no castelo de Montemor-o-Novo quando isso aconteceu e do lado de fora viam-se os campos cobertos de sobreiros e algumas clareiras com pilhas de cortiça, a escorrerem sangue. Pedro, sempre acompanhado do seu alão, aceitou, mas cheio de dúvidas. Lembrava-se vagamente de Branca de Castela e da repulsa que o casamento lhe inspirara. Desabafou com Diogo Lopes Pecheco, mas o rei, quando teve notícia dos seus sentimentos, sossegou-o.

—Filho, Constança será a rainha que te falta e o matrimónio não é  lugar dum momento, mas de muitos anos.

Não acreditava muito no destino real duma mulher sensitiva e erudita como Constança, mas estava demasiado ocupado com a preparação da operação militar, para dedicar muita atenção ao casamento do filho. Ademais, tirando a guerra, era na filha Leonor, então com 12 anos, que pensava. Era uma menina delicada, pronta a fazer as vontades do pai, sem a virilidade de Maria, mas cheia duma brandura deslumbrada, que cativava afinal tanto como a pertinácia e o entusiasmo da filha mais velha. Não lhe desagradou, por isso, o desinteresse de Pedro, já que o via razoavelmente complacente e submisso. Não entendia o filho nem pensava que a coroa lho exigisse. Contentou-se com o acordo de matrimónio e apressou a boda. Pedro ganhou a certeza que não se reconhecia no pai e na forma como ele desempenhava o cargo de rei. Foi, apesar do compromisso a que chegaram, o divórcio definitivo entre os dois. Até aí, Afonso fora para Pedro um desconhecido, a partir daí passou a ser o modelo a evitar.

Antes da boda, Pedro passou na Atouguia uma curta temporada. Não se vinha despedir de nada, porque não pretendia alterar os hábitos com o matrimónio. Continuaria a viver sozinho no paço da Atouguia, com os seus cães e os seus passeios periódicos aos coutos de Alcobaça, como lhe fora assegurado pelo aio e pelo pai. Constança, por sua vez, andaria pelos paços que o rei lhe doava por casamento com o infante, acompanhada da sua corte de mocinhas novas, com quem, dizia-se, convivia com certa frieza e distância. Passava por uma mulher fechada e teimosa, impenetrável a intrigas, letrada como o pai,  que sabia, porém, ser amável.

O mar de Junho vitaliza as sensações e ordena no espírito uma claridade mansa, que se coaduna com a disposição das árvores. Começam as primeiras ceifas e os campos ganham o aspecto duma austeridade mística ou racional. O Sol cai impiedoso sobre a oração amedrontada da Terra. O mar, por sua vez, é ao virar das dunas, uma presença serena; não arfa, nem respira com o seu ar brutal e cinzento. Pedro gostava de adormecer de janela aberta e o rumor verde do mar a ondular no quarto. Da sua janela avistava-se o ancoradouro das barcas e ao longe via-se o traço branco e fosforescente da rebentação pequena das ondas. As ilhas recortavam-se nítidas ao amanhecer, batidas pelo Sol estival do solstício. O Baleal era uma ilha branca, quente, polida, oprimida de gaivotas, enquanto que Peniche um planalto baixo, com uma pérola de areia encravada nos dedos. Ao entardecer, tornavam-se massas negras, palpitantes, buracos escuros no incêndio vermelho do céu.

Uma madrugada, Pedro teve um sonho. Viu um arqueiro descer do céu e trazer na sua aljava setas tão luminosas como o Sol; cada seta era um dos seus raios. Pedro estava parado num deserto de areia e foi atingido por uma delas. Olhou então o seu peito no sonho e viu-o coberto de pequenos fios de sangue. Era um sangue luminoso, que esclarecia a escuridão. Tudo era claro, luminoso, tépido. Acordou; deu-se conta que a aurora se levantava do outro lado do mundo. Aproximou-se da janela aberta e sentiu o cheiro da terra húmida e da maresia. Apeteceu-lhe beijar a terra e desceu até ao jardim. Quando levantou os lábios da face da terra, viu um pássaro que o fitava com ar inteligente. Trazia no bico três longos fios, que depositou na terra, ao pé dum canteiro de rosas. Pedro apanhou os três fios sedosos, dois que tanto podiam ser da cor do oiro como do fogo e outro da cor da noite ou da prata. Eram para ele um sinal da aurora, nada mais. Ainda assim, embrulhou-os num lenço e guardou-os num pequeno cofre de castanheiro, que fora da sua avó Isabel. Eram os três fios do seu destino, qual deles o mais adiantado e promissor.

A boda matrimonial de Pedro e Constança teve lugar a 30 de Agosto de 1340, na Sé de Lisboa. Foi um assunto despachado com rapidez; o rei partia no dia seguinte, na companhia do chanceler, Lopo Fernandes Pacheco, para o Guadalquivir, com as tropas, e estava atrasado. Não gostava de fazer esperar o exército e teria preferido partir algumas semanas mais cedo, mas o casamento do filho era artigo que se prolongava há anos e havia que lhe pôr termo. Foi, por isso, uma boda nervosa, onde se ouviram vivas ao rei e ao príncipe, mas se notava a grande perturbação interior, própria duma campanha militar. As ruas de Lisboa já não apresentavam a desordem anterior, pois as mesnadas haviam sido concentradas a sul do Tejo, entre o Infantado e Coruche, prontas a ganharem, em poucas horas, Montemor e Évora. Esperavam apenas que o rei brindasse aos esposos e se pusesse na sua dianteira. Ainda assim, o ambiente de Lisboa era soturno. Muitas famílias haviam acompanhado os soldados até ao Ribatejo e a cidade estava suja e meia-deserta. Os primeiros atropelos, os primeiros acidentes entre os soldados do exército português, começavam a criar uma atmosfera de luto e tragédia, que misturava algum desespero e muitos receios.

João Manuel compareceu na boda, com o fim de partir logo de seguida, ao lado do sogro da filha, para a Andaluzia. Constança era uma mulher desiludida, que olhava sem novidade nem excitação as águas do Tejo. Tinha 26 anos e encarava aquele enlace como mais um passo da sua vida solitária. Julgo que nunca teve nessa altura ilusões sobre ele, apesar de então desconhecer a verdadeira dimensão do sofrimento e da exaltação que ele lhe traria. O casamento era para ela uma obrigação neutra e foi isto que o pai lhe recordou; a sua primeira missão era dar um herdeiro à coroa portuguesa, mesmo que o fizesse de olhos fechados, dentes apertados, a pensar numa máxima de Marco Aurélio. Ao olhar o Tejo, o seu casamento parecia-lhe uma coisa incolor, sem dor nem espessura. O príncipe tinha uma figura selvagem e balbuciante, tonta, quase bronca, que não correspondia nada ao seu tipo de homem. Nada nela rejubilava, a não ser a recordação das janelas que se abriam sobre o seu Douro natal, mas também nada nela se amargurava, até ao ponto de sentir vontade de chorar. O choque sentimental explosivo, que a matou, só viria mais tarde, com a atmosfera escaldante do episódio de Inês, que ela de todo não esperava e à qual não soube, ou não quis, depois fugir e no qual veio a encontrar, por mais paradoxal que isso hoje nos pareça, a sua única e grande razão de viver.

Agora, era uma mulher composta, grave, furtiva, que se entregava, comedida e displicente, aos seus pequenos prazeres solitários. Pedro, que a vira pouco, reparou melhor nela na boda. Pareceu-lhe madura e quase velha; sentiu-se impressionado pelo seu silêncio magoado, em que percebeu uma viuvez escondida. Fazia-se rodear por meninas muito novas, perfumadas, que se agitavam em torno dela como borboletas finas e coloridas. Constança sorria-lhes de vez em quando, mas não se misturava  em excesso nos gestos e nos zumbidos. Era a primeira vez que Pedro as via, pois viviam habitualmente recolhidas nos aposentos de Constança. O dia da boda era um dos raros em que, como se dizia, a colmeia se espalhava pelo paço.

Foi aí, nesse enxame, de que Constança era a rainha, no dia da boda, que Pedro viu pela primeira vez Inês de Castro. Soube-a distinguir entre as outras, por pura inadvertência. Era uma menina galega, ainda incipiente, que aparentava ter na altura 14 ou15 anos; pertencia à família dos Castros, que usava seis arruelas de azul no escudo e no timbre, e tinha parentesco antigo com as casas reais de Castela e Portugal. A graça irradiava dos seus olhos e lábios, o peito modelava-se-lhe perfeito no vestido de brocado azul, mas não foi a fémea, ainda por acabar, que Pedro viu quando pôs os olhos nela.

A sua vida sexual aos 20 anos era primitiva e simples; parecia-se com aquela que os montadores rudes do Ribatejo tinham, nos estábulos, com o gado da campina no período do cio. Penetravam as éguas mais mansas e doces por detrás, em cima de escadas, e encaravam isso com leveza, no âmbito legítimo das suas relações com o animal. Era mesmo para eles uma prova de amizade entre o homem e o animal e um laço de parentesco e ternura, que os vinculava como nenhum outro. A zoofilia era nesse tempo uma forma viril de sexualidade masculina, tanto entre os cabreiros simples do povo como entre os cavaleiros das casas nobres. O infante, saudável e desenvolto, tinha evidentemente, aos 20 anos, uma vida sexual activa. Será que alguém, em consciência, pode pretender o contrário? É despautério grave afirmar a castidade do príncipe, que estava um homem acabado desde os 16 e tinha desde os 11 linfa abundante e espessa. Mas, mesmo assim, tudo acontecera de forma demasiado brutal, para que a mulher lhe chegasse a despertar atenção, e menos ainda obsessão. Tinha uma sexualidade instintiva, adulta, animal, mesmo que irregular e, por vezes, mais onírica que física.

Por isso, quando Pedro encontrou pela primeira vez Inês não viu a fémea, nua e ciosa, mas antes a criança e a mulher, em toda a sua inocência desprotegida e humilde humanidade. Ela também reparou nele; esforçou-se por ver o príncipe e o rei, mas acabou, para surpresa sua, a reparar em pormenores despropositados dos seus cabelos ou das suas mãos finas mas rijas. É preciso distinguir a sexualidade do amor, pois pode existir uma sem a outra; Pedro amou de imediato Inês, isto apesar do falsete daquela boda com um rei fardado para a guerra, mas não teve apetite sexual por ela. Isso despertou muito mais tarde, quando se encontrou várias vezes sozinho com Inês, para depois abrir numa manhã completa de sol, alucinada e exclusiva, que teve ainda a sua noite tenebrosa e fantástica.

Pedro viu Inês pela primeira vez a 30 de Agosto de 1340 e pela última vez a 7 de Janeiro de 1355, dia da sua morte. Amou-a e acompanhou-a durante 15 anos, que foram longos e decisivos; os primeiros cinco triangulados por Constança e os restantes sozinho com ela, com os filhos e com a sombra do pai ao fundo. Agora, é o primeiro encontro entre Inês e Pedro. Também Inês nos aparece pela primeira vez neste conto como apareceu outrora a Pedro. Ó mulher que não és a pecadora cheia de poderes e seduções, a maga imortal, mas o pecado tímido, quente, inocente, sofrido. O teu pescoço nessa arca fria de Alcobaça ainda hoje me faz nadar em lágrimas de piedade e respeito; não sou capaz de o ver sem me ajoelhar ao teu lado, para me recolher em silêncio diante do teu sofrimento e da inocência da tua idade e do teu ser. Foste a pomba que Deus degolou a seus pés quando criou o mundo; o sangue que correu do teu pescoço é o vermelho sagrado que alimenta o verde da terra e o azul do mar. É por tua causa, Inês,  que a Terra, quando rola no espaço, mostra a cor azul.

A partida de Afonso IV e do exército português contou com as facilidades de Setembro e o sentido organizativo anterior do rei e dos conselheiros militares. Em poucas semanas, as colunas alcançaram sem novidade e em boa formação a linha do Guadalquivir; o rei juntou-se aos dois outros monarcas peninsulares e o seu exército tomou lugar na faixa ocidental, ao lado do castelhano, que ocupava a parte central da formatura. Os três reis e os conselheiros formavam uma linha móvel e distinta. O exército do sultão de Fez quase não se mexeu; deixou-se ficar diante duma Tarifa exausta, preparando as defesas, de modo a atenuar o embate. Contava com o rio Salado como trincheira natural de protecção. Foi o exército dos três monarcas peninsulares que o procurou, deixando o Guadalquivir, subindo e descendo penosamente as pequenas elevações da margem esquerda do Guadalete, atingindo finalmente Medina Sidónia e o Barbate, donde se avistava Tarifa alcandorada. Foi aí que o desafio de se bater em combate foi lançado ao sultão.

O embate deu-se alguns dias depois, perto da cidade sitiada. O Salado não constituíu um verdadeiro obstáculo e rapidamente as mesnadas portuguesas, castelhanas e aragonesas o transpuseram. O sultão viu-se  encurralado entre os muros brancos da cidade, o mar e as investidas furiosas das hordas a cavalo. Não lhes conteve o ímpeto e o seu acampamento começou a ser selváticamente saqueado. As mesnadas entravam com os cavalos pelas tendas dentro, degolando, retalhando, amassando, incendiando. Eram homens rudes, de pêlo crespo como o das cabras e compridas e piolhentas barbas pretas, como as usavam os Hospitalários e outros professos das ordens militares da época. A resistência apagou-se e em pouco tempo o que restava do exército do sultão era uma multidão caótica que procurava escapar com vida. Os besteiros preparavam os virotões e disparavam a seco sobre os fugitivos. Os haréns foram vandalizados, na onda que destruiu o alfanaque do sultão. Foi uma sangreira estúpida e brutal, em que se mataram sudaneses desarmados à massa, ao pé do rio Guadamexil, e se degolaram mulheres cultas, lidas em Averróis, que acenavam clemência com um lenço branco. O saque foi tão importante que o oiro e a prata se desvalorizaram em Roma, mas é preciso ter a coragem de perceber que essa vitória foi, para os dois lados, uma pesada derrota da Península.

Foi na esperança dum outro Salado, sem vencedores  e sem vencidos, que a Península se criou; o que se esperou foi sempre a convivência larga, não a exclusão dos povos, a guerra de conquista ou de religiões. Por isso, batalhas como as do Salado são equívocos, que só não devem ser esquecidos nem ignorados, para que deles não se perca a lição. O Salado foi uma das quatro datas fatídicas da Península. As outras três foram: 1086, com a batalha de Zalaca, que foi um Salado ao contrário;1492, com a queda do reino de Granada e a expulsão dos judeus; 1609, com a expulsão dos mouriscos.

Bravo, o quarto Afonso da nossa História? Talvez, mas mais por ter salvo dois coelhos dum laço, que por ter feito a guerra ao pai, ao meio-irmão, ao vizinho castelhano, ao mouro de dentro e de fora, ao filho e, sobretudo, pecado dos pecados, a Inês. Ó bruto e fero matador, sempre a espadeirar, de barbas permanentemente espirradas de sangue, que te atreveste a levantar a mão armada contra uma fraca e inofensiva donzela, cuja delicadeza e correcção fariam inveja às madonas de Botticelli. Da guerra e do sangue que trouxeste a Portugal, esquecendo do teu pai e do teu avô as letras e as artes, melhor tirarias tu o nome de ignaro ou de sofrido, ainda que a tua contenção possa por vezes parecer rasteira para passar por trágica. Mas, o próprio da tragédia é o cálculo baixo da morte.


INCURSÕES


Desculpe-me o leitor o parêntese que vai ler, mas, às vezes, para contar um conto melhor se cortam do que se atam as suas pontas. Persevere pois o leitor, siga-me com atenção, de modo a entrar bem no novelo deste tempo e destas personagens, que logo se lhe dirão mais coisas sobre Inês e Pedro. Por agora, fiquem os dois, em sombra, naquele claustro da Sé de Lisboa, onde decorreu a boda de Pedro e Constança e passemos nós, eu e o leitor, à intercalação. Aquele cenário de que atrás falei, ainda precisa da última demão, para que tudo fique pronto para a definitiva entrada em cena dos amantes.

Nem sempre a desavença tem o ardor do Sol e a crueza do meio-dia. Há desastres que se transportam ao peito como respostas evasivas; germinam ao contrário e em vez de alicerçarem as suas raízes na terra, bebem o alimento na invisibilidade do ar. O fogo pode estar ausente da carne, mas lavra no líquido que queima o cérebro de pensamentos. Sob a aparente conformidade do corpo e das concretizações quotidianas, pode crescer um tumultuoso desassossego, que dos obscuros corredores do espírito passará depois como um incêndio para a face visível dos eventos.

As relações de João Manuel e Afonso XI de Castela conheceram com a guerra um período de reatamento. Manuel foi membro influente do conselho de guerra do rei e apareceu no Salado sempre ao seu lado direito, o que era um manifesto privilégio. O rei deu-lhe o primeiro cargo na batalha. Estava com 58 anos e era talvez o homem mais respeitado da Península. Afonso XI não se sentia com disposição de o afrontar de novo. Tratava-se do descendente vivo mais directo de Fernando III, pai de Afonso X, e o que mais se parecia com este, que foi também modelo de portugueses, de Dinis ao conde de Barcelos. Era um homem permeável às influências e capaz de tecer uma rede de contactos, que abarcava todo o território peninsular e ainda uma parte do norte de África. Na época, escrevera já a parte mais importante da sua obra literária e era reconhecido como um homem cultíssimo e cheio de espírito. Foi um daqueles que pediu clemência para os vencidos do Salado e que se fez ouvir. Nunca agradeceremos suficientemente a esse homem, que foi duque de Penafiel, o polimento do seu trato, a atenção para com a experiência da vida e o gosto poético da imitação. Foi um político duro nas alianças, mas deixou a Constança o sentido intervalar da arte, que fez dela um silêncio bem-educado, uma sensualidade refinada e sem remorsos e depois um poema excelso.

É a constatação da aura pessoal de João Manuel e da importância da sua família que leva o rei a novo acordo de casamento com ele. Esquecido o mal-entendido de Constança, que ficara enterrado nas terras da Andaluzia, o rei castelhano oferece-lhe um dos seus filhos para casar com a sua segunda filha. Manuel aceitou bem a aliança com a coroa e o casamento foi acordado nas suas terras de Múrcia. Henrique, o primeiro filho de Afonso de Castela e Leonor de Gusmão, casaria com Joana Manuel, filha de Manuel e de Branca de Lacerda e Lara, sua segunda esposa. Manuel era temido como um rei no tabuleiro peninsular e chegou a aliar-se com o rei de Granada contra Afonso XI. Esse casamento interessava-lhe tanto a ele como ao rei. Nele se juntavam as mais importantes famílias castelhanas, garantindo ao rei a ligação dos Gusmões e dos Manuéis. Ficavam de fora Maria de Portugal, esposa de Afonso, e o seu filho Pedro de Castela, jurado herdeiro à nascença e armado cavaleiro pelo avô nos arredores do Salado. A rainha ressentiu-se do acordo. Estava em Burgos e tinha à sua volta alguns informadores ao serviço do pai. Acalmaram-na, falando-lhe da pouco idade de Joana Manuel, que acabara de nascer um ano antes. Deixaram no ar o casamento do seu filho Pedro com a filha do Manuel, que reconheciam como o melhor partido interno. Desde o casamento e o matrimónio de Constança em Lisboa que a corte do pai mantinha excelentes relações com o duque de Penafiel; julgava-se que bastaria a pressão de Lisboa para conseguir desfazer o casamento do filho da Gusmão.

Descuraram aqui os informadores, sem saber, o carácter imaginativo de João Manuel e os interesses da rainha. Todas estas personagens se moviam no teatro das ambições e das intrigas da alcova e da política; são os espectros, as figuras de cera que rodearam Inês e Pedro, e que o calor do tempo acabou por quase derreter. Não se desfizeram de todo, porque tiveram o privilégio de assistir, da plateia ou das galerias, ao episódio de Inês e Pedro, que é a única coisa viva da época.

Há na teimosia de Afonso XI de Castela o rasgo dum Fernando III e dum Afonso X, mas não o mesmo sentido cultural. O primeiro chegou a criar um bairro cristão em Marraquexe e o segundo teve uma política de tolerância semelhante quando permitiu medinas árabes nas cidades da linha do Tejo. Dinis, no lado português, e Jaime I, no aragonês, farão algo de parecido. Em todos esses momentos, a cultura peninsular abriu radiosa as suas pétalas e deu frutos saborosos e exemplares. O tempo de Afonso IV de Portugal ou de Afonso XI de Castela é já outro, mais fechado, mais seco, mais estéril. É um tempo dominado pelas ambições, em que a arte delicada do verso e a filosofia aparecem substituídas pela inteligência limitada e prática dos estrategos militares. Casos como o de Inês e Pedro, que se alimentavam da inadvertência espontânea dos sentimentos, parecem à primeira vista deslocados deste tempo e não custa perceber que a atmosfera os haja asfixiado. Não se dava nada sem receber primeiro e contavam-se os cavalos que a família tinha antes de se apalavrar um casamento.

O casamento de Joana Manuel e do bastardo de Afonso de Castela não foi senão o reconhecimento implícito das relações que o rei tinha com Leonor de Gusmão. Há nesse casamento o acordo tácito de que a preferida do rei devia ser reconhecida como autoridade conjungal. Mas, há também da parte de João Manuel, a oportunidade de afirmar o seu incondicional apoio a tudo aquilo que pudesse pôr em evidência o seu estatuto. Era um homem tolerante diante da diversidade humana, como mostram as fábulas que escreveu no Conde Lucanor, mas muito cioso da sua linhagem, que considerava superior a todas as outras de Castela e Leão e a única, segundo ele, reconhecida e abençoada por Fernando III, que em sinal disso dera a seu pai a célebre espada Lobeira. Preferia, por isso, à guerra, que lhe era incómoda e até abominável, a intriga palaciana, muito mais pacífica e imaginativa. A fábula que se teceu durante mais duma década em torno da sua filha Constança não foi senão um caprichoso enredo de romance, que ele viveu com alguma paciência e muita curiosidade. Lisboa fora um desfecho aceitável para toda essa longa espera e sentia-se compensado por se ligar por parentesco à casa real do ocidente peninsular. Isso não validava, porém, qualquer outra forma de fidelidade, tanto mais que a rivalidade de Maria e Constança nunca se desfez no fundo do seu espírito. Viu, por isso, com bons olhos uma aliança com o rei de Castela e a sua amante, deixando de lado Maria de Portugal e o seu herdeiro. Era uma manobra hábil, que ele levava à conta de pequena vitória, mas que se mostrava capaz de se apropriar dum amplo território afectivo.

A perversidade deste enredo parece pouco medieval, lembrando as teias da política moderna, com as suas tácticas frias e corrosivas. Há em João Manuel a discrição dum príncipe renascentista, mas essa circunspecção não deve ser confundida com hipocrisia ou até com forma imediata de fazer política. Era antes a habilidade diplomática dum imaginoso, que dispunha dum vasto arsenal cultural. Este homem gostava mais de se retirar sozinho para um convento de modo a polir a linguagem dos seus livros que a mostrar a espada diante das damas ou da corte. Era afinal um solitário, que fez da escrita a sua vocação. Deixou-nos milhares de páginas, que lhe tomaram muitos e muitos anos de vida. A intriga sentimental foi para ele um enredo romanesco, em que se deixou por vezes enlear, antes mesmo de ser uma forma de pressão e luta pessoal. Está mais próximo de Afonso X, de Jaime I, de Dinis ou de Isabel de Aragão que dos Bórgias, dos reis Católicos ou até de Afonso IV de Portugal. É uma grande personagem, que o tempo não descarnou e que vejo na galeria dos indefectíveis peninsulares. Poliu a prosa castelhana do século XIV como nenhum outro escritor do seu tempo, tolerou o islão nas suas cidades, fez do rei mouro de Granada um amigo que recebia nas esplanadas de Múrcia e foi, sobre tudo isto, o pai de Constança, essa flor tenra e graciosa, que foi pisada brutalmente por um destino que quase não deu por ela, mas que se soube mostrar superior a todos os mais imediatos ressentimentos.

Antes do Salado, Maria de Portugal assumiu o seu infortúnio conjungal com melindre e astúcia. Tenta enredar o marido numa teia cega, onde o seu pai, Afonso de Portugal, o esperava como corrector. São sabidas as excelentes relações entre Maria e Afonso e o quanto pesava ao pai a infelicidade da filha. O rapto de Constança por Afonso XI não é só um capricho, é também uma manobra dilatória, para adiar ou escapar ao castigo do sogro. Uma das consequências do Salado é baralhar as regras deste xadrês sentimental. A vitória militar serviu para arrumar o diferendo entre Portugal e Castela. Afonso XI sentiu-se assim mais solto do sogro e sem nenhum pretexto de conflito com ele. A primeira consequência deste desafogo, foi o casamento do seu primeiro bastardo com a filha do Manuel, que ele não se teria atrevido a fazer antes do Salado. O acordo foi sentido por Maria como um escândalo e podia ter aberto novo diferendo entre Castela e Portugal, caso a estratégia da rainha não tivesse sido comedida, visando uma mudança.

Informou o pai, foi acalmada pelos seus homens que viviam diplomaticamente em Burgos, a capital, mas pouco mais adiantou. O pai escreve-lhe, pedindo-lhe um relato da situação matrimonial, mas ela foge, insistindo só com os interesses do filho. As suas palavras são carinhosas, mas dão a entender que a situação de confiança política estava a mudar. Depois do Salado, Maria deixa de falar de si; o que parece contar para ela é a coroa do filho. Muda pois toda a sua actuação exterior, deixando de ser a esposa jovem e desesperada,  menina dos escândalos inconvenientes, para passar a ser a rainha-mãe, teimosa e dominadora. O marido deixa de lhe interessar e o pai está cada vez mais longe, em Lisboa e a muitos anos de distância. Prefere desinteressar-se dos favores do marido e deixar cair o braço castigador do pai. Deixa de usar de forma ostensiva, como até aí fizera, a sua condição de esposa maltratada, para se fechar num mutismo estudado e conspirativo. Passou a evitar o marido, que estranhou o silêncio, habituado que estava às grandes teatralizações internas de Maria, mas nada pôde fazer. Ao pai, mostrou carinho, mas também desinteresse político e moderação de queixas.

Maria acastela-se na sua pequena corte de fiéis, onde brilham famílias castelhanas e estremenhas ligadas por laços fortes de parentesco com Portugal. No centro desse círculo, encontra-se João Afonso de Albuquerque, senhor de Albuquerque, filho do português Afonso Sanches, bastardo de Dinis, que Afonso IV atirou, enciumado e paisano, para o exílio. João Afonso passa a ser, depois do Salado, a estrela mais brilhante dessa pequena porção de céu. Era primo direito de Maria, mas , no seio duma política de intrigas, o parentesco tinha muito menos importância que o interesse. Depois de 1340, o seu ascendente é tão grande junto da rainha, que esta entrega aos seus cuidados a educação do príncipe herdeiro. É este o quadro da política peninsular depois do Salado, com uma fractura importante em Castela, entre o rei e a rainha, que tanto Aragão e Portugal pretendem evitar. Inês de Castro será depois apanhada pelas ondas de choque deste rasgão; foi a vítima impensada e inocente duma intriga obscura e menor, ainda que sangrenta. É por isso que todos estes figurantes da história do tempo, de Maria a João Afonso, são personagens do episódio de Pedro e Inês, algumas tão perto dele que chegam a queimar os dedos nas suas labaredas. Antes de todas, está essa Maria de Portugal, rainha de Castela e irmã de Pedro, que no poema de Camões, formosíssima e suplicante, se chega a confundir com Inês, tal a proximidade das figuras, a transparência dos contornos, a continuidade dos propósitos.

O facto de João Afonso aparecer depois do Salado como o amante de Maria, ou pelo menos como o seu homem de confiança, serviu em alguma coisa os propósitos do Manuel e sobretudo de Afonso XI, que procurara sempre desviar a seu favor alguma clivagem entre a esposa e o sogro. A primeira contradição séria entre Maria e o pai só aparecerá com a intimidade que se estabelece depois do Salado entre João Afonso e Maria. Antes disso, o pai nunca teve o mais pequeno desaire com a filha, e mesmo o relacionamento dela com o filho do seu meio-irmão deixou-o apenas incomodado. Afonso XI explorou o assunto e conseguiu com ele que Afonso de Portugal se afastasse de vez da política castelhana, mas não tocou na relação entre a filha e o pai. Maria foi sempre, entre os irmãos, o preferido do pai. O relacionamento de Maria e de João Afonso foi conjuntural e  todo feito de interesse; foi, no fundo, a resposta de dois grupos distintos, o da rainha e o de João Afonso, à aliança do rei com Gusmões e Manuéis. Os contactos entre João Afonso e Maria antes do Salado não merecem sequer ser mencionados de tão irrelevantes. Ele é filho de Afonso Sanches, cuja lenda da ambição negra correu na infância e juventude de Maria, com as consequências devastadoras que o leitor já conhece; só veio a travar conhecimento com ele quando foi para Castela e mesmo assim de raspão, no colectivo dos ricos-homens que visitivam a corte em Burgos. Compreende-se o afastamento entre tio e sobrinha; tratava-se do tio por quem o pai, um homem que se pretendia razoável, esbofeteara o avô e levantara contenda civil, entristecendo muito os últimos dias de Dinis e Isabel.

A partir do Salado, mãe solitária, cada vez mais ameaçada pelos bastardos do rei, Maria assume-se como a cabeça duma facção activa e interveniente em torno do príncipe herdeiro. O que mais a prende são as alianças internas fortes, que permitam, mais tarde, ao filho ter folga para a guerra aos bastardos e aos nobres. João Afonso, bem temperado no assunto, filho dum bastardo que estivera em luta com o princípe herdeiro, ligado à nobreza leonesa, galega e castelhana, é a trave-mestra dessa contrução. Era homem cauto, castigado pelo exílio do pai, com sentido da ocasião e reduzida vocação para letras. A sua inteligência era de tipo prático e terminava no tabuleiro militar, como acontecia de resto a tantos dos seus contemporâneos. Com ele, chegam ao palco deste conto os Castros galegos. O pai de Inês é Pedro Fernandes de Castro, nobre galego, filho duma filha natural de Sancho IV de Castela, avô de Afonso XI. Era um fidalgo requintado, muito ligado à casa de Afonso Sanches, pela mulher deste. A mãe de João Afonso, Teresa Martins, portuguesa também, criou outrossim Inês, filha natural de Pedro Fernandes de Castro. A cidade de Albuquerque, talhada na pedra das penhas estremenhas, foi o ninho desta flor sublime e amazónica, que não teve espelho de água para se ver e ficou, por isso, inocente para a vida toda. Mais tarde, no contexto das múltiplas e desencontradas alianças do Salado, Inês é ligada a Constança e à casa do duque de Penafiel, tomando parte no pequeno círculo íntimo da princesa, que lhe nota, não sei se a formosura como diz Eugénio de Castro, mas pelo menos, as prendas da fala e da companhia. Seja como for, foste tu, Constança, na atmosfera tranquila da tua intimidade, o primeiro ente a perceber a chama gloriosa, de fogo e luz, que se libertava da cera pura de Inês. Só isso chega para fazer de ti uma das heroínas mais puras deste enredo.

De camareira, ela passa rapidamente a dama de companhia, entrando desse modo no círculo restrito que vivia na intimidade de Constança. Só uma corrente de funda simpatia entre as duas, justifica que uma mulher experiente, culta, vivida e respeitada como a filha de João Manuel a escolhesse para ir  à sua boda, a Lisboa, e aqui ficar a residir com ela, na sua roda mais íntima.

A chegada dos Castros ao palco deste conto, ligando Albuquerque aos dois lados da fronteira, Portugal e Castela, foi o laço com que estrangularam Inês, mas foi também a forma involuntária com que esta mulher entrou na história dos homens, para lhes ensinar uma lição de obscura humildade. Com os Castros, é Inês que chega, com o seu recato e o seu brilho, ao coração deste conto. Feche-se então o parêntese, que o cenário está desdobrado, e retome-se a boda.


O AMOR


As incompatibilidades entre Constança e Pedro chegaram com a boda. Constança sentia-se cansada e nervosa com a situação da guerra. Estava demasiado preocupada com o destino do pai para ligar a Pedro. Tinha má impressão do infante, que, logo nos primeiros encontros, ainda antes a cerimónia da Sé, lhe pareceu um rapaz bronco e iletrado, incapaz de compor versos e tocar alaúde, que soletrava mal duas palavras, quer no galego formoso dos portugueses, quer no castelhano, que era a língua da mãe, sua sogra. Tinha um cheiro azedo de estrume e parecia um bicho queimado pelo Sol. Sentia-se na disposição de lhe dar um herdeiro, mas afastada dele, recolhida entre as suas flores, os seus códices preciosos, as longas e deliciosas cartas do seu pai, as aias escolhidas a dedo e os seus jogos e distracções. Na boda, essa primeira impressão aprofundou-se. Foi com alívio que o viu partir para a Atouguia e adiou para mais tarde o primeiro contacto com ele na intimidade. Planeou então com algum regalo a sua partida até Montemor-o-Novo, na companhia do pai.

Pedro, por seu lado, sentiu-se incomodado com a idade de Constança e com as notícias do seu passado. Mostrou-se diante dela um ser frágil e complexo, cheio de sentimentos contraditórios, que iam da repulsa à piedade quase extrema. Tomou a presença de João Manuel como pretexto para se retirar e sentiu-se muito feliz por mandar a mulher acompanhar o sogro e conhecer melhor uma das três povoações que o pai lhe dera como arras, a vila de Montemor-o-Novo.

Nenhum dos dois se mostrou interessado em retomar o contacto no imediato. Pedro deixou-se ficar na Atouguia, indiferente ao casamento e à guerra, fazendo a vida boa da aldeia, com o mar e os campos. Constança viajou com o pai, instalou-se em Montemor cheia de expectativas e acabou por melancolizar diante da paisagem. Tudo o que conseguia suportar eram as cantigas que as aias lhe cantavam em galaico-português, língua que ela já conhecia dos cancioneiros e que depressa se pôs a falar fluentemente. Ria com as aias, mas sentia-se tolhida pela pobreza do meio, incapaz, por falta de estímulo, de ler ou de tocar um instrumento.

Procurou então refúgio em Alenquer, outra das vilas que o sogro lhe dera. Encontrou aí um ambiente culto e acroamático, com gente versada em Lúlio e interessada pela música, gramática e poesia. Decidiu habitar a vila, que lhe pareceu protegida e capaz. Fez vir de Lisboa o resto da bagagem e instalou-se no castelo, ao pé duma ala vazia do convento de São Francisco. Sentia-se desafogada e livre, ainda que temerosa do futuro. Por agora, tudo o que desejava era arrumar os vestidos, distribuir as jóias pelas mesas e arcas, aproveitar a presença das aias para se distrair com música e perfumes. A vida parecia ter agora para lhe dar alguma serenidade, fazendo-a esquecer as grandes tempestades do Douro da sua adolescência. Tinha planos ordenados de vida, que passavam pelo estudo, pela música, pela pintura, pelo bordado, pelo canto. E havia ainda o filho que queria dar à coroa, mas que, a princípio, guardaria só para si. Pobre Constança, mal sabias tu, que as águas do Tejo são muito mais traiçoeiras que os caudais do Douro. Que são os sismos do Tejo ao lado dos penhascos negros do Douro? Um luar de inferno ao lado do vórtice do Caos. As águas do Tejo quando chegam ao Atlântico é que fazem da criação de Deus uma tragédia cega e absurda. Que é a tourada dos campinos do Tejo senão o momento trágico da terra e do homem? Lisboa, com gaivotas irrequietas e soluçantes no alto da cabeça, não é uma cidade como as outras; é a capital da tourada e o coração da Ibéria, quer dizer, uma tragédia de pedra que periodicamente sucumbe aos abanões dos sismos.

Pedro não a visitou antes das notícias que sobre a batalha chegaram a Lisboa. Não pôs nisso nenhuma intenção deliberada, mas o tempo foi passando sem que ele se decidisse a visitar a esposa. A vida da aldeia era-lhe tão grata, que só por obrigação a deixava. A certeza de que o pai estava de regresso decidiu-o finalmente. Foi a Alenquer e mostrou-se tímido e agastado.

—Venho tomar notícia da instalação da senhora infanta e das suas aias — disse ele receosamente, quando chegou aos aposentos da mulher.

Não deu sinais de pretender deixar o átrio de entrada dos aposentos. Constança agradeceu interiormente o comportamento do marido. Olhava para ele e via um urso branco, normando, aloirado pelo Sol, desajeitado e hirsuto, cheio de pó e sem maneiras. Falava mal, sem nexo, tinha a voz enrouquecida pela solidão e falta de hábito, tinha o hábito de comer com as mãos, conforme pudera observar na boda da Sé de Lisboa,  não se lavava nem perfumava. Era um alívio não ficar com ele na intimidade. Imaginava-o grosso, aos roncos, de pés desproporcionados e malcheirosos, um odor cavalar insuportável por todo o corpo, incapaz de manter uma conversa sobre um verso mais enigmático do Lúlio dos fragmentos de “Lo Desconhort” ou sobre a virilidade da língua de Séneca.

Pedro fazia-se acompanhar de dois professos, que o quiseram deixar a sós com Constança, mas ele não deixou. Sem saber o que fazer, decidiu partir quase de imediato. Antes de se despedir as aias vieram espreitar à porta, e ele tornou a reparar despreocupadamente em Inês. Reconheceu-a, com o seu ar andrógino e infantil, o seu cabelo ruivo e curto, os seus olhos cintilantes de rapazito desprotegido. Era a humanidade humilde e pobre, vítima da criação, que ali se vinha prostrar diante dele, abrindo-lhe o coração à clemência e ao cuidado. Apeteceu-lhe sorrir, sem saber de quê.

Partiu pouco depois com a promessa de voltar dentro de pouco tempo e voltou, mas o seu comportamento repetiu o anterior. Soluçou duas ou três palavras roucas e desafinadas, não passou do átrio, visitou os frades e à despedida reparou com emoção no pequeno bando de aias que vinham espreitar os cavalos. Procurou, com os olhos, sem se fazer notar, Inês, que lhe pareceu um pardalito humano. Foi esse ainda o esqueleto das raras visitas que Pedro fez a Alenquer durante o Inverno seguinte, o de 1341. Nunca lá pernoitou e regressou sempre à Atouguia, que ficava, apesar da serra de Montejunto, a quatro ou cinco horas, num bom cavalo. Habituou-se ainda mais a respirar o ar da maresia para se sentir em casa, aliviado e livre. Tinha 20 anos e não sabia que era ainda uma criança acabada de chegar ao mundo; tinha os olhos fechados e trémulos. Estranho destino o teu, Pedro, seres escolhido pelas estrelas para dares conhecimento e sabedoria aos homens.

Na última visita desse Inverno, Pedro chegou pela primeira vez à fala com Inês. Aconteceu isso de forma fortuita, sem que nenhum dos dois o procurasse. Pedro era um tímido, nada habituado a mulheres dentro de casa. Para Pedro, Inês era, nesse altura, um ser engraçado, a que prestava atenção, mas não lhe merecia outro interesse. Fazia parte dum jardim delicado, que lhe era estranho, ainda que respeitável. Inês, por seu lado, desconhecia o que fosse um homem. Era uma aia da princesa, igual às outras, que não se atrevia a dirigir a palavra a qualquer homem. Fora criada em Albuquerque, no gineceu uterino do castelo, ao lado da família de Teresa de Albuquerque. Lidou aí com mulheres viris, mas muito reservadas, que lhe deram recato total e sensibilidade espiritual. Vira o pai de passagem nessa época e depois, aos 13 ou 14 anos, fora entregue ao círculo de Constança. Era uma roda de meninas, que vivia em permanente lazer e satisfação.

A filha de João Manuel afeiçoou-se-lhe. Viu nela uma flor da época, ainda que bravia. Deu-lhe alguma instrução e escolheu-a para vir para Lisboa. Constança era uma mulher castigada e a circunspecção de Inês pareceu-lhe um dos poucos valores que lhe podiam oferecer uma alegria sã. Era uma aquisição recente no círculo, onde a princesa tinha amigas de infância, mas com ascendente íntimo. Constança gostava de tomar o pequeno-almoço com ela e recolher-se depois à cama, enquanto Inês lhe lia ao lado romances manuscritos. Gostava dela também para passear debaixo das alamedas do convento, contemplando os astros à noite ou falando da vida do céu. O mundo de Inês era quase só feito de luzes e de mulheres.

Nesse dia, Pedro chegou escalorado a Alenquer. Era um dia quente de Março, com Sol curto, mas escaldante. Costumava sair da Atouguia ainda de noite e chegar muito antes do meio-dia ao largo da vila. A viagem não lhe custava e, precisando, mudava de montada no Cadaval, a duas horas e meia da Atouguia. Evitava as subidas do Montejunto e descia pela Ota. Nesse dia, arejou no Cadaval, mas mesmo assim a sede apertou com ele depois da Ota. Chegou suado e seco ao largo do castelo de Alenquer, onde entregou a montada e se sacudiu do pó dos caminhos. Tinha as botas e o balão das calças sujos de lama. Despira num povoado conhecido a jaleca de pele com três botões de osso e vinha em colete escuro, de cabedal grosso, com as mangas suadas da camisa arregaçadas. Vestia um calção de pano leve, acastanhado, e calçava sapatos de cano, salto de prateleira, com esporas simples.

Dirigiu-se para o átrio de Constança, como sempre fazia, e quando lá chegou, deu com Inês. Vestia uma blusa justa ao corpo, apertada em colete, saia de cinta alta e muito rodada, sapatos de presilha de cabedal. Acabara de vir dos jardins, que estavam um bom degrau de terra abaixo dos aposentos de Constança, e levava rosmaninho para a sala. Sabia que, nessa manhã, Pedro devia visitar Constança, mas não se lembrara que o podia encontrar no regresso. Olhou para ele e viu-o enlameado, barba emaranhada, lábios secos. Hesitou entre o dever de o servir e o recato absoluto que lhe haviam ensinado. Pensou que se tratava do príncipe e era sua obrigação recebê-lo. Dirigiu-se-lhe como antes se habituara a servir o pai.

—Meu senhor, sou Inês, filha de Pedro Fernandes de Castro, visita de vosso tio Afonso Sanches, em Albuquerque. Perdoai-me, mas gostaria de vos trazer de beber.

Pedro não soube responder. Sentia-se ofegante da viagem, esquecido de linguagem, incomodado pela alegria quente que havia nos aposentos de Constança e do seu séquito. Sabia, por Diogo Lopes Pecheco, quem era Afonso Sanches, do seu parentesco com o pai e a família, mas nunca o havia visto, nada podia dizer dele; morrera quando ele era criança e pouco ou nada se falava agora dele. De Pedro Fernandes de Castro tinha a ideia muito vaga dum fidalgo galego que em tempos privara com seu avô Dinis; no fundo, se não era a primeira vez que ouvia falar dele, era como se fosse. Assentiu desajeitadamente com a cabeça à sugestão da aia. Inês foi para dentro preparar a bebida. Pediu ajuda à sua criada de quarto, uma menina galega da sua idade, que viera com ela de Albuquerque, chamada Teresa, mas foi Inês que preparou a bebida na copa. Escolheu na cave um vinho transparente, aromatizou-o, misturou-lhe, com jeito mourisco, água fresca, frutas e hortelã. Levou para cima, numa bandeja de prata, um jarro com a bebida, um pratinho de figos, um copo alto, esguio e polido, um guardanapo de linho.

—Meu senhor, a vossa bebida está pronta.

Pedro estava encostado ao umbral de pedra da varanda. Mirava com curiosidade a parte baixa da vila, numa manhã de Sol. Em frente, no desvão, estavam as vinhas, com as cepas retorcidas, onde despontavam as primeiras verduras. Descera as mangas e passara a jaleca pelos ombros. Tinha a boca seca e vontade de beber, mas mais uma vez não foi capaz de falar. Tudo o que conseguiu foi um sinal de agradecimento com a cabeça.

Inês estava diante dele com a bandeja. Serviu-se e bebeu tragos longos. Quando poisou o copo e ergueu a cabeça para agradecer de novo, viu os cabelos de Inês em fogo. Ficou alarmado e fascinado ao mesmo tempo. Era um lume que crepitava em silêncio; o rosto tinha uma luminosidade anormal. A pele acetinada e branca iluminava-se por dentro, libertando uma luz intensa; os cabelos continuavam a crepitar, soltando faúlhas e labaredas. A coisa mais estranha que lhe podia acontecer, numa manhã de Março, era ver assim uma mulher com a cabeça em fogo. Deu-lhe a impressão que Inês levantava os braços e os agitava no ar, no meio das labaredas, como duas serpentes finas e claras, chocalhando no calor da areia. Depois, por fim, percebeu que o fogo recolhia ao corpo e os cabelos voltavam ao normal. Foi um momento de inocência e terror, ao qual Pedro ficou para sempre ligado. Viu a essência astral da mulher, a mulher desencarnada, feita de gás e fogo, e não fechou para sempre os olhos. Não cegou, mas ficou ainda mais tímido de voz. O amor foi nele o terror fulminante duma revelação cósmica, mas a célebre gaguez funda de Pedro, referida por Fernão Lopes, só chegou depois, com a revelação da morte.

Parece que te oiço, leitor, aí desse lado, a resmungar. Dizes tu, que te prometi uma grande e inesquecível estória de amor entre Inês e Pedro, que, pelos vislumbres, ombreava com as melhores do mundo, e afinal o que te dou é um selvagem quase incapaz de soletrar uma palavra, um desajeitadão que só sabe lidar com cães e cavalos, e uma gaiata servil, educada na província, sem resquício de malícia ou sedução. Tens razão; é bom que te habitues desde já à anormalidade deste amor entre duas crianças puras e inocentes. Assim, de surpresa, sem hábitos, sem intenções, sem projectos, quase sem erotismo, é que o amor tem peso e valor. O amor de que te falo aqui não é aquele apetite a que chamas de cio, que rapidamente cansa e desgosta, mas aquele amor eterno que, segundo Dante, move o Sol e as outras estrelas. Deixa, pois, leitor, a rabugice, e não temas em te embrenhar na leitura desta estória, que alguma coisa hás-de lucrar.

A partir deste dia o relacionamento de Pedro com Alenquer mudou. Vinha com mais regularidade e passou a aceitar pernoita junto dos frades. Entretinha-se a explorar os arredores de Alenquer, de Meca, à Gavinha e a Olhalvo. Caçava e adestrava cães nos terrenos do convento. Mostrava sempre o mesmo desajeitamento com Constança, mas a presença de Inês tornava-o seguro, firme, directo, pelo menos por dentro. As dificuldades exteriores com a fala acentuaram-se com a terrível visão que teve de Inês a deitar fogo pela cabeça. Era como se tivesse a fala atacada por uma ferrugem e as palavras tivessem perdido o seu sentido imediato, vulgar. O amor é, assim, uma espécie de dúvida cósmica, que interroga e reinventa doutro modo a linguagem. A aia dos cabelos de fogo passou a ser para ele uma novidade, que estava infinitamente acima dos seus cavalos, dos seus cães, dos rapazes seus amigos. Tinha, quando podia, o que era raro, ousadias com ela, que o chegavam a surpreender. Olhava-a demoradamente, sorria-lhe, oferecia-lhe coisas insignificantes que trazia dos seus passeios, mas que ela não aceitava. Tudo isso o fazia comover duma forma extraordinária, que chegava quase às lágrimas. Entretinha depois, na solidão da Atouguia, diante do mar, as lembranças, que lhe pareciam um bálsamo para todas as feridas do mundo.

Inês, por seu lado, começou por viver esse período a medo. Não percebia muito bem o que acontecera no átrio com o infante nem o que estava a acontecer depois, mas ainda assim pressentia por ali um vendaval perigoso, que a amedrontava e atraía. A princípio, pretendeu manter a correcção e o recato que lhe haviam ensinado e que lhe eram ingénitos. Fazia apenas de conta que nada de anormal se estava a passar; evitava mostrar-se nas ocasiões em que o infante aparecia e, quando não podia de todo esquivar-se, passava rápida e de olhos baixos. Não sabia muito bem o que era um homem e desconhecia por essa altura qualquer forma de manifestação sexual, mais imediata e animal. A sua vida sentimental resumia-se à imensa ternura que sentia pelas amigas e pelas crianças que elas às vezes tinham. Havia, além disso, as flores, as árvores e os animais. Optou por esconder de Constança as sua dúvidas, porque queria ver nessa perturbação um episódio inconsequente ou um simples equívoco. Mas depois, à medida que o tempo foi passando, o mistério da situação trabalhou dentro dela. Sentiu-se presa ao desatino do infante e não passava um instante em que não pensasse nele. Tenho tanta pena da perturbação em que te vejo por minha causa, pensava amiudamente ela, sem perceber muito bem o que significava essa compaixão que sentia pelo príncipe.

A partir daí, começou a sentir ascender dentro de si, cada vez mais vigorosa e ardente, uma força de rebeldia para com tudo o que a impedia de olhar para ele, de frente, olhos nos olhos. Era um remoinho cego, que a convulsionava por dentro. A Primavera desse ano, exuberante e farta, foi o cenário esplêndido que o destino escolheu para o lance deste amor.

Um dia, já no fim do Verão de 1341, quando corria no ar quente um cheiro doce de mosto, esta pobre pomba cerrou os dentes e jurou a si própria olhar o príncipe. Vou olhar os olhos do príncipe, com firmeza e atenção, pensou ela.

Viu nisso um acto tão firme como o brilhar das estrelas ou o crescer dos frutos. Ela que o evitava, procurou-o. Escolheu uma ocasião propícia em que Constança se afastara com a roda das aias para os socalcos baixos dos jardins. As árvores estavam carregadas de fruto e as rosas tinham voltado a florir. As meninas entretinham-se a desenhar nos jardins motivos vegetais e a bordá-los depois em linho branco. O príncipe ficara com os cães, nas traseiras da cozinha. Inês despachou as criadas para os jardins e reteve Teresa, em quem tinha absoluta confiança. Fora criada com ela, em Albuquerque, desde o berço, e vinha duma família galega ancestralmente leal e vassala dos Castros. Protegida na rectaguarda por Teresa, Inês pôde mostrar-se, na janela, ao príncipe. Ele acorreu, como sempre fazia, mas desta vez Inês não se retirou. Olhou-o com os olhos húmidos, tremendo ligeiramente as pestanas.  Julgou que o príncipe merecia o seu olhar. Levantou depois o indicador e o médio da mão direita e, por momentos, deixou-os suspensos no ar.

Pedro sentiu o choque térmico da aproximação. Pôde, pela primeira vez, contemplar os olhos de Inês. Havia neles águas verdes e azuis, como as do Baleal ou Peniche, onde apetecia também mergulhar. Mais tarde, muito mais tarde, o corpo de Inês foi-lhe um imenso areal, mole e quente, onde reposou da fadiga do mundo, mas a porta de entrada desse litoral foi o mar bravio e universal que vinha bater nos olhos de Inês.  Eram já as lágrimas do seu sacrifício e do seu amor, misturadas com as do seu nascimento e também com as de Constança. O caudal de lágrimas que a filha do duque de Penafiel há-de ter chorado na espoliação da sua vida foi apenas um dos afluentes das águas fundas que Inês tinha nos olhos. Não é Camões que,  nos Lusíadas , diz que nunca deles  o Mondego anda enxuto? E hoje, em Coimbra, do lado de Santa Clara, não há ainda uma fonte abundante, que se alimenta das lágrimas de Inês? És a mãe universal dos rios e das fontes, a deusa da pureza e da fecundidade, ó flor sempre aberta.

A relação de Pedro e Inês estreitou-se depois deste acto. Nada se modificou na verdade, a não ser a coragem de Inês em o olhar e a frequência com que isso passou a acontecer. Um dia mandou-lhe, por Teresa, um anel fino de oiro seu, que foi quase uma declaração formal da parte de Inês. Pedro procurou-a sozinha.

—Meu bem … afigura-se-me que vos quero… mais que à minha vida — murmurou-lhe ele, entaramelado.

Inês fitou-o com seriedade e aceitou-lhe as palavras como uma gota de sangue que para sempre selasse, como um lacre sagrado, os seus destinos. Era, porém, raríssimo falarem um com o outro e tudo continuava a acontecer um pouco por acaso. De qualquer modo, Pedro tinha agora nas mãos o anel de Inês, que lhe parecia um fetiche, e na alma a visão desses olhos, onde rolavam águas azuis e tranquilas. Gostava de ir aos areais da costa e pensar neles. Melancolizara e, pouco a pouco, com a descoberta de Inês, o seu carácter pacificou. O amor foi nele o agente dum amadurecimento, de todo inesperado. Diogo Lopes Pacheco, que o educou na superfície, pertencia a uma casta política e militar, que perdera o contacto com a poesia dos provençais e dos trovadores peninsulares, árabes e cristãos. Não lhe falou de Eros nem das fábulas de Afrodite e Ares; a ciência de Diogo Lopes era doutro tipo, mais jurídica que poética ou mitológica. Pedro foi, assim, criado entre o frémito um pouco selvagem e brutal das matilhas e das cavalariças de província e um saber de regras práticas convencionais, a que de resto se mostrou relutante. Nada faria esperar nele uma complexidade psicológica, moderna, apta a receber e a refinar o amor, tal como Platão fala dele. Ele viu, claramente viu, como nenhum outro antes dele, a essência de fogo astral da mulher, a espinha dorsal da luz, de que Dante fala aterrado no Paraíso, e, no entanto, mal sabia ler e assinava torto e de cruz o nome num documento. Era um deus bravio, marginal ao tempo, destinado, depois de Lançarote e Tristão, a uma nova e derradeira revelação no domínio do amor.

Assim como assim, a relação dos dois começou a produzir as primeiras ondas de choque. Era demasiado manifesto o interesse que o príncipe punha naquela aia, mesmo que não se soubesse o que isso significava para ele. Pedro era visto, no círculo de Alenquer, como um enigma, que ia do néscio inofensivo ao transgressor perigoso. Correram, no Outono de 1341, os primeiros dizeres sobre Inês e Pedro. Foi na roda das aias de Constança e das suas criadas de dentro. Falava-se com risinhos de olhares comprometedores, de sorrisos despropositados. Imagina-se bem como a pequena notícia levantou rumor entre essas donzelas excitadas pela intimidade fechada em que viviam e requintadas pela leitura dos trovadores, pela música, pelos perfumes. Organizaram almoços volantes nos jardins, para falarem, espalhadas aos grupinhos, no assunto. Constança riu-se, apaladada com o picante da situação, mas não lhe votou, a princípio, qualquer interesse. Pedro continuava a ser para ela um incómodo, um urso inculto, vindo da Lápia gelada ou do frio Pirinéu, que lhe não merecia dois tempos de atenção. Teresa procurou desviar as atenções; resultou que o infante foi acusado de grosseiro e abominável. Constança aceitou esta versão dos acontecimentos, que era, sem contestação possível, a dela própria. Ainda assim, achou engraçado tirar uma manhã de conversa, a sós, na sua alcova, com Inês. Tomaram juntas o pequeno-almoço e depois Constança fez ar de preguiça.

—Vem, dá-me a mão. Amiga, quero recostar-me nas almofadas para te ouvir as grosserias do príncipe.

Levou-a até ao interior do quarto. Recostaram-se as duas e Constança esperou pelas queixas de Inês, mas esta mostrou-se recalcitrante, embaraçada num silêncio culpado, que parecia recriminar as suas palavras,  como uma verdadeira profanação. Num ápice, Constança percebeu muito do que se passava. Ficou vidrada, sem se poder mexer, paralisada durante algum tempo. O quê, tu, a flor bravia e pura do meu jardim, estás apaixonada pelo grosseirão do príncipe, perguntava-se ela, incrédula e desnorteada.

Inês estava mesmo apaixonada por Pedro. Esta constatação intorneável foi-lhe de todo intolerável, já que Pedro era um bruto, incapaz de refinamento espiritual, e Inês, pelo contrário, uma mulher fina, de sensibilidade afinada e pura, talvez a melhor flor do seu jardim, que era, sem favor, o mais perfumado, culto e bem tratado de toda a Península. O seu pai era o maioral das letras do tempo e a sua casa a que mais parentesco poético e artístico tinha com a de Afonso X, seu tio-avô. Mirou-a, com os olhos sem brilho, pálida, desconcertada, quase eufórica. A princípio quis que tudo aquilo não passasse duma história vulgar de lençóis e brutalidade, como tantas outras, que acabavam no esquecimento, ou na bastardia, mas percebeu que era inelutável e sem barreiras o amor de Inês. A certeza da pureza desse amor chocava-a e ao mesmo tempo exigia-lhe um enorme respeito por aquilo que ali estava a acontecer. Um caso de obscenidade teria sido resolvido sem mais e sem mágoa; Inês seria comparada a uma bácora nojenta e afastada com desdém. Era doutra coisa que se tratava, muito mais complexa e querida. Era o amor, o amor em todo o seu esplendor e candura, em toda a sua humanidade e transcendência, o amor que Constança sempre cortejara e pelo qual veementemente ansiara, que descia finalmente até ela como a mais inesperada e desejada das revelações. E isso, por muito que a magoasse, não podia ser desprezado.

A partir daí, a sua relação interior com Pedro não mais foi a mesma. O bicho de cheiro azedo e mãos bravias fez-se, aos seus olhos, mais manso; o burgesso ganhou ingenuidade, elegância, formosura. Romantizou o seu silêncio e o afastamento pitoresco em que vivia. A sua virilidade pareceu-lhe muito menos brutal e ordinária; os seus dedos finos e artísticos; o seu cheiro muito mais apetitoso e próximo. Lembrou-se dos poemas de Dinis, que conhecia bem, e não lhe custou  pensar que Pedro era o neto do último grande trovador peninsular. Passou a vê-lo pelos olhos de Inês, que eram afinal, pensava ela, os olhos puros da verdade. Achou-o belo, virgem, apetecível, divino.  Fez dele um deus destinado a revelar um novo culto no mundo, um deus obscuro, dionisíaco, cabreiro, nascido e crescido na ignorância de si mesmo e da sua missão. Viu nele, de repente, com uma lucidez arrepiante, o capítulo derradeiro do amor cortês medieval, aquele que faltava viver para fechar em glória uma época que se apagava. Ficou siderada; mordeu-se de remorsos, por não ter sido capaz, sozinha, com a espontaneidade da sua alma, no dia da boda, de o ter visto como agora o via.

—És o último, o mais completo dos Lançarotes, dos Tristões e dos Amadises de ontem e de hoje — dizia-se Constança, ainda incrédula e deslumbrada.

De repente, Pedro apareceu-lhe como o prometido dos grandes amantes que o haviam precedido no mundo; era o esperado, o desejado, aquele a quem estava destinada a missão de conhecer e revelar a essência última da mulher.

Ó linda Inês, não são os teus olhos de diamante que aqui invoco, mas os teus, Constança, cegos, opacos, fechados. Que destino grandioso teria sido o teu, ó rainha triste e frustrada, se no dia do teu matrimónio, na Sé de Lisboa, tivesses podido abrir os teus olhos e tivesses visto, ao fulgor da sua luz, a alma saudosa e órfica do teu marido, ondular na maresia irreal que subia do rio azul. Só a viste depois, quando Inês te deu a ver o que foi ela a ver primeiro, e esse foi o teu drama e o teu sofrimento maior. Tiveste de partilhar o teu grande amor com outra mulher; passaste pela humilhação de só pelos seus olhos veres o teu amado. Nada do que viveste antes,  em Toro ou Valadolide, se compara ao calvário que vieste arrastar entre Alenquer e Lisboa e que te matou em pouco mais de três anos. Volto a perguntar, que são os penhascos do Douro ao pé das areias sísmicas do Tejo? Uma faúlha de pederneira ao pé do incêndio do Sol.

Pedro viveu a aproximação louca e furiosa de Constança com surpresa e moderação. A idade de Constança e as notícias do seu passado continuavam a ser para ele um incómodo difícil de suportar. Sentia diante dela uma imensa vulnerabilidade, que dividia pela aversão e pela compaixão. Os seus projectos relativos a ela nunca haviam passado da mera formalidade. Encarava preservar a todo o custo  a privacidade dos seus pequenos hábitos de solitário e selvagem. Fora essa a proposta de matrimónio do pai e do aio, Diogo Lopes Pacheco; era essa a situação que mais lhe ia por feitio e educação. Teve a perspicácia de compreender que a presença de Inês viera deitar por terra o acordo tácito que se estabelecera entre todos no dia da boda. Depois do terramoto de estrelas em que Inês se transformara era natural que tudo se pusesse a girar alucinadamente. A paixão histérica de Constança foi o seu primeiro arranque e ele, que foi o único que aguentou a pé firme toda a violenta derrocada em que se tornou aquele vulcão, teve o senso de perceber que esse movimento não podia ser contrariado. Atendeu compassivamente os pedidos da mulher e a intimidade entre os dois depressa se estabeleceu.

Espaçou muito as idas à Atouguia, donde mandou vir os cães e os cavalos.  A corte, que estanciava por essa altura em Évora, recebeu com aplauso comedido essas notícias. Afonso IV e Brites seguiam com desinteresse a vida dos esposos; o caso de Inês ainda não transpirara e limitavam-se a esperar, à distância, com algum enfado e uma displicência sobranceira, o herdeiro, que assegurasse a continuidade da dinastia.

Constança afastou a roda das aias para outro piso e arranjou aposentos contíguos para os dois. Estava louca por ele e acordava a meio da noite desvairada, derretida de ternura e desejo. Era a primeira vez que se entregava a um homem e fazia-o de forma obsessiva e quase literária. Acarinhava-o muito, mas estava sempre ansiosa, insatisfeita, cheia de medos.

—Marido, marido da minha alma, marido e senhor. Deixa a mim a vida e dá ao demo os teus cuidados — dizia-lhe ela, louca de desejo, aninhando-se entre os seus braços.

Constança foi a primeira mulher que Pedro conheceu sexualmente e durante muito tempo a única. A sua proximidade carnal com Inês foi muito moderada a princípio, quer pela inexperiência e timidez de ambos, quer pela presença intervalar de Constança, que, desperta pelos sentidos de Inês, se aproveitou imediatamente das enormes vantagens que oficialmemente dispunha para possuir, e ser possuída, por Pedro. Não se atreveu a expulsar Inês da sua roda, porque percebeu que era ela o fio condutor daquela trama apaixonada e que sem ela o fogo se apagaria numa cinza fria, mas, ainda assim, relegou-a, de imediato, para plano um discreto, a que só ela tinha acesso. A princípio, pretendeu esquecê-la; depois, substituí-la; finalmente, apercebeu-se que isso não era de todo possível e guardou-a avidamente só para si, como se ela fosse um talismã inspirador das mais ardentes e afortunadas paixões.

A experiência do corpo virgem de Constança foi para Pedro uma experiência intensa, que lhe revelou o misticismo dos sentidos e lhe abriu um imenso apetite pela mulher, essa flor que transformava a humanidade num jardim. A intensidade emotiva do acto sexual com uma mulher nua e apaixonada, de olhos abertos diante dele, pele coberta de suor, cabelos cheios de electricidade, rosto transfigurado, lábios entreabertos, respiração ofegante, gemendo e explodindo incongruências astrais até à exaustão final, deixou na sombra tudo o que até ali ele conhecera no domínio sexual e afinou a sua sensibilidade numa direcção estética. Foi apenas um condimento da sua missão de grande e espiritual amante órfico, mas sem ele não teria avançado na sua descoberta da natureza feminina da mulher. Ao mesmo tempo, a sensualidade insólita do meio ajudou-o a despertar para o papel motor da música e da poesia, a que fora insensível até aí. Tornou-se um amador do pífaro, da gaita-de-foles e do pandeiro de guizos, percutido com a mão e o cotovelo, em que chegou, no fim da vida, a ser habilidoso e exímio. Prestou atenção à bandurra e ganhou tanto o sabor do bailar, que Fernão Lopes, o seu primeiro cronista, diz que a dança era uma das suas três actividades favoritas, com o montear e o andar de terra em terra por justiça.

Constança, por seu lado,  mostrou-se um ramo tenro e virgem nas mãos duma chuvada tropical; gritou, torceu-se, bailou, mostrou-se uma flor aberta e doce e enredou-se num novelo de luxuriantes fantasias eróticas de que não mais se libertou até à morte prematura. Pareceu rejuvenescer por momentos nas mãos fortes de Pedro, mas a sombra de Inês apoquentava-a, ainda que fizesse parte do seu próprio prazer. Era uma relação de profunda ambiguidade, onde se misturavam o desejo encarniçado e o ciúme, a admiração ardente e o desespero histérico.

Eugénio de Castro no seu poema fala dum abrasador amor que ligaria Constança e Inês. Nesse poema fulminante, elas beijam-se sofregamente na boca, despem-se uma à outra, têm movimentos lânguidos de ancas deitadas uma ao lado da outra e Constança acaba por confessar um amor furioso a Inês. O último beijo que, no leito de morte, moribunda e sensual, Constança pede a Pedro é para ser passado logo de seguida para os lábios de Inês; por nada deste mundo, no poema de Eugénio de Castro, Constança quer um beijo de Pedro sem o trocar depois, ainda mais apaixonada, com Inês . Não sei se foi assim, mas tenho a certeza que, quando vieram para Portugal, uma corrente sólida de ternura unia essas duas mulheres, que tinham entre si uma diferença de dez anos. Era, porém, uma ternura mansa, sem gritos, de prazer ou de dor, feita de momentos simples e íntimos, em que a mais velha aparecia como a guia esclarecida, nas letras e na música, da mais nova.

Mais tarde, quando Pedro cai desamparado na vida destas duas mulheres, dividindo-as e aproximando-as, tudo se tornará excessivo, imprevisível, desenfreado. Constança sente-se prejudicada pela presença de Inês, por quem Pedro mostra uma superior admiração deslumbrada, mas sabe que só consegue ver Pedro através dos olhos de Inês; se arredar Inês, afasta o facho de luz poderosa, que lhe permite ver Pedro e mergulha novamente na pavorosa escuridão da ignorância, e isso ela só fará em último recurso, como estratégia de sobrevivência. Fica claro que a pequena cortesã da sua roda mais íntima tanto lhe é imensamente querida como detestável. Se é aceitável que, nas inconsequências eróticas da Primavera e do Verão de 1342, Constança possa ter colado avidamente, por gratidão e frenesim, os seus lábios ainda molhados pelas secreções de Pedro aos lábios virgens de Inês, também é possível que, pouco depois, tudo haja feito para a magoar, dilacerar e afastar de Pedro.

Em finais do ano de 1342, Constança foi surpreendida por um mal-estar orgânico, que a perturbou. Os sinais chegaram durante uma missa de domingo, mas a irregularidade apareceu-lhe como fruto dalgum desregulamento interno, a que estava habituada desde os tempos recuados de Toro e Penafiel.  Só algumas semanas depois, com a contínua tortura das tonturas e dos vómitos, as guinadas no ventre, ela deu um aspecto mais sério ao que se estava a passar.

—Sinto um boliço dentro de mim. Parece-me que estou prenhe — confessou ela com acanhamento a Pedro, uma tarde em que se recostavam nos seus aposentos.

Pedro recebeu com alívio a notícia, que o descartava enfim da missão de dar um herdeiro à coroa e ao país. Constança, por sua vez, temperou os seus excessos. Quis regressar, depois daqueles meses tempestuosos e escaldantes, aos planos positivos e frios que fizera na época da sua instalação em Portugal, dedicando-se a trabalhos íntimos e ordenadores. Tentava assim conciliar, por um fugaz momento, pobre visionária, a secreta tranquilidade com que sonhara e o terramoto inesperado que foi a aparição de Inês. A notícia da gravidez foi recebida com satisfação e malícia em Lisboa, onde a corte estava. Afonso e Brites vieram dar-lhe os parabéns a Alenquer e João Manuel, do mosteiro de Penafiel, onde se entretinha a polir os seus códices, escreveu-lhe uma longa carta em que citava Cícero e Paulo e lhe falava carinhosamente da menina viva e inteligente que ela sempre se mostrara e que ele recordava todos os dias com o maior afecto.

Na fim do Inverno, Brites, a sogra, veio a Alenquer passar algum tempo com Constança. Era uma mulher experiente, que engravidara, no espaço de pouco mais de dez anos, meia dúzia de vezes. A roda das meninas voltara a aproximar-se de Constança, que parecia viver um momento de serenidade moderada, preparando o enxoval e a chegada da criança. Inês está lá, no meio delas, alegre e colaboradora. Tem dezoito anos e a experiência alucinada dos últimos meses amadureceu-a; não é mais a menina tímida e ínfima, a protegida especial de Constança, que se escondia de tudo, mas a mulher augusta, sossegada, independente, de colo branco, alto e coleante pescoço níveo, pronta para o grande sacrifício da vida. Vivia contente com o nada e por isso tinha tudo. É já a Inês que há-de passar à posteridade, com o seu ar silencioso de cisne real e solitário, desfolhando rosas e águas, no imenso oceano do cosmos, a ovelha mansa e paciente, pronta para a imolação. Pedro, momentaneamente solto do leito ardente e possessivo de Constança, tem de novo disponibilidade para olhá-la demoradamente. É um prazer melancólico, suave, sem histerismos, que o conforta. Torna a perceber nela um fogo celeste, que acende aquele mármore branco todo por dentro. Vê nela uma chama, cuja cera é a carne e o pavio a alma. Cai-lhe deslumbrado e humilde aos pés; geme e ladra.

—Meu bem, sois mais que a minha vida — suspirava ele, quando a via a sós no átrio de Alenquer ou nas sombras do jardim.

Ela ria-se, mas sabia que os seus destinos estavam selados com uma gota indelével de sangue e que ele, para a ver, se preciso for, a irá a buscar, como um podengo fiel, ao mais negro e distante Inferno. Passava-lhe então as mãos pelos cabelos e os dedos pelo rosto, em sinal de reconhecimento, e era tudo.

Voltaram então a correr, na roda de Constança, com alguma comoção, os relatos de Inês e Pedro. Murmurava-se que o príncipe estava enfeitiçado, que bebera um filtro, que não despegava os olhos da aia, que se ajoelhava recolhido aos seus pés, que lhe beijava o bico dos chapins ou a ponta da capa. A princesa tinha os nervos abalados por alguns anos de intranquilidade sentimental e não queria que a história daquela paixão chegasse às pessoas, tanto mais que não tinha confiança na corte portuguesa, que desconhecia e encarava com certo desdém. Ninguém, a não ser Pedro e Inês, se apercebera dos verdadeiros motivos que fizeram Constança, dum dia para o outro, cair, desvairada e louca, nos braços de Pedro. As aias viram nisso o destino natural do matrimónio e retiraram-se, de olhos no chão, envergonhadas e respeitosas, para segundo plano. Inês recuou aparentemente nessa maré e nunca deixou transparecer que a sua intimidade com Constança se fortalecera previsivelmente com o relacionamento sexual desta com Pedro.

Inês percebeu bem, logo desde o princípio, o mecanismo perverso do desejo de Constança e, sem a mais pequena réplica, mas também sem o mais leve estremeção de desejo, submeteu-se a ele. Deixou que ela a tomasse como isco e deixou-a mesmo, nos momentos mais frenéticos, morder ela própria o isco, esses lábios de fogo virgem, vermelhos e apetitosos como morangos, para que ela se consolasse com a sua castidade e a desse a Pedro. Teve, como o amante, a consciência de que depois do encontro dos dois tudo iria girar alucinadamente e que era insensato tentar travar uma parte da engrenagem. Fez disso uma prova de paciência e um segredo absoluto, de que nem mesmo Teresa, a sua única confidente íntima, tinha consciência. Ela sabia que isso pertencia ao domínio incontrolável da paixão e que uma gota fria de silêncio era necessária para regular um pouco aquela pressão asfixiante e explosiva.

Houve, ainda assim, um momento enciumado em que Constança se indispôs com Pedro. Não quis que isso transparecesse para fora, mas não pôde deixar de o acusar a sós. Martirizou-o impiedosamente durante algum tempo com esses acintes, que não poupavam Inês, mas rapidamente percebeu que isso iria precipitar o escândalo, em que o seu próprio desejo rolaria. Constança era, no fundo, uma apaixonada, que se deixava arrastar com facilidade desconcertante para o insaciável terreno das pugnas sentimentais.

Combina então uma retirada estratégica de Pedro durante algum tempo. Ela continuaria em Alenquer, onde aguardaria a criança, e Pedro regressaria à Atouguia, onde, desde há um ano, ia muito espaçadamente e por períodos muito curtos, o estritamente necessário para o paço ter serventia e uso. Constança esperava assim gozar da tranquilidade com que intimamente sonhara e, ao mesmo tempo, afastar Pedro de Inês, sem ter de exilar esta. Exilar Inês implicava, além da perda dum precioso talismã em coisas de amor, a abertura dum escândalo público, que não lhe interessava. Ademais, a chegada próxima duma criança ocupava o espaço preciso para ela supor consigo que suportaria sem mais a falta do marido. Pobre Constança Manuel, sempre sentada em cima dum vulcão e a pensar-se a mais resguardada e eficiente das mulheres. Sem os olhos de Inês, eras uma cega infeliz, que nem o teu marido foste capaz de ver, quanto mais o porvir. Prefiro ver-te na euforia báquica do erotismo, dando a mão direita a Pedro e a esquerda a Inês, abraçando os dois, que no calculismo imprevidente dos teus projectos cegos.

—Acedo ao teu pedido, mas a sazão é de agravos — disse-lhe Pedro iroso, quando a viu irredutível à volta do seu plano.

Partiu irrequieto para a Atouguia. Era um homem pacato, acatador, folgazão até, com hábitos inveterados de solitário. Teve os seus desconchavos escusados, indesculpáveis até de tão descomunais, mas compreensíveis, porque o seu abandono em criança foi áspero e a morte de Inês foi para ele um massacre. Ainda assim, a sua natureza era generosa, o seu íntimo acertado e o balanço final da sua vida tem aspectos exemplares, que fazem dele um modelo universal do sentimento humano. Levava para a Atouguia algum cansaço nos nervos, devido à tensão fortíssima a que fora submetido pela esposa, e a obsessão de Inês. O meu afastamento de Alenquer é capricho de querençosa e sinto-me sanhudo e disposto a estorvos e embaraços, pensava obstinadamente Pedro, enquanto choutava na montada.

Cuidado, Pedro, digo eu, que o teu ponto fraco foi a ira. Além disso, os caprichos desse momento de Constança são uma brincadeira de sorrisos ao pé daquilo que o destino ainda te reservava.

Corria a Primavera do ano de 1343 e Pedro entreteve-se a fazer a vida que conhecia e que acalmou o seu desatino, sem lho tirar. Saía de madrugada, às vezes ainda de noite, com os cães e com um falcoeiro, dirigindo-se para as matas da Serra e de Olho Marinho, caçava, batia as florestas e os montes, reconhecia os casais, falava com as mulheres que amassavam pão em alguidares de barro, cumprimentava os hortelões, espiava as garças airosas e despreocupadas que se vinham coçar nas areias, e regressava, enfim, ao Paço, cansado e seco, por volta do meio-dia; depois bebia, comia a vianda quase crua, descansava e voltava a sair, desta vez para ficar na Atouguia, farto e amável, com os rapazes amigos, em volta do touril, adestrando cavalos ou amansando bois, ou do ancoradouro das barcas, a ver o tráfego de vela que chegava e partia para longe.

Uma ou outra vez, recebia Diogo Lopes Pacheco, um homem agora muito próximo dos 40 anos, que lhe trazia notícias de Alenquer ou de Lisboa; Brites continuava com Constança, Afonso revivia os louros indevidos do Salado e Inês passava, mesmo aos olhos atentos e experientes do Pacheco, por uma anónima inofensiva, entre tantas outras, de que ninguém falava. Outras vezes, proporcionava-se e ia sozinho até ao ilhéu do Baleal ou à ilha de Peniche. A transparência da água, explosiva de verdes e borrões azuis, onde serpenteavam cardumes doirados, recordava-lhe os olhos de Inês. Mas não eram apenas as águas que lhe recordavam Inês; também as garças nas areias da costa, as pedras nas bermas dos caminhos, as fontes, as flores e as estrelas lhe traziam ao pensamento a aia de Alenquer.

Abandonava-se então com gosto à nostalgia das suas cismas, onde, nítido e firme, se desenhava o perfil de mármore de Inês. Vinham-lhe à memória as águas insondáveis dos seus olhos, o fogo dos seus cabelos, o mistério do seu silêncio. Não era o prazer pagão e sensual das formas que o atraía, mas a candura calada do silêncio, o mistério da evanescência. Haviam-se apagado de todo na sua fantasia as esgotantes batalhas de alcova que tivera meses ou semanas antes com Constança, mas continuava presente, com uma vivacidade que superava o real, a humanidade humilde de Inês no dia da sua boda, há quase três anos. Via, claramente via, com uma vida mais verdadeira do que na realidade acontecera, como se dum milagre se tratasse, o pestanejar dos seus olhos, o abrir dos seus lábios, o serpear do seu colo;  e isso era um sortilégio inexplicável, que lhe arrancava de dentro um suspiro fundo, tão magoado como doce.

A recordação civilizou-o e foi, ao lado do erotismo de Constança, a sua verdadeira educação. Passou a aborrecer, na intimidade, quando se entregava a essas longas cismas da memória, a vianda e a crueza das suas fibras, a pingar sangue, para se deliciar muito mais com as frutas maduras e doces, o leite macio, o pão rijo e bom como hóstia da terra. Descobriu também no passeio solitário e humilde, a pé, pelos vastos areais da costa, um estímulo para o sonho, que não existia no montear bravo e ruidoso, com cães açodados e armas.

A supremacia do facto recordado sobre o facto vivido foi para ele a superior revelação desse período de afastamento e purga e a manifestação que maiores consequências viria a ter no seu futuro. Pedro foi sobretudo um ser dotado duma memória transfiguradora e mágica. Os seus poderes não estavam no corpo animal ou vegetativo, mas na memória. Possuía uma memória profunda, intelectiva, nada mecânica, capaz de raiar as origens do mundo. Foi ele o primeiro a descobrir que a matéria de que somos feitos é uma substância que desaparecida é que se mostra. Percebeu, quando pela primeira vez teve a necessidade íntima de substituir Inês pela sua recordação, que as coisas se revelavam com a memória. Viu deslumbrado nesse supremo instante que a lembrança da luz do Sol era mais intensa que a própria luz do astro.

O cego não é aquele que tem os olhos fechados, mas aquele que se fica pela aparência opaca das coisas. Pedro foi, assim, o inventor da saudade portuguesa e o antepassado ancestral do moderno saudosismo de Teixeira de Pascoaes. Por isso, quando já tudo era velhice e fim, quis, ao som do pandeiro, dar vida a uma morta e coroá-la rainha, o que ninguém antes dele se lembrara de fazer, a não ser esse sublime Orfeu, que foi o seu antecedente mais directo, já que antes do pandeiro de Pedro se encontra a lira de Orfeu. Aqui está a linhagem fantástica deste português e a sua lição superior e universal, aquela que ainda hoje temos o dever de estudar e conhecer. O teu pai, Pedro, não foi esse cinzento Afonso IV, ambicioso e trágico, mas o amante de Eurídice e inventor da música, luminoso e brincalhão, e muito mais parecido contigo. Ó Pedro das mortais feridas, foste poeta e taumaturgo; poeta como o teu avô Dinis, mas sem escreveres um verso, e taumaturgo como a tua avó Isabel, mas sem fazeres um milagre. É que depois de ti os mortos não morrem e não há verso nem milagre como esse. É por isso que a tua Inês está ainda hoje no Museu das Figuras de Cera de Copenhaga, como the Quenn who was crowned after death, constituindo um dos temas mais recorrentes da literatura e da arte de todo o mundo.

O puerpério de Constança foi difícil e atribulado. Depois da partida de Pedro, Constança teve um curto momento de sossego. Estava exausta por uma experiência sexual intensíssima, muito mais revoluteante do que ela algum dia havia imaginado, que durara perto dum ano e lhe acontecera quase aos 30 anos, quando isso lhe parecia impossível e até indesejável. Se por um lado, o ciclone lhe satisfizera um imaginário solto e sensitivo, de quem lera aos 20 anos Juvenal e Marcial, por outro, dada a inquietante triangulação do seu efectivo matrimónio, acentuara a fragilidade da sua organização sentimental, abalada já por rupturas dolorosas, decepções nostálgicas, crises de apatia. Com a partida de Pedro, pareceu recuperar, ao lado de Brites, alguma estabilidade, mas depressa se tornou patente, aos olhos de todos, que Constança não ia bem. Sentia-se incomodada, comia mal e sem regras, mostrava-se incapaz de dormir a horas certas, abandonava os lavores que antes a entretinham. Tinha sonhos desconcertantes e pavorosos. Um dia, por exemplo, sonhou que uma caixa com uma tampa de fechar era o berço do seu filho. Acordou alagada de suor, aflita, aos gritos, sem saber de quê, cheia de presságios funestos e com medo ao demo.

A ausência de Pedro era-lhe, afinal, muito mais difícil de suportar do que a princípio pensara e a criança valia pouco ao pé do desejo obstinado e louco que sentia por Pedro. Abanava de desespero a cabeça, quando se dava conta que Pedro não estava ao seu lado, mas não se atrevia a chamá-lo, a não ser para curtas visitas de cortesia. Tinha medo de si própria e do desatino enciumado que semanas antes vivera com ele. Ainda assim, os pavores continuavam. O seu principal receio era de que na sua ausência, ele se encontrasse com Inês, às escondidas. Requeria, por isso, a todo o momento, a presença de Inês junto de si, num relacionamento obsessivo, que era insuspeito, ainda que mal compreendido pelas outras donzelas.

—Inês, minha Inês, vem-me ler um romance. Traz os teus bordados para a minha beira, solta o cabelo, não me deixes, menina.

Tratava-a por tu, numa intimidade solta e plebeia, que lhe sabia bem e que vinha dos tempos em que Inês era uma menina simplória de 14 anos, acabada de chegar do retiro provinciano de Albuquerque, e Constança uma grande dama da corte, filha do primeiro casamento de João Manuel, com dez cartuchos de Primaveras a mais do que ela. Inês era modesta e muito mais reservada.

—Senhora, dai-me um momento e chego já com os meus aprestos.

Enclausurava-se então com Inês longos períodos, apenas para ter a certeza de que o marido não se encontrava com ela. Apenas? Sim e não. Mesmo deixando de lado a triangulação sexual com Pedro, que comprovadamente existiu, havia da parte de Constança um encantamento sincero e carinhoso por Inês; a aia, com a sua solicitude e munificência, teve sempre um efeito terapêutico junto dela. Por isso, a escolheu para vir consigo para Lisboa e lhe deu também uma confiança que mais ninguém recebeu da sua parte, nem mesmo o pai.

A criança nasceu nos primeiros dias de Outubro de 1343. O parto foi trabalhoso e longo; Constança saiu dele exausta, mas aliviada, com um menino engelhado nos braços. Foi para todos um momento curto de alegria. Pedro estava de visita a Alenquer e acompanhou o nascimento da criança; Brites não desamparou o esforço de Constança. De Viseu mandaram mantas de lã e Constança esqueceu momentaneamente os presságios mais negros desse Verão. Acabaram de bordar as últimas camisinhas do enxoval e combinaram com Lisboa o baptizado da criança para o S. Martinho. Brites, dada a intimidade das duas, propôs como madrinha Inês; Afonso, por seu lado, sempre astuto, deu o nome de Diogo Lopes Pacheco para padrinho.

Já vi dito que o compadrio de Inês e Constança foi cozinhado na corte portuguesa para afastar Inês de Pedro, mas isso, na minha aproximação a estas figuras, não tem razão de ser. Brites, que tinha ainda parentesco chegado com ela, pois era meia-irmã da avô de Inês, Violante Ucero de Castro, mãe de seu pai, filhas ambas de Sancho IV de Castela, pensava que a menina era a donzela preferida de Constança. Vira-as juntas muitas vezes e sabia que só ela conseguia sossegar algumas das piores crises da nora. As relações de Pedro com Inês são, nesta altura, irrelevantes do ponto de vista da decência pública; são tão modestas que ninguém, fora do triângulo amoroso, com excepção de Teresa, deu ainda por elas. Os rumores que correram entre as aias no fim do Outono de 1341 haviam passado por inconsequentes e o mesmo acontecera ao burburinho que se levantara, na mesma roda, depois da gravidez de Constança. O cuidado de Teresa, o afastamento de Pedro, o recato em geral irrepreensível de Inês, a confiança de Constança, atestavam a falsidade desses sussuros, que, de resto, cresciam, às vezes, pelos mais desvairados motivos, a propósito doutras meninas. Era uma maneira picante e inofensiva de passar o tempo. Antes das declarações malévolas de Constança, nunca uma suspeita séria caiu sobre Inês.

No dia do baptizado, Inês usava uma blusa de cambraia bordada com flores de lã fina e tingida de azul. Apanhara o cabelo ruivo com um pequeno chapéu escuro de borla, que se encarrapitava no alto da cabeça, e onde estava bordada uma rosa de lã encarnada. Sobre a blusa branca de cambraia, descaída nos ombros, presa por uma fivela de prata, levava uma capa larga de pano azul. Andou quase sempre ao colo com o menino, a quem foi dado o nome de Luís, acompanhada por Teresa, enquanto Constança saltava dos sogros para as amigas, sempre com Pedro ao lado. Parecia estar descontraída nos pequenos festejos do castelo e foi mesmo ela que propôs, a meio da tarde, em pequenos grupos, um passeio ao campo. Estava um Sol de Verão, quente e saboroso, que continuou por mais alguns dias. Com o aproximar do fim do mês, o tempo fechou-se, desabaram fortes chuvadas, seguidas de assustadoras trovoadas. Constança inquietou-se; havia uma electricidade preocupante no ar, que descarregava, de vez em quando, em violentos puxões, que faziam tremer céu e terra.

Um acontecimento inesperado veio abalar mais a sua fraca serenidade. A 24 de Novembro, numa dessas noites pavorosas em que o céu se fracturava até às suas mais secretas entranhas, Constança levantou-se assustada e dirigiu-se à salinha contígua, onde o menino chorava. Pedro seguiu-a. A janela, mal fechada, abrira-se com as rabanadas do vento. Constança parou estarrecida, com as portadas a bater e as cortinas de linho branco a adejarem doidamente no vento. Sobressaltou-se.

—Pedro, não ponhas dúvida, anda por aqui lesma má.

Jurou ver um corvo negro, pêlo brilhante e húmido, olhos manhosos, a crocitar no parapeito de pedra. Levou apavorada os dedos à boca e precipitou-se para o lugar. Deu conta que apenas o pano esvoaçava e algumas bátegas de água escorriam. Fechou cuidadosamente a janela e acalmou ao peito a inquietação de Luís.

O seu nervoso acentuou-se depois disso. Ostentava uma preocupação doentia e presságios funestos. Falava do demo a propósito da mais pequena contrariedade; mostrava uma preocupação excessiva com o menino, como se o quisesse proteger dalgum mal desconhecido e invisível. Dava ordens severas às criadas de dentro e tomava como ofensa qualquer descuido ligeiro com a limpeza e os cheiros. Dispensou as aias e passou a rezar o terço todos os dias com os frades do convento. Dez dia depois, nos primeiros dias de Dezembro, quando a roda das meninas começava a pensar com excitação na consoada, deu com o menino inquieto na cama, os bracitos encolhidos, os lábios secos, entreabertos, incapaz de mexer o pescoço. Mandou imediatamente vir um cirurgião, que diagnosticou prisão das meninges. À noite, o menino morria, com dois meses de idade, no meio das lamentações  das aias incrédulas. Fecharam-no depois numa pequena arca de prata, que ficou no coro principal da igreja do mosteiro de São Francisco de Alenquer, a seis léguas de Lisboa. Lá está ainda, mas dentro da urna de prata, setecentos anos depois, o que deve restar dele são dois montículos de pó, quase invisíveis, que pertencem mais ao outro mundo do que a este. Também tu, Luisinho, mesmo sem ossos, fazes parte deste conto e passaste por este mundo só para dares as mãos a Inês e a Pedro, um privilégio que te invejo e valeu bem a tua curta vida.

Com a morte do filhinho, Constança sofreu um colapso grave dos nervos. Os primeiros dias não comeu e não se levantou da cama; foi Brites que acompanhou aquele vale de lágrimas e lhe deu algum ânimo, falando-lhe da sua experiência.

—Perdi três meninos e uma menina em situação igual à tua — relativizava ela resignadamente, sem aspereza nem sofrimento. — Não embargues a tua condição com um novo desastre. Guarece asinha, Constança.

A princesa aceitava as palavras da sogra e sorria de leve, a custo. Quando se levantou, estava muito fraca e precisou de voltar à cama, bebendo caldos, para se fortalecer. Finalmente, quando se pôde erguer de vez, parecia muito mais velha e amarfanhada. Tinha 30 anos, mas tinha a pele do rosto lavrada por quase duas décadas de lágrimas e soledades. Regressou à companhia dos frades e, de vez em quando, voltava a cair em crises de choro, refugiando-se sozinha no quarto, onde se entregava a uma melancolia mórbida e disparatada. Martirizava-se em pequenos gestos, como dormir vestida na cama. Estava maníaca e obcecada. Raramente saía e passou a cobrir o rosto com um véu preto de tule, que nunca tirava, a não ser para se deitar. As obrigações religiosas, que continuava a cumprir escrupulosamente, davam-lhe um mínimo de disciplina aos dias. As aias procuravam distraí-la, com jogos e contos; ela aceitava em silêncio esses pequenos favores, mas sem uma palavra de agradecimento.

Pedro, por seu lado, procurou atenuar-lhe o sofrimento. Voltou a instalar-se em Alenquer, perdoou-lhe os caprichos anteriores, que estavam esquecidos, e era perseverante com ela. Constança, a seu lado, mostrava-se piegas, chorona, mas agradecida. A sua companhia dava-lhe segurança e protecção; era o seu único momento de consolo. Sorria, quando o via chegar aos seus aposentos. Gostava então de se recostar com ele, tirar-lhe da casa os botões de madeira da camisa, passar-lhe as mãos pelos tufos doirados do peito ao léu. Umas vezes, encostava a face nesse escudo rijo de carne e adormecia, serena e confiante, dos seus grandes cansaços ancestrais; outras, mordiscava-lhe levemente a ponta escura do seio e passava-lhe depois a língua molhada pelos lábios. Punha nisso a lentidão e a gravidade com que em tempos aprendera a dançar a pavana. Lá fora corria a quietude mansa da tarde provinciana, com as árvores a estremecerem no vento e os pios misteriosos dos pássaros. Faziam amor, um amor demorado e lento, que os enlouquecia aos poucos, em silêncio, como uma peçonha doce que lhes entrava lentamente no sangue, mas não voltaram a encontrar as convulsões frenéticas e os êxtases velozes, agudos, prolongados do ano de 1342. Constança, no fim de Fevereiro de 1344, voltou a aparecer grávida e todos se mostraram satisfeitos com a notícia, que voltava a repor a vida na roda da normalidade.

Inês sofeu-lhe neste período várias severidades e algumas violências. A princípio, no seu período de reclusão, desinteressou-se dela; havia ocupado o pensamento com a visão ideal do filho desaparecido e nem se lembrava da relação da aia com o marido. Chegava-lhe para tormento e sevícia a morte do filho. Depois, quando se levantou, e à medida que a foi encarando no dia a dia, a sua presença fez-se-lhe um espinho insuportável, que a picava secretamente, momento a momento. Começou por temer os encontros entre a aia e o marido; moveu, por isso, uma perseguição implacável aos dois, que teve como conclusão a incoerência das suas suspeitas. Depois, como isso não chegava para agravar a aia, alimentou a mania de que Inês tinha culpas na morte do filho.

Um dia, nas primícias da Primavera de 1344, Inês enfeitou o quarto de Constança com um ramo de flores do jardim, que começava nessa altura a soltar-se viçoso. Constança mostrou-se tão ofendida, que partiu as jarras do quarto contra o peitoril de pedra da janela grande, lancetando as mãos no vidrado e sujando o chão de sangue.

—A culpa é tua, Inês, que me tiras o sossego e a folgada paz.

Inês nem se atreveu a responder. Está sem tino, a pobre, pensou ela, depois de ouvir as censuras de Constança. Limpou os cacos, lavou o sangue e amargou a chorar no quarto algumas horas. Acontecimentos destes sucediam-se com alguma frequência.

Em finais de Abril, manietada pelos seus próprios fantasmas, incapaz duma gota de alívio no meio do seu tormento e do seu desvario, julgando Inês já desnecessária e Pedro preso, Constança presta a primeira declaração pública contra Inês. Manda chamar Diogo Lopes Pacheco a Alenquer, fecha-se com ele numa sala nua do convento de São Francisco, longe de tudo e de todos.

—Senhor, venho declarar-vos a infidelidade conjugal do princípe com Inês de Castro, minha dama de companhia.

A revelação caíu como chumbo a arder em cima de Diogo Lopes, que ficou uns momentos calado, a pensar. Identificava Inês no meio do grupo das meninas, sabia do seu parentesco com Brites, das relações da sua família com Afonso Sanches e João Afonso, mas nunca lhe havia dado importância especial. Lembrava-a recolhida e acanhada, como qualquer bastarda. Julgava-a íntima e muito próxima de Constança. Estranhou, sem se manifestar. Era um homem frio e sisudo, este Pacheco, que tinha por hábito pôr as barbas de molho. Salvou, assim, o coiro de todas as tempestades do século e morreu sossegadamente na casa dos noventa, deitando contas à vida e ao país. Estavam no primeiro piso do edifício; viam-se as nuvens brancas e luminosas acumuladas e sobrepostas no horizonte.

—Senhora, espero ouvir-vos as razões que assistem a tal declaração.

Constança desfiou então uma intriga negra e despropositada. Inventava, mentia, traía descaradamente Pedro, que nada sabia destas tramas, ocultava o seu próprio desejo sensual por Inês, mas sentia-se maravilhosamente aliviada de toda aquela pressão que, dias ou semanas antes, a rebentava por dentro. Pacheco, prudente e sério, ouvia-a, sem a interromper, sem nada lhe perguntar. Preparara-se, quando fora chamado nessa manhã, para uma pequena crise de choro, a propósito ainda da morte do filho, de quem ele era padrinho. Vinha armado de paciência, não de astúcia. Fora, por isso, apanhado de surpresa pelas revelações da princesa, que não esperava.

Quando regressou no outro dia a Lisboa, lembrando-se da gravidez de Constança, não sabia muito bem o crédito que devia emprestar às suas acusações. Falou imediatamente com o rei a sós, que teve um trejeito de surpresa e desagrado. Vieram depois os dois a saber, por outras portas, dos rodeios que haviam corrido, no círculo fechado de Alenquer, sobre Inês e Pedro.

Constança, por seu turno, preparou-se para raspar mais aparas para a fogueira e comprou declarações, comprometeu acusações, escreveu ao pai, implicou a política na questão. Pobre e soledosa infanta, que pensavas estar a construir heroicamente o teu sossego e estavas afinal a cavar a tua sepultura. Julgavas Inês um incómodo, quando era ela que te dava o sangue ao rosto e a cor aos olhos. Não durarias mais dum ano e nesse Verão de 1344 a terra começava a abrir-se para te receber. Compreendo melhor o teu desejo sáfico por Inês que a tua ânsia desbragada de mexericos e esconjuros. Eras mais saudável a morderes lubricamente os lábios carnudos e castos de Inês, ou a chupares, deliciada e fina, o biquinho rosado e mimoso do seio que ela involutariamente destapava quando se deitava ao pé de ti, que a acusares a tua aia de molusco e meretriz, pedindo para ela sanções, rigores, severidades.

Inês afigurou-se um caso menor ao rei. Afonso era duro, mas não era insensível, e muito menos tolo. Percebeu bem que essa menina calada que lhe aparecera na boda para lhe beijar a mão e lhe falar da filha, rainha de Castela, com quem se encontrara em Albuquerque, não punha em perigo a continuidade do casamento de Constança.

Ainda assim, mostrou-se preocupado com a intervenção de João Manuel, peça grossa, e com certas maquinações políticas adiantadas por Constança. Corria que o papel de Inês era instigar Pedro a apresentar-se à sucessão do trono de Castela, já que era, pela mãe, neto de Sancho IV. Não era a barregã colorida e sensual, disposta a distribuir os seus favores, que preocupava Afonso, mas a intriguista política, ou a ambiciosa sem escrúpulos, que em Inês se disfarçasse. A situação de Castela, fracturada entre as pretensões de Leonor de Gusmão e as da filha, mãe do herdeiro, deixava prever embates e sedições futuras e mostrava-se desde já propícia a uma política de espionagem e de alianças secretas. Albuquerque, na fronteira portuguesa, casa de João Afonso, seu sobrinho, era a sede dum dos partidos em confronto, o de Maria, sua filha, e seu herdeiro, Pedro de Castela. A aliança da sua filha com o seu sobrinho, filho dum meio-irmão com quem sempre se desentendera, caíra-lhe mal e deixara-o na disposição de manter uma neutralidade pouco transigente. Não tinha uma ideia certa sobre o papel de Inês no conflito civil castelhano, mas ainda assim, para satisfazer a casa de Manuel e não pensar mais no assunto, decidiu mandá-la para o exílio.

Inês foi informada da decisão do rei e teve três dias para deixar Portugal. Pedro viveu com um estremeção de fúria as intrigas da mulher e a decisão do pai. Fora apanhado de surpresa por toda essa vasta rede de conspirações e viu-se impotente para lhe dar uma resposta satisfatória. Pensou numa rebelião contra o pai, mas o herói do Salado mostrava as rédeas do poder bem presas na mão. Como último recurso, chegou a idealizar um rapto de Inês, mas foi ela própria que se opôs ao plano, intimidada pelos desacatos que daí resultariam e pelas perseguições que o rei e a infanta lhe poderiam vir a mover, a si e ao infante. Aceitou mansamente a decisão de se afastar e sentiu nesse instante o seu destino mais preso do que nunca a Pedro. Era já dele, sem nunca o ter beijado. Mandou-lhe, por Teresa, o vestido de brocado azul, com guarnições em relevo, de fio de oiro, que usara na boda de Constança, em Lisboa, e os brincos de prata, que usava no dia em que pela primeira vez lhe dirigira a palavra, em Alenquer. Foi um presente solene, que Pedro recebeu a chorar e se tornou para ele uma relíquia, ao lado do cofrezinho de castanheiro, onde estavam os três cabelos mágicos que, um dia, uma pomba branca lhe trouxera das ondas do mar. Procurou-o depois só para lhe dar duas palavras rápidas de despedida.

—Lembrais o que tantas vezes me dissestes — perguntou-lhe inofensivamente Inês. — Também eu vos prezo mais que à minha vida e vos acho o bem do meu coração e da minha vida. É pelo vosso sossego e pela vossa paz que parto, levando-vos assim comigo.

Estávamos em Maio, viam-se nos campos as primeiras paveias de mato roçado e, de madrugada, as andorinha vinham rasar velozmente o chão, aos guinchos estridentes. Inês partiu, quase em segredo, acompanhada por Teresa, no meio duma coluna militar, liderada por Diogo Lopes Pacheco, que a deixou na fronteira de Portalegre, onde dois cavaleiros de João Afonso a esperavam, para a conduzirem a Albuquerque. Todos perceberam que a partida de Inês se devia mais à difamação de Constança que ao perigo político. Afonso teve informações seguras de que os Castros se mantinham firmemente ao lado de João Afonso, apoiando por isso tacitamente o partido do herdeiro e de Maria de Portugal contra o rei e os bastardos. Não era crível, de jeito nenhum, a existência dum terceiro partido, liderado pelo infante português e apoiado pelos Castros. Enterrou o assunto, que lhe merecia, afinal, pouco ou nenhum interesse e retornou aos triunfos do Salado e ao entretenimento da filha mais nova, Leonor, então com 15 anos.

Quando Pedro se viu sozinho em Alenquer pôs-se aos gritos com Constança. Ela sofreu-lhe a medo as tempestades e procurou a roda das aias, para se refugiar lá bem no meio, à espera que passasse o tornado. Pedro, raivoso e sedento de sangue, planeou deixar Alenquer. Estava furioso e gago, incapaz de solicitude e deferência, pronto a morder e a estraçalhar com os dedos finos mas rijos e compridos. Mal sabia ele, pobre Pedro, que esse exílio não passava ainda dum gracejo manso ao pé daquilo que a Fortuna lhe destinava.

Virou costas à mulher, encarou como definitiva a ruptura, e regressou à Atouguia. Quando lá chegou o cavalo negro em que ia rebentou e ficou estatelado ao pé do touril, de patas abertas. Foi para o paço, onde se retirou e deu começo àquele período que António Ferreira no seu poema chama “Castro na boca, Castro n’ alma, Castro/ Em toda a parte tem ante si presente”. Multiplicou ao desbarato aquele estado que vivera no Verão de 1343, quando o seu primeiro filho estava para nascer e acalmou assim a nuvem de ira que trazia. Voltou à supremacia do facto recordado sobre o facto vivido, que foi de resto a superior originalidade do seu destino e temperamento, pelo qual ainda hoje o recordamos como um modelo ou um arquétipo, sobre o qual sobra sempre que dizer.

É pela força da memória que Pedro se notabilizou; Fernão Lopes que me desculpe, mas a sua actividade favorita não era nem montear, nem bailar, nem fazer justiça, mas recordar. No montear cevou ele tão-só as penas que chorou quando era menino e na obstinação da justiça compensou o desvairo que foi a morte de Inês. Chamaram-lhe o cru, o sem disfarce, o justiceiro, mas o que lhe deviam ter chamado era o grande rememorador. Que memória a tua, Pedro, para coroares Inês tantos anos depois de morta. Rebobinaste com a memória o tempo e voltaste ao passado, de modo a alterar o presente. És um exemplo humano. Como não, se nem o Marcel Proust soube assim descobrir e recuperar o tempo perdido?

Constança, de início, não deu excessiva importância à sua ausência. Pensava que ele precisava dum momento de expansão e que ela própria se precisava de habituar à falta de Inês. Punha esperanças imediatas no futuro próximo, mas depressa se desiludiu. Pedro não mais apareceu, nem se interessou em saber notícias dela. Chegou a correr a notícia, que ele se ausentara, no interim, para visitar Inês, em Albuquerque. Ela, por sua parte, começou a acalentar remorsos da atitude que tivera para com a aia e a sentir a falta dela. A ausência de Inês  era-lhe afinal tão insuportável como a de Pedro. Percebeu bem, nesse arrastado momento de espera, aquilo que, afinal, sempre soubera, que o seu destino estava ligado aos dois e que afastar um era expulsar o outro. É por isso, Constança, que tu és muito mais sensata a roçares, às escondidas, os teus lábios sedosos nos de Inês que a tramares o seu exílio. Foi-te para sempre fatal o momento em que o esqueceste.

O resto do ano decorreu-lhe assim baço, triste, remordido. Em finais de Novembro, nasceu-lhe uma menina, que se chamou Maria, o nome da irmã de Pedro. Ainda assim, este não apareceu, bravio e picado que andava com o pai e a esposa. Era uma menina que se parecia nos olhos e no queixo com a mãe. Tinha dois sinais no pescoço, que foram interpretados como sinal de longevidade. Constança recordou então, com desusada vivacidade, tudo o que lhe acontecera, em Alenquer, com Luís. A morte do filho voltou a assombrá-la; teve medo de viver com a menina o mesmo passo. Quis fugir da vila como dum presságio funesto. Os sogros puseram-lhe à disposição Santarém,  que ficava umas seis léguas a norte, arejada de ares e ao pé do Tejo. Mudou-se sem custo com as aias e gostou da velha cidade acastelada, batida pelos ventos, no alto duma penha, diante do Tejo e da lezíria, que lhe lembrou Múrcia e o Guadalquivir. Assim como assim, continuava inquieta e nervosa. Sentia-se próxima de Alenquer, onde estava a urna pequena que continha os ossos do filho e isso enfraquecia-a. Tinha pesadelos nocturnos, suores frios, receios infundados.

Sugeriram-lhe então que se mudasse para Viseu, que o sogro lhe dera, pelo casamento, como arra. A cidade, austera e recolhida no meio de penedias, agradou-lhe.

—Ah, de verdade, que gostilho — exclamou ela, quando a avistou, encavalitada e escura, depois duma viagem penosa e longa, aos solavancos, dentro duma liteira coberta, de varais compridos.

Gostava das cidades escondidas e pedregosas. Instalou-se num edifício românico, ao pé dos velhos claustros da Sé. A menina pareceu acomodar-se ao clima; puxava com sofreguidão o leite da mama e ganhou peso e cor. Pela primeira vez, desde que estava em Portugal, Constança Manuel pôde assistir, deslumbrada e quase entusiasmada, numa noite de finais de Dezembro, a um pesado nevão branco. Foi talvez o seu último momento de verdadeira alegria; depois disso apagou-se quase sem uma surpresa.

Não vira nevar, desde Valodolide. Sentia a tristeza dos Invernos portugueses, húmidos, atlânticos, pegajosos, e a nostalgia dos grandes e exaltantes Invernos continentais, secos, brancos, gelados. Esperou acordada pela madrugada e abriu então a porta do átrio, para onde saiu, agasalhada numa larga manta de lã escura. As lajes do pátio estavam cobertas de neve e o rebordo das janelas coberto de branco. Sobre cada folha havia cristais de neve e Constança sentia debaixo dos seus tamancos de madeira a neve fofa e mal acamada. Apeteceu-lhe dançar e chamou as aias, batendo palmas e dando gritinhos de satisfação. Vieram para baixo, ensonadas e indemnizadas com a alegria da dona.

No fim da manhã, quando se sentou na banqueta da janela da sua câmara, Constança voltou a lembrar-se de Pedro. Sentiu-lhe como um espinho, que a pressionava até às lágrimas, a falta de tantos meses e a indiferença preocupante diante da filha. Logo de seguida, não pôde deixar de pensar em Inês. Aquilo que lhe veio ao espírito foram as espáduas finas, direitas, desenhadas com uma graça nunca vista, capazes de pegarem fogo ao mundo, e as coxas brancas e aveludadas, lindas como opala, que ela tantas vezes vira e ajudara a destapar, para melhor as admirar, em carícias serenas e leves, com a polpa dos dedos, quando Inês se deitava a seu lado e puxava as saias para se aconchegar.

Decidiu escrever ao sogro, queixando-se do desacerto de Pedro. O pretexto era a filha, mas a solidão era a dela. Afonso interveio e mandou Diogo Lopes à Atouguia chamar à razão o filho. Ele queixou-se das aleivosias que obrigaram Inês a passar por cróia e a partir injustamente para o exílio. Não deu sinais de atender às razões do pai e recusou-se ir a Lisboa falar com ele. Estava fechado e cismático. Nem os pedidos sequentes da mãe o moveram.

O pai, molestado pela irreverência, partiu para a Atouguia. Teve consciência da fragilidade da sua posição, mas mesmo assim não desistiu da viagem. Os campos estavam gelados e nus; magros rebanhos ratavam, de quando em quando, um pasto verde, mas raso. Perto da Lourinhã, sentiu pela primeira vez o cheiro da maresia; os homens ganhavam aí, às dunas, areias claras para a agricultura, que estrumavam com bosta e algas. Os casais fizeram-se mais raros e dispersos, porque a água doce faltava e era difícil abrir um poço nesses areeiros alagados outrora pelo mar. Falou com o filho sem hesitações. Estava incomodado com a situação, mas à vontade para lhe pedir satisfações. Falava mais o rei que o pai, para quem aquele filho era um incómodo desnecessário.

—Que querem? Já apartaram Inês e ainda me querem apartar donde vivo — perguntou grossamente Pedro, com a sua perdigueira preferida ao lado.

O pai insistiu.

—Vejo que não foste ainda a Viseu. A tua esposa amamenta uma menina e tu estás aqui aposentado e quieto.

Estavam ambos num dos terraços do paço da Atouguia. Avistavam-se, da varanda, clareiras de terra e pequenos pinheiros mansos, retorcidos pelo vento e pelo sal. Pedro sentiu ganas de pedir explicações fundas ao pai, de se envolver com ele em argumentos e palavras; sentia dentro de si, espiralando o corpo, o dragão terrível da ira, pronto a explodir e a esbofetear com a cauda. Não via o pai desde que Inês saíra de Portugal e achou-o um desconhecido, que o aborrecia com a sua consciência do dever e da infâmia. Quase não o olhou de frente. Julgou, porém, desnecessário e imprudente medir-se ali com ele. As coisas haviam-se resolvido a seu contento, a vida dera-lhe afinal mais do que ele pedira, e compreendeu que continuar a descurar os deveres lhe podia ser um ponto desfavorável.

—Lá irei a Viseu, descansai — aquiesceu lacónico.

Constança, daí a dias, quando o viu chegar ao castelo pardo da cidade, rejubilou. Pedro beijou a filha, em quem viu a mãe, mas mostrou-se muito formal. Instalou-se num aposento distante e passou a sair todas as manhãs com os seus moços de aves e cães, para com eles bater montes e serras à volta da cidade. Só regressava ao fim do dia, exausto e satisfeito com a vianda que trazia. Constança foi ter com ele uma noite e meteu-se no seu leito. Ardia um brandão, com uma luz doce e triunfal, no fundo do quarto, mas Pedro apagou-o. Constança estava tímida e chorosa; queria-o beijar e pedir-lhe histericamente desculpa.

Pedro mostrou-se, de entrada, frio e escandalizado com a vinda dela, mas depois, à medida que foi vendo o seu desconsolo e desespero, deixou-se beijar e tocar pelas suas mãos. Eram mãos hábeis, leves, esguias, habituadas desde criança a dedilhar as cordas da harpa e do bandolim. Fizeram um amor rápido, sem se verem, semi-vestidos, e adormeceram depois de mãos dadas no escuro. Constança soluçava ainda, a espaços, do choro histérico com que lhe pedira, lavada em lágrimas, desculpa. No outro dia, Pedro regressou à Atouguia e Constança teve a certeza de que nunca mais o veria. Apareceu grávida no fim do mês de Fevereiro e passou a Primavera em Viseu.

No fim do Verão, com o adiantado da gravidez e a ausência de Pedro, Constança quis regressar a Alenquer, para se aproximar do esposo. A viagem correu mal, vomitou, sentiu perturbações no feto. Aconselharam-na a ficar em Santarém, à espera da criança. Estávamos nos primeiros dias de Outubro e tudo a enjoava. A criança veio a nascer com dificuldades no fim do mês. Era um menino, loiro e rosado, a quem ela teve a pertinácia de querer chamar Fernando, nome do bisavô paterno. Tornou-se, assim, o primeiro Fernando da nossa História. Também ele pertence, de ricochete, ao conto de Inês e Pedro; chamaram-lhe o formoso e o seu primeiro cronista, Fernão Lopes, diz que ele era, de seu natural, muito belo e atraente. Ora a formosura que tinhas, Fernando, era aquela que a lembrança de Inês reflectia nos olhos da tua mãe à hora do seu encontro com Pedro e depois no momento do teu parto.

Alguns dias depois, a 13 de Novembro de 1345, Constança morria. Diz-se que morreu em consequência da dificuldade do parto. Eu acho que não; o que a matou foi a solidão e a ausência de Inês, nada mais, que o aposentamente de Inês pesava-lhe mais do que o de Pedro. Ainda hoje, ó rainha insatisfeita, te revolves na tua urna de pedra,  à espera da tua aia. Primeiro, deixaram-te no antigo convento de São Francisco de Santarém, mandado construir por Sancho II; depois, pasme-se com o escândalo, quando o mosteiro passou a quartel e a igreja a palheiro, trasladaram-te para o museu do Carmo, em Lisboa. Quando visitei a tua arca, lá te senti às voltas no leito da tua eternidade; deixaram-te sozinha, tu que morreste de remorsos por teres afastado Inês de ti. A tua aia deu-te tudo, incluindo o esposo; que gerenosidade fantástica a dela. Calhando, o teu poeta, o do comércio íntimo dos oaristos, Eugénio de Castro, tinha razão; se os visses hoje a ambos, pedias um beijo lúbrico ao teu esposo, tão pendurado como o primeiro, para depois o dares, ainda mais apaixonado e ardente, à tua querida aia.


O MODELO


A morte de Constança foi recebida com desalento. A principal preocupação recaiu sobre o recém-nado, que estava em Santarém e era o herdeiro. Uma mulher de cabelos negros, que tivera tempos antes uma menina, dava-lhe de mamar. Depois das exéquias, Brites veio propositadamente pôr termo aos lamentos, reorganizar a vida da roda das meninas e acabou, a pedido delas, por ficar. Pedro recebeu a notícia com alguma surpresa e remeteu-se ainda mais ao silêncio. Nenhuma razão existia agora para que aparecesse na corte; sentia-se livre e esquecido. Era viúvo e o tempo passara por ele com rapidez; aos 25 anos casara, enviuvara e dera um herdeiro à coroa. O pai aliviava-se dele e ele agradecia-lhe a distância e a reserva. Aproveitava o aposentamento para montear em volta da Atouguia, bater as ilhas e os areais, em tudo pondo a recordação de Inês.  O seu amor estava preso a um silêncio; não era para ser assumido no vasto salão social, aqui ou ali, mas para ser vivido em solidão, como experiência interior. É, por isso, que a lembrança o satisfaz; ela entra dentro daquele quadro íntimo, que se ganha não pelo dinheiro ou pelo poder, mas pela elevação dos sentimentos e dos pensamentos. O milagre de Pedro foi, numa sociedade demasiado formal, que trocara o sentido da cortesia provençal pelo dever de Estado, ter descoberto a virtude superior do amor.

Não se apressou a trazer Inês para Portugal, mas sabia o seu regresso inevitável. Nenhuma razão justificava agora o seu afastamento; apenas o trabalho da memória de Pedro distendia até ao limite suportável o seu regresso. Por um lado, com a tomada de Algeciras em 1344 por Afonso XI, a política peninsular serenara; por outro, desaparecera a rivalidade de Constança. Em Janeiro de 1346, Pedro avisou a corte que se ausentava para Albuquerque, para trazer de volta Inês, e partiu depois do antigo aio lhe transmitir a quase indiferença do pai diante da decisão.

— Não a quero na corte, mas autorizo sem mais a sua vinda para o paço do infante, na Atouguia — fora a sua deliberação.

Havia nesse momento a certeza, de parte a parte, que o afastamento de Inês se devera apenas a um incidente doméstico, que, pela situação natural das coisas, estava ultrapassado. A relação de Inês e Pedro, por seu lado, amadurecera muito com a visita que Pedro fizera a Albuquerque, no Verão de 1344. A intimidade física dos dois, a familiaridade do trato, a confiança na fortuna e até as características do seu relacionamento futuro nasceram nessa estação, que foi o início duma relação nova, mesmo que isso no caso de Inês e Pedro queira sempre mais significar a superioridade desinteressada da memória que o império solto dos sentidos. E por memória entendo aqui o que no amor é potência fora do trato comum. O que há de extraordinário neste amor só se faria manifesto muitos anos depois, mas já neste momento é preciso ver o relacionamento de Inês e Pedro fora da voluptuosidade dum simples adultério, num enredo de mistério, que está para além do prazer imediatamente consentido.

—Alto aí — oiço o leitor, dizer-me. — Então contas-me tintim por tintim o que se passou com a nevrose de Constança e deixas-me assim na ignorância desse primeiro encontro a sós, no ambiente favorável de Albuquerque, longe dos olhares da princesa e dos espiões do rei, de Inês e Pedro. Que desacertado narrador me saíste.

Continuo a dizer-te, leitor, persevera e encontrarás o oiro sem fezes e sem liga deste amor. Mas, ainda que possas ser injusto para com uma Constança em tudo digna de admiração e piedade, que foi, não esqueças, o primeiro elo de ligação entre Inês e Pedro, tenho de te dar razão, leitor. Preciso voltar atrás, abrir um parêntese e contar-te o passo, que não é de somenos para compreenderes a vasta e completa natureza deste amor.

Ora no Verão de 1344 estava Pedro furioso com o pai e com a esposa, entregando-se ao exílio da Atouguia. Pacificava a ira com a lembrança e espicaçava esta com o desejo. É por isso que a lembrança não reside apenas no passado, mas se projecta no futuro. Um dia partiu para Albuquerque, onde foi recebido por João Afonso e se avistou com a irmã, rainha de Castela, e com o sobrinho, que levava o seu nome e que o pai, Afonso de Portugal, armara cavaleiro no Salado. Inês vivia recolhida no casulo do castelo, indiferente à sorte da política peninsular e das suas intrigas. Retomara a sua reserva e o seu recolhimento no seio das senhoras que a haviam criado. Foi aí que Pedro a encontrou, entre bordados e flores. Estava de novo infantil e despreocupada. Ninguém os espiava; todos se mostravam indiferentes ou tolerantes com aquela atracção, que ali passava ou por banal ou por despercebida.

A princípio mantiveram diálogos mudos, que era outra forma de se apresentarem hieráticos. Inês era capaz de ficar a olhar as mãos de Pedro durante horas, traçando nelas pequenos desenhos com a ponta das unhas; afagava-lhe com ternura os caracóis do cabelo e passava-lhe os dedos pela barba. Chorava silenciosamente e depois o seu rosto inefável abria-se, ainda esmaltado de lágrimas, num sorriso luminoso. Levava o pequeno avental de seda, que usava sempre em casa, aos olhos e limpava-os. Pedro queria beber-lhe as lágrimas, saciar a sede nessa água pura e lustral, que nenhuma nódoa havia manchado. Beijava-lhe as mãos, agradecendo-lhe o silêncio e o sossego daqueles longos momentos.

Um dia procurou-a na sua câmara. Era um desses dias escaldantes do princípio de Setembro, em que não bulia uma folha ou uma asa e os campos enegreciam de tão queimados. Inês estava molemente recostada entre almofadas, sem chapins, sem túnica, sem corpete, sem coifa. Os cabelos soltavam-se-lhe pelos ombros e pelo peito; tinha o colo nu e o corpo apenas coberto por uma fina e indiscreta cassa. Teresa, a sua criada, dobrava blusas, aconchegava vestidos, introduzia nos linhos saquetas de ervas aromáticas, protegendo-os das traças, que se criavam nessa altura do ano nas tulhas do trigo e do centeio. Havia no quarto um cheiro a tomilho e uma vibração lassa e morna.

Inês deixou-se ficar, de olhos semi-cerrados, como que adormecida nos braços da grande calma da tarde. Teresa desculpou-se e saiu. Inês levantou-se então do estrado almofadado onde se recostara para fugir ao calor e deixou-se ficar, de pé, imóvel, contra a luz do dia, que entrava pela janela alta. Pedro viu de novo os cabelos de Inês envolvidos pelas chamas. O seu corpo, através da transparência da cassa, irradiava luz; a  nudez  cegava os olhos e chegava a impressionar o tacto. Pedro ajoelhou-se instintivamente, sem premeditação, porque a beleza esplêndida daquele corpo nada tinha de obsceno ou de calculadamente sedutor. Era simplesmente um corpo que brilhava com um fulgor próprio; um corpo que pertencia a alguém que, sem saber porquê, lhe afagava ternamente os cabelos e lhe desenhava na pele, com irremitentes descargas eléctricas, tatuagens, que pareciam exorcismos poderosos.

—Senhora … brilhais mais do que o Sol nesta sazão dos calores.

Inês surpreendeu-se com uma tirada tão segura. Estava mais habituada aos balbuceios inexpressivos, que aos galanteios de Pedro. Ainda assim, o período da sua socialização com Inês foi o mais seguro e solto da sua fala e vida, aquele em que sua gaguez foi menos visível e o seu equilíbrio mais profundo. Inês sorriu e avançou três ou quatro passos. Pedro reparou no desenho delicado dos seus calcanhares. Era um pormenor insignificante, mas que lhe prendia, sem mais, a atenção. Sentiu o ventre quente colado à sua testa, fechou os olhos e suspirou o hálito perfumado daquele corpo. Inês tocou-lhe na cabeça. Pedro teve um ligeiro estremeção. Vou ficar com os cabelos chamuscados, pensou ele.

—Despe-te — pediu-lhe Inês, com os lábios quase colados à sua face. — Quero ver-te nu e puro, contra a borboleta de luz da tarde.

Pedro sentiu vontade de chorar. Abriu os olhos e teve a impressão que, do lado de fora da janela, árvores cresciam para o céu, estrelas germinavam nas leiras do pomar, grandes transformações geológicas punham a descoberto vulcões há muito extintos. A pobre e limitada humanidade calava-se para dar lugar a uma raça imortal, que repunha o mundo numa gloriosa idade perdida. Despiu-se e Inês pensou que a brancura daquele corpo selvagem a ajudava a ver melhor o mundo. Era um anjo bom e inocente, cheio de silêncio e memória, filho divino da recordação;  abria diante de si as suas grandes asas por castrar, mostrando-se uma caprichosa ave capaz de voar até ao sol da origem. Apeteceu-lhe juntar, na viração morta daquela tarde, a pujança nívea do seu colo com a audácia funda daquelas asas.

—Toca-me — ordenou-lhe.

Nesse instante, um pássaro de plumagem rutilante veio cantar no parapeito da janela. Era um pássaro de oiro, que falava na linguagem de Deus.

Não resmungue de novo o leitor, que eu conto-lhe o que sei. Ademais, parece-me, que assim, deste modo, com a rútila plumagem dum pássaro divino, é que o romance de Inês e Pedro está bem. Que interesse tem uma nota de anatomia ou uma fotografia naturalista ao lado do jogo divino da criação? Falo daquele amor que faz mover o Sol e as outras estrelas, não da influência das cortesãs sobre a imaginação dos homens, ou coisa do género. Pedro ardeu nos braços duma virgem, não duma mulher sabida, madura pela experiência prolongada do gozo. Isto é um conto de amor, não uma sex-shop. O leitor que me compreenda e siga em frente, tanto mais que o miserável corpo de terra e pó que nos foi dado para atravessarmos esta vida também tem a sua secreta luz gloriosa e a sua idade de oiro. O vale de lágrimas em que vivemos também é um largo trato de risos inocentes.

Depois dessa tarde, a intimidade de Inês e Pedro alargou-se muito. Pedro passava as tardes na câmara de Inês e afeiçoou-se-lhe ao corpo, até se ajustar a ele na perfeição. O mesmo se passou com ela, apesar da sexualidade instintiva de Pedro estar há muito faseada e amadurecida e a dela só agora começar a desabrochar timidamente. Inês era um tronco sólido, que demorava a abrir. Não conhecera até aí vida sexual significativa e o desejo de Constança, embora intensamente erótico, não lhe deixou marcas nem desceu suficientemente fundo para lhe abrir as válvulas do desejo. O desejo de Constança vinha de Pedro e, procurando forças em Inês, para ele voltava, de modo a satisfazer-se. Inês deu-se conta desse jogo, deixou-se manobrar por Constança, enquanto esta desejou, mas não foi capaz de se engatar com seriedade nele; continuou a guardar bem dentro de si, mesmo quando Constança lhe mordiscava febrilmente os lábios vermelhos, os sucos do corpo. Pedro precisava de lhe cantar todos os dias uma canção de júbilo, não para lhe adormecer as resistências, mas para lhe despertar os botões do corpo, que estavam ainda demasiado verdes e inflexíveis. Inês, nesse capítulo, era uma criança de colo, que começava apenas a acordar para a luz vermelha da madrugada do mundo.

Era um trabalho lento, mas compensador. Pedro, manejava o seu sexo na delicada orla daquela flor fechada e esperava na sua entrada. Inês sentia-se uma planta a abrir, desejosa de se dar ao beijo daquele colibri colossal, de plumagem colorida e brilhante, que cantava um silêncio sonoro, que a enlouquecia por dentro, obrigando-a a subir e crescer. Era o calor húmido de Pedro a chamar a Primavera nascente de Inês, que ao contacto daquele Sol tropical começava a engrossar os veios e a fazer circular a sua seiva. Fazia-se uma flor capitosa, viva, luxuriante. Começava a palpitar, húmida e sanguínea. Era uma planta suculenta, cheia de polpa e doçura, que nada tinha a ver com a boca larga, de dentes vorazes, de Constança.

Constança era uma flor prematura e andaluza, que havia despertado para a vida do sentimento e do corpo muito cedo. Abriu, com o pensamento, a sua pequena corola, logo no princípio da adolescência, entre Penafiel e Albacete, depois de ler cantigas de amor e ouvir mouriscas lânguidas dedilharem o alaúde, e descobriu, no seu centro, com a ponta macia dos dedos, um estame aveludado e rijo, que se enchia de grãos de pólen; sabia-lhe bem levar discretamente aos lábios a parte mais preciosa desse pólen, misturando-o, com o seu sabor albuminoso, à saliva. Essa refinada flor ibérica que se chamou Constança Manuel fanou logo a seguir ao seu primeiro parto, para murchar de vez dois anos depois. Quando se entregou febricitante a Pedro estava mais que madura e pronta para os embates físicos do amor, corpo a corpo; por isso, o que Pedro viveu com ela foi mais um espectáculo fugaz de pirotecnia que o demorado despertar carnal do amor.

Foste digna de admiração, Constança, pela agilidade dos teus sentimentos, pelo requinte do teu saber, por teres sido o primeiro ente a descobrir a chama animada e extraordinária que a cera de Inês dava, e sobretudo por teres sido a primeira mulher que Pedro conheceu na alcova; sem o teu perfume, sem a tua permissão, sem o teu favor e interesse, a mulher continuaria a ser para Pedro um enigma fechado e impenetrável, essa espécie de virago indefinido, que ele conheceu em criança e que, na adolescência endiabrada da Atouguia, lhe despertava muito menos atracção física e sexual que uma jovem e mansa égua baia, acabada de escovar. Admiro-te, Constança, mas não posso dizer que fosses a semente virgem, o botão fechado e intocado,  que abriu à poderosa luz do Sol de Pedro e se fez depois disso uma luxuriante e macia floresta de mel e suco açucarado. Essa só Inês.

Pedro deixou Albuquerque nos finais de Outubro de 1344, para viver no paço da Atouguia o encontro com o pai e a viagem a Viseu que o leitor já conhece. Feche-se então o parêntese sobre as primeiras intimidades entre Inês e Pedro e retome-se o conto no regresso de Pedro a Albuquerque, depois da morte de Constança.

Chegou à vila estremenha nos princípios de Fevereiro de 1346 e deu com ela na mesma. A vila depois do Salado tornara-se um centro político fervilhante, onde a rainha de Castela e o seu herdeiro estanciavam com regularidade. De pequena e obscura vila interior, sem história nem política, Albuquerque passara a sede engalanada do partido da rainha e do herdeiro. Isso queria dizer, antes de mais, a improvisação duma pequena corte real, onde a rainha recebia a nobreza que lhe prestava vassalagem ou lhe pedia condições. Burgos, dominada pelos espiões do rei e pelas intrigas da família Gusmão, oferecia muito menos condições para o trabalho surdo de arregimentação. Inês, de qualquer modo, apesar da importância que o pai tinha junto de João Afonso, não se vinculava ao processo nem se interessava pelos forasteiros que todos os dias chegavam e partiam da vila. Albuquerque, do seu ponto de vista, era sobretudo um aposento de mulheres, com um jardim retirado e um pátio reservado, quer dizer, pouco mais do que fora antes do Salado. Pedro trouxera alguma coisa nova ao lugar, mas era tão imponderável que o não podia de modo nenhum comparar à densidade residual do restante alarido.

Pedro avistou de novo a irmã e o sobrinho. Mostrava muito pouca curiosidade pelos assuntos internos da política castelhana, o que o seu futuro reinado veio confirmar, mas interessou-se pelo sobrinho, que levava o seu nome. Era um rapaz espigadote, de onze ou doze anos, que mostrava um feitio obstinado e difícil. Levou-o a montear com os homens da casa de João Afonso e fez com ele excursões às vilas fronteiriças de Portugal. O sobrinho amansava ao pé dele e mostrava vontade de o tomar como modelo, seguindo-o e adoptando-lhe as maneiras características. Via nele um homem curtido, de longas barbas aneladas, que não gostava muito de falar e fazia do silêncio o escudo duma serenidade ferozmente individualista, que lhe parecia o estado ideal dum rei.

Com a excepção do tempo que dedicou ao sobrinho, Pedro pouco aparecia na corte política de aldeia em que Albuquerque se transformara nos últimos anos. Deixava de lado as reuniões da nobreza com a rainha, para dedicar o seu tempo a Inês. Teresa passou a habitar apartada e Pedro mudou-se para a sua câmara. Desaparecida Constança, Inês sentia-se mais à vontade para crescer e deixar correr a sua linfa; por sua vez, o Sol de Pedro brilhava sem sombra, ainda mais forte e intenso. Experimentaram os dois uma nova Primavera e avaliaram a anterior como um preliminar irrelevante, um simples traço da madrugada, antes do nascer do Sol, ou um mover brando de pétalas com os primeiros orvalhos, ainda de olhos fechados. Era ali, naqueles dias de Fevereiro e Março, enquanto preparavam tranquilamente o seu regresso a Portugal, que o Sol se levantava e as pétalas se espreguiçavam, abrindo os olhos e despertando húmidas e rejuvenescidas. Era ali, naquelas fragas de ninguém, que eles viviam, deslumbrados e felizes, a sua manhã de amor.

Partiram na primeira quarta-feira de Abril, guardados por dois escudeiros de João Afonso que os deixaram na fronteira portuguesa, donde seguiram viagem sozinhos, acompanhados à distância por alguns homens de mão do infante, que, avisados, o vieram receber à fronteira. Teresa ficava em Albuquerque, esperando a instalação de Inês e juntando-se-lhe depois. Era uma mulher calada, duma família plebeia, sem apelido, que tinha o seu destino ligado ao de Inês desde o berço e que ali ficava sozinha respeitando a lua-de-mel que Inês estava a viver.

A linha que liga Albuquerque à Atouguia é quase recta e passada a Serra de S. Mamede as 30 léguas que vão de Portalegre a Santarém fazem-se quase dum salto tal a compostura do terreno e a facilidade de perspectiva. Atravessaram o Tejo em Almeirim e Inês subiu à igreja de São Francisco, no alto de Santarém, para se recolher, comovida e triste, diante da urna provisória em que amortalharam Constança. Nunca mais a vira desde os dias infelizes da Primavera de 1344, mas tinha consciência que, se não lhe devia o desejo, lhe pedira emprestada o requinte e a educação. Quando a viste amortalhada e fria, também tu, linda Inês, nesse momento a desejaste beijar. Que vontade tão grande sentiste nessa hora de silêncio em abraçares Contança, abanando-a, beijando-a sofregamente, na esperança de que esses teus beijos eléctricos a pudessem acordar por momentos. Agarraste-te, a tremer, à pedra fria do túmulo na esperança de a derreteres. Ficou assim vingada a antiga doidura de Constança por ti e na hora do reencontro, dois anos depois da separação, eras tu que te mostravas de fogo e Constança de frio mármore.

Pedro aguardou-a primeiro na praça do seminário, onde estavam os filhos, Maria e Fernando, mas depois, sério e diferente, também ele foi render o seu preito à mulher que pela primeira vez lhe havia mostrado o que havia de lírio e mistério no corpo duma donzela. Voltavam a estar reunidos os três e, por um momento, Constança voltou a suspirar de felicidade, porque se esta infeliz provou alguma vez a boa fortuna foi quando viu, maravilhada e doida de alegria, o esposo pelos olhos de Inês. Que ventura a dela, quando percebeu que estava casada com uma alma cândida e divina, o derradeiro Tristão da cultura do Ocidente, e não com um javardo das Astúrias ou um javali da Lusitânia. Não lhe tirem nunca, por favor, com dúvidas e rodeios, essa felicidade e deixem-lhe sempre por perto Inês, porque sem ela a presença de Pedro perde força e sentido. Quero-te muito, minha rainha, porque mesmo depois de morta continuas a unir Inês e Pedro.

De Santarém passaram à Lourinhã, a três léguas da Atouguia, onde Pedro tinha antigas e grandes fidelidades. Chegaram à vila ao fim da manhã e passaram o resto do dia a confraternizarem com as amizades de Pedro. O lugar era dominado por uma fortificação alta e dedicava-se, desde que Afonso Henriques entregara o seu senhorio a um cavaleiro francês, ao cultivo da terra. A proximidade da Lourinhã e da Atouguia documenta-se nos monumentos ancestrais de ambas as vilas, a igreja de São Leonardo e a caprichosa matriz da vila da Lourinhã, que lhe serviu também de fortificação militar, pois está erguida num cerro sobranceiro, donde se avista o mar até às Berlengas, e com portada tão alta que os cavaleiros quando iam ouvir missa entravam por ela a cavalo. Se não foram os mesmos canteiros que desbastaram e ergueram os dois monumentos, foram, pelo menos, parentes próximos. A assinatura da pedra é semelhante e a arte de esculpir a mesma. Tudo isso chegou do centro da Europa, das florestas escuras e frias da Borgonha, onde se erguiam Cluny e Dijon, e se derramou por ali, até aos dias de hoje, num milagre de colonização.

Ainda agora, em São Bartolomeu, povoado que já existia no tempo de Pedro, no Moledo e nos Bolhos, nesse caminho que foi outrora a estrada principal entre a Lourinhã e a Atouguia e é hoje um recuado caminho de cabras, acabei de ver os homens e as mulheres desse tempo. Ruços, de cabelo e barba, como palha, olhos tão claros e azuis como um céu gelado de Primavera, pele branca e rosada, mãos gretadas e sujas de terra. Acabaram de construir a matriz da Lourinhã e regressam a casa cansados e poeirentos, para comerem o caldo de repolho e toucinho e beberem folgadamente o palhete claro da região. Não acreditas, leitor? Pensa então no que são sete séculos na imaginação da História? Não dá sequer para alterar a cor duma borboleta, quanto mais a vida dum homem.

No dia seguinte, ao pé do pórtico da igreja, depois de ser recebido pelo homens bons da vila, Pedro encontrou uma velha que, envolvida em panos pretos, fitava o mar. Podia ter chegado de qualquer lugar distante; trazia um bordão com desenhos talhados no cabo, alguns embutidos, e um pequeno saco de trapo escuro, a tiracolo. Pediu esmola. Pedro tinha já nessa altura uma generosidade, que não era apenas liberalidade extravagante, mas sim o fruto dum apurado e natural convívio com os humildes. A generosidade em Pedro era a expressão dum instinto, não dum princípio. Foi talvez a liberalidade da esmola que despertou a atenção da peregrina para Inês, que acompanhava Pedro. Olhou-a despercebidamente com as mãos no rosto semi-tapado e pediu a Pedro para lhe ver a palma das mãos. Não se espante o leitor desta familiaridade duma vadia com um príncipe. Na época em que estamos era assim e não é preciso nenhum esforço especial para imaginar como isso acontecia. Não é Fernão Lopes que diz que este rei, quando chegava num batel de Almada, era recebido pelos cidadãos de Lisboa com danças e trebelhos e se metia logo na dança com eles? E que se levantava a meio da noite e ia bailar para as ruas, à luz de tochas e círios, com as gentes que acorriam?

Pedro estendeu-lhe a palma da mão. A velha viu-lhe cuidadosamente os traços e mostrou-se espantada.

—Há, senhor, na vossa vida um pequeno monte desagregado. Esse pode ser um dos vossos filhos — sussurrou a velha. — Mas, um outro impõe-se como aquele mar domina o seu limite — acrescentou, apontando com a mão estendida o traço esverdeado do mar.

Inês reparou nos pontos brancos que o vento levantava, ao fundo, no verde das águas. Não percebia muito bem os desígnios da velha, nem o que o que ela queria dizer. O mar ficava ainda longe e era um limite infinito, que ela, Inês, vira pela primeira vez, com a surpresa e o medo de quem deparava com o fim do mundo, quando chegara a Lisboa, na companhia de Constança.

—Boa mulher, não entendo o que falas — asseverou-lhe ela, com algum incómodo e curiosidade.

A mulher voltou a levantar a sua asa negra, apontando com a mão o verde impassível daquele mar. Os seus olhos escuros tremeram ligeiramente e a mão manteve-se suspensa no ar.

—Felicidade e infortúnio fazem parte da roda da vida. Depois da terra e do fogo chegam a água e o ar.

A resposta era ainda mais sibilina que a sentença. Inês e Pedro despediram-se e partiram para a Atouguia, onde chegaram pouco depois. Nessa noite, Inês teve um sonho, que lhe pareceu a continuação do enigma da velha. Sonhou que ia atravessar os campos onde havia uma pedra grande, robusta, sólida. Essa mesma pedra inpirava-lhe o sentimento de estar oca, contendo um espaço vazio, onde se albergava uma nova pedra, mais pequena.

Era a primeira vez que estava e dormia na Atouguia. A vila, com a fieira das ilhas na sua frente, pareceu-lhe um porto do fim do mundo. Sentiu medo e deslumbramento, quando acordou de madrugada e se viu com o seu sonho misterioso diante daquele espectáculo de azul-marinho. Mal sabias tu, Inês, que irias viver quase dez anos seguidos nesse lugar, que foram os dez mais felizes que se viveram alguma vez na Terra, e que mal pusesses o pé fora desse espaço mágico o mundo te assassinaria, inconformado decerto com tanta ventura. Uma felicidade como a tua só era possível na fronteira deste mundo com o outro, essa linha litoral da Ibéria chamada Portugal, o país dos portos e do finisterra, mais próximo já do mundo das sombras que do dos vivos.

Depois desse primeiro dia, uma vida de união começou para Inês e Pedro. A corte não se interessava por eles; Afonso estava demasiado ocupado em encontrar casamento a Leonor, a caçula da família, então com 16 ou 17 anos, para pensar no filho. Tudo se encaminhava para um acordo interessante mas trabalhoso com o rei de Aragão, Pedro IV, onze anos mais velho que Leonor. Albuquerque, por seu lado, depois da partida de Teresa, que se juntou a Inês algumas semanas depois, perdeu contacto por completo com o infante. Este não punha qualquer interesse nos problemas da irmã, que partira para Castela quando ele tinha 8 anos. Lembrava-se mal dela e a impressão que tivera ao revê-la nos últimos tempos em Albuquerque foi uma mulher frágil, pouco despachada, capaz de todos os conluios, mesmo os mais disparatados.

Inês e Pedro estavam, assim, sozinhos no mundo, livres de continuarem a viver o despertar que lhes parecia eterno do seu amor. A sombra do ponteiro recusava-se a avançar nas divisões do relógio de sol e cada hora, dia, semana ou mês que passava lhes parecia a ambos uma fracção sempre irrelevante. O Sol brilhava sempre, dia e noite, e o meio-dia, o clímax, o momento em que se fundiriam totalmente um no outro, estava ainda por chegar. E sempre assim  ficaria, já que Inês era uma chama apolínea e portentosa, impossível de consumir, uma cera eterna, que não se esgostava, e está, por isso, ainda hoje, no Museu de Copenhaga, a modelar a sua figura de morta ressuscitada.

Em Novembro de 1347, Leonor casou com Pedro de Aragão. Foi recebida em Barcelona com lutos e festejada com lágrimas. Uma vaga de peste tomava conta da Europa mediterrânica e entrava nesse momento na Península pelo levante. Na Catalunha, havia aldeias inteiras abandonadas e vilas dizimadas. Os mortos não eram sequer enterrados, por medo de contágio, e os objectos pessoais, mesmo de valor, eram abandonados, sem que os herdeiros lhes tocassem. Barcelona chorava os seus mortos e a jovem rainha resistiu apenas dois escassos meses. No princípio do ano, apareceu com manchas brancas nos braços, que se estenderam rapidamente a todo o corpo. Morreu em Fevereiro, por entre gente estranha e alarmada com o horror da mortandade, na localidade de Trevel, a pensar desconexamente na Sé de Lisboa, sem completar sequer os 20 anos.

Pobre menina, que mal conhecias o teu irmão Pedro e a tua cunhada Constança, mas que acrescentas com a tua morte tão absurda uma pequena lágrima portuguesa a este conto, que as muitas gotas de sangue da morte de Inês tornam tão triste e choroso. As Histórias das Espanhas não te devem hoje dedicar mais que duas palavras, se é que não te passam em silêncio, tu que foste por apenas dois meses rainha de Aragão, mas a salgada lágrima que deste à fábula de Inês e Pedro, essa, ainda corre na fonte eterna dos seus amores.

Pouco tempo depois, em Junho, vítima porventura do mesmo mal, morria João Manuel, o pai de Constança, a quem o leitor já conhece. Também ele, o autor do Conde Lucanor, deixa uma herança a este conto, no caso não uma lágrima, a não ser que seja essa lágrima humana que se chamou Constança, mas a pureza da sua prosa, que envolve com uma atmosfera de elevação e requinte a história da filha, em particular a dos seus dolorosos e sublimes anos portugueses, que foram os dos seus amores. Ela que veio desconsolada e fria do Douro para o Tejo, a pensar que deixava para sempre as suas paixões enterradas nas areias fundas e explosivas da Meseta, acabou a rir, à beira-mar, das paixonetas irrisórias da sua adolescência duriense quando as comparou com as tempestades de desejo e ciúme da sua maturidade portuguesa.

Como medida preventiva, os barcos catalães foram proibidos de tocar os portos portugueses, mas, em Fevereiro ou nos primeiros dias de Março, a doença já se havia infiltrado nas rotas comerciais da Andaluzia e do Algarve.

Inês suspeitou duma gravidez em finais de Março de 1348. Reteve, porém, a notícia. Teve a certeza do assunto num dia de Abril, em que Pedro saíra para ver de perdigões para os lados da Serra. À tarde, saiu ao seu encontro, na parte alta da vila. Pedro regressava cedo, sem nada, queixando-se da sazão.

—Espero uma criança — afiançou-lhe sorridente Inês, quando ele, diante dela, tirava a jaleca e desfazia os laços das calças.

Ficaram doidos de alegria, mas sentiram as águas turvas que andavam no horizonte. Não se sentiam seguros no paço da Atouguia, demasiado chegado ao cais de embarque e com um tráfico Atlântico importante, entre os portos do Mediterrâneo e os do Mar do Norte. Com a gravidez de Inês, planearam retirar-se para os arredores da vila e acabaram por escolher um sítio parado, sem bulício, com  três edifícios de pedra, vários poços de água saudável e dois caseiros, que viviam da caça e duma pequena horta com pomar de fruta e que foram deslocados para o paço da Serra, onde Teresa ficou também a viver. Ficava a meio caminho, entre a Atouguia e a Serra d’ el Rei. Mais tarde, quando a grande explosão demográfica dos séculos XVIII e XIX se fez sentir na região, chamaram-lhe Coimbrã, nome que a povoação ainda hoje tem e que evoca a passagem de Inês pelo lugar, então ainda viva na memória das famílias locais.

Esse afastamento involuntário do paço da Atouguia representou para os dois uma nova descoberta. Não era tanto o alívio da peste que os sossegava, mas o encontrarem-se de repente sozinhos no silêncio do mundo, um diante do outro, sem murmúrios de vozes humanas por perto. Era a primeira vez que isso acontecia; em Albuquerque encontravam-se na câmara de Inês, no meio dos ruidosos aposentos do castelo, e na Atouguia viviam paredes meias com um dos mais movimentados portos da costa portuguesa. Experimentaram então uma sensação nunca vivida, a de se encontrarem num mundo absolutamente despovoado, sem vivalma, com excepção dos dois. Puderam então ouvir uma música nova, muito mais poderosa que a anterior, e olhar-se, no meio das árvores e dos bichos, como dois entes primevos postos por Deus no Paraíso, nus e imortais, desconhecendo o tempo e o pecado, o sofrimento e a morte, e a quem era dada a suprema glória de restaurar o primitivo estado da humanidade.

—Nunca te vi assim tão belo e perfeito — sussurava-lhe Inês, enquanto lhe passava a ponta dos dedos pelo rosto, certificando-se da sua realidade e sentindo no ventre um astro quente de sangue a crescer. — Parece que te vejo pela primeira vez.

Pedro partilhava o mesmo espanto. Teve nesse momento a certeza que o laço que o ligava a Inês, isso a que os trovadores chamavam amor, era o que de mais caro a vida lhe podia oferecer. Daria de barato o seu reino, a sua riqueza, até o seu corpo, para poder viver, um momento que fosse, o espírito desse estado glorioso, que era a potenciação dum mistério inefável, que se prendia com a criação do mundo e com forças espirituais invisíveis, resistentes a qualquer socialização ou a qualquer linguagem. Só com o amor essas forças se manifestavam.

Por isso, olhava Inês como se estivesse no centro do universo, com as mãos nessa alavanca que faz mover os astros e as árvores. É para esse estado sublime, leitor, que te peço atenção neste encontro de Inês e Pedro. Aquilo para que normalmente se olha quando se fala de amor são os combates da cama, surpreendentes sim, mas limitados, ao lado daquilo a que me refiro. Habitua-te, leitor, a pensar que para além das excepcionais e nervosas imagens do cio humano, há no amor uma força mágica, milagrosa, redentora, à qual deves aspirar, e sem a qual o amor é só vida erótica ou, mais para baixo ainda, sexualidade animal. Constança foi para Pedro a revelação da vida erótica, quer dizer, a humanização da actividade sexual puramente instintiva que Pedro já conhecia, enquanto que Inês representou a transcenção daquela vida em vida amorosa. Não encontro muitas palavras para te falar, leitor, daquilo que é superior e inefável neste estado, e que não se confunde com a sexualidade instintiva animal ou com o erotismo mental, e já te disse que Inês e Pedro se amaram como duas crianças puras e inocentes no Paraíso, não pondo nesse amor nem hábitos, nem cálculos.

—Sei tudo o que preciso saber. Sei tudo o que há para saber. Sei tudo o que quero saber. Sei tudo — não se contentava Pedro de repetir, quando olhava Inês.

Inês viveu então um período de deslumbramento sem limites, que coincidiu com a estação quente do ano, que é nessa região a mais temperada e saborosa do país. Passava o tempo a sorrir, embevecida e solene; raramente falava; raramente se vestia, mostrando todo o esplendor do seu corpo branco e perfeito, onde, dia a dia, o ventre arredondava e crescia. Dedicava muito tempo a tratar amorosamente dos cavalos e dos cães de Pedro; atravessava os quartos do aposento com tecidos de seda na mão; fazia arranjos florais no jardim; calava os balbuceios de Pedro, pondo-lhe o indicador inocente nos lábios. Outras vezes deitava-se nua no chão e encostava a cabeça de Pedro ao seu ventre, para que ele sentisse a palpitação do feto.

—Sentes o Sol quente que se cria no meu ventre — perguntava-lhe ela, entre a surpresa e a convicção.

Não punha nisso qualquer sedução ou preguiça. Era antes uma criança louçã e despreocupada, que tinha um grande e generoso coração. No tempo de Constança, na roda das meninas de Penafiel ou de Alenquer, as circunstâncias exigiam dela um retraimento, que perdera agora o sentido. Voltava a ser um andrógino sem cálculo, que não se beliscava de mostrar ao mundo toda a virtude da sua beleza, porque o mundo era ela e Pedro e o fruto de ambos. A sua inocência era uma forma de humildade, que o afastamento dos homens acentuava. O rosto oval, os cabelos escorridos, a nobreza do colo, a graça das espáduas, os seios opulentos mas pequenos, o brio da cintura, a elegância do púbis, as coxas redondas e brancas, os pés de prata faziam parte dum conjunto que nada tinha de artificioso ou de sedutor. Eram antes a gravidade da criação em toda a sua pletórica mas secreta sumptuosidade. Ela estava muito mais próxima da pureza da mulher casta do que da obscenidade calculista da concubina. A beleza apurava-se nela em tão alto grau, misturando a perfeição das formas e a discrição mental, que o seu corpo e o seu ser podem ainda hoje passar por exemplo da perfeição humana.

Se houve e há perfeição nas formas humanas é nas tuas, Inês, que ela mais profundamente se manifestou e manifesta. Chamo-te a verdadeira santa da minha devoção portuguesa, porque quando me ajoelho aos pés do teu túmulo não adoro apenas a tua beleza carnal; penso também na tua inocência diante de ti e na candura do teu corpo e no pudor da tua mente diante da criação e dos homens. Tu, Inês, é que és o verdadeiro pecado de Deus. Que é a expulsão do Paraíso ao lado da tua morte? Pouco mais que um castigo irrelevante e quase justo, que pouco me comove. Pelo contrário, a tua morte, Inês, é um estrondo tão forte e aterrador, que ainda hoje me persegue e faz fugir. Essa morte faz de ti a pomba que Deus degolou, num acto de fúria absurda. És a Eva para além da Eva e depois de ti é que Deus se arrependeu de ter criado tão imperfeitamente o mundo. És a primeira lágrima de arrependimento que Deus verteu depois da criação. Esse soluço gigantesco, essa convulsão divina é que faz também do teu conto uma tragédia cósmica, que faz chorar eternamente a fonte dos teus amores. Só tu, Inês, é que podias pôr Deus a chorar.

Em Setembro, a peste infiltrou-se nas cidades comerciais do Ocidente da Península. Lisboa foi atingida pela calamidade e parece que os cães, nos arredores da cidade, no sítio de Arroios, ao pé das hortas, devoravam pedaços de cadáveres humanos. A corte não escapou ao flagelo e o chanceler, Lopo Fernandes Pacheco, íntimo do rei, seu parceiro próximo no Salado, apareceu, sem se conhecer a causa, com escamosas manchas nos braços, que enegreceram como tubérculos escuros. Morreu pouco tempo depois, num isolamento discreto e prudente, enquanto a família real fazia planos de se afastar para Almeirim, logo que passasse o último momento das exéquias. O tráfico marítimo foi proibido de aportar a Lisboa, ou mesmo de entrar a barra e subir o Tejo.

Depois da morte, o corpo do ministro foi protegido com cal, embrulhado num lençol e depositado na Capela de S. Gosme, na Sé de Lisboa, onde ainda hoje se encontra. O túmulo tem aparato social e dignidade artística; na parte lateral vêem-se, em quatro volumosos escudos de pedra, as caldeiras e as serpes, que distinguem o brasão diabólico dos Pachecos. Devia ser gente especiosa esta, para ter assim na heráldica caldeirões de ferro, repletos com serpentes ferozes, de boca aberta, pronta a morder. Por cima, está Lopo Fernandes, de longos cabelos aos caracóis e barba enrolada em estrias até ao peito, envolvido no largo tabardo de pregas, mãos grossas e rijas poisadas no espadeirão, de metro e meio. A mão esquerda assenta no corpo da bainha e a direita encaixa-se no punho da durindana, com os dedos bem cingidos, ferozes e prontos a arrancá-la do estojo. Aos pés, está um cão patudo e feroz, de coleira larga, mostrando que tem dono e satisfação nisso.

Também tu, Lopo Fernandes Pacheco, tinhas dentes de lobo, sedentos de carne e sangue, e mostravas satisfação de seres fiel ao teu rei e dono; imitava-lo em tudo, até no mau hábito de puxares o espadeirão, por tudo e nada. Fizeste com ele a guerra ao pai, ao irmão, ao vizinho, ao mouro e só não a fizeste a uma madalena tão indefesa e merecedora de piedade como Inês, porque a peste de 1348 te levou. Deixaste cá o teu filho, Diogo Lopes Pacheco, que o rei depois da tua morte pôs no teu lugar, e que foi um dos rudes matadores de Inês, apesar de também ter sido, se não o aio querido de Pedro, pelo menos o seu tutor consentido. Com a tua morte, Lopo, começa a desenhar-se o cenário tétrico que levou depois ao sacrifício inútil de Inês. Inútil? Não, que só é inútil o que não tem exemplo.

Inês e Pedro estão nos casais da Atouguia frios ao que se passa entre Lisboa e Almeirim, vivendo aquele estado intemporal de sossego e alegria de que falei, e que é uma desfaçatez feita ao destino por tão contrário lhe ser. O Outono aproximou-os ainda mais um do outro; os caniçais cresceram, os figos mulatos acabaram, as rabanadas de vento puseram-se a soprar do oceano, as folhas amareleceram e giraram nos ares e eles fecharam as portas e as janelas de casa, refugiando-se ainda mais, ao pé das labaredas da lareira, nos braços nus um do outro. Inês sentia aquela criança crescer dentro de si como um sinal de esperança num mundo em convulsão, onde os homens eram dizimados pela peste e as árvores arrasadas pela doença. Pressentia lá longe os homens e as mulheres morrerem de pavor, lacerados de gritos, disformes de dor, e via diante de si, do outro lado da janela, as árvores definharem de melancolia e tosse. Punha então no crescimento do seu fruto uma responsabilidade, que não estava isenta de preocupação e mania. Teresa ocupava-se no paço da Serra do enxoval da criança.

Em Dezembro, na manhã do dia de Natal, quando andava a limpar o braseiro para a consoada, Inês sentiu uma guinada forte, que quase a paralisou, e, pouco tempo depois, começou a soltar, aos soluços, as primeiras águas.

—Ai, que a criança me nasce num dia ledo, mas num repelão — disse ela, quase sem forças para se fazer ouvir.

Pedro partiu desnorteado, a galope, para a Serra, à procura de Teresa, que conhecia alguma coisa do ofício de parteira. Quando chegaram os dois, já Inês dera à luz, suada e lívida, um menino redondo e robusto, com um sinal escuro no pescoço, a quem Teresa cortou, rente ao umbigo, sem dificuldade, o cordão. Fizeram uma pequena festa, enquanto Inês recuperava forças, exausta e aliviada. A luz da tarde entrava na casa, com um ar festivo e ao fim do dia já Inês se recostava no quarto, sorridente, com o menino ao peito, para consoar na companhia de Pedro e Teresa.

Em Janeiro, foram a Alcobaça, que ficava oito léguas a norte, no caminho para Leiria, para baptizar na igreja do mosteiro a criança, a quem desejavam chamar João, que queria dizer o agraciado de Deus. Um tempo ventoso, movediço, e um mar cavado em excesso obrigou-os a uma viagem mais demorada, terrestre, pelos caminhos lamacentos do interior, passando por Óbidos, apesar das boas saídas marítimas de Alcobaça, a poucas horas da Atouguia. Levavam consigo tendeiros e moços de monte e de liteira. Pedro montava uma égua mulata e Inês ia num asno pequeno, vestido num guarda-pó de escarlata, que era a maneira como sempre viajava pelos caminhos terrestres. O menino, para maior segurança, seguia numa cadeirinha portátil, coberta e fechada, conduzida por dois homens. A ideia era, depois do baptizado, ficarem pela região umas semanas, até à Primavera, Inês dando os cuidados à criança e Pedro aproveitando para montear nos ricos e feros coutos  da região.

Alojaram-se no mosteiro cisterciense, que vinha do tempo de Afonso Henriques e tinha uma aura de monumentalidade. Era irmão do de Claraval, na Borgonha, e passava por um dos mais respeitados da Europa. Inês coligou-se bem à vida dos monges, que se centrava na instrução e na hospitalidade, e deixou-se deslumbrar pela grandiosidade do lugar. O mosteiro estava instalado numa região abundantíssima, a do vale do Alcoa e do Baça, e dispunha praticamente de todos os riquíssimos reguengos que iam de Óbidos a Leiria. A sua importância política era enorme e o dom abade do mosteiro tinha assento nas cortes do reino, como se fizesse parte do conselho do rei, usando por inerência o título de esmoler-mor. No reinado de Afonso III, o mosteiro chegou a ser o maior da Europa, com sete dormitórios, que alojavam 900 frades, e cinco claustros. Ainda nesse reinado, tornou-se uma importante escola monacal, a de Santa Maria de Alcobaça, onde se ensinava o trívio, muito antes de Dinis fundar, em 1290, o Estudo Geral de Lisboa. No reinado de Dinis, o abade tinha a obrigação de comprar todos os anos para a livraria do mosteiro, que era pública, 3 mil reais de livros. No século XV, a livraria do mosteiro reunia cerca de 500 códices manuscritos, em que aparecem obras de Orígenes, São Jerónimo, Boécio, Santo Isidoro, S. Bernardo, Raimundo Lúlio, Aristóteles, ao lado de fábulas maravilhosas, com muitas passagens profanas de amor, traduzidas pelos monges nos séculos XIII e XIV, e que constituem alguns dos primeiros exemplares da prosa literária portuguesa.

As relações de Pedro com o mosteiro são muito anteriores ao ano de 1349, em que lá foi baptizar o filho. Logo no princípio da sua adolescência, por volta de 1330, Diogo Lopes Pacheco levou-o ao mosteiro para ele frequentar as aulas de latim e de gramática. Pedro recusou-se determinantemente às declinações, que lhe pareceram apertadas e enfadonhas, e regressou sozinho e despachado à Atouguia. Essas primeiras relações não foram de molde a entusiasmar nem um, nem outro lado. Pacheco deixou cair o latim e a sintaxe e o mosteiro entrou um pouco no esquecimento, até ao momento em que o abade, sabendo o infante sempre por perto e grande viandeiro, o convidou adrede, num dia farto de Outono, a vir à sua jurisdição, onde tinha coutos ubérrimos.

—Traga dois moços de monte e venha ver o que são perdigões gordos e vistosos — mandou-lhe de recado o abade.

O infante gostou das terras coutadas, que eram tratadas e defendidas para nelas se praticar o jogo da montaria. Habituou-se a visitar, de tempos a tempos, o mosteiro e a praticar essa caça real com o abade, feita ao som de trombas de prata. Esse período de convívio teve o seu termo com os sucessos que se seguiram ao Salado e o seu afastamento para Alenquer. Depois disso, no período em que Afonso IV atirou com Inês para o exílio e Pedro se voltou a refugiar a tempo inteiro na Atouguia, o mosteiro parlamentou com ele e mostrou inclusive disponibilidade para o apoiar numa rebelião armada contra o pai, o que o deixou surpreso. Pedro deu-se conta então das fortes tensões entre o mosteiro e a coroa, devido à tentativa de centralização régia, e que o conflito se arrastava desde 1334, ano em que coroa e convento disputaram judicialmente a jurisdição dos coutos tradicionais de Alcobaça. Apesar da sentença judicial aconselhar a manutenção dos privilégios monacais, o rei decidiu passar a jurisdição dos coutos para a sua alçada, pondo assim termo ao direito de que eles usavam desde 1153, altura em que Afonso Henriques lhes mandou passar a respectiva carta. As relações entre o convento e o rei passam a ser tão tensas que o abade decide alhear-se da guerra que o rei moveu a Castela, entre 1336 e 1339, e se escusou mesmo, para se desquitar do rei, a participar no Salado. Quer dizer, tanto Alcobaça como o infante são poderosos, têm uma questão mal-resolvida com a coroa, não gostam do rei ou do pai e estão, por isso, no quadro do reinado de Afonso IV, votados a uma aliança natural e duradoura entre si.

É, assim, que Pedro sobe ao altar de Alcobaça para baptizar o seu primeiro filho de Inês. Os monges simpatizaram de imediato com o casal e Inês pareceu-lhes uma mulher culta e admiravelmente posta. Essa simpatia transformou-se depois, no momento que se seguiu ao baptizado, quando perceberam que nada havia de forçado ou de orgulhoso, na realeza do seu porte, em espanto e contemplação. Foram muito sensíveis à graciosidade casta de Inês e, desde o primeiro momento, fizeram dela um modelo artístico na sua oficina de barros; a graça de Inês foi vivida no mosteiro como fonte de inspiração da arte sacra. Os monges brancos de Alcobaça, modelados pelas fábulas do ciclo arturiano, que conheciam bem, e ainda pela tradução da lenda de Santa Maria Egipcíaca, uma prostituta que se tornou santa, foram, depois de Pedro e Constança, os primeiros a ver em Inês uma chama apolínea, onde brilhava a alegria da música e a harmonia dos volumes e dos números.

Mais tarde, depois da sua morte, essa admiração daria lugar à obra estupenda da arca tumular de Inês, que é a mais perfeita do país e o mais valioso documento sobre esta mulher, e que ainda hoje se encontra, pasme-se também, na igreja do mosteiro. De momento, no período da sua primeira visita, inspirou no lugar várias madonas flamejantes e uma surpresa sem reticências, que não mais se dissipou e que baila hoje, entre uma pequena nuvem de lágrimas e um fino sorriso de Sol, sobre o dossel da estátua jacente da sua arca tumular. A estória de Inês e Pedro é uma fábula ibérica, porque o seu cenário completo é o da Península do tempo, de Aragão à Galiza, passando por Sevilha e Albuquerque, Toro e Penafiel, mas o centro crucial dessa estória está no litoral Atlântico português, em Alcobaça, onde se encontra a arca tumular de Inês. É, por isso, que a morte de Inês, apesar de doer tanto, é um dos pontos culminantes deste conto de amor.

Nessa altura, as ondas que provocaram essa morte agitavam-se ainda muito longe e o eco da sua ondulação não chegava sequer à Atouguia, que ficava no fim do mundo.

—Estou cuidoso de regressar à Touguia — suspirou Pedro, num dos primeiros dias de Abril de 1349. — Quero filhar algum repouso e o boliço dos coutos embarga-me o sossego.

Foram aconselhados desta vez a fazerem a viagem por mar. O mosteiro dispunha de quatro saídas para o mar, todas elas com portos e embarcações ao seu serviço. A rijeza da criança, a temperança do mar e a rapidez da viagem ditaram o seu embarque. Poucas horas depois, punham o pé na Atouguia e voltaram a ver, ao longe, as linhas escuras da Serra. O casal e o menino foram festejados com pétalas de flores e grãos na praça do cais e nas ruas, mas demoraram dois dias se tanto no paço da vila. Perdida a austeridade espiritual de Alcobaça, deixado para trás o sentido da sua socialização artística, Inês depressa se manifestou desejosa de regressar aos casais, nos arredores da vila, de modo a poder estar só de novo no mundo com Pedro e o seu fruto.

Quando chegou a casa, não a reconheceu; parecia-lhe mais curta, mais escura, mais barulhenta. Teve a impressão que a casa não estava no mesmo sítio e que a tranquilidade, que ela antes conhecera, desaparecera. Atribuiu isso à estranheza do regresso, depois duma ausência de várias semanas.

Teresa regressou ao Paço da Serra e só vinha, dia sim, dia não, tratar das roupas da criança e ajudar aos animais. Do restante, dos lençóis da casa ao jardim, Inês ocupava-se sozinha. Pedro tratava do fogo, da vianda e da água e um dos caseiros continuava a fazer de hortelão, quando era preciso. As temperaturas subiam, os dias eram de sol, as flores abriam, os pássaros não se cansavam de cantar, a criança sorria, as árvores tinham frutos grossos e perfumados. Por outro lado, as mãos e os olhos de Pedro não se cansavam de a olhar.

—Sei tudo. Nada mais há para saber. Sei tudo o que há para saber — repetia ele, olhando-a.

Ainda assim, Inês teve dificuldade em refazer a estação que ali havia vivido no ano anterior. Falou com Pedro; queixou-se da passagem próxima, dos machos que iam para a Serra carregados de grão e desciam com sacas de farinha, dos feirantes, dos peregrinos e almocreves que por ali passavam, dirigindo-se para Óbidos e mais para além, para os lados de Alcanena e Minde. O Sol da Primavera, secando a lama dos caminhos, soltava toda essa gente ruidosa e insciente pelos campos.

—Há um lugar aqui perto, para sul, ventoso, de pedras grandes, chamado Moledo, que está fora dos caminhos — atalhou-lhe Pedro. — Verei dum casal para nos mudarmos.

Mudaram-se, no início da estação quente, poucos dias depois do Solstício. Inês encontrou um casebre de pedra, falho de tudo, com uma sala de entrada e um pequeno quarto no fundo, que servia aos cabreiros para fazerem fogo e dormirem em grupo, nos dias em que traziam por ali os rebanhos. No exterior, um poço de pedra, com água limpa e abundante.

Agradou-lhe muito, porém, a solidão do lugar. Era isolado de tudo e protegido dos caminhos por duas encostas laterais. No meio, corria um fio de água, que alagava e amolecia, em dois ou três sítios, os terrenos, criando uma pequena várzea, onde cresciam amieiros e ervas aromáticas. Teresa distanciou-se ainda mais e foi Inês que se ocupou sozinha da comodidade da casa, enquanto Pedro reparava o colmo do telhado, consertava as madeiras da porta e do pequeno janelo do único quarto, reconstruía um pequeno estábulo, que lhe iria prestar serviço a duas éguas e algumas ovelhas. Os produtos da horta continuariam a vir dos casais que haviam habitado anteriormente. Ao fim dum tempo, o casebre parecia-se a uma pequena gruta de pedra, forrada de peles, bem tratada de madeiras, com uma pedra nova na lareira, e um ar de conforto rústico, habitado por um urso loiro e uma pomba branca.

Inês andava alvoraçada e feliz; queria baptizar a casa.

—Que te parece o Alpendre — perguntou uma manhã, dando a entender que aquilo era pouco mais que um tecto.

—Antes, lhe chames Paço — replicou Pedro.

Ficou, por ironia, o Paço, nome que o lugar ainda hoje guarda. Por ironia? Não, que Pedro falava com seriedade e ele e Inês nunca foram tanto um casal real como nesse momento. Voltaram a viver uma época de recolhimento e felicidade, que coincidiu com o Outono e o Inverno do ano seguinte. Inês apareceu novamente grávida. O sítio era agreste, pedregoso, exposto aos ventos chuvosos e bravos do sul, aberto à passagem de animais selvagens, mas a tranquilidade e a beleza da paisagem eram para eles tão dignas de carinho como uma construção de crianças. Não punham defeitos à casa, nem limites ao sítio; antes os enalteciam como perfeitos.

Uma manhã, nos meados da Primavera, quando os dias começavam a vir soalheiros e as tardes secas, chegou um dos fiéis de Pedro da Atouguia. Era um rapaz, com voz de fagote, pernas cambas, olho cinzento, chamado Martim, que nos dias bravos da sua adolescência o acompanhara quase dia e noite pelos casais da Serra, do Olho Marinho, da Lourinhã, de Óbidos e do Bouro. Vivia na vila, nas imediações do paço, onde ia todos os dias tratar das madeiras, abrir as portas e as portadas das janelas, de modo a que o Sol e os ventos entrassem e corressem pelos dois andares da casa, secando a humidade marinha e os bolores da estação chuvosa, que davam cabo das madeiras, dos tecidos, das lãs, das carneiras e dos metais das alfaias e dos talheres.

—Senhor, chegou à Touguia um barco de Sevilha, que traz para ti um recado por dois homens, um deles irmão da senhora, o senhor Álvaro Pires de Castro — deu a saber o rapaz. — Deixei-os no átrio do paço, esperando por ti.

Pedro espantou-se. Lembrava-se de ter encontrado Álvaro nas duas vezes que fora a Albuquerque, mas não vislumbrava motivo razoável para a sua visita. Era a primeira vez que recebia gente de tão longe na Atouguia. Desde o regresso de Teresa, no Solstício de 1346, que perdera o contacto com Albuquerque, onde a família dos Castros fazia corte com a rainha e João Afonso. O próprio Diogo Lopes Pacheco, que servira em tempos de correio, nunca mais aparecera depois da morte do pai e, já antes, desde que Inês regressara de Castela, que raramente o viam pela Atouguia, onde continuava, porém, a ter os seus correios. Era, por eles, que Pedro sabia notícias da mãe e da corte.

Uma sombra de preocupação passou, sem mais, pelo espírito de Pedro. Procurou Inês junto dos amieiros, onde ela fora arejar com a criança, mas, por uma precaução quase involuntária, não se referiu ao irmão.

—Veio alguém de Castela ao paço da Atouguia em demanda de mim. Vou com o Martim, mas a meio da tarde já cá estou.

Regressou, com efeito, a meio da tarde. Inês mostrou impaciência por saber do que se tratava.

—Figura-te que o teu irmão Álvaro e um escudeiro chegaram de Sevilha esta manhã, com notícias da minha irmã Maria.

Inês sobressaltou-se; interpelou-o, com o nome do irmão, mas Pedro fez-lhe um sinal doce para que o deixasse continuar.

— Não temas. Falou-me apenas das cortes de Leão do ano que passou, em que o meu primo e cunhado, rei de Castela, decidiu pôr cerco a Gibraltar. Foi para lá em Julho do ano passado. Morreu, há dias, numa grande tenda, com o pendão real em cima, no meio do acampamento, diante dos muros da cidade, apanhado pelos bubões da peste. Há dois meses apareceram-lhe as primeiras feridas escamosas.  Quem o assistiu no leito de campanha foi Leonor de Gusmão, que suspirava e, ao que parece, dizia: —É a mim … a mim que Afonso chama rainha. — A minha irmã Maria ficou em Sevilha, com o meu sobrinho, Pedro, acompanhados pela roda do senhor de Albuquerque, à distância, e nunca se deslocaram ao acampamento. De guisa, quando o corpo chegar a Sevilha, para as exéquias, temem-se convulsões civis, divisões dentro da nobreza, enfrentamentos. Quando o teu irmão deixou o Guadalquivir, ainda não haviam arredado o caixão do meu primo dos muros de Gibraltar.

Inês aceitou em silêncio as notícias, que não foram para ela uma surpresa. Os dias de Albuquerque haviam sido atravessados por um clima de temor, que, no fundo, era a preparação da situação que agora explodia. Habituara-se à surda disputa da rainha e dos seus medos e indecisões.

Foram visitar, no dia seguinte, Álvaro Pires de Castro, que ficara instalado no paço da Atouguia, mas que estava de partida para Sevilha, ansioso por acompanhar a rainha, o conselheiro João Afonso e o novo rei. Tornou a insistir, desta vez diante da irmã, com o perigo em que Maria e o filho se encontravam. Deu a entender, que a rainha de Castela queria contar as lanças do irmão. Inês sobressaltou-se.

­—Bem vês, Álvaro, vivo aqui, na Atouguia, a vida retirada dos campos — esquivou-se Pedro, olhando João, que estava nos braços da mãe e era agora um rapazinho roliço, com caracóis sedosos e loiros. — Os meus homens são de monte ou de liteira, pouco mais. A guerra? Não tenho a quem.

Álvaro virou-se para o escudeiro, que estava ao seu lado. Pareceu trocar com ele um olhar. Havia algum aspecto que continuava ali silenciado entre os dois.

—Senhor, se vosso sobrinho não vinga como rei sois vós, como neto de Sancho IV, que vos deveis apresentar para receber a coroa de Leão e Castela — decidiu-se por fim Álvaro, esperando o efeito das palavras.

Pedro riu-se. Já em tempos, em Albuquerque, ouvira da parte de João Afonso uma insinuação semelhante. Que gente frouxa esta, que anda por todo o lado, de coroa na mão, à cata de cabeças vazias, pensou ele com alguma transigência e humor.

Tinha uma noção acertada das fronteiras e percebia o perigo das sucessões. Ademais, as coroas não eram louros que lhe interessassem como dobrões de oiro. Sabia o que pesavam e os trabalhos em que metiam. Um castelo podia ser pior que uma masmorra. Foi, por isso, sincero quando chamou Paço ao casebre do Moledo. Desse por onde desse, estava determinado a não se intrometer na política do país vizinho. Foi determinação que lhe nasceu cedo no espírito, quando viu os desastres e desatinos em que o pai se meteu com o genro por causa do seu casamento com Constança, e dela não transigiu mais que um dedo, nem como infante, nem como rei. Pedro teve como rei e como homem defeitos fortes, e até indesculpáveis, mas não se lhe pode assacar uma ambição política desmedida, capaz de sacrificar aos seus interesses cegos a paz do reino ou o sossego da família. Fernão Lopes diz que Pedro reinou em paz enquanto viveu e que alguns outros isto mesmo escreveram. Ora, isto não foi só a herança que dos derradeiros anos de seu pai recebeu, foi a sua determinação de infante e o resultado da sua experiência temporã.

—Se assim dás de barato a coroa de Leão e Castela, não lhe faltarão pretendentes ­ — cortou Pedro. — Também sou bisneto de Pedro de Aragão e não cismo ir-me a Barcelona filhar a coroa e o selo real. Demais, Álvaro, meu sobrinho está aí para desenvolver, não para minguar, com seus rebentos e irmãos, lídimos ou não.

Calou-se um momento, cansado de argumentos e com a atenção presa num perdigueiro que latia magoado na porta do paço.

—Deixa tal induzimento, que faz boliço escusado — fechou ele, por fim, a conversa.

Álvaro e o escudeiro partiram na manhã do dia seguinte, no mesmo barinel em que haviam vindo.

Inês e Pedro perceberam, pela primeira vez, quando os viram afastar para sul, com as velas enfunadas da embarcação, os remos recolhidos, que não estavam sozinhos no mundo, como às vezes julgavam, e que um cenário muito mais vasto do que aquele que se desenhava da Atouguia a Alcobaça os envolvia. Eram contos largos, que passavam por Sevilha, Albuquerque, Gibraltar, e que, de tão extensos e desconhecidos, chegavam a ser assustadores. Nem um, nem outro dominavam ou conheciam esse mapa, que mergulhava raízes fundas no passado longínquo, e sentiam-se, por isso, momentaneamente desprotegidos, no meio desse imenso continente ignorado, que os ultrapassava e parecia querer maltratar.

Pedro, por precaução, falou na Atouguia com os homens de confiança de Diogo Lopes Pacheco e mandou recado ao rei da conversa que tivera com Álvaro de Castro. As relações com o pai, desde que este autorizara desinteressadamente a vinda de Inês de Albuquerque, estavam estacionárias e, dentro da frieza e falta de afecto características, eram quase cordiais. Não o via, não o adulava, não ia a Lisboa ou a Santarém, onde a corte estava muito e Brites vivia com o herdeiro mais pequeno, Fernando, mas enviava-lhe, de quando em quando, sinais de presença, que eram uma forma de lhe manifestar um primeiro grau de confiança. Estava convencido que o próprio Álvaro teria passado por Lisboa, antes ou depois de tocar a Atouguia, mas nada sabia acerca disso e pensava que o pai gostaria de receber a notícia, mas não chegou a cobrar resposta pelo correio.

Interessou-se, pelo seu lado, sem disso dar conta a Inês, que se arrastava em fim de gravidez, em saber como as coisas estavam a correr com a irmã e o sobrinho. Soube, ao fim dalgum tempo, através de contactos com Albuquerque, que, mesmo antes do corpo do cunhado chegar a Sevilha, para entrar de seguida na Capela dos Reis, a Gusmão se refugiara em Medina Sidónia, onde fora aclamada rainha, mas que grande parte da nobreza não se mexera da cidade do Guadalquivir e aceitara Maria como rainha-mãe e Pedro, seu filho, como rei.

—Não temas, Inês, os processos correm a favor de Maria e do meu sobrinho — tranquilizou Pedro.

Inês sossegou com as notícias, que Pedro detalhou, e voltaram de novo a sentir o mundo longe deles. A criança nasceu, assim, nos finais de Agosto, num ambiente de descuido, que era intimidade e protecção. Era uma menina, rosada, de lábios finos, rosto largo, a quem João acarinhou como uma novidade. O Paço voltou a ser aquela gruta morna e pré-histórica, forrada a peles e cabedais, onde, numa terra despovoada e por descobrir, viviam um urso e uma pomba. Tudo isso coincidiu com um fim esplêndido de Verão, com dias abertos, azuis e quentes, em que se deliciavam todos a comer frutas maduras, doces como mel, e a beber um leite macio e espesso de ovelha.

Nos finais de Setembro partiram por terra para Alcobaça, devido às coléricas marés vivas do equinócio, para assistirem à grande vindima do mosteiro e baptizarem a filha, a quem pensavam chamar Brites, quer por causa da parecença que a forma do pavilhão dos ouvidos da menina tinha com o da mãe de Pedro, quer pelo parentesco próximo que ligava as duas mulheres, Brites e Inês, a primeira filha de Sancho IV de Castela e a segunda bisneta desse rei.

As relações de Pedro com a mãe foram distantes e não estiveram também isentas de tensões. Brites deu sempre um apoio incondicional a Afonso e no longo período da guerra civil preferiu afastar o filho de si a perder de vista o marido e as suas opções. Teve em troca disso uma fidelidade absoluta do marido, que foi o seu principal mérito de esposo. De qualquer modo, as tensões que Pedro foi acumulando, ao longo da adolescência, com o pai foram sempre muito mais aflitivas do que aquelas que contraiu episodicamente com a mãe.  É legítimo, porventura, ver nessa escolha uma aproximação de Pedro à família, tímida embora, pois o ambiente de Alcobaça não era de molde a favorecer a reconciliação do infante com o pai, em primeiro lugar porque era impensável, no estado actual dos mútuos ressentimentos entre coroa e mosteiro, o rei deslocar-se a Alcobaça.

Assim como assim, a corte convidou-o, por intermédio de Diogo Lopes, para vir a Santarém, quando descesse de Alcobaça. Pedro viajava com o seu largo estendal de homens e tendas, azémolas e moços, e aceitou a sugestão com agrado. Era uma ocasião de Inês reencontrar Brites, ainda sua tia, e os dois filhos, Fernando e João, se abraçarem pela primeira vez. Pensou também em rever Maria, a primeira filha de Constança Manuel e o gosto que ela teria em pegar na pequena Brites.

Aguentou-se, porém, vários meses por Alcobaça, onde era mimado e bem-querido; passou lá o S. Martinho, a consoada, que juntou o aniversário de João, e o Inverno do ano seguinte, o de 1351. Gastava os dias, vestido de saio, a montear com o abade ou sozinho, retomando um hábito, a que perdera o gosto nos últimos meses vividos no Paço e que agora, no ambiente cavaleiresco do mosteiro, reencontrava; Inês, por seu lado, passava, discreta e recolhida, as tardes na livraria do mosteiro, na câmara de música ou então nas amplas naves da igreja, assistindo à liturgia sacra e aos cantos. Os frades admiravam-lhe a graça artística, o recolhimento místico e aproveitavam-na sempre como fonte de inspiração sacra. Foram eles, depois de Pedro e Constança, os primeiros a perceber que os volumes perfeitos do seu corpo davam a ver, no seu centro, com uma inaudita transparência, a essência eterna do mundo, onde revoluteavam, nos azuis do céu, os sóis, as nebulosas e as galáxias superiores e luminosas.

Ficou desse novo período passado no mosteiro uma natividade, que tomou a sua figura como modelo e está hoje numa das capelas laterais da igreja de São Leonardo, na Atouguia da Baleia. É um baixo-relevo em calcário fino, figurando uma natividade cristã, que agarra como pretexto o nascimento dos filhos de Inês, em particular o de João, que acontecera por sinal no dia de Natal, reavivado com o de Brites. A peça foi terminada pouco depois da presença de Inês no mosteiro e enviada para a igreja da Atouguia, por atenção com o infante. A mulher está deitada com a cabeça apoiada numa almofada. Tem um véu de duas pregas, uma rosa na mão direita e um livrinho, provavelmente um missal cabalístico, na mão esquerda. A rosa é a expressão da perfeição através da beleza; o livro a sua ligação a um destino luminoso, que se fazia por imitação e representação dum acontecimento modelar. O seu rosto tem parecenças evidentes com aquele que depois aparece na figura jacente da sua arca tumular. Acomodado nos seus joelhos, sábio e calado, está o menino. Aos pés do estrado, sentado e discreto, coberto por uma manta que cai pregueada no chão, está um homem; tem um barrete nos cabelos, a barba clara cai anelada sobre o peito, usa um bastão entre as mãos. Mostra uma estatura e um porte pacífico, franco e vertical. Por detrás, guardando o menino com a doçura dos olhos e do bafo, estão dois animais, um burro e uma vaca. Assistimos aí, nesse baixo-relevo, feito por um artista do convento, à vida de família de Inês e Pedro. É um magnífico quadro bíblico, que tem a simplicidade majestosa de Inês no seu centro. Sempre que vou à igreja da Atouguia e vejo o baixo-relevo, fico-me a contemplar, no seu centro, uma chama gloriosa, ardendo numa atmosfera tranquila, sem aragem nem turbulência. É, por causa desse clima de paz e serenidade, em que o amor é um sucesso puro, que o sangue da tua morte, Inês, dói tanto.

Em Abril, Pedro e Inês deixaram Alcobaça e dirigiram-se para Santarém. Ficaram fora de portas, no convento de Santa Clara, enquanto o rei, Brites, o herdeiro e a corte se deixavam ficar nos paços reais, onde mais tarde os jesuítas construíram o seu colégio e seminário, que Garrett, nas suas Viagens, talvez com exagero, não sei, depreciou por inestético. Entre os dois grupos, a meia distância, pondo entre eles um campo eléctrico, luminoso e tenso, ficava a mortalha de Constança, naquele convento de São Francisco que já atrás mencionei e que é hoje um escandaloso quartel de artilharia. Mas não sei se me chocam mais, na entrada do velho convento de Sancho II, os tanques de ferro, pintados de verde, apontando a quem passa a mira dos seus longos canhões, se a ignorância corriqueira dos meus compatriotas, incapazes de se lembrarem do assunto.

Pai e filho encontraram-se na alcáçova do castelo, na velha cidadela, firmada no topo dos penhascos, por cima dum cotovelo azul do Tejo e diante dos vastíssimos campos ribatejanos, com Almeirim e Alpiarça ao fundo. Era um dia límpido e frio de Primavera, com um Sol alto e luminoso. Sob a fortaleza, os milhafres não haviam regressado aos seus ninhos e viam-se, nas pedras pontiagudas, as palhas secas e pôdres, com a forma côncava das posturas desfeita. Pedro fitava as areias fulvas, por onde a serpente do Tejo, preguiçosa e mole, zigzagueava.

—Sabes o que se passa em Castela — perguntou-lhe Afonso.

Pedro tirou os olhos das areias e poisou-os no pai. Estava muito envelhecido em relação ao último período em que com ele convivera, aquele que antecedera de perto, há uns anos, o exílio de Inês, Vira-o depois disso na Atouguia, mas o mal-estar, a ira contida, o resmonear, quase não o deixaram fixar. Agora estava com 60 anos e com um ar cinzento, fechado, triste. Perdera o brio guerreiro que dez anos antes, no regresso do Salado, ainda ostentava e todo ele parecia baço e carregado. Vestia de preto, decerto em memória da irmã Leonor, que lhe morrera, com a coroa tenra de Aragão na cabeça, no princípio do ano de 1348, dois meses depois de se despedir dele no cais da alfândega de Lisboa

—Soube, há um ano, que os levantamentos contra Maria foram muito minguados e que o meu sobrinho teve os nobres quase todos unidos em torno da sua sucessão.

Afonso olhou-o com comiseração. Aquele filho descurara sempre os seus interesses e parecia andar cego no mundo.

—Vou-te contar mais dois sucessos, que talvez te possam alertar para o que cumpre fazer — começou Afonso. — Primeiro, Leonor de Gusmão foi assassinada, há dois meses, depois duma violenta discussão com a tua irmã. O teu sobrinho, rei de Castela, mandou chamar a Palência, um dos filhos da Gusmão e perguntou-lhe: — Conheceis o modo como morreu vossa mãe? — O pobre, com 15 anos, respondeu: — Senhor, não tenho outro pai nem outra mãe que não sejam vossa mercê. — De seguida, pretendeu raptar e assassinar o herdeiro de João Nunes de Lara, um menino de cinco anos, orfão de pai, cuja família servira os Gusmões. Não o conseguiu. Matou então a golpes de machado, o bruto, no paço da capital, em Burgos, Garcilaso da Vega. Antes de o matar disse-lhe: — mato-te porque foste valido da Gusmão. Segundo, João Afonso de Albuquerque está a preparar, para este Outono, cortes em Valadolide, que devem consagrar a situação e preparar o casamento do rei, com 17 anos, que vive amancebado com uma Padilha, mediana e quase pebleia, seguindo o mau caminho do pai. Pobre dessa Branca de Bourbon, donzela chamada de Paris, com quem o teu primo João Afonso quer casar o rei. As casas nobres estão irrequietas, descontentes com a situação e não é difícil antever os dias desordenados que Castela se prepara para viver.

Calou-se e pôs-se a observar o efeito do seu discurso sobre o filho. Pedro teve dificuldade em abeberar todas aquelas notícias. Terreno mole, embrulhado, ou sou eu que não dou com o assunto, pensou curiosamente Pedro. É uma situação assaz confusa, arredada, que se passa lá longe, nas minhas costas, num mapa desconhecido, que nada tem a ver com a estreita linha do mar português, que tão bem conheço, mas que, ainda assim, teima em entrar pela porta do meu destino. A quê, Senhor meu?

Fitou o pai, mostrou um ar preocupado, mas não conseguiu arrancar uma palavra, para se pronunciar sobre a situação. O pai aproveitou então para lhe perguntar:

—E sabes tu, de que guiza tudo isto sucede?

Pedro surpreendeu-se com a pergunta. Fez um trejeito com os ombros de ignorância; mexeu os lábios.

—Não percebo onde quereis chegar…

—Eu digo-te, à boa fé to digo, Pedro — cortou Afonso. — A causa de todos estes desarranjos são as mancebias. Que são bastardos senão o escarmento  que a mão de Deus escolhe para castigar o adultério dos reis?

Um milhano desgarrado grasnou bravo e prolongado lá fora, do outro lado da janela. Deves andar a mirar o lugar das posturas, rosnou para si Pedro e continuou. Este meu pai é um perro maldito, que anda sempre a entrar comigo. Morde a doer, nas minhas costas e, depois, pela frente, se for preciso, e eu deixar, ainda me saca para fora as tripas. Fideputa, que Inês Pires de Castro não te merece os aleives, nem os filhos queridos que hei dela as perfídias do teu veneno.

Ainda assim, não se atreveu ao insulto, à cólera sem limite, que o lavrava por dentro. Cingiu-se a fechar o rosto, a sentir forte o sangue a bombear pescoço, faces e têmporas e a gritar seco e rijo.

—Alto lá, senhor pai. Que é isso?

—Não te crispes — rompeu mansamente Afonso. — Quero que lembres o que sofri de Afonso Sanches, bastardo e videiro, e o que tua irmã Maria  cuidou por causa da manceba do rei, seu marido. E teu sobrinho, não fossem os bastardos do rei e da manceba, não seria rei de tão má fama e fazer como mostra ser, e segue ainda no princípio. Não te danes, filho.

Calou-se, para retomar fôlego. Continuou quase de imediato.

—Veremos quando o medo dos nobres os açodar, cortando Castela em duas metades; hão-de então ser dois partidos, assanhados um contra o outro, o dos que ficam ao lado do teu sobrinho e o dos que se passam para o lado dos bastardos, Fradique, Telo e Henrique e todos os outros. E veremos ainda João Afonso voltar para Albuquerque como um cão corrido, quando Branca de Bourbon chegar e os Padilhas, nobreza pequena e miúda, vassala dos Telles de Meneses, gente dos campos, ousarem segurar nas mãos as rédeas do governo, para mostrarem à rainha quem manda.

Parou novamente. Precisava de fazer uma pausa, passar à frente. A lembrança da filha querida apertava-o como um pesadelo escaldante. Sabia que ela não resistiria à ascensão dos Padilhas, não por si, que pouco significava, mas devido à ligação com João Afonso, chanceler graúdo e interesseiro, como o pai. De tudo o que estava em jogo, era isso o que mais lhe custava. Ver a filha corrida, assim, como um novilho, ao lado do bastardo português, apertava-lhe o estômago. Junto de Pedro de Castela, não havia lugar para mais que uma influência, ou a de Maria, com o seu homem de mão, ou a da Padilha, com os manos da família, por detrás, espreitando discretamente a oportunidade de se sentarem nos escabelos do governo. Continuou, com a garganta apertada, saltando por cima do caso da filha.

—Eu não dei, Pedro, à tua mãe uma noite de mancebia; não conheci amigas; não me deitei, uma hora que fosse, com barregãs para folgar o que dizem que elas sabem e gostam, tanto e tão bem, de fazer. És o herdeiro de minha casa e ninguém contigo disputará o reino e te moverá intrigas e calúnias para te furtar o que de direito só a ti pertence. Não tens sombra que te apoquente. Não assim eu. Não assim teu sobrinho.

Vozearia alta de homens conduzindo azémolas, subiu da parte baixa da encosta, talvez da ribeira de Santarém. Enquanto as ouves, Afonso, aproveito para me meter na conversa e te dizer que sim senhor poupaste preocupações à tua Brites e ao reino, mostraste-te um valente e um prudente, mas foste um presumido quando te pensaste isento de defeitos. Não sabes que, ao moveres uma guerra tão ciumenta contra o teu pai e o teu meio-irmão, abandonaste o teu filho? Não te lembras das lágrimas que Diogo Lopes Pacheco o viu chorar na baixa infância? Não te vem ao espírito a carinha de desgosto que aquela criança de dois palmos tinha? E não sabes tu que o obrigaste a dois casamentos em que o interesse deles era todo teu e nada dele? Dizes-me que era o hábito da época. Seria, mas, por isso mesmo, não te admires que o teu filho se haja apaixonado por uma aia que, por natural e espontânea simpatia, ele escolheu e não pela mulher que, por interesse político e do reino, tu lhe arranjaste; seria, mas então tens também de dizer que era tendência dos reis do teu tempo terem manceba. Sabes porventura quem era a tua avó, que casou com Afonso III, teu avô? Eu digo-te. Era a filha da amásia do grande Afonso X, que só assim, por linha impura, é teu bisavô. Chega-te?

—E sabes que mais —continuou Afonso, levantando a voz, enquanto lá fora se apartavam os almocreves e voltava o silêncio — não assim teu filho, Fernando, que está aqui, a dois passos de nós, nos braços de tua mãe, orfão, inocente e frágil. Que será do seu reinado, assolado que estará pela intriga interesseira dos teus outros filhos? Um distúrbio? Uma guerra? Um assédio? Uma disputa? Que pretendes dar tu ao povo que Deus te destinou para governar? É preciso que os reis tratem do sossego dos seus povos … façam aquilo que devem fazer … por muito que lhes custe.

Afonso arrastou estas últimas palavras com desânimo, que não deixava de ser determinação, mesmo que cansada. Via-se que estava perturbado e gasto de cismas. Quem me dera aliviar de cima com a carga deste peso que é ter na cabeça uma coroa pesada de rei, pensou ele lugubremente. Ter de matar Inês e os filhos, como já me soprou o meirinho-mor, é ácido corrosivo que me dão a beber. Mas pode um rei, mesmo quando o oiro da coroa lhe pesa chumbo, fugir ao dever? Fugiu o Senhor do Calvário em que a perfídia dos homens o meteram? Posso então fugir eu a matar Inês e as duas crianças? Para bem dizer, não posso, caso a paz do reino assim o exija.

Pedro compreendeu o mapa que o pai lhe desenhava, mas não as suas dívidas íntimas e sombrias. Nesse mesmo dia, despediu-se de Brites e dos dois seus dois filhos, Maria e Fernando, em Santarém, nos paços reais. Mandou levantar as tendas, preparar as bestas, resguardar os filhos nas liteiras, aprontar Inês. Sentou-a no regaço largo e confessou-lhe:

—Fizemos mal em descer a Santarém. Estes cães esburgavam-nos a carne se pudessem. É partir toste, sabes.

Estava desejoso de se refugiar na Atouguia, de voltar a viver a vida retirada e mansa do Paço, sem percalços e falsidades. Não houvera tempo, sequer, de Brites se reencontrar com Inês nem, como planeara com gosto, de João conhecer Fernando, de quem era apenas mais novo três anos. Pensava muito nos filhos, desgostoso das palavras do pai.

Depois dos entendimentos deste vilão astroso, nem sequer consigo figurar os dois, um com o outro — repetia Pedro dentro de si — enraivecido e triste, a pensar nos filhos, enquanto, de rosto fechado, quase mudo, fazia sinais aos homens que dobravam e empilhavam cá fora, no terreiro do mosteiro, os panos das tendas. És aldrabão e falso, que Pedro Afonso, conde de Barcelos, meu tio, senhor de tanta serenidade e dom, é-te homem fino e leal como poucos e é bastardo de teu pai e teu irmão como João o é de Fernando. Atiraste-o contra o teu sobrinho de Castela, obrigaste-o à guerra por ti e pelos teus interesses, e agora levantas-te contra ele em doestos de perro e vilão. Arreda-te para longe, demo, que me andas a agourar a vida, abjurava ele para si.

Partiu nesse mesmo dia, com toda a sua casa. Farejava no ar um perigo indeterminado, mas não via donde vinha. O mais imediato era a situação da irmã, que se lhe figurava delicada e dividida, entregue a João Afonso, homem avisado, mas com muitos inimigos dentro e fora de portas. Depois, havia ainda o sobrinho, que se revelava um fraco e impulsivo. Compreendia o seu amor pela Padilha, como compreendia o amor do marido da irmã Maria pela Gusmão. Eram dadas aos reis, por negócio, mulheres que não conheciam nem queriam e quando deveras se apaixonavam por uma mulher cumpriam apenas a vontade de Santo Agostinho, que dissera ao homem: — ama e sê livre. Acreditava, por isso, como os segréis, que o verdadeiro e inocente amor estava a salvo de pecado e de castigo. Os desastres humanos eram culpa das injustiças dos homens e do desleixo da natureza. Os bastardos nada ali punham, pois tanto os havia fiéis e amigos de seus irmãos e dos outros homens como pérfidos e traidores.

Se o casamento litúrgico de Inês e Pedro aconteceu, como depois Pedro jurará que sim, é verosímil que haja sido neste período que se seguiu à conversa com o pai, em que interiorizou as amplas ramificações perigosas da sua vida. Pedro estava, porém, desejoso nessa época de regressar ao paço da Atouguia, do qual estava afastado desde há meio-ano, e em especial à casinha do Moledo, onde se sentia fora do alcance das injustiças humanas, e custa por isso crer que haja voltado de imediato à igreja de Alcobaça, a maior e a mais pura de Portugal, único altar que me parece aceitável, por todas as razões, para o seu enlace com Inês.

De qualquer modo, uma nova gravidez de Inês no fim da Primavera de 1352 e o parto dum menino na entrada de Março de 1353, obrigaram Inês e Pedro a regressarem a Alcobaça, no Verão de 1353. Iam baptizar o menino, a quem chamaram Dinis, em memória do bisavô segrel. Ora o agravamento da situação de Castela, entre 1352 e 1353, a carta que Pedro recebeu do pai, em Junho de 1353, na Atouguia, falando-lhe da guerra civil em que o país vizinho estava a mergulhar, criaram as condições para o ajuste de casamento. Entravam na nave central da igreja para se dirigirem, ao mesmo tempo, para o baptistério e para o altar, de modo a celebrarem o matrimónio, o que desde o sacramento dado a João estava decerto nos pensamentos e nas palavras dos monges, quando parabenteavam o casal. Pedro era viúvo e nada o impedia de tomar Inês como esposa legítima, ainda que os monges soubessem, batidos que andavam nos cancioneiros de amor e nas fábulas do ciclo bretão, que o príncipe era homem, como o avô, para pôr as palavras de Deus —amai-vos uns aos outros— muito acima dos rituais dos homens.


A MORTE


O leitor quer saber decerto o que se passava assim de grave em Castela. Já se habituou ao rumor dessa cortina, para perceber a sua importância nesta estória; quando ela se agita alguma coisa pode estar para mudar no  centro do palco. Eu conto-lhe.

As cortes de Valadolide, muito participadas pelo braço popular, confirmaram, no Outono de 1351, o casamento do rei com Branca de Bourbon. A primeira metade do ano de 1352 gastou-se na capital francesa em negociações sobre o dote da princesa. A França, pequena e dividida, a braços com a pesada guerra dos Cem Anos, punha muito interesse na aliança terrestre e marítima com Castela e prestou-se a dotar a princesa com um dote fabuloso para a época, 300 mil florins, tão elevado que seria pago em duas prestações, a primeira quando a princesa saísse de Paris e a segunda no momento do casamento, que se previa para o Natal desse ano. A princesa saiu de Paris em finais de Agosto de 1352 com uma comitiva de escudeiros e damas de companhia, onde flutuava o lábaro da casa de Bourbon. Nesse mesmo momento, o rei vive com Maria Padilha e começa a prestar atenção a seu irmão Diego Garcia de Padilha.

No Natal desse ano, a comitiva francesa, não se atreve a sair de Narbonne, pois ainda não havia entregue um único florim do prometido dote. Em Janeiro de 1352, Gilles de Malmaison conseguiu arrecadar os primeiros 25 mil florins. Atravessou então os Pirinéus e fez o primeiro pagamento, deixando  novo pagamento para daí um ano. Era pouco, mas muito para um país exausto pelo esforço da guerra. Em Aguilar, a sul de Córdova, último bastião da rebelião nobiliárquica, Afonso Fernandes Coronel é assassinado por ordem do rei depois de se render e abandonado sem sepultura. Branca de Bourbon chegou a Valadolide, onde é recebida pomposamente por Maria de Portugal, a 23 de Fevereiro de 1353. Pedro esperava por esses dias, em Córdova, o primeiro filho de Maria Padilha e recusa-se a ir a Valadolide, onde se devia celebrar o casamento. João Afonso vai aflito a Córdova falar com  o rei. Sente que na realização desse casamento se joga toda a sua futura influência política junto do rei. Este recebe-o numa tourada e manda-o de volta. São os Padilhas que, depois do nascimento da criança em Março de 1353, o aconselham a ir a Valadolide casar com Branca, inquietos com as vozes que se faziam ouvir cada vez mais alto contra o rei e a favor da princesa abandonada sem uma satisfação. Pedro vai com relutância e prepara-se para casar a 3 de Junho de 1353, tendo como padrinho de casamento João Afonso, que jogava nesse casamento a própria sobrevivência. À última hora, o rei decide não assistir  à cerimónia do seu casamento e abandona de surpresa a cidade e a esposa. O clero classificou imediatamente como imoral a atitude de Pedro de Castela e pediu a Roma uma condenação formal do rei; os embaixadores franceses deixaram Castela e Maria de Portugal e Branca de Bourbon optaram por entrar juntas no mosteiro de Santa Clara de Tordesilhas. Maria continuava a prestar o seu apoio à política de João Afonso, entrando em choque com o filho e os Padilhas.

O rei, pelo seu lado, com o apoio dos Padilhas, decidiu jogar tudo por tudo. Pôs cerco a todas as fortalezas da Estremadura que se haviam recusado a aceitar a nova situação política saída do abandono de Branca e perseguiu com sanha de morte João Afonso, que, para fugir aos algozes, teve de fugir rapidamente para Portugal e pedir exílio político ao rei, seu tio. Passou-se isto em Dezembro de 1353, quando Afonso de Portugal se encontrava a negociar o casamento de Maria, filha de Constança e Pedro, com Fernando de Aragão, irmão de Pedro de Aragão, viúvo de Leonor.

—Dizia eu há um ano e há dois que veríamos ainda o senhor de Albuquerque encolhido no torreão do seu castelo; eis que o temos aflito para permanecer dentro das nossas fronteiras. Eu deixava cair o bastardo, por indiferença e desgosto, mas não há meio para isso, que ele representa os interesses da rainha-mãe — disse Afonso IV na reunião do conselho.

—Senhor, não esqueçais que representa também a sensatez do reino e da Igreja — acrecentou Diogo Lopes.

Afonso de Portugal foi insensível às pressões do neto, Pedro de Castela, para que negasse refúgio e protecção ao senhor de Albuquerque. O filho de Afonso Sanches foi autorizado a ficar em Portugal, esgrimindo a causa legal de Branca como princípio moral de rebelião contra o rei. Incentivou a partir de Évora a insurreição das cidades estremenhas e alimentou, com uma rede de espiões, as cidades sitiadas.

Já sabe o leitor como andavam as coisas em Castela nos anos de 1352 e1353. Era um palco caótico, onde lavrava a discórdia e a revolta. Não causa surpresa pois que Afonso IV no momento do frustrado casamento do neto castelhano com Branca de Bourbon haja escrito ao filho, para a Atouguia, informando-o dos novos desenvolvimentos da situação e reforçando os avisos que lhe fizera na alcáçova de Santarém dois anos antes, quando se começava a desenhar a desordem em Castela.

Diz-me o leitor que punha aguma curiosidade em conhecer essa carta; digo-lhe eu que sim, que a carta é importante para que  perceba o que mudou no nosso conto. O palco onde tudo se passa não é mais o do amor; o leitor que se prepare, porque a próxima cena é a da morte. Esse desastrado sem freio que foi Pedro de Castela afastou para o lado os sonhos íntimos, os beijos ardentes, as cassas transparentes, as canções dos segréis e pôs em seu lugar o vazio da morte, o terror do sangue, a injustiça dos homens. Atrás, quando Inês foi dada a Constança, levantava-se no fio do horizonte uma madrugada de oiro, orquestrada por uma linguagem de pássaros coloridos e maravilhosos; agora, quando as asneiras de Pedro de Castela estrondeiam no palco desta estória, um sangrento crepúsculo vespertino mancha o outro lado do mundo, ali mesmo sob os céus de Alcobaça e Atouguia, onde grasnam os abutres famintos e os cães furiosos.

“Aos 20 de Junho do ano de Cristo de 1353, nesta cidade de Évora, el-rey Dom Afonso, por graça de Deus, filho de Dom Dinis, rey de Portugal e do Algarve, fez esta carta ao príncipe seu filho, Dom Pedro, a residir no seu paço, na mui rica vila da Atouguia.

Meu filho, ainda recordo os avisos que te dei na cidade de Santarém e os concertos que contigo fiz. Pois os recentes sucessos de Castela acabam de me dar mais razão do que aquela que eu deveria ter. Vosso sobrinho, el-Rey de Castela, repudiou a legítima esposa, deixando-a sozinha diante do altar. É uma afronta grave, que não cabe num homem, quanto mais num rei, que deve ser exemplo de seus vassalos. Da mesma forma que o rei condena o vassalo que pratica o dano, é também obrigação da nação castigar o rei que o pratica assim tão grave e grande.  Não se pode consentir ultraje assim, que ofende Deus, a Igreja e o reino. Digo-te mais: é preferível limpar, de raiz, tudo o que pode envenenar a vida dum rei ou dum príncipe, que deixar em liberdade a sua seiva maligna. Reis e príncipes não podem viver para si, mas para os seus reinos. Concluo em te dizer que penses bem nisto e recebas estas como de pai e rey.”

Em Janeiro de 1354, Fernando de Aragão, marquês de Tortosa, com interesses pessoais na política castelhana, aliado tácito de João Afonso, chegou a Évora para vir buscar a esposa, que era uma menina de dez ou onze anos, que se parecia cada vez mais com a mãe, o mesmo porte altivo e soledoso, a mesma aptidão melancólica e artística. Também ela faz parte desta fábula, ainda que menos que seu irmão Luís, que morreu aos dois meses e foi o afilhado querido de Inês.

Fernando não se demorou e partiu com a esposa para a fronteira do Tejo, acompanhado pela escolta militar do rei e por João Afonso. Este aproveitou a protecção diplomática da representação portuguesa para trocar impressões com a comitiva castelhana que se abeirou da fronteira com o propósito de receber os esposos. Dois dos bastardos de Afonso XI, Fradique e Henrique, através do confessor deste último, conde de Trastâmara, aderiram à rebelião, libertaram Albuquerque das tropas do rei e chegaram a aprisionar o irmão da Padilha, que as comandava. João Afonso regressou de imediato a Albuquerque para exigir ao rei o casamento com Branca de Bourbon e uma satisfação aos embaixadores franceses. O rei, em resposta, manda prender Branca de Bourbon em Arevalo, transfere-a, em Julho, para Toledo, enfrentando o levantamento inesperado de grande número de cidades contra a sua política matrimonial, com uma única exigência, a reconciliação dos esposos.

O estado de Castela no Verão de 1354 era ainda pior que nos anos anteriores. O filho de Maria de Portugal revelava-se um destravado, falho de todo o sentido da governação. O país ficou contra o rei; a cidade de Toledo, para onde Pedro mandara Branca aprisionada, declarou apoio à rainha e entrou na rebelião. O rei ficou sozinho com os Padilhas. Contava com seiscentos homens, se tanto, contra vários milhares da nobreza. Não lhe restou outra alternativa senão refugiar-se com a Padilha junto da mãe, que continuava no mosteiro das clarissas de Tordesilhas, e capitular. A nobreza, capitaneada por João Afonso, mostrou-se dialogante e com exigências limitadas. O que estava em causa não era a coroa do rei, isso pertencia já a um cenário revoluto, mas tão-só a reabilitação conjugal de Branca, o afastamento de Maria Padilha e o corte definitivo com os Padilhas e o seu tipo de governação. No interim, em Outubro, João Afonso apareceu envenenado e a chefia da rebelião foi assumida pelo filho de Afonso IV de Aragão, Fernando, marquês de Tortosa e esposo da filha de Constança e Pedro.

Inês e Pedro estavam, desde a saída de Santarém na Primavera de 1351, na casinha do Paço, nas imediações da Atouguia. Pelo meio, ficara apenas uma estadia rápida em Alcobaça entre o Verão e o Outono de 1353, depois do nascimento de Dinis. Foi o momento em que levaram a criança ao baptistério e, pressionados pelos acontecimentos de Castela, subiram ao altar para o matrimónio. O abade, aproveitando os transtornos castelhanos, falava-lhes dos sucessos da governação e mostrava os seus ressentimentos para com o rei português.

—Mau rei, que rouba as liberdades dos seus maiores e vai contra a justiça dos povos — insistia o abade.

Eles enervavam-se com esse clima de incitação constante, que criava uma teia de intrigas e armadilhas, de que não chegavam a libertar-se. O mundo, quando comparado com o seu amor, parecia-lhes um defeito ou uma injustiça. Para nada o queriam e por pouco o trocavam.

Regressaram sem mais demora à Atouguia. Só no Paço se sentiam protegidos das injustiças humanas e fora do seu alcance. Aí o mundo desaparecia e eles voltavam a ficar sozinhos, inteiramente disponíveis um para o outro.

Pedro acomodara o interior da casa e alargara o estábulo, dividindo-o em vários compartimentos. Continuava a ter o seu rebanho, a sua matilha, a sua récua. Inês ajardinara o exterior da casa e o lugar ganhara cor e beleza. Gostavam de se sentar na várzea do ribeiro com as crianças por perto, caprichando com os cães, ou subir a uma das colinas e olhar, ao fundo, a linha verde ou azul do oceano, onde o mundo dos vivos acabava. Das pedras grandes daquelas colinas avistava-se o fim do mundo, para onde a alma dos mortos seguia, e a luz que por ali brilhava, doirada e doce no Verão e no Outono, cristalina na Primavera e encoberta na curtíssima estação fria, era já um fulgor sobrenatural, que em mais lado nenhum do mundo disparava assim. Sentia-se ali o livor espectral do fim da terra, a solidão própria da charneca que ia dar ao infinito, o grito das almas que partiam nas asas largas dos alcatrazes.

Mas era aí nessa despedida que eles se sentiam agasalhados e ternos, prontos a cair nos braços um do outro, para morrerem ou amarem, sempre juntos, sem os artifícios do mundo de permeio, que tudo roubavam e dividiam.

Assim viviam desde há anos retirados do mundo e o mundo quase esquecido deles. As notas da corte eram curtas e espaçadas; as notícias raras e quase banais. Só o antigo aio, Diogo Lopes Pecheco, lhe reforçava, de quando em quando, por correios pessoais, os temores do pai. Mas à medida que o tempo passava e os dias se desfiavam calmos e doces no retiro do Paço, tudo se perdia num eco longínquo, cada vez mais distante e inofensivo. Da arrebatada fúria que sentira contra o pai no último encontro de Santarém, sobrara apenas uma nuvem amarga de cinza, que se confundia com a imagem doentia e torturada do rei. A própria situação interna de Castela deixou, aos poucos, de alarmar Pedro.

É um caso interno ao reino e nada cuida de mim — pensava ele descansadamente. — A nobreza reconheceu rei o meu sobrinho; de azo, que ele há-de dar com o siso do cargo; se não, estão lá os dívidos, filhos e irmãos, que os tem. Aqui, na Atouguia, não tem ele fustas e enculcas, quanto mais preitezia. Asinha, asinha que o caso não merece mais duas dobras de afincamento.

Por isso, nos finais de Novembro de 1354, picado pelo desejo de outros espaços, seguro da situação que vivia, aliviado de temores e pensamentos sombrios, Pedro encarou com alegria a possibilidade de viajar no Natal que se aproximava. Pobre Pedro, mal sabias tu que a felicidade do teu idílio só te era admitida porque tinhas um pé fora deste mundo, longe do olhar guloso dos homens, e porque vivias em absoluta solidão no mais retirado lugar, tão afastado que dele se avistavam já as fosforescências da casa dos mortos. No meio da terra, no mundo clássico dos homens, a tua ventura passava por agressão descarada, que era preciso punir e decapitar. Solidão, silêncio e afastamento eram os pórticos dos teus campos Elíseos.

—Inês, sei que me queres neste lugar como no mais rico dos burgos e bem lembro a teima que puseste em nomear de Paço este couto sem sinal — começou Pedro. — Ainda assim, pesa-me o corpo há tanto aqui fechado e alegra-me saber que nos é dado partir por uns dias, de jornada, com as azémolas e os almocreves que estão na Atouguia.

—Não te chega a minha presença para seres feliz — perguntou-lhe meigamente Inês.

Pedro tomou-lhe o rosto oval nas mãos; os lábios tremeram-lhe ligeiramente.

—Nada me faz tão feliz, mas há muito que aqui estamos e o Natal era boa ocasião para sairmos de jornada. Deixemos desta vez Alcobaça no caminho, que o abade é irrequieto de doestos, e vamos de longada, até Santa Clara, em Coimbra, que foi o sossegado paço de minha avó Isabel, de quem tanto te hei falado, e aquele em que nasci. Inês, é ocasião de ver o Mondego, para depois regressarmos ainda com mais aprazimento aqui ao Paço.

Inês acedeu, entre o enfadada  e o curiosa; aborrecia-a a agitação que a viagem lhe punha na vida, roubando-lhe a tranquilidade e a solidão do Moledo, mas excitava-a conhecer Santa Clara e o Mondego. Pedro falava-lhe amiudadamente do lugar, já que as suas memórias de infância ou de adolescência estavam mais ligadas ao paço da avó em Coimbra que ao do pai em Lisboa ou Santarém.

Combinaram partir em meados de Dezembro, tardando em Alcobaça, a meio da jornada, não mais de duas noites. Passariam a consoada em Santa Clara, ficariam para a noite de São Silvestre e a chegada dos reis, regressariam pouco depois, com nova visita a Alcobaça, desta vez por alguns dias. Ao todo, poderiam estar fora da Atouguia um mês ou pouco mais, nada para comparar à grande viagem que haviam feito por ocasião do nascimento de Brites, no Verão de 1350, e que durou mais de meio ano. Economizavam, assim, tendas, bestas, arcas e homens, ainda que viajassem agora com três crianças, João com seis anos, Brites com quatro e Dinis com um, ainda menino de peito.

Partiram como o previsto na segunda semana de Dezembro. Inês melancolizou, quando se despediu da casinha do Moledo. Via-a enternecidamente como o seu refúgio de alma, onde dera à luz dois dos seus filhos e vivera a sua modelar vida de família.

—Querido Paço, vou pensar em ti com merencoria, quando o boliço da gente me aborrecer — suspirou carinhosamente Inês, no momento em que se preparava para lhe virar costas.

Não lhe passava pela cabeça que era a última vez que encarava a casa e que a despedida era definitiva, que nunca mais voltaria ao lugar. Ainda assim, sensibilizou ao ver as peles, os cofrezinhos de castanho, as loiças areadas, as tapeçarias nos muros, os potes de ferro onde cozinhava o caldo, as penas de garça que enfeitavam as jarras de barro, a laje da lareira, onde repousava ainda, meio carbonizado, o tronco grosso de azinho da noite anterior.

Num derradeiro olhar, deu, no rebordo de pedra do janelo e do fogão, com as conchas caprichosas e as pedrinhas polidas pelo mar que ela e Pedro recolhiam nos passeios pelas praias a noroeste da Atouguia, onde o assoreamento se começava a sentir, com grandes lençóis de areia a descoberto nas marés vazias. Suspirou com a beleza desses vestígios de vida antiga, ali conservados tanto em homenagem à pulsação vital que neles houvera como à beleza que deles se apurara e conservara. Os antepassados imediatos da arte manuelina portuguesa podem ser esses rebordos singelos e populares, com que pescadores e gente do litoral adornava os seus casebres. Não é que o antepassado da célebre janela do convento de Cristo de Tomar pode ser um simples e anónimo janelo de pardieiro?

Os caminhos estavam enlameados, os dias eram curtos e escuros, às vezes com chuva e vento, os homens e as mulheres andavam abrigados nos casinhotos de pedra e colmo e quase não se vislumbrava vivalma. A viagem não ia além das 30 léguas, mas ainda assim o avanço do grupo fez-se lentamente. As bestas de carga patinhavam na lama dos trilhos e os moços de liteira, que transportavam as duas crianças mais novas, avançavam lentamente com receio de tropeçarem. Arrearam peso em Alcobaça, com vista a ser recuperado no regresso, e prosseguiram para Santa Clara, igreja e convento, que avistaram na tarde de 20 de Dezembro, depois de andarem quatro léguas. Era um conjunto sólido, de pedra amarela, nos campos baixos do rio, sujeito à enchente das águas, fora de portas, na margem esquerda do Mondego. Quando se chegava assim de sul, era o primeiro conjunto da cidade que mais próximo se avistava.

Inês, embrulhada num balandrau escuro de lã, ia sentada num asno cinzento, de  peludas orelhas, vestido num forro forte de linho. Congratulou-se com a chegada e com a primeira impressão do lugar. A paisagem envolvente mostrava uma tristeza que não era amarga; nada nela era escabroso ou descontínuo, nenhuma rudeza enrugava a serenidade adormecida e melancólica daqueles campos mansos e daquelas águas fumosas. Os freixos, os ulmeiros, os choupos negros, altos e curvados sobre a névoa do rio, cheios de sombra e nudez, tremiam ligeiramente no vento, parecendo chorar espiritualmente o desconsolo da sua privação. Uma doçura magoada e humilde derramava-se por todo o vale até ao Mondego. As pedras levitavam como nuvens, pesadas de lágrimas e sem contornos. Fios azulados de fumo subiam dos casais para o céu, destingindo ainda mais a atmosfera e os corpos.

Ao fundo, na outra margem do rio, a cidade estendia-se também sem uma ruga áspera e abrupta, sem um sinal de crispação ou crueza, desbotada numa mancha branca de espuma; lembrava assim, sem obstáculos, uma onda cava e solene do oceano, que se espraiasse na areia macia da verdura. Tudo era mansidão errante naquele lugar, onde começavam a badalar os sinos das vésperas e se ouviam os balidos das ovelhas de regresso aos currais. Eram rebanhos de almas, todos brancos, que soltavam ali, na paz espectral daquele Outono, o sinal do seu canto fantasmástico.

Ficaste enfeitiçada, Inês, com a paisagem que tinhas diante dos olhos. Ela entrou-te pelos sentidos como uma veneno doce, que te adormeceu e encantou. Os teus olhos só queriam ver o choro espiritual daquelas árvores e daquelas pedras; os teus ouvidos ouvir a nobre música desses soluços e o teu olfacto cheirar o perfume silvestre daquele fumo em que todo o sólido se parecia evolar em alma errante. Era um outro noivado dos sentidos, aquele que Coimbra te dava a sentir. Ficaste inebriada com essa onda de cinza azul; a leda e triste graça daquele lugar instilou no teu sangue uma lassidão nova. Não sabias, nem querias saber, que se enrolava ali na doçura daquela névoa esbranquiçada a ponta da tua mortalha e que as pedras sem rudeza daquele mosteiro eram o teu primeiro sepulcro.

E estava tudo tão próximo do momento da tua morte que aquelas mesmas névoas que se esgarçavam sobre o rio quando pela primeira vez o vislumbraste foram as névoas que embrulharam o sangue do teu pobre cadáver; também as pedras que, nesse mesmo instante, viste tremer na paisagem de Santa Clara, se abriam já para receber o lençol em que depois foste sepultada. Não te posso pintar como aleivosa, Inês, mas como ingénua. Foste a alegria espontânea duma chama, nunca o clique calculado duma arma. Eis porque me ajoelho, sempre que lá vou, aos pés da tua estátua jacente, em Alcobaça, e me recolho para chorar a brutal injustiça do teu destino.

Pedro percebeu o encanto de Inês diante das pedras envelhecidas de Santa Clara, diante da brandura do rio e das terras, que se estendiam até ao longínquo cotovelo oriental, em que o rio finda o seu escarpado itinerário serrano para entrar naquela quietação preguiçosa e doce das terras baixas e litorais. Desmontou o filho mais velho que trazia atravessado na sela e desceu ele próprio da montada, que prendeu  num carro. Pegou, de seguida, nas mãos de Inês e tomou o seu corpo nos braços para a ajudar a descer. Ficaram os dois de mão dada, olhando e sorrindo do cuidado extremo que havia em tudo aquilo que os rodeava.

—Foi por causa deste momento que a minha avó Isabel no seu testamento, quando legou ao mosteiro o seu paço, salvaguardou o direito de estadia às pessoas da sua linhagem — murmurou Pedro ao ouvido de Inês. — Querençosa avó que tantas vezes me vieste aqui receber e beijar as mãos;  boa e perfeita mulher que folgavas o Pentecostes a soltar os presos, a encher  tinas de vinho, a passar ao fogo vacas metidas em espetos, a acastelar montes de pão, a nenhum vedando a comida e a bebida que te pediam.

Inês achou-lhe graça. Recolheram-se ao paço do mosteiro, onde os carros e as bestas iam chegando, aguardados pelos frades de Santa Cruz. À noite, o céu clareou e o ar esfriou. Abeiraram-se então os dois do parapeito das janelas ogivais dos aposentos, Inês com a cascata  a correr dos cabelos, Pedro embrulhado num abafo de pele de urso, e viram as constelações frias do Inverno lucilarem a sul, nos campos escuros do céu. De vez em quando, ainda se ouvia um balido desgarrado na escuridão do vale, onde cintilava aqui ou ali o brilho isolado dum lume. Quem diria que, no meio daquela concórdia, a Morte havia já descido à Terra e se passeava nua e gulosa na várzea que os rodeava, farejando carne humana mimosa; em vez da túnica branca duma donzela trazia o seu esqueleto de velha faminta e no lugar dum lírio branco uma gadanha de prata cortante.

Em Lisboa, o rei foi informado pelos escutas do seu ministro, Diogo Lopes Pacheco, da viagem do filho e de Inês. Surpreendeu-se, quando soube que o destino do filho não era Alcobaça, mas Santa Clara, em Coimbra. A princípio pensou que se tratava dum mal-entendido e que o filho iria ficar nos coutos de Alcobaça com o abade, como era seu hábito. Compreendia bem essa aliança surda do filho e do abade e procurava não lhe dar demasiada importância, pensando que tudo isso se circunscrevia a uma parcela insignificante, que em nada beliscava o poder dos seus meirinhos. Depois, quando teve a certeza que o séquito de viaturas do filho se dirigia para Leiria, sobressaltou-se.

Pediu à pressa uma reunião formal do seu conselho e encarregou Diogo Lopes de fazer o exame escrupuloso da situação que se vivia em Castela. O conselho reuniu-se na alcáçova do castelo de Lisboa, por cima das ameias da Sé e do primeiro varadim da fortificação. Era um dia triste, húmido e ventoso de Dezembro, a caminho da consoada, com afazeres de família e ofícios religiosos, e o rei deu de imediato a palavra ao seu ministro, para que todos se pudessem pronunciar de seguida. Ele reservava-se, como de costume, para o fim.

—Senhores, conheceis bem a situação de Castela depois do abandono de Branca e dos desvarios vários do rei — começou Diogo Lopes, pondo a jeito com os dedos as mangas grossas do gibão. — O que vos trago de postumeiro não é muito, mas chega para novo ponto. Há um mês, depois da capitulação do rei, a nobreza exigiu sanhudamente a Pedro de Castela que se apresentasse em pessoa às conversações. Escolheram um sítio perto de Toro, Teradilho, com o caudal do Douro a correr por entre as escarpas. A nobreza insistiu nas suas queixas e nos seus princípios; estava afeiçoada aos direitos de Branca e não saía dali sem os ver satisfeitos. O rei procurou então, num último razoar, ganhar folga, retirando-se para Urvenha, falando do estado de saúde de Maria Padilha e dos filhos, que entretanto para lá se haviam retirado. Em Toro e Teradilho, a nobreza não viu al na retirada do rei senão uma afronta às negociações. Acorreram os nobres, no princípio deste mês de Dezembro, a Urvenha, onde o rei não encontrou um besteiro que o acoutasse; foi depois encarcerado por não cumpridoiro, em regime de liberdade vigiada, no mosteiro de S. Domingos, em Toro, onde neste momento se encontra. Foi ainda esburgado do governo e os ofícios da corte e os lugares de governo foram entregues a uma junta do reino. No comenos, atende-se que o papa Inocêncio VI felicite os nobres pelo bom resultado da campanha e João Afonso seja sepultado com as pompas devidas no mosteiro de La Espina.

Quando Diogo Lopes Pecheco acabou de falar, Afonso IV passou os olhos pelos conselheiros. Uma onda de perplexidade passava-lhes pelo rosto. Ele falara já em privado com o ministro, nos claustros da Sé, onde continuava a ter o seu retiro, e estava ao corrente da prisão do rei. Álvaro Gonçalves, meirinho-mor do reino, ergeu o braço e fez sinal ao rei com o indicador e o médio, pedindo a palavra.

—Dizei-me sem tardança, senhor Diogo Lopes Pacheco, por onde andam os meios-irmãos do rei?

—A nobreza é capitaneada, como sabeis, depois da morte do senhor de Albuquerque, pelo senhor Dom Fernando, marquês de Tortosa, esposo da filha do infante Dom Pedro, nosso senhor, e sua esposa Dona Constança — respondeu Diogo Lopes. — Este senhor todos vós, com excepção de Estevão Lobato, o conheceis. Veio à cidade de Évora buscar a menina sua esposa, a infanta. Fradique, Telo e Henrique seguem-no com as suas mesnadas e pendões e julgo que estão neste passo em Urvenha, discutindo as condições da liberdade do rei

—E a rainha-mãe, a nossa muito querençosa Maria de Portugal — voltou a insistir Álvaro Gonçalves.

—Continua, ao que sei, em Tordesilhas, no mosteiro de Santa Clara. Mas apronta-se para assistir às exéquias do senhor de Albuquerque, que foi como sabeis o seu valido e o artífice do casamento do rei com a senhora de Bourbon.

—Senhores, este el-rei dom Pedro de Castela, neto do nosso senhor, é rei sem saber o que aos bons reis cumpre haver — continuou então Álvaro Gonçalves. — É rei desordenado, sem aviso, sem disposição. Certo que, em tais casos, os desleixos, as injustiças, as testilhas e as guerras que caem sobre o reino são já poderosos e difíceis de abater. Ainda assim, quer-me a mim parecer que o achaque desta situação ou não era, ou era de muito menor intensidade se o rei não andasse amancebado com Maria Padilha e até casado por fora, como consta que anda, com Joana de Castro, num grande descaro de bigamia. Cumprisse ele o matrimónio que as cortes do reino lhe pediam e pedem e nenhum achaque viria aos povos. A menos que o matrimónio fosse estéril de sucessores e por aí vamos ao outro ponto, que é de novo um mau matrimónio, o de seu pai, amancebado que também  andou com Leonor de Gusmão, descuidando de dar filhos à sua lídima esposa e cuidando apenas de os fazer na barregã. O destino dos reinos que por tais reis é governado não poder ser al que a desordem interna, que é a pior das guerras. Castela está longe e fora da nossa jurisdição, mas muito nos deve aqui servir de exemplo para o que cá dentro do reino hemos de fazer.

Sei bem o que queres desdobrar, Álvaro Gonçalves — pensou escuramente Afonso IV. — Daqui a pouco estás a falar que a justiça del-rei deve estender o braço té o pescoço de Inês Pires de Castro e dos seus filhos, para que o reino se livre de todas as más suspeitas futuras. Prouvera a Deus que estivesse no teu lugar para pedir o mesmo e não estar no meu para o dar. Pesa mais que calhau esta coroa, maça mais que clava de ferro, fere mais que estoque. Dava-a por um migalho de quietação.

Estevão Lobato desviou o rosto do fogo da lareira e pediu com a mão a palavra.

—E as pretensões do infante Dom Pedro de Portugal ao trono de Castela — perguntou ele.

—A nada dão hoje azo — cortou o meirinho-mor. — El-rei tem irmãos e filhos, ainda que bastardos. Um dos seus irmãos, Henrique, conde de Trastâmara, está mesmo maridado com Joana Manuel, irmã da defunta infanta Dona Constança,  nossa senhora, e que é, nas Espanhas, a única bisneta viva de Fernando o Santo. Demais, o infante há muito que asseverou a el-rei seu pai, com seu selo de infante, desinteresse total no sucesso. Deus querendo, não virá por aí mal ao reino. O perigo está nos dias futuros, que não andam assim longe de nós, quando o infante Dom Fernando, frágil e mal conhecido de seu pai, tiver de enfrentar o azedume del-rei seu pai, a inveja dos irmãos, as intrigas dos Castros, a presença de Inês junto do rei, que alguns dizem já seu esposo de matrimónio. Por aí se filha a desgraça.

Pero Coelho pigarreou, limpando a garganta dos embaraços que as mucosidades do tempo húmido lhe provocavam. O rei e o conselho sabiam que era essa no geral a forma do fidalgo tomar a palavra. Atentaram nele para ouvi-lo.

—Razão tem o meirinho-mor das justiças do reino. Bem sabeis, senhores, que os bastardos são a mão de Deus castigando o comportamento adúltero dos reis. Castela está lá longe, anojada pelo temor da morte e as chamas da guerra, e o que cumpre é afastar o reino de semelhante condição. O meirinho-mor sabe, pelo dever do seu cargo, o que nos cumpre a todos fazer para livrar o reino de semelhante peste.

Álvaro Gonçalves olhou enxutamente os telhados da cidade e mais longe as velas que deslizavam no estuário cinzento do rio. A pequena oração de Pero Coelho fora como um sinal combinado. Agora era preciso pôr cobro às omissões e avançar com os remédios.

—Senhores, a experiência de Castela não nos deixa fuga. Por minha fé, Inês Pires de Castro e os seus filhos, pela sombra nojosa que fazem ao infante herdeiro, devem ser condenados à morte pela justiça del-rei. E asinha, se não quereis desamparar o reino.

Nova perplexidade passou pela assembleia. Fez-se silêncio; apertaram-se os rostos; cruzaram-se os braços. Por um longo momento, cada um se fechou consigo e com os seus sinistros pensamentos. Viam bailar Inês na ponta duma corda, por cima dos filhos degolados. Diogo Lopes Pacheco, por fim, levantou a mão e pediu de novo a palavra.

—Senhores, a situação futura do reino é motivo da preocupação de todos. Tendes razão para temer a desordem futura do reino se o frágil infante Dom Fernando tiver de enfrentar a mal-querença de Inês Pires de Castro, seja ela ou não sua madrasta. Pero, não vos deveis esquecer que cá estamos para lembrar a el-rei os seus deveres e compromissos. Fui aio do senhor Dom Pedro e conheço-o melhor que nenhum de vós. Sei a paixão fogosa que põe em tudo e a liberdade e o desapego em que gosta de viver. Foi buscar Inês a Albuquerque com ordem del-rei, mas lá iria, a Albuquerque ou a Aragão, se lhe tivesse de desobedecer. O amor que o infante há por tal dona é de ordem tal que maneira teria de filhá-la à própria morte. Credes vós que o infante acataria tal setença sem rancura? Credes que cuidaria, sem se virar, sanhudo e estorvado, em guerra, contra el-rei e contra nós? Não. De guisa, vos peço mais siso, que acautelar o reino de desordens futuras metendo-as hoje cá dentro não me parece solução.

—As sanhas de hoje do infante, enquanto reinar com contrato firme seu pai, el-rei nosso senhor aqui presente, serão de preferir às manhas de amanhã para afastar da sucessão seu varão — emitiu Pero Coelho.

A assembleia recolheu-se de novo, mas pareceu assentir tacitamente às palavras do último conselheiro. Diogo Lopes Pacheco disso se deu conta sem surpresa.

—Senhores, não quero embargar os vossos propósitos, mas se quereis matar Inês Pires de Castro e os filhos andai calados e encobertos e dissimulai sempre, de guisa que nenhum note o que se passou, que o infante é tão sanhudo que nos comeria vivos a todos.

Olharam para o rei, que até aí estivera sempre calado, ora fitando o que falava, ora os que escutavam. A um sinal seu o mordomo-mor mandou chamar um moço-de-câmara que trouxe pichéis de vinho, castanhas e viandas de espeto para que todos comessem e bebessem. O moço ajeitou no fogo da lareira novo tronco, limpo de ramos. O rei preparou-se para falar.

—A todos ouvi. Também a mim me preocupam os destinos do reino e o futuro do meu neto Fernando. Não gosto de ver a inclinação que meu filho põe em Inês Pires de Castro e hei receio dela, e mais ainda agora, que sei Inês no paço de Santa Clara, em Coimbra, que minha mãe destinou tão-só a pessoas de sua linhagem. Não aprouve a Deus ter-me noutro lugar, mas neste, onde o cálice é o mais amargo de todos. Não me peçais sentença na hora. Deixai-me solto por este tempo de liturgia e depois da consoada bom é que partamos todos, no maior segredo, para a linha do Mondego, ao castelo de Montemor-o-Velho, a cinco léguas de Coimbra. Andai lestos e ponde o maior tento na língua e nos actos, se não quereis comprometer este nosso conselho.

Parou, por momentos. Compôs no rosto uma expressão menos carregada. Bateu palmas e finalizou.

—Agora comei e bebei em boa paz e folgança.

Inês e Pedro viviam o seu idílio de Coimbra, na ignorância do que se passava em Castela e do que se tramava em Lisboa. Pedro, por um informador de Santa Cruz, soube que o sobrinho fora semi-aprisionado no princípio do mês em Toro, mas não ligou. Limitou-se a recusar um convite do prior-mor do mosteiro da cidade para montear no dia seguinte, para os lados da Lousã.

Inês, por seu lado, entregava-se, enfeitiçada e contemplativa, àquela paisagem de alma em fim de Outono, que despia, púdica e triste, as últimas folhas. Todos os dias de manhã sorria quando abria as janelas dos aposentos e se debruçava para olhar a várzea, o rio e a cidade. Havia as névoas esbranquiçadas sobre o rio, as águas paradas nos pauis, as aves soltas que passavam, piando de desconsolo e melancolia. Folhas, terras e troncos enegreciam, mostrando o último momento do seu apodrecimento. As águas estagnavam, mansas e adormecidas, prontas a congelarem no seu sono frio de Inverno. Assim, as árvores nuas e lívidas como um cadáver, congelando a seiva nas veias. Inês sentia a morte à solta pela várzea, fechando os olhos aos campos e às aguas, mas era uma morte vegetal, sem sede de sangue ou de carne, uma rainha pacífica que adormecia com a sua minúscula varinha de condão as rosas, que ela mesma, mais tarde, noutra viagem, acordaria. Não imaginavas, Inês, que essa madrinha feérica, rainha das flores e das estrelas, era a mesma que se preparava para te vampirizar, a ti, o sangue.

Nesta despreocupação de ânimo, passaram a consoada e ouviram a voz alegre dos sinos na noite da passagem para o novo ano. Inês sempre atenta e deslumbrada diante daquela paisagem que parecia saltar duma iluminura artística, lavrada com as mais finas rendas, e Pedro feliz de a ver assim radiante e luminosa com aquela novidade. Sentiam-se bem os dois no paço da avó, com Teresa cuidando das crianças e dos aposentos. Pensaram ficar mais tempo que o inicialmente previsto. Haviam vivido o tempo dos ofícios natalícios e não houvera espaço para conhecer com vagar os arredores da cidade e de Santa Clara. Fizeram, logo no primeiro dia do ano, planos de longos passeios pela quinta e pelo rio, primeiro sozinhos e depois com os filhos e Teresa. Estavam encantados com a amenidade sentimental do lugar.  Pedro recebeu, nesse mesmo dia, notícias de Santa Cruz, dizendo que a situação de Castela normalizava, que o sobrinho voltava a ter em seu poder os selos reais e que o prior-mor renovava o convite duma surtida ao javali, que andava anafado  e lento pela fartura de bolota, para daí a dias. Pedro entusiasmou-se e decidiu aceitar o favor do prior. Falou de imediato com Inês em montear nas florestas negras que estavam para lá da garganta alcantilada do rio, mas mostrou-se incomodado em deixá-la sozinha.

—Vai com o ânimo em paz, que hemos vagar um para o outro. Hei-de passar a tarde a bordar no quarto e a manhã a cantar com as clarissas — sossegou-o Inês.

Entretanto, nos primeiros dias do ano, cada um por si, no maior recato e disfarce, os homens do conselho de el-rei foram chegando a Montemor-o-Velho. A 5 de Janeiro estavam todos reunidos na sala do palácio real, no lado leste do velho castelo, não longe da igreja de Santa Maria da Alcáçova. Das janelas ogivais da sala via-se a encosta larga da cidade e, logo abaixo, o rio em quadra de cheias, alagando os campos de arroz da várzea.

—Sabeis todos o que nos traz  aqui — começou o rei, titubeante e a custo. — Poupemos palavras para este acto que nos fere. Sei que o infante deixa os paços de Santa Clara depois de amanhã e que se ausentará todo o dia para os lados de Penacova com o prior-mor de Santa Cruz, que desconhece a nossa presença aqui. Só estarão de volta noite velha ou mesmo de madrugada. Inês e os filhos ficarão em Santa Clara. Meus senhores, se quereis dar justiça ao reino é esta a ocasião. Amanhã mesmo, noite alta, partiremos para Coimbra.

—Cumpra-se a justiça del-rei, nosso senhor — murmuraram em uníssono os conselheiros.

Foi assim, Inês, que meia dúzia de embuçados te condenaram à morte com os teus filhos, ali naquela sala fria de Montemor. Mataram-te porque houve ligeiras suspeitas de que poderias um dia turvar o funcionamento da roda do reino. Eras uma inocente, rodeada de filhos, com uma vida reservada e modelar, costumes honrados, que amaste quem te amou, mas ninguém prestou importância à realidade da tua vida. A única coisa que preocupou aqueles homens foram suspeitas futuras; mataram-te ali em nome daquilo que não fizeste e só, por hipótese remota, não por natureza, podias vir a fazer. Tiraram-te a vida para que não pudesse acontecer, de modo nenhum, o que provavelmente nunca aconteceria. A tua morte foi tão escandalosa como a de alguém que fosse morto à nascença, só para que um dia não houvesse hipótese de ser um assassino. A razão do reino transformava um crime inqualificável numa necessidade justificável; por isso, todos aqueles mascarados que te condenaram naquela sala foram depois tranquilamente beber e comer, como se fossem homens avisados e não monstros cruéis.

E o que mais me escandaliza, é que Deus, o responsável de tudo o que existe, haja deixado a tua morte correr assim a frio. A tragédia da criação começou com o momento da tua morte, Inês. Depois de ti é que a humanidade abandonou o Éden e a vida se tornou um absurdo. Foste o primeiro despojo inexplicável duma pilha de cadáveres, que nunca mais parou de crescer nos braços desamparados e impotentes da Terra. Se a Terra vai hoje a caminho de ser só cinza triste, foi porque Inês morreu inocente,  sem se ouvir da parte do Criador, lá dos céus, um grito de horror, que paralisasse a mão do carrasco.

Pedro partiu na madrugada do dia previsto. Tinha encontro com o prior na cidade, do outro lado do rio, no claustro da igreja de Santa Cruz. Levava consigo os poucos homens de monte que trouxera da Atouguia e deixava Inês com Teresa e com as monjas.

Inês acompanhou-o ainda noite escura pelos jardins e hortas do mosteiro e despediram-se já perto do rio, ao lado do tanque de água que servia a quinta. Foram as últimas palavras que trocaram, quase banais, insignificantes, dois ou três monossílabos tiritados no frio da noite, debaixo duns chuviscos que zigzagueavam na correnteza dos ventos. E foi a última vez que se viram com vida, os rostos perdidos nas sombras fundas e escuras da noite, os corpos indistintos nos abafos largos, os olhos quase fechados. Deram-se por um instante as mãos, olharam-se, mas eram já dois fantasmas rodeados pela escuridão da morte e pelos pios lúgubres das almas penadas. Ao longe, as vozes cristalinas dos sinos chamaram Pedro e ele poisou nos lábios doces de Inês o último beijo da sua vida. O último? Não, que este homem descendia da raça olímpica de Orfeu e não hesitava em descer aos infernos para beijar Inês. Razão tinhas tu, Diogo Lopes Pacheco, que bem conhecias Pedro, quando disseste, no conselho do rei, que o teu pupilo, se necessário fosse, até à morte iria buscar aquela dona.

As crianças haviam ficado a dormir com Teresa. Inês regressou com a intenção de ir buscá-las e se deitar um momento com elas. Antes de entrar no paço, embrulhada num saial grosso fazenda, parou nos canteiros do jardim para sentir o cheiro do alecrim, que se elevava vivo e perfumado da terra. Notou que as roseiras tinham as hastes nuas e verdes, cravadas de espinhos escuros e sangrentos. Eram espetos agressivos, metidos numa armadura de picos. Quem dirá que estas hástias assim agrestes e rudes, mostrando os dentes afiados, prontos a picar, dão rosas tão delicadas, tão aromáticas e macias… Será que toda a beleza inocente se precisa de proteger desta forma, interrogou-se inquietamente Inês.

Foi para dentro. Antes de ir buscar os filhos, ateou as brasas amortecidas da lareira com pinhas secas. Depois, ajeitou nesse leito reanimado e luminoso um toro de castanho, ao pé do qual pôs uma tina de metal com água a aquecer. Acendeu nos cantos do quarto dois círios de cera. Teresa ajudou-a a trazer para o quarto, envolvidas em agasalhos, as crianças ensonadas. Deitou-se finalmente ao pé dos filhos e adormeceu ao de leve a olhar o lume que saltava da bucha de madeira e a pensar no mistério das rosas. Acordou pouco depois com o clarear baço do dia e o respirar dos filhos. Levantou-se, soltou os cabelos, desnudou-se ao pé do fogo, lavou o corpo com a água quente da pequena tina, embrulhou-se num pano de linho grosso, penteou os cabelos húmidos com um pente de osso, enquanto olhava distraidamente para a base azulada das chamas dos círios, que continuavam impassivelmente a arder. O sapato esquerdo que Pedro calçava no primeiro dia que fomos a Óbidos; agora a chanca que estava nos casais da estrada, quando para lá fomos; a proa roída da fusta que vimos um dia enterrada na areia; as mãos duma imagem de madeira que havia em Talavera; o bico polido das pedras de Albuquerque que os milhanos rasavam há tantos anos, era menina e quase não falava, lembrava-se rumorosamente Inês, enquanto sacudia na sombra os cabelos e os alisava, passando e repassando os dentes grossos e largos do pente.

Arranjou-se com todo o cuidado e discrição, pois ia assistir ao ofício das clarissas e cantar com elas no coro. Falou com Teresa sobre o almoço e o preparo dos meninos, quando se levantassem.

—Que dormam soltamente, pois a manhã vem com geada e Brites anda entupida de nariz — recomendou Inês.

Quando atravessou o paço e tocou o jardim viu quatro homens  embrulhados em capas escuras de pele, capuz deitado sobre os olhos, com um carro por detrás, onde na bandoleira estacionava um quinto homem, este mais atarracado e corpulento, de capuz preto e tabardo grosseiro. Três outros, embuçados como os primeiros, dirigiram-se então, a partir das traseiras do carro, para o portão da quinta, mirando se chegava alguém da ponte da cidade. Não reconheceu nenhum deles. Neviscava miudamente; sobre as hastes do alecrim e do rosmaninho havia bagas de sincelo. Ocorreu-lhe que fossem caçadores, que por ali estivessem de passagem, para Cernache ou Condeixa, ou então frades de Santa Cruz que trouxessem cargas para as cozinhas ou para o hortelão. Olhou os quatro homens com expectativa e eles avançaram decididamente para ela. Um deles, adiantou-se e destapou o rosto. Era o rei. Não o via há mais duma década, mas ainda assim reconheceu-lhe a expressão dura e fechada.

—Vós, real senhor, aqui, a esta hora temporã — perguntou-lhe estupefacta Inês, notando-lhe as feições alteradas, os olhos inchados e vermelhos, o rosto cinzento e magro, torturado pela idade e pelas aflições dos últimos dias.

Afonso fez-lhe sinal com o rosto de que recuasse e entrasse no átrio do paço, ao fundo do qual ficava a caprichosa escadaria que dava acesso ao interior, onde se espalhavam os vários aposentos. Era um pátio coberto, pavimentado de laje, onde havia duas tochas presas na parede enegrecida do fumo da cera e dois assentos rasos. Os homens que acompanhavam o rei destaparam o rosto inquieto e sombrio. Inês reconheceu de imediato Diogo Lopes Pacheco e o meirinho-mor, Álvaro Gonçalves, que costumava acompanhar o rei a Alenquer, nos tempos idos de Constança. O outro não sabia quem fosse, mas lembrava-se dele na festa de baptizado do primeiro varão de Constança. Era Pero Coelho, senhor de Canidelo. O rei desembaraçou-se da capa e sentou-se a meio do escabelo. Esteve um momento calado, enquanto os seus companheiros se dispunham em posições de guarda pela sala. Depois, disse ao que vinha e porque vinha.

—Mandais-me matar, senhor, a mim e aos meus filhos — gritou Inês assombrada.

Lá fora não bulia vento, nem folha. Dos aposentos do paço não chegava rumor de nada. O rei deixou cair pesadamente a cabeça sobre o peito. Engoliu em seco, fechou os olhos. Não fecho os olhos há mais de três dias com medo das pavorosas visões que hei e não sei se depois disto os voltarei a fechar algum dia, a não ser para sempre. E se isto assim for, que seja asinha, que a morte deve ser consolo em tanto desvario.

Nisto, interrompendo os pensamentos do rei, uma criança loira e rosada apareceu a meio da escadaria. Descia a medo, tacteando com a ponta dos pés a pedra dos degraus, sem saber se devia continuar ou voltar para trás. Era João, o filho mais velho de Inês e Pedro, que acabara de se aprontar e vinha ao jardim armar uma construção de paus.

—São estes os mimos que vós quereis matar? São eles os poderosos inimigos que vós, e os vossos cavaleiros, tanto temeis? Anh…? Que ferocidade é a vossa que sois capaz de dar a morte a vossos netos, um deles de peito e os outros dois inofensivas crianças que nem os dentes ainda trocaram? Sois cavaleiros ou sois bestas-feras? Anh…? Dizei… — perguntou decomposta e furiosa Inês, no meio da sala, de punhos fehados.

Afonso levantou então os olhos para o neto. Era um rapazinho de seis ou sete anos, de caracóis loiros, com a cara mole e oblonga do pai, os olhos cheios e assustados. Era a primeira vez que o via e logo para lhe dar a morte. Não foi capaz de reter um soluço angustiado e amargo, que lhe veio do fundo das entranhas e lhe atravessou o corpo todo até borbulhar na garganta com um ronco grotescamente animal e lhe arracar aos olhos uma explosão de lágrimas. A primeira vez que te vejo é para te matar. Comecei o meu reinado a montear em Sintra animais fabulosos e a fazer a guerra a Afonso Sanches e acabo-o a montear em Santa Clara três infelizes meninos do meu sangue e a fazer a guerra a meu filho. Bofé, não há pior condição que a minha, acabar o reinado a dar a morte aos meus netos e a levantar contra mim o meu filho.

Então, num último esforço, com a cara ainda molhada de emoção e o ronco atravessado na garganta, Afonso ergueu-se a tremer do escabelo e virou-se, de pernas abertas e braços erguidos, para os conselheiros.

—Senhores, se estais na disposição de matar essas crianças, morra eu aqui com elas — rouquejou ele. — Não lhes sobrevivo se as souber a patinhar em sangue. Cumpra-se a justiça aprazada na mãe, que não é do meu sangue, mas poupem-se estas crianças, que são meus netos e não têm culpa dos feitiços da mãe e da cegueira do pai. Ainda assim, se a quereis matar, não armais aqui, no paço de minha mãe, o cepo do carrasco. Deixai o perro do carrasco do castelo de Montemor no carro, com suas correntes, cordas e machados, e dai vós mesmos a esta dona uma morte rápida e certeira com vossos punhais de nobres, que ela tem linhagem e é bisneta do pai da vossa rainha.

Pero Coelho, Álvaro Gonçalves e Diogo Lopes Pacheco desembaraçaram-se das capas, levaram as mãos à cinta, puxaram das armas curtas e afiadas, avançaram para Inês, que estava encurralada e ébria entre os quatro. João, sempre espectado no meio da escadaria, quando isto viu, recuou assustado a chorar. Inês, ainda decomposta pela raiva que a agitara, aliviou-se com as palavras do rei e a visão humana do seu sofrimento. Foi este o gesto da tua bravura, Afonso, nenhum outro. Poupaste, no último momento, a vida dos teus netos e mostraste à tua nora que sofrias como um humano, com sentimentos e remorsos. Foste, no momento do teu soluço e da tua emoção, a figura mais trágica e sofredora da História de Portugal. A tragédia da Castro é toda tua e não de Inês. O verdadeiro drama da nossa História chama-se “Afonso IV” e não “Inês de Castro” e está ainda por escrever. A Castro só sofreu a sério, quando tiveste o desfaçatez de lhe anunciares a execução dos filhos. Tirando isso, nem se deu bem conta que em dois ou três segundos ia primeiro bailar na ponta das armas e depois cair varada pelas punhadas certeiras.

Aliviada da tensão em que a morte das crianças a deixara, Inês pensou em Pedro. Ao seu espírito voltou, naquela fracção ínfima de tempo, o mesmo pormenor descuidado do sapato de Pedro, em que reparara, dentro de si, há pouco, quando despreocupadamente penteara os seus longos cabelos, ao pé do fogo da lareira, embrulhada num grosso lençol de linho. Tombou, logo depois, no sorvedoiro escaldante duma tontura, que lhe esvaziava as veias e roubava as imagens, com as mãos no peito a ferver, manchadas de sangue. Manchadas ou queimadas, que tu, Inês, tinhas por dentro o lume brando e claro das estrelas e não o sangue espesso dos porcos e dos homens.

O choro assustado de João despertou a curiosidade de Teresa, que o veio receber à porta da cozinha do paço, com Dinis preso ao colo.

—Nino, que passa contigo — perguntou-lhe preocupada, enquanto lhe passava as costas da mão nos cabelos.

O menino encostou-se ao seu saial de linho, dedos na boca, e reforçou o choro assustado e nervoso. Pareceu-lhe anormal o estado daquela criança, que ainda há pouco a deixara, sorriso nos olhos e nos lábios, cheio de entusiasmo e de planos para brincar no jardim. Deu dois passos no corredor e apurou o ouvido. Nada se mexia, nada se ouvia. Deu uma mirada aos quartos da senhora e do infante. Brites dormia sossegada; ouvia-lhe a respiração ruidosa e presa no nariz. Pensou voltar para a cozinha mas o choro apavorado da criança contra as suas pernas obrigou-a a avançar no corredor e a aproximar-se da larga escadaria que descia do interior para o átrio.

O pavor da criança, à medida que ela avançava no corredor e depois descia os primeiros degraus da escada, inquietou-a. Foi então que, numa vertigem, percebeu, lá ao fundo, na entrada do átrio, debaixo da luz amarelenta e gordurosa dos círios, os olhos brancos e revirados de Inês, o corpo desconjuntado no chão, numa poça de sangue, a boca cheia de espuma.

Virou a cara ao corpo e gritou o mais que pôde várias vezes, num histerismo fundo, com João, aos berros, agarrado às suas pernas. Pobre criança, que viste, aos sete anos, a tua mãe assassinada no chão, num charco de sangue, a cara decomposta e os olhos brancos, e os assassinos a puxar da cinta as facas com que a picaram. Um dia vieste a saber que um desses homicidas era o teu próprio avô. Enlouqueceste para sempre e para toda a vida ficaste preso ao terror desse momento, infeliz criança. Um dia, debaixo do efeito eléctrico dessas negras visões da tua infância, tu próprio havias de puxar da cinta o punhal e assassinar à punhada a tua inocente esposa, Maria Telles. O teu avô salvou-te, num último relâmpago, a vida, mas não a sanidade mental e o punhal com que mataste a tua esposa, numa tresloucada madrugada de Julho de 1379, era ainda o mesmo que serviu para matar a tua mãe. Por causa desse punhal perdeste a coroa de Portugal, mas isso não tem qualquer importância ao lado da vida da tua triste esposa e da loucura com que te perderam.

Teresa depressa percebeu dentro de si que precisava de parar com aquele histerismo, acalmar João, tirar rapidamente dali as crianças, pondo-as a salvo dos assassinos, se por ali ainda rondassem. E depois era preciso tapar o corpo de Inês, vedando aquele espectáculo absurdo. Havia uma saída para as hortas pela cozinha e foi essa que ela usou para levar as crianças para o mosteiro, onde as monjas a chorar as recolheram, depois de ouvirem a precipitada exposição da camareira de Inês. A abadessa deu ordens para que ninguém saísse e Teresa voltou ao paço horrorizada mas decidida.

—Fecha-nos depois o portão da quinta — recomendou-lhe a abadessa, antes dela se afastar.

Lavou as lajes, fechou os olhos a Inês, limpou-lhe a boca, tapou-lhe o corpo amarrotado e ensopado de sangue com uma seda e passou-lhe depois por cima um forte lençol de linho e uma manta grossa e escura de estopa. Ali deixou a infanta morta, nas lajes frias, velada pelos dois círios impassíveis que tudo haviam visto, aguardando a chegada do infante, enquanto ela, a tremer e a soluçar, se recolhia ao mosteiro, ao pé das crianças.

Pedro regressou de madrugada. Estranhou o portão fechado da quinta e os círios acesos na portaria do mosteiro. Quando entrou no átrio do paço não percebeu o que fazia ali, no chão, um volume corpulento, mas também não procurou saber o que era. Galgou as escadas duas a duas, foi deixar a caça miúda na cozinha para Teresa arranjar nessa manhã e dirigiu-se para os seus aposentos. Inquietou-se ao vê-los vazios, com as camas desfeitas, a tina de água suja por vazar, o lençol de linho ao monte, com o pente de osso de Inês por cima, os dois círios acesos, no fio, quase sem cera, a capa bordada caída no chão, ao canto do quarto, tal como a deixara de madrugada, antes de sair abraçado com Inês.

Voltou ao corredor e julgou melhor chamar por alguém.

—Te-re-sa, Te-re-sa, olha-me pelas perdizes que estão na cozinha. Teresa — repetiu várias vezes Pedro.

Nada. Abriu a porta da câmara da moça e deu com o mesmo preparo, a cama desfeita, as roupas arrastadas no chão, a cinza fria na laje da pequena chaminé. Apoquentou-se e chamou por Inês. Ninguém lhe respondeu. Desceu então para destapar o volume que estava na entrada do átrio e que não encarava o que fosse. Talvez haja ali um fardo de roupa lavada, chegado ao fim da tarde do mosteiro, pensou ele, com algum mistério e interesse.

Quando levantou a manta de estopa percebeu de imediato que se tratava dum corpo humano, que morrera havia poucas horas e que o frio conservara intacto. O lençol de linho grosso com que Teresa cobrira a fina seda que deitara sobre o corpo de Inês manchara-se de grandes nódoas espessas e escarlates, que pingara para o chão um sangue agora coalhado e grosso. Com a surpresa do sangue, deu um pulo para trás e soltou um monossílabo incompreensível de repulsa.

Voltou a aproximar-se do corpo e destapou-o. Deu de caras com o corpo de Inês e a princípio não acreditou no que via. Tocou-lhe, mexeu-lhe, virou-o, para se certificar de todas aquelas punhadas fundas. Aquele corpo frio e rígido, com os chapins descalçados, era um boneco sem articulação que lhe imitava as formas, mas não podia ser a donzela imortal e gloriosa que ele vira brilhar um dia na boda de Constança. Depois, cheio de espanto e terror, relacionou o que vira no piso de cima com o espectáculo terrível que tinha diante de si e compenetrou-se que aquele corpo apunhalado era mesmo o de Inês.

Num repente, que o chocou como uma pedrada violenta, lembrou-se da conversa do pai, na alcáçova de Santarém, uns anos antes, acerca do adultério dos reis e da bastardia. Ah perro, que me mataste vivo, pensou furiosamente. Pretendeu urrar com todas as forças que tinha, insultar desabridamente o pai, a mãe, o aio, a corte, mas a voz ficou-lhe presa para sempre na garganta. A célebre gaguez de Pedro a que Fernão Lopes se refere na sua crónica, foi a consequência deste choque absurdo e medonho. Antes disso, era um tímido, que falava pouco, mas ainda assim claro; depois, diante do corpo sem vida de Inês e da lembrança colérica do pai, tornou-se um gago violento, um nervoso incapaz de dizer uma polissílabo a direito, duma só vez, e que gesticulava muito para se fazer entender. O sofrimento daquele momento foi tão chocante, que lhe roubou a voz; em vez de falar ficou para sempre a gemer e a soluçar.

Recolheu consigo os chapins e disparou para o mosteiro, aflito e desnorteado, à procura dos filhos. Aliviou-se quando Teresa e a abadessa lhos mostraram na sala interior da portaria, a dormir tranquilamente. Atirou-se então para os braços de Teresa a soluçar. Era o mesmo choro fundo e interior, arrancado aos solavancos, que em criança balbuciava sozinho no quarto da Atouguia, nas noites frias de Inverno, quando pensava na solidão da sua vida, na braveza do mar a rugir, no afastamento da mãe, no desinteresse frio e ríspido do pai, nas pessoas que morriam desprotegidas na vila.

Lá fora, em Santa Cruz, repicaram os sinos da hora de prima. Sempre a soluçar, abeirou-se da janela da portaria e espreitou para fora. Dentro dalgum espaço, o Sol nasceria por detrás das nuvens; há vinte e quatro horas que não se deitava e nas próximas vinte e quatro também não o faria. Era preciso, de imediato, em segredo, sem que os filhos disso dessem conta, sepulturar Inês no chão sagrado do mosteiro e partir a toda a brida para a Atouguia, enquanto dois homens seus deixariam Coimbra para avisar os Castros da forma infamante como Inês fora trucidada pelo rei e dos pendões de guerra e sangue que ele, o infante, estava pronto a levantar contra o pai e rei. Teresa e as crianças continuariam protegidas no mosteiro, ao cuidado das monjas, longe dos seus propósitos e dos seus desastres.

Na Atouguia, reuniu os homens que lhe eram fiéis na região e mandou vir outros de Alcobaça e do Ribatejo, onde tinha relações antigas e fiéis. Eram três ou quatro centenas de homens em armas, prontos a talar de surpresa e à traição tudo o que fosse propriedade do rei. Teve notícia da reacção furiosa dos Castros à morte da irmã e da disposição em que estavam de invadir, a partir de Tui e Monterrei, o norte de Portugal com as suas mesnadas. Pedro estudou então com os capitães vindos de Alcobaça a melhor maneira de ferir o rei e optaram por partir para o norte para se juntarem às mesnadas galegas, tomarem o Porto de surpresa, devastarem cruamente nas coisas do rei e dividirem o país em dois. A guerra, com a entrada dos Castros, prometia ser mais dura e profissional do que ele próprio a princípio encarara.

Afonso, em Lisboa, deu-se conta de todo este alarido. Contrariou o conselho dos ministros, que lhe chegaram a propor a prisão do infante e o envio dum grosso exército para ocupar a Atouguia e desarmar os homens do filho. Sabia que isso levaria à ruptura e à instabilidade definitiva do reino, se não mesmo à morte ou ao suicídio de Pedro. Preferia, por isso, alguns estragos passageiros no norte do país, longe da capital, que uma luta surda, venenosa, de vida ou de morte, ali às portas de Lisboa, entre pai e filho, que só acabaria, pressentia-o, com o fim dum deles às mãos do outro. A ideia era pôr a correr o tempo, deixando ao infante a possibilidade de surtidas, que lhe quebrassem a fúria e aliviassem a pressão. Ele, Afonso, estava cada vez mais cansado e desenganado da vida e da autoridade, para se alterar de mais com as notícias que lhe chegavam da Atouguia. As suas cismas fundas não iam para a afronta do filho, que lhe era no íntimo leve e suportável, mas para aqueles netos a quem salvara a vida, mas roubara a mãe.

Como terá sido o desmame de Dinis? E a tristeza de Brites, quando deixou de ver a mãe e se apercebeu que não mais a teria — perguntava-se obstinadamente Afonso. Recusava-se, a todo o custo, a pensar em João, mas era atormentado, nas breves horas da madrugada em que conseguia fechar os olhos, pela horrorosa visão do seu rosto branco e aterrado.

Triste e desditoso Afonso, que conjecturavas já, à distância de 25 anos, no feltro escuro do teu secreto pensamento, o crime futuro do teu neto e sofrias por seres tu o modelo da sua desgraça e da sua vida. Essa foi a tua pior angústia, que só é comparável à de MacBeth depois de apunhalar Duncan, seu rei, ou à de Clitemnestra depois de decapitar à machadada Agamémnon, seu marido. É, por isso, que tu, Afonso, és a mais trágica figura da História de Portugal e a única que foi capaz de fazer dum mimoso conto de amor, o de Inês e Pedro, uma tragédia negra e sangrenta. Só Henry de Montherlant soube perceber o teu doloroso rugido e a máscara torturada de sombra que levaste desta vida, criando com o teu drama a figura de Ferrante. Mas também António Ferreira num dos monólogos da Castro  te pôs, antes da morte de Inês, a lastimares-te desta coisa espantosa, “não sou rei, sou cativo; e tão cativo/ como quem nunca tem vontade livre”. E Columbano pintou-te todo de negro, como se não houvesse na tua alma outra coisa além de escuridão. E teve a História, essa elegante de cabeça vazia, o desplante de te chamar bravo, tu que foste deste mundo cheio de remorsos e de medos.

Tudo se passou como o rei projectara. O infante retraçou à espada alguns lugares, juntou-se às mesnadas desordeiras dos Castros, pôs cerco à cidade do Porto, que resistiu, defendida em nome do rei pelo arcebispo de Braga, Gonçalo Pereira, e aceitou no Verão, cansado e abatido, a mediação de Brites, sua mãe, para se fazer a paz. O rei ofereceu-lhe a real jurisdição no crime e no cível, passando todas as sentenças, provisões, decretos e alvarás a serem entregues em nome do infante. Em termos internos, para efeitos práticos, o pai transmitia-lhe o poder. O velho Afonso mais se comprometia ainda a perdoar e a deixar seguir em boa paz e ordem a todos os que haviam acompanhado o levantamento do infante. Brites, de sua vontade, com o acordo do rei, juntava a isto, sem condições, a vinda para a corte dos filhos de Inês e Pedro. Os mais novos, Brites e Dinis, iriam de imediato para Santarém, onde estavam os filhos de Constança e Pedro, Maria e Fernando. João, o mais velho, por sua vez, passaria algum tempo no paço de Lisboa, juntando-se, semanas depois, aos irmãos. Em troca, pediam apenas ao filho que se responsabilizasse, no presente e no futuro, em perdoar a todos os do conselho do rei que, de qualquer modo, se pudessem culpar da morte de Inês.

As pazes foram assinadas em Canavezes a 5 de Agosto. Trovejava e o rei havia ficado em Lisboa, para não enfrentar o olhar de ódio do filho ou algum rosnido incontido dos Castros e dos seus homens. Em seu lugar compareceu a rainha, acompanhada por quase todos os privados do rei. Pedro ouviu, de dentes apertados, mãos na cinta, atitude desafiadora, o escrivão ler os termos do contrato e demorou a responder o sim. Um silêncio gelado petrificava a enorme tenda de campanha, onde estavam, disfarçados nas sombras, Diogo Lopes Pacheco, Álvaro Gonçalves, Pero Coelho, Álvaro Pais e outros.

—Heis ouvido, senhor meu filho, os termos do concerto de el-rei — perguntou inquieta a rainha, enquanto lá fora os trovões rasgavam, de lado a lado, o céu.

—Se…sim mi…minha se…senhora. Ju…juro e cum…cumpro o que me pe…pedis — respondeu finalmente Pedro, pensando aflitivamente consigo o que faria para esquecer tanta injustiça e tanta perda.

As pazes estavam feitas e Pedro partiu com os seus homens para a Atouguia. Quando chegou ao alto da Serra, vindo do interior, estacou. Dormira na noite anterior em Óbidos e antes disso em Alcobaça e Santa Clara de Coimbra, onde se despedira dos filhos, de partida com Teresa para a corte. Sentia-se vazio e esquecido. Viu o adobe da povoação em baixo, a armadura de pedra da igreja de São Leonardo, as pedras altas do touril que mandara construir no cimo da vila, as águas azuis do largo braço de água que passava perto vila, as areias claras e mansas ao pé do mar, as gaivotas irrequietas no céu azul, as ilhas fronteiriças, os campos cultivados e os de pascigo, onde pastavam à sombra de medronheiros e carvalhos os touros negros e possantes de Alpiarça e Almeirim.

Meditou um instante em tudo aquilo e depois fechou os olhos. A guerra com o meu pai chegou ao fim, agora vai começar a vera guerra comigo, pensou ele truculentamente, empinando a montada.

Mandou um dos homens trazer dois touros dos campos e atravessar de barrotes de madeira as pedras altas do touril. Era ainda a primeira metade de Agosto e os campos iam tardios esse ano. Viam-se paveias de palha de centeio espalhadas à beira dos caminhos; um ar maduro e quente acalentava o ar, que naquela zona nunca é excessivamente quente. Foi ao paço da vila mudar de roupa e mandou tocar trombas de metal na vila, anunciando que ia correr touros. Saiu bailando do paço, vestido com umas calças de pano preto, muito ajustadas à perna, e uma camisa branca de linho, presa ao corpo com uma faixa larga de pano escuro. No braço, trazia um lenço vermelho de seda a esvoaçar. O povo acorreu a vê-lo e tomou satisfação em dar com ele assim brincalhão e esquecido de tristezas. Mandou armar duas tendas no terreiro do lado de fora do touril e pediu do paço viandas, pão cozido e pichéis de vinho, para que todos folgassem enquanto se corressem os animais negros de pontas. Era de tarde e o Sol e a sombra pareciam em equilíbrio, marcando simetricamente dois lados ao mundo.

Pedro saltou a pés juntos, por cima da vedação, para dentro do touril. Mostra um ar solar e quente, batido pela luz jovial e loira dum Sol de Verão. Apanha as barbas e os cabelos com atilhos de sarja e acena para os homens que se aproximam das travessas de madeira. Faz Sol e sombra. Alguém traz o primeiro touro das entranhas sombrias do campo. Chega do lado da sombra. É um touro pensativo, pouco sentimental, fogoso, cheio duma plenitude subterrânea. O infante avança do lado do Sol, certificando-se da presença do bicho. O touro avança paulatinamente. Traz para a arena o vigor dos seus membros e do seu perfil massivo e pesado. Tem um andar lento e compassado; parece uma mancha solar em eclipse total e evoca, por isso, a paixão cega ou o ardor do sangue, o amor ou a morte. Apesar da desproporção, tem uma beleza nocturna, pétrea, de estatuária lunar. É uma estátua da morte, plantada no jardim do universo. É uma massa negra, evocando o Sol e ao mesmo tempo o céu sem estrelas, a noite preta ou o Sol da meia-noite.

O infante está envolvido pela exaltação telúrica do touro. Bate o pé, estica o peito, grita, bate as palmas. As mulheres, ar triste e abafado, que haviam ficado sentadas por ali perto, nas courelas, ao pé das bilhas de barro, mexendo no restolho dos campos ou protegendo-se debaixo da sombra dalguma figueira, levantam-se e aproximam-se curiosas da vedação da arena.

O touro decide-se então. É a noite que se põe a avançar pelo firmamento. A terra treme e o embate entre o homem e o animal dá-se a meio da praça. É uma cópula fantástica entre o dia e a noite, a morte e a vida. O homem traz a manhã na fronte suada, acomoda-se na lua da noite, esses cornos fantásticos, que tocam uma música grave de lira. É a consumação duma união prometida e antiquíssima, o momento em que o amor sendo vida é já também morte. De repente, a noite baqueia e o touro vacila nas pernas, que se dobram até cair de joelhos na areia da terra. Quem o curva é o amor, a resignação, a ciência. Tem um punhal de prata, fino como um vidro, atravessado na garganta; um fio de sangue escorre-lhe pelo corpo e pinga na arena poeirenta, formando um pequeno lençol de prata, uma malha que a terra bebe sofregamente. O infante ergue-se com a camisa rasgada no peito, lugar onde a manhã sobe dentro do homem. Parece um centauro alado e vigoroso, uma estrela rutilante capaz de reger o espaço do cosmos.

Trazem-lhe um pichel de vinho e outro de água. Ele bebe. As mulheres regressam para a sombra das figueiras, onde os miúdos se empoleiram à procura dos primeiros figos maduros. Os homens batem palmas e contemplam no universo os despojos da noite. Abraçam o infante e dizem aos rapazes para lhe trazerem figos mulatos, que ele chupa deliciado. Senta-se nas vigas da vedação do touril e sente, por entre as ruas, uma aragem fresca e salina correr do mar. Contempla a praça vazia, onde apenas uma nódoa negra se vê. É a mancha líquida que sobrou do orgasmo violento entre homem e touro. Soam na igreja de São Leonardo cinco desencontradas badaladas. As mulheres sonolentas e descalças deixam-se ficar nas eiras, dormitando à sombra.

Alguém vem limpar a praça e alguém traz o segundo touro. É um touro emotivo, nervoso, apaixonado. Escarva a arena com fúria e firmeza. Tem todo o abismo do firmamento plantado entre os cornos. O lustre negro do seu pêlo parece em chamas. Tem aparas de sangue nos olhos e os cascos parecem de pedra. É o touro do lado esquerdo, aquele que pertence por inteiro às anomalias do coração, aos segredos torturantes da paixão. É um touro vermelho, que traz a morte e a vida nos olhos. O infante grita e bate o pé direito na terra. As mulheres erguem-se do seu sono e espreitam sentadas no restolho o que se passa no firmamento. A terra rescende e a brisa marítima levanta um pó que parece fumo de criatura recém-apagada. O ruído das cigarras é ensurdecedor e a loucura exausta da natureza sente-se corpo a corpo. Os homens suam com abundância.

—Eh…eh…eh.

Cita de novo o infante. Tem, na mão direita, uma capa presa num estoque. A mão esquerda está na cinta delgada e continua a bater os pés na terra. Grita e toda a sua posição é de estatuária. As mulheres voltaram a aproximar-se da vedação da arena, curiosas e atentas. Pedro segura imóvel a capa, a cabeça ligeiramente inclinada para trás, fitando o Sol. Os homens bebem goles de água e de vinho pelos pichéis, que vão passando de mão em mão. Têm as camisas rasgadas no peito e por esses rasgões vêem-se as porções lustrosas da carne tisnada, tufos de pêlo e capim. Ao fundo, o mar é um cofre mudo de segredos.

O touro avança com o seu peso desmedido e desumano. Pedro vê de relance nos olhos do bicho as águas fundas dum naufrágio; é uma água veloz, a massa volumosa do mar a encher e a crescer. Recebe o impacto da onda e, com extrema violência, é sacudido várias vezes. A tempestade atira-o contra as rochas molhadas e viscosas da costa. O touro marra no homem e arrasta-o com a lua de osso, onde se equilibram os mundos.

O mar é bravo, pensa o infante, enquanto sente o sangue a escapar-se do ventre. É um rombo monumental na quilha. Sente-se atirado de novo para trás e bate fundo nas rochas pontiagudas do litoral. Os homens saltam de imediato a vedação e distraem o touro daquele despojo. O infante ajoelha-se então na praça, com as mãos no rombo do ventre, mais pálido que uma lua. Pede, num derradeiro esforço, que poupem a vida do touro e depois, de bruços, cega.

Os homens levantam o infante, voltam-no. Ele regressa a si. É rijo e o sangue que perdeu não lhe faz falta para viver. As mulheres lavam-lhe de imediato, com a água fresca das bilhas, a ferida cheia do pó da arena. Passam-lhe depois, à volta da cinta rasgada, um pano de linho fresco, que de imediato se tinge de escarlate. O infante ampara-se aos ombros de dois rapazes, que o conduzem, quase de rastos, pelas ruas apinhadas de gente. Levam-no para o paço. Deitam-no. O touril está agora vazio, pensa distraidamente Pedro com as guinadas das dores.

Está, respondo eu. Está tão vazio como continua a estar hoje. O touril da Atouguia, Pedro, assemelha-se hoje ao touril dessa noite e a tua corrida foi a última que lá se fez. Acabou agora mesmo. Lá estão os mesmos campos manchados de centeio, os casais ao fundo onde balem cabras e ovelhas. Lá estão as mesmas mulheres que vão deitar os filhos na palha da cebola e pôr o pote ao lume, enquanto os homens se entretêm pelos currais ou pelas vendas, a comer melão e a escorropichar borrachas de vinho. Tudo intacto, tudo vivo, tudo igual, nesse museu de cera dura, nesse fóssil enterrado nas areias, que me é tão querido. Há momentos assim, tiveram lugar há séculos e pertencem ao dia de hoje. Até os dois touros que Pedro correu nessa tarde continuam hoje vivos na heráldica da vila. Lá estão os dois; o da direita, pesado e pensativo, à espera de ser cadáver e flor, e o da esquerda, nervoso e impulsivo, pronto a dar a morte e a vida.

O dia cai para os lados do mar. O céu desbota-se de vermelho; o ar permanece quente, mas a fornalha que o alimentava afunda-se agora nos intestinos do oceano. Uma mulher desfaz camisas de linho e prepara compressas. Lavam-lhe de novo a ferida com água fresca, enquanto aguardam o cirurgião da comunidade judaica que lhe virá cozer a ferida, que é uma fenda do tamanho do dedo médio duma mão, logo abaixo do tórax. Batem à porta do paço. É o cirurgião que chega. Levam-lhe aos lábios, para o ajudar a suportar a dor da agulha e das linhas, goles de aguardente morna. Ele bebe a custo, aos poucos, várias vezes. Lá fora a noite cai. Ouve-se, através da janela, a vozearia dos homens que esperam notícias e vêem-se os clarões pálidos das tochas que se acendem. Enfrentei a morte, fui eu próprio a morte e agora sou de novo a vida, pensa serenamente Pedro, enquanto sente o calor tropical da aguardente a espalhar-se pelo corpo e a chegar à ponta dos dedos das mãos e dos pés.

Foste e és, confirmo eu, porque abriste o teu corpo e deixaste o teu sangue correr, fazendo da tua ferida uma fonte. Deste a beber a uma terra sedenta o teu sangue; mataste-lhe a sede das entranhas e alimentaste-lhe a vida, de que tu eras parte. Fizeste uma delicada e corajosa transfusão de sangue do teu corpo para o da Terra. Morreste para renascer, porque deste a vida a quem ta dava. É isso que também em breve farás com o cadáver ressequido de Inês. Dar-lhe-ás uma parte do teu sopro anímico e do teu calor, para que ela possa ressuscitar à luz do dia, tornando-se a rainha morta, e assim, exangue, sorrires tu de alegria.

A vida é uma arena e a arena, em ponto pequeno, é a vida. Estão lá as forças subterrâneas e as astrais, as negras e as solares. O touril é um chão, mas um chão onde rebentam vulcões; essa terra dá vinho, centeio e trovões. Tourear é fintar as forças incontroladas da morte, constituindo-se esse acto como o princípio revelador do drama cósmico e humano. A arena é o espaço representativo da cena primordial do nascimento da vida; tem a solenidade dum altar. É lá que se reconstitui a cosmogonia original da vida. Foi na arena que o ibero se habituou a comungar o corpo do mundo e a dar também à terra o seu quinhão de sangue; daí, uma praça de touros ser mais religiosa que uma igreja. A tauromaquia torna-se, assim, no momento originário da arte e da civilização, porque é o momento mesmo da imitação humana da tragédia cósmica. Se houve nesta parte do mundo agricultura, fermentação da uva e viagens marítimas, foi porque o homem aprendeu na arena a domar a força das sementes, a embriaguez do vinho e o infinito das ondas do mar. Em vez do caprídeo helénico, a Ibéria inventou, como momento original representativo, o touro. E do bode grego ao touro ibérico vai toda a diferença que há entre a Grécia antiga e a Ibéria moderna; a primeira é duma fragilidade ornamental, enquanto que a segunda é espontânea e bruta como um abalo de terra ou o parto duma mulher.

Por isso, do sismo gigantesco da sua boca atlântica, essa Lisboa em perpétua ruína, nasceu um mundo novo, imenso, com uma promessa de infinito e de céu azul, que ainda não acabou de se gerar e cumprir.


O REI SAUDADE


Quando Pedro acordou da sua convalescença, lembrou que mal se ajoelhara ainda diante do túmulo de Inês, no chão sagrado de Santa Clara. No dia frio da sua morte partira à desfilada para a Atouguia de modo a organizar de surpresa o levantamento contra o pai e no dia do seu regresso das campanhas militares no Minho e no Douro estivera sobretudo com os filhos, que se encontravam, depois das pazes de Canavezes, de partida para Santarém e Lisboa.

Sentiu, então, um enorme desejo de estar longamente a sós com os restos de Inês, orando ajoelhado aos pés do seu túmulo e prometendo ali em segredo, diante dos seus despojos, nunca mais casar ou vir a conhecer mulher. Mandou à sua frente um correio a cavalo para avisar a abadessa da sua chegada e do seus intentos e partiu sossegadamente para Coimbra. Quando lá chegou e olhou as terras enlameadas do Mondego, cada árvore ou cada pedra lhe pareceram uma recordação viva de Inês. Era Outono, sentia-se ainda o mosto perfumado do vinho novo a ferver no ar, zumbiam moscardos no sol quente da tarde, cantavam os últimos grilos. Havia no céu uma luz clara, anilada, cristalina, que era como que uma memória da Primavera. A brisa quente do ar, a mansidão do Sol, os aromas da vegetação faziam com que Outubro se confundisse ali com Abril.

—Aqui está a tumba da pobre infeliz — disse a abadessa, deixando-o só em recolhimento.

Ele caiu a chorar aos pés daquela laje fria, que escondia uma terra sombria. Aqui está Inês, aqui está Inês, Inês, Inês, pensou ele incrédulo, enquanto levava as mãos à pedra e sentia deslumbrado a sua mansidão polida.

Deixou-se ficar ali prostrado, sem comer, sentindo ainda no ventre, a latejar, a cicatriz recente da sua ferida e o alívio fresco e tépido daquela terra perfumada.

Recolheu tarde nessa noite ao paço de Santa Clara e na manhã do dia seguinte voltou àquela pedra chata, intacta e misteriosa, que guardava no seu seio os restos de Inês. Era para ele um pavimento sagrado, que não se cansava de mirar e cheirar, entre o deslumbrado e o guloso, comparando-o a um cofre que fechasse dentro um precioso tesoiro de dobrões de oiro.

Nessa tarde, os frades de Santa Cruz, alertados pela abadessa, para o estado melancólico do infante, sujo de terra nas unhas e nas barbas, vieram estar com ele. O prior-mor abraçou-o comovidamente, dispôs-se a ir à campa de Inês, orou com ele ajoelhado e recolhido. Depois, comendo bagos de uvas, ambos se sentaram nos escabelos do átrio do paço, onde meses antes Inês fora executada às ordens do rei. Aqui esteve tombado, sem amparo, o corpo  maltratado de Inês, pensou magoadamente Pedro.

—Senhor infante, lembrai-vos que o rei delegou em vós grande parte das suas competências, no crime e no cível — começou atenciosamente o prior — e que o reino se encontra desprotegido, pois vós não mais pegastes nas palavras de vosso velho pai, el-rei nosso senhor.

—Que que…quereis di…dizer, dom pr…prior — perguntou-lhe distraidamente Pedro, enquanto debicava um grão de uva.

—Que bom era, senhor, que vos lembrásseis de todos esses infelizes que pelo país pedem por justiça sem que ninguém os atenda. Jura vigilantibus subveniunt. Jus est ars boni et aequi.

Pedro pareceu acordar de repente do inebriamento dormente em que as lembranças de Inês o mergulhavam. Veio à tona dessa água lustral, sentiu uma lufada de ar frio naquela atmosfera asfixiante e sulfídrica em que passara as últimas 24 horas. Era verdade; o país inteiro, de lés a lés, estava cheio de crimes injustiçados, de desafortunados maltreitos, de gente roubada, de donas abusadas e era a ele, só a ele, que competia doravante remediar esses males. Se não posso fazer direita justiça nos matadores de Inês, que a faça nos outros, em nome do que ela sofreu inocentemente, pensou ele.

—Ten…tendes ra…ra…zão. Fa…fa…zeis bem lem…lem…brar-mo, pr…pri…or — balbuciou  ele, de olhar brilhante e vivo.

Era um homem de 35 anos, castigado pelo sofrimento atroz da morte de Inês, com os primeiros tufos de pêlo branco nas queixadas e no alto da cabeça, os dentes gastos pela vianda rija e crua, pronto a entrar noutra idade mais velha e pesada. Deu de imediato ordens para começar as novas funções. Arranjou copistas, meirinhos, mordomos, confessores, físicos, carrascos experientes no garrote, no cepo, na tortura. Arregimentou uma corte de executores, notários e testamenteiros para o seguirem por todo o lado. O seu séquito palmilhava sem desfalecimento serras e povoados, para ouvir as gentes e dar justiça. A sua fama correu por todo o país e do sítio mais recuado chegava povo para lhe contar casos e pedir equidade. A todos atendia, com o mesmo denodo e entusiasmo.

Passou a dividir o seu tempo entre esta comitiva ambulante que andava de terra em terra a julgar crimes e contendas e os momentos de absoluta solidão, em que não admitia ninguém ao pé de si. Nessas alturas, cavalgava só até Coimbra e ia deitar-se na campa de Inês, aliviando a sua lembrança  com aquele lugar sossegado e perfumado, onde as monjas todos os dias renovavam as flores e os ramos verdes. Ficava então dois, três, quatro dias no paço de Santa Clara, experimentando o enleio daquela proximidade. Outras vezes, dirigia-se para a Atouguia, no ensejo de ir saborear a casinha do Paço, a toca preferida de Inês, em que se recusara  mexer. Estava tudo como no momento em que Inês a havia deixado, no mês de Dezembro de 1354. Até na laje da lareira, repousava ainda o tronco grosso de azinho, que haviam começado a queimar na noite anterior à partida para Santa Clara.

Lembrava-se então de momentos que os dois ali haviam vivido e que nunca mais recordara. Essas surpresas da memória proporcionavam-lhe uma satisfação íntima, uma euforia entusiástica, que o deixava num estado próximo da felicidade. Depois disso, tinha por momentos a impressão de que Inês estava viva, ali entre portas, pronta a surgir como uma aparição de fogo puríssimo e luz, e que a tragédia da sua morte fora apenas um pesadelo mau, sem consistência de realidade.

Mas estes permeios de solidão eram raros e duravam pouco tempo. A justiça que o pai lhe entregara em Canavezes era uma novidade cheia de paladar e mercê, que lhe aplacava uma mágoa interior, uma nódoa íntima que o acompanhava desde a tenra infância e que só a presença de Inês pudera cicatrizar. Esse novo ofício veio substituir a ausência definitiva dessa mulher.

Na sua ânsia desmedida de justiça castrou abusadores, enforcou ladrões e assassinos, chicoteou mentirosos, queimou alcoviteiras e bruxas. Desconhecia nobres e plebeus, velhos e novos, cristãos e não-cristãos; a todos aplicava o mesmo correctivo. Decapitou nobres por terem maltratado judeus e plebeus, chicoteou o bispo do Porto por andar pegado com a mulher dum cidadão da cidade, capou um escudeiro seu por ter forçado a mulher dum corregedor, apertou com Lançarote Pessanha, seu almirante, por causa duma alcoviteira beiroa. Desconhecia o que fosse a misericórdia e sempre que alguém, antes do castigo, de joelhos, mãos postas, olhar no céu, lhe pedia, a tremer de medo, piedade, ele desviava ligeiramente a cara, fechava os olhos e confirmava a sentença. Meu pai não poupou Inês e mais de tudo era inocente entre as inocentes, pensava ele rudemente para si nesses momentos.

Terias razão, Pedro. Compreendo que no teu espírito tão azarado pensasses que enquanto houvesse um crime por expiar em Portugal Inês não teria alívio. Aceito que a justiça fosse para ti a razão mais imediata de sobreviveres à morte de Inês, e até uma forma de alijares a dor que os teus pais, sem perceberem, te puseram desde a infância em cima, mas não posso compreender a tua falta de compaixão pelo sofrimento dos outros. Tornaste-te frio diante do sangue, exultaste quando o carrasco fez rolar aos teus pés cabeças humanas, cometeste o erro de alimentar os teus dias com os vapores dessas pequenas chacinas. Chama-se a isso, Pedro, crueza ou crueldade. Dizes-me, que a vida foi dura contigo e que tu, em resposta, te fizeste duro com ela. É uma explicação plausível, mas que não tira o teu erro. Estavas tão cegamente furioso com a injustiça que fizeram a Inês, que nem percebeste que sempre que te fechavas à compaixão e fazias correr o sangue, mesmo com a razão a andar a teu favor, eram as feridas de Inês que tu voltavas a abrir. Todo esse sangue a ferver que te embriagou era afinal o dela.

É por isso que eu compreendo muito melhor a tua doida e desconcertante melancolia diante da campa de Inês, ou o fetichismo obstinado da casinha do Paço, que o teu ofício de justiceiro. Ou então a liberalidade que era em ti instintiva e que nunca perdeste, a ponto do teu cronista lhe dedicar todo um capítulo. O pequeno prior de Santa Cruz quando te pretendeu arrancar à loucura da lembrança, empurrando-te para o julgamento das acções humanas, não percebeu, o triste, que o teu verdadeiro ofício era o da saudade e não o da justiça. O teu neto, o autor do Leal Conselheiro, esse querido rei Duarte, não precisou para nada da tua mania judicativa, e de seus sangrentos derivados, para ser o teu grande herdeiro. Guardou de ti apenas a saudade melancólica e foi o mais sábio, o mais letrado, o mais pacato, o melhor rei da História de Portugal. Como não, se foi no seu reinado que Gil Eanes dobrou o Bojador, Fernão Lopes escreveu as suas crónicas, Nuno Gonçalves começou a conceber as tábuas do seu assombroso políptico, a prosa filosófica em língua portuguesa ganhou altura e o estilo manuelino encontrou os primeiros elementos decorativos nas Capelas Imperfeitas do mosteiro da Batalha, mandadas construir por ele?

Um dia, num dos curtos retiros de solidão em Santa Clara, que de quando em quando tirava, Pedro voltou a sentir o desejo de abrir a portinha da gruta do Paço e espreitar encantadamente lá para dentro. Era uma satisfação ver as peles, os cofrezinhos, as loiças, as tapeçarias, os uchotes da roupa, os potes de ferro, as jarras de barro, a laje da lareira, as conchas e as pedrinhas soltas que Inês e ele haviam recolhido nos passeios pelos vastos areais a noroeste da Atouguia. Que prazer tocar nos vestidos de brocado de Inês que lá haviam ficado, cheirar os chapins de sola, observar a delicadeza das braceletes, tocar na seda da sua roupa de dormir. Encomendara, desde o levantamento civil contra o pai, o cuidado da casa ao despenseiro do paço da Atouguia, que lá ia com sua dona todas as semanas limpar, arear, polir, varrer. Desta vez, deu com o despenseiro e dona lá em casa. Era o fim da Primavera de 1356, o tempo vinha quente e húmido, criava-se muita bicharia debaixo e fora das lajes da casa. Era preciso lá ir amiúde para arejar e proteger as roupas.

—Bofé, senhor infante, folgo em vê-lo de bom ardimento — saudou o homem. —  Sabeis que Teresa, a moça-de-câmara da infanta nossa senhora, que Deus haja ao pé de si, chegou à Atouguia há-de haver uns dias e lá se quedou no paço?

Pedro ficou surpreendido. Nunca mais se lembrara de Teresa, a não ser, de raspão, quando pensava nos filhos. Dividido entre a lembrança pungente de Inês e as suas novas obrigações de mantenedor de leis, julgador de crimes e pleitos, e executor de sentenças julgadas ainda nem sequer tivera tempo de passar em Santarém para estar com os filhos. Lá esperava ir ao Tejo, no fim do Verão, fazer justiça com direito e firmeza e estar com os filhos de Inês e de Constança. Preocupou-se com a presença de Teresa na Atouguia. Intuiu algum mal ligado aos filhos e despediu-se de imediato do casal, partindo a galope para o paço da vila. Quando lá chegou deu com uma Teresa pálida, entanguida, olheirenta, que a paixão da morte de Inês também martirizara fundo.

—Não meu senhor — respondeu ela à interpelação inquieta de Pedro. — Os meninos estão bem… eu é que muito me anojei após o homezio da senhora. Desta guisa, com o acordo da rainha, nossa senhora, outorguei-me estes dias de retiro, na espera de afastar o aborrecimento.

Calou-se por um momento. Via-se que estava fatigada. Os círculos escuros que circundavam os seus olhos desfiguravam-lhe o rosto magro e amarelo.

—Fiz vir de Santarém à Touguia um correio com a notícia da minha vinda, mas o senhor infante anda agora sempre por fora a tratar da virtude e da justiça… os oficiais do paço não viram razão em lhe dar outro aviso desta minha vinda — rematou ela timidamente.

Pedro descarregou a pressão em que vinha e deu-lhe toda a liberdade de por ali permanecer. Ainda pensou regressar à casinha do Paço, mas adiou isso para mais tarde. Agora, apetecia-lhe ir espairecer descalço, numa maré vazia, para os areais do cimo da vila, observando os bancos de areia que se formavam entre a costa e as ilhas fronteiras.

No dia seguinte, não deu pela presença silenciosa de Teresa. Viu-a na manhã que se lhe seguiu na praça, vestida de negro, fúnebre e nocturna, a apalavrar uma compra para o paço. Depois, à tarde, cruzou-a no varadim interior do edifício, por cima da falcoaria, onde ela viera ver o entardecer e as velas na boca do rio.

Nessa noite, ao deitar-se, Pedro sentiu-se inquieto e sem sono. Farejava, no ar tépido e perfumado de Junho, o cheiro alado e salino da fémea que estava deitada numa câmara do paço, por baixo dele, e pela primeira vez desde a morte de Inês ondulava nele, sem saber porquê, a atracção sexual pela carne e um desejo violento e bestial de orgasmo.

Recapitulou no seu pensamento, deitado de costas no leito, em camisa branca de dormir, desanojado e preguiçoso, a história daquela mulher apagada.

Vi-te pela primeira vez em Alenquer, junto de Inês —pensou ele. — Eras então uma mocinha tímida, sem nome, serviçal, incapaz de levares uma palavra a direito, muito presa à tua ama, que te parecia confiar todos os segredos, mesmo os meus e os dela. Habituei-me depois disso a encarar-te como uma ferramenta da vida de Inês, a que não dei outro valor, e vi-te sempre a seu lado, como se fosses a sua sombra calada e protectora. Atravessaste, memoro-o, os anos de Alenquer, solícita e fiel,  servindo muitas vezes de correio entre mim e ela; estiveste de seguida no exílio de Albuquerque, quando o meu pai feito perro expulsou Inês, facilitando-nos sempre o encontro e o namoro. Memoro bem as camisas que dobravas a primeira vez que ousei entrar na câmara de Inês. E de lá vieste quando, depois da morte de Constança, fui buscar Inês ao castelo do meu primo João Afonso, que já era tanto dele como de minha irmã Maria. Depois, quando nos pudemos entregar os dois sem moléstias, nos casais do caminho ou no passal do Moledo, ao amor, tu retiraraste-te cautelosamente para a Serra ou para o paço da Atouguia, aparecendo pouco e deixando-nos livres um para o outro. Pero, nos dias magoados de Coimbra, quando os perros morderam a inocente, eras tu que estavas lá de novo, a livrar o primeiro consolo ao cadáver e a guardares-me sanhuda, debaixo das asas, os filhos.

—Quem és, afinal, dona ou donzela, que agora deves andar a cobrar os teus 30 anos de vida — perguntava-se impacientemente, dentro de si.

A pergunta magoava-o com doçura, pois quando pensava na vida de Teresa, nos seus cabelos negros, na finura dos seus tornozelos, no formato da sua boca, nos lábios grossos, no redondo das suas ancas, na palidez das suas mãos, era sempre o cheiro de Inês que lá ia encontrar. Tomou-se duma onda de calor e de desejo, que momento a momento crescia, mais grossa e arrojada. Uma única objecção lhe passava pelo espírito: a promessa que havia feito na campa de Inês de não mais ter ou possuir dona. Passou uma parte da noite a rebolar-se no leito a tentar fechar os olhos, esquecendo à força aquela ânsia, e outra parte recostado nas almofadas, janela entreaberta, dando curso livre às suas fantasias sexuais com Teresa, onde encontrava vivo o rasto de Inês. Via-se a pegar nesse corpo pálido e amarelo, sôfrego e mole, inesperadamente lânguido e perfumado. Via-se depois a despi-lo, a aspirar o seu cheiro a sândalo e a almíscar, a beijá-lo espaço a espaço, a roçá-lo para o abrir e molhar, a fruí-lo por fim extensamente, pausadamente, até explodirem os dois em espasmos, aos pulos e aos gritos, diante dum céu marinho, de gaivotas aflitas. Caíam depois exaustos e parados no chão, um sobre o outro, assim ficando longamente sem se mexerem. Eram fantasias que misturavam as primeiras revelações de Constança, frenéticas e ferozes, com a luxúria virgem, lenta mas tórrida, de Inês.

Naquela soidão asselvajada em que andava desde há ano e meio, primeiro com os afazeres crus da guerra e depois com os trabalhos negros da sua nostalgia e as obrigações sangrentas do seu novo ofício, era a primeira vez que um corpo palpitante de dona lhe acordava assim a soidade.

Não se conteve, deixou cair as objecções interiores, e ao primeiro clarão da alvorada, antes que a entrada do paço se enchesse de gente ruidosa, levantou-se e foi bater-lhe à porta. Ela acordou entontecida, sem dar conta do que se passava. Balbuciou duas palavras amarrotadas, perguntando quem batia.

—Pe…Pe…Pedro… a…abre — replicou aquele que batia.

Estranhou a presença do infante àquela hora. Saltou da cama de imediato, mais desperta do que se lhe tivessem atirado à face com um balde de água fria. Apanhou de relance os cabelos num lenço e vestiu uma estringe escura e larga por cima da camisa de dormir. Aproximou-se da porta e entreabriu.

—Vós? A esta hora? Desta guisa? Que passa? — perguntou-lhe ela inquieta.

—Se…se…senhora, sin…sin…sinto-me tão só — queixou-se Pedro, dando-lhe a entender ao que vinha.

Teresa esteve para lhe falar do atrevimento daquele lance, vedando-lhe a porta, mas conteve-se. Lembrou a tristeza daqueles olhos, pensou no infortúnio daquele destino, ouviu o sofrimento daquela voz para sempre soluçante e compreendeu como a solidão daquele homem era sincera, desumana, injusta como nenhuma outra fora antes dele.

Abriu-lhe então a porta com lágrimas nos olhos e deixou-o entrar no seu quarto e no seu seio. Estava disposta a fazer tudo para lhe atenuar o sofrimento, mesmo sabendo que aquilo que lhe podia dar não passava duma gota fresca de água que depressa se dissolveria no mar escaldante da sua infelicidade e da sua desvairada loucura. Pedro tirou o lenço de Teresa, destapando-lhe os cabelos. Eram cabelos negros, ondulantes, torrenciais, que lhe cairam imediatamente pelos ombros e pelo peito, enquanto ela o olhava nos olhos. Pedro poisou desajeitadamente a sua mão direita nos cabelos de Teresa. Eram fofos e sedosos. Só agora reparava que ela tinha um rosto lunar e imóvel, rasgado por dois grandes olhos negros, cintilantes e silenciosos. Teresa encostou-lhe os lábios grossos, entreabertos, quase ofegantes, à mão e passou-lhe a ponta da língua ensalivada por um dedo. Ficaram assim um curto momento, sentindo a onda de calor que os tomava, e depois, sem palavras e sem obstáculos, lançaram-se um contra o outro, num desejo aflito que a tristeza que partilhavam em comum emprestava mais urgência e verdade.

Começou para ambos um período de intimidade. Encontravam-se ao cair da tarde no varandim recuado do paço, contemplavam juntos os bancos de areias entre as ilhas e a costa, observavam a migração das aves para oeste, sentiam no ar os perfumes cálidos e frescos que vinham dos jardins da Serra e não mais se separavam até de manhã.

Iam para o quarto de Pedro, muitas vezes ainda com os clarões do dia a arrefecerem no céu, despiam-se ansiosamente, abandonavam pelo chão as roupas e entregavam-se furiosamente um ao outro, até que caíam suados e trémulos, atravessados um no outro, no chão. Comiam depois fruta e pão, bebiam grandes goles de vinho baptizado de água por um pichel que Pedro tinha sempre à cabeceira, voltavam ao varadim, desta vez para sentirem o fresco da noite e serenarem os corpos. Adormeciam às vezes numa pele larga que Pedro estendia nas lajes do chão e acordavam noite alta para se possuirem novamente debaixo das estrelas, desgrenhados e nus, ainda com mais raiva e frenesim. Deixaram assim passar os dias, sem darem por eles. Sabiam, contudo, que aquele intervalo na vida de cada um não podia durar muito. Teresa era esperada em Santarém, onde substituía Brites muitas vezes junto dos infantes; Pedro, por seu lado, tinha a sua comitiva à espera para os lados de Ourém.

Um dia despediram-se; Julho ia a caminho do fim. Uma brisa salgada e fresca acalmava os ardores tórridos do Sol. Teresa precisava de passar o mês de Agosto com as crianças e Pedro adiara comprometimentos anteriores, que precisava rapidamente de satisfazer. Não sentiram nenhum dilaceramento nessa despedida. Haviam ambos vindo à Atouguia sacrificar a mágoa que sentiam e estavam ambos tranquilos e pacificados. Levavam os dois muito mais do que aquilo que inicialmente previam. Prometeram encontrar-se em Santarém no fim do Verão, onde Pedro iria ver os filhos e assentar os arraiais da sua justiça.

Quando Teresa desapareceu do fio do seu horizonte, deixando lá apenas uma ténue e húmida recordação, Pedro teve um momento de revolta interior. Pensou em Inês e na promessa que fizera na sua campa e acusou-se de fraco e de perjuro. De qualquer modo, não abandonou a ideia de, na passagem por Santarém, tornar a ver Teresa e o seu corpo moreno e doce como uma fruta madura de Outono.

Também tu, Teresa, que até aqui tens passado despercebida, pertences à parte mais viva deste conto. Não lhe acrescentas apenas uma lágrima insignificante como essa Leonor, irmã de Pedro, que morreu em Aragão com a peste ou esse Luisinho, filho de Constança e Pedro, afilhado de Inês, que morreu em Alenquer e que tão bem conheceste. Tu, Teresa, pertences à alma mais íntima desta estória. Fazes parte do amor de Pedro, que é o seu centro nevrálgico. Foste tu que o ajudaste a esclarecer a sua divisão mal resolvida entre duas mulheres, Inês e Constança. Transformaste essa ambivalência num triângulo amoroso, mais equilibrado e harmónico; fizeste de duas rectas soltas e em tensão uma figura bem proporcionada de três lados. Em Alenquer, foste a sombra de Constança e de Inês; em Albuquerque e no Moledo a da Inês. Constança ou beijou Pedro através dos lábios de Inês, ou, o que também é crível, Inês através de Pedro; agora, Pedro beijava Inês, e logo Constança, através dos lábios de Teresa. Foste a lua minguante do seu amor, como Constança foi o seu crecente e Inês a sua lua cheia e depois a sua secreta e extravagante lua nova.

Não eras nada, nem apelido tinhas, não passavas duma criada de dentro, destinada ao anonimato e a satisfazeres de passagem e às escondidas o desejo dalgum escudeiro ou dalgum comerciante do paço, mas tiveste direito a figurar no primeiro capítulo da Crónica de Fernão Lopes sobre Pedro, porque foste, com Constança e Inês, uma das três mulheres que lhe deram descendência, um dos três fios do seu destino. E o teu filho, João, nascido nove meses depois do encontro da Atouguia, a 11 de Abril de 1357, foi o mestre de Avis, esse mesmo, a quem, nos dias turvos da morte do filho de Constança, em Dezembro de 1383, o povo de Lisboa queria acudir porque era filho de el-rei Dom Pedro. Foi gerado com o cheiro do guano, debaixo do pio dos alcatrazes,  quase em cima das redes de pesca dos baleeiros da Touguia, mas foi ele o pai da casa de Avis, a dinastia de todos os mimos portugueses. É, por isso, Teresa, que eu não te posso deixar na sombra; pertences à parte mais humilde, mas também à mais luminosa e afortunada do destino de Inês e Pedro. Sem a tua presença na Atouguia, Teresa, o que teria sido a História de Portugal? Um beco de terra sujo ou sem saída para o mar, com o conde de Andeiro a jantar de vez em quando, em pantufas e robe sovado, nas traseiras esquecidas e poeirentas da sua vasta casa.

E tu, Pedro, bem podes deixar os teus remordimentos de consciência em relação a Inês. És bem mais humano e interessante, no paço da Atouguia, aos 35 anos, duplamente viúvo, irremediavelmente sozinho e sonhador, a ondulares de desejo por essa mulher que havia agarrado na pele o cheiro de Constança e o perfume de Inês que cru e justiceiro a desviares a cara de enfado quando os castigados te falavam, a tremer de medo, em piedade. E foste muito mais perjuro quando esqueceste a palavra que deste em Canavezes aos teus pais, no tempo em que com eles acertaste as pazes, que no paço da Atouguia quando, por momentos, esqueceste, e fizeste esquecer a Teresa, a solidão rude e amarga do destino daqueles que se ligavam a Inês.

No fim do Verão, quando passou com a sua comitiva por Santarém, teve o gosto de ver os filhos no paço real da cidade. Era um bando de meninos imberbes e travessos, que gostava de ir ao mosteiro de São Francisco trepar às árvores do jardim e molhar os braços nas fontes. Quando se encontrou com a antiga camareira de Inês teve uma surpresa.

—Estou prenhe — noticiou-lhe reservadamente Teresa.

Assim era. Voltou a ter o prazer desse corpo moreno e massacrado de desejo pelo Verão recente do seu amor. Encontravam-se num quartinho da torre albarrã do castelo e lá passavam as noites ainda quentes, deitados numa pele, sobre a palha loira e estaladiça, sonhando com os tesoiros da terra e soluçando ambos, com frenesim, a mesma ausência e a mesma sombra. Aquilo era um ritual de memória, a que ambos se entregavam, para esconjurarem a solidão, que haviam recebido em herança do mesmo ser. A meio da noite, depois de se desprenderem, Pedro ficava a olhar aquele corpo mole e maduro, onde remexia agora, no vórtice do ventre, a sua semente. Falou com a rainha sobre o que sucedera e acertaram mandar a criança para Lisboa, com destino à casa dum cidadão que vivia na Praça dos Escanos, paredes meias com a Sé, onde poderia frequentar, desde tenra idade, escola e corte.

Dois meses mais tarde, quando ainda estanciava pelas terras do Ribatejo, o pai mandou-o chamar a Évora. Não se viam desde o encontro da alcáçova de Santarém, mas o recado do pai não se prendia com os dois. Afonso continuava disposto a evitar a todo o custo o clarão gelado de ódio com que o filho certamente o trespassaria. Era a irmã Maria, exilada em Portugal desde a Primavera desse ano, que entrava nos estertores da agonia e o desejava abraçar uma derradeira vez. Tinha 43 anos e estava, desde o abandono definitivo de Branca de Bourbon e da morte de João Afonso, incompatibilizada com o filho. Retirara-se para o pé do pai, gasta e amargurada, pensando na inutilidade da sua vida, primeiro com um marido que a trocara pela Gusmão e depois com um filho que a vendera por uma Padilha. As únicas memórias de alegria que tinha estavam todas em Portugal, principalmente nessa Lisboa soalheira e azul da sua primeira infância, com os saraus artísticos do avô, a paciência sibilina e sábia da avó, o amor próximo da mãe e a ternura deslumbrada do pai.

Pedro deixou a maior parte dos corregedores e beleguins em Abrantes e partiu para Évora. A irmã estava acamada numa casa de religiosas na parte alta da cidade, num edifício contíguo às muralhas da Sé. Brilharam-lhe nos olhos lágrimas quando o viu.

—Pedro, senhor, meu desgraçado irmão — choramingou ela quando ele se aproximou.

Chorava o infortúnio dos dois, o dele com Constança e Inês e o dela com o marido e o filho. Sentiu-se presa ao destino do irmão, apesar de pouco o ter visto antes de sair de Portugal, em 1328, quando foi viver com Afonso de Castela. Quis abraçá-lo, mas não teve forças para isso. Sobreveio-lhe um ataque violento de tosse, que a deixou quase insciente e amortecida.

Tinha os pulmões apodrecidos, atulhados e roídos de tubérculos. Morreu algumas semanas depois, nos primeiros dias de Janeiro de 1357. Camões pôs no seu poema esta Maria de Portugal, rainha de Castela e irmã de Pedro, numa tal posição que o leitor desprevenido chega a confundir a formosura de Maria com a de Inês. É engano, que se explica apenas por uma distorção de perspectiva, com raiz na posição que as duas ocupam no poema, uma logo seguindo a outra. Nenhuma correspondência, porém, entre o carácter de ambas ou as suas acções. Ainda assim, esta mulher põe na fábula de Inês e Pedro bem mais do que aquela pequenina lágrima de prata que a sua irmã Leonor nela deixa. Foi no seu paço de Albuquerque que Inês e Pedro ouviram pela primeira vez cantar o pássaro de oiro da sua nudez paradisíaca e foi por causa dos brutais desatinos de seu filho, primeiro com os meios-irmãos e depois com a Bourbon, que o meirinho-mor de Afonso de Portugal se lembrou de mandar matar Inês e os seus filhos. Por isso, tu, Maria, deixas nesta estória, ao contrário da tua irmã mais nova, um sorriso de oiro e um rio incomensurável de sangue.

O pai, Afonso de Portugal, ficou em estado de choque com a sua morte. A vida tudo lhe roubara e o Bravo era já, antes mesmo do desterro da filha, um homem acabado. Os dias que envolveram a morte de Inês tornaram-lhe a coroa mais escaldante que chumbo a ferver e não mais se recompôs das violentas queimaduras desse momento. Sustentara, com uma estrondosa gargalhada, a guerra ao pai, a pulhice ao meio-irmão, a severidade ao sobrinho e genro, a ferocidade ao mouro, mas não a suprema maldade de levantar, de surpresa e sem aviso, a mão em armas contra uma dona indefesa, que era a mãe esforçada dos seus netos e o bem da alma do seu único filho. Aí a bravura dele cedeu, e ainda bem, que se aguentasse não era bravura, mas iniquidade diabólica.

Depois da cena sufocante do paço de Santa Clara, em que o cadáver ensanguentado de Inês fora abandonado nas lajes frias do átrio de entrada, Afonso quebrou e foi a terra. Passou a viver de joelhos, a soluçar para dentro e a pedir perdão. Tinha medo das sombras que o lume à noite fazia, das portas que rangiam, das pessoas que o encaravam. Estava enfadado da vida e medroso de tudo. A vinda da filha querida de Castela reanimara-o momentaneamente. Fizera planos sorridentes de reviver com ela as horas pacíficas e mornas da sua adolescência, em que os dois iam a Xabregas a pé, pela beira do rio, contando casos e rindo. Mas nem a filha vinha em estado disso, nem ele conseguiu levantar os joelhos do chão. A doença da filha e agora a sua morte fizeram-no ir de cara à terra e sonegaram-lhe o que lhe restava de vontade de viver. Fechou-se definitivamente nos seus aposentos, recusou-se a comer. A única questão que ainda o preocupava e agarrava à vida era a situação daqueles que consigo haviam ido ao átrio de Santa Clara, no dia da morte de Inês. Mandou chamar o meirinho-mor, Pero Coelho e Diogo Lopes Pacheco.

—Parti sem tardança para Castela, onde el-rei meu neto vos acoutará — ordenou-lhes Afonso. — Meu filho tem-vos má vontade e não embarga de juras e perdões.

Depois, quando se assegurou que eles se haviam posto a salvo,  arranjou forças para mandar chamar ao leito de morte o filho que lhe sobrevivia e era o herdeiro da sua pesada coroa.

Pedro não o reconheceu, quando o viu, embiocado no lençol do leito, com o rosto chupado, cor de limão estragado, a pele seca e enrugada de pergaminho. Era um dia quente do princípio de Maio e ouviam-se nas ruas, lá longe, na parte baixa da cidade, os pregões dos aguadeiros. Soubera que Teresa parira duas ou três semanas antes um rapaz saudável em Santarém, mas ainda não lhe pegara, nem sabia quando o faria. A morte da irmã de Évora, a doença do pai em Lisboa, a corte que se chegava a ele, o pesar da mãe, os casos do cível e do crime, onde corriam processos sob a sua jurisdição, obrigaram-no a afastar-se de Santarém e a ficar em Lisboa.

—Acorda-te dos termos em que concertámos pazes há-de haver dois anos — murmurou o pai. — Quero poupar a tua mãe ao escândalo duma vindicta.

Pedro manteve-se em silêncio. Mais do que pensar no pai, escolheu lembrar-se que lá longe, numa curva do Tejo, havia uma criança que nascera. Quando botar corpo vou dá-lo a criar à Ordem de Cristo, pensou distraidamente ele.

Afonso virou-se a custo e deu por encerrado o encontro com o filho. Sabia que qualquer palavra de arrependimento ou qualquer pedido de perdão eram inúteis. Pedro manter-se-ia firmemente calado, sem ceder.

No fundo, compreendia-o e aceitava-o. Já se habituara ao facto de ter de levar desta vida o peso da tragédia do filho. Não era esse fardo que de momento o atormentava. Tinha consciência que uma parte importante do drama do filho lhe pertencia e desde há anos que convivia com isso. O que o angustiava na hora da partida era saber que não podia levar consigo para a eternidade toda a tragédia que ajudara a criar no destino do filho e que era obrigado a cá deixar, não sabia a quem, uma parte desse sofrimento. Pensava em Brites, sozinha, amargurada, sem outros filhos, mas também nos ministros do seu conselho. Restava-lhe confiar, com muitas dúvidas e medos de permeio, nos termos do acordo de Canavezes.

Morreu, alguns dias depois, a 28 de Maio, com 66 anos, receoso, calado, sombrio, lembrando-se muito, por razões insignificantes e risíveis, de Lopo Fernandes Pacheco. A altiva divisa do seu emblema heráldico, altior in peto, em quem viveu os últimos anos sem poder levantar os joelhos do chão e os últimos meses de borco na terra, só por brincadeira se aceita. A divisa de Afonso IV é uma ironia tão grande como a espada de MacBeth ou o amor conjugal de Clitemnestra. Foste, Afonso, um contraditório, que te rebaixaste quando te levantaste e subiste quando caíste. Por isso, a morte absurda que trouxeste a este conto de amor e ternura, numa nunca vista preia-mar de sangue, também ela pode esconder uma não esperada onda de luz. Que sabias tu da saudade do teu filho? Nada, como nada sabias afinal do seu amor, muito mais tratável, mas quando os desígnios da criação e de Deus são mais absurdos é quando se espera que sejam também mais surpreendentes.

Com a morte do pai, Pedro foi buscar os filhos mais velhos para assistiram às exéquias do avô na Sé da cidade, onde se instalaram depois com Brites. Teresa ficou em Santarém, mas na condição de se lhes juntar passado algum tempo. Depois das cerimónias, Pedro não se demorou nada em Lisboa. Estava desejoso de retomar a sua itinerância pelo país e de visitar de novo a campa de Inês, em Santa Clara. Há quase um ano que lá não ia; desde que desfrutara Teresa no paço da Atouguia não mais voltara. Despediu-se dos filhos e da mãe e, quando deixou Lisboa, dirigiu-se para Coimbra, só, exaltado, ansioso. Os seus homens regressaram ao Ribatejo, onde o deviam aguardar. Ele estava cheio de saudade de se encostar às lajes que guardavam Inês.

—Melhor seria el-rei, nosso senhor, andar de terra em terra a cuidar dos vivos, que aqui vir chorar os mortos — disse-lhe a abadessa, em tom de censura, quando o viu chegar sôfrego e ansioso, de olhos arregalados, a Santa Clara. — Requiescant in pace.

Ele riu-se do dito e instalou-se no paço. Voltou a passar os dias no enleio daquela proximidade com a campa de Inês. Sentiu-se aliviado e enamorado dessas lajes, onde, nas ranhuras, nascia uma erva verde e viçosa. Foi ele próprio que nesses dias se ocupou das flores e dos ramos. Voltou a ter as unhas sujas de lixo, as barbas e os cabelos longos misturados de terra, de tanto namorar o solo que cobria a urna de Inês.

Num desses momentos, em que levava os lábios às lajes frias do recinto, passou-lhe pela cabeça que precisava de desenterrar Inês, arrancá-la à escuridão da sua urna de madeira, levantá-la do interior da terra, trazê-la outra vez para a luz dia, reanimá-la com a força do Sol e a presença dos homens e da natureza, limpá-la de tantos anos de esquecimento, abandono e isolamento.

Foi um relâmpago brilhante que lhe queimou momentanea­mente o cérebro e o deixou num estado próximo do êxtase. Até aí, Inês era uma campa, um cofre selado com um lacre de ferro, para o qual não havia chave nem remédio. Era um mistério, sem solução possível; era o enigma inexplicável e absurdo da morte. Tudo o que lhe era dado fazer eram aquelas romagens periódicas, aspirando o perfume do solo onde ela repousava, aprisionada e isolada, em inacessíveis interiores. Agora, com a ideia da exumação, quebrava o selo daquele mistério e libertava Inês da sua prisão fria e subterrânea e do castigo da sua solidão forçada e funesta. Podia voltar a vê-la à luz do dia, tocá-la, cheirá-la, beijá-la, puxá-la a si ou ainda falar-lhe, ajoelhar-se aos seus pés, aconchegar-se no seu regaço de leite e rosas.

Um arrepio sinistro de prazer passou-lhe pela espinha e fê-lo rebentar de riso. A gargalhada ecoou estridente e soluçante pelas arcadas ogivais do recinto destinado à sepultura dos defuntos. Não cabia em si de contente. Estava ali, no meio daquela escuridão fria dos sepulcros de Santa Clara, entre a pedra fria e a terra quente e sulfurosa dos mortos, embriagado de alegria e luz. Uma felicidade obscura corria-lhe no sangue; uma música divina ondulava-lhe nos ouvidos; uma visão irradiante transformava-lhe a escuridão em oiro. Era um júbilo amplo e quente, que o fazia sentir subitamente sábio, poderoso, livre. Era o princípio da sua libertação, a hora em que a morte, que já fora amor, se haveria de transformar, por via do seu desejo melancolicamente saudoso, em ressurreição. Era o momento em que o absurdo dos desígnios divinos encontraria a sua explicação, corrigindo, através do esforço da recordação e do desejo, o erro inicial da Vida, que se chama morte. É, por isso, Pedro, que tu és, com a tua saudade, uma figura mitológica, ao lado de Prometeu ou de Jesus, e a tua fábula um aspecto extraordinário da existência da humanidade.

O estado de inefável alegria em que entrou fez-lhe lembrar os momentos mais altos que vivera com Inês, os aromas do jardim de Albuquerque quando discretamente esperava por ela numa das galerias do claustro, as manhãs luminosas da casinha do Paço em que Inês se ausentava para um passeio ao longo do conhecido vale e ele a esperava na solidão da toca, atento, em silêncio, todo concentrado na ausência de Inês, com a certeza e a expectativa do seu regresso próximo. Agora, mais uma vez, depois dum passeio um pouco mais demorado, para as bandas desconhecidas do ocidente, também o seu regresso estava prometido e garantido.

Foi-se deitar ébrio e eufórico. Apetecia-lhe gritar de felicidade, abraçar os móveis da câmara, bailar diante da janela. Era uma noite quente de Junho, do ano de 1357, que foi o primeiro do seu reinado, e viam-se do outro lado do rio os lumes da cidade de Coimbra brilharem na escuridão da noite clara. Meteu-se na cama, mas o sono não lhe vinha. Dançava-lhe no espírito a exumação e via, diante do foco de calor dos seus olhos, o corpo arrefecido de Inês ganhar sangue e vida. Sorria como há muito o não fazia.

Ergeu-se então, vestiu um saial escarlate, mandou o pessoal do paço tocar trombas e pandeiros, acender tochas e círios, sair aos jardins do mosteiro. Meteu-se no meio deles e foram pelos caminhos a bailar e a tocar até que chegaram à ponte e às ruas da cidade. O povo acorria às janelas, a perguntar que modos festivos eram aqueles e, quando viam o rei sorrindo, a acenar-lhes com garridice, desciam e vinham juntar-se ao grupo. Andou assim a cidade nessa noite, iluminada pelos lumes das tochas e ruidosa com as vozes e as fanfarras. Quando começou a clarear, o rei despediu-se e recolheu a Santa Clara, sempre com música e danças.

No outro dia, foi falar no seu sonho com a abadessa.

—Como? Levantar o ataúde de Inês? Com vossas mãos, dizeis — espantou-se a abadessa, sem cair em si. — Impossível senhor, impossível, que a este chão só a razão de Deus pode chegar. Domini est terra.

Calou-se, para ganhar alguma folga e vir a si. Esperava também o efeito das suas razões, mas como Pedro nada adiantasse, acrescentou ela.

—Demais, pensai um momento na rainha nossa senhora, e vossa mãe, e julgai como o escândalo, depois da moléstia de vossa irmã e de vosso pai, a mataria.

Ao ouvir as últimas palavras da abadessa, Pedro recuou mentalmente. Era preciso esperar o momento certo para fazer regressar Inês do mundo dos mortos, libertá-la daquela prisão fria em que a maldade dos homens e as leis absurdas do destino a haviam encarcerado. O seu regresso estava prometido e nada o poderia agora deter. Ele sabia que, no momento apropriado, haveria de descer destemidamente, com o canto da sua alegria e a espada da sua soidade, pelos corredores de escuridão que ligavam o mundo dos vivos ao mundo das almas mortas. E sabia ainda que, no meio desse país fúnebre e sem luz, onde as almas batiam aflitivamente as suas asas cegas e presas, encontraria o espírito triste e choroso de Inês, a quem livraria dos grilhões do seu frio e feio cárcere, trazendo-o de novo para a luz graciosa e quente do Sol.

A ideia estava lançada na terra do seu desejo e o que depois fez foi só crescer. Quer nos momentos em que acompanhava o seu séquito real ambulante, julgando de terra em terra crimes e causas cíveis, quer nos momentos de maior recolhimento e solidão, em que se entregava apaixonadamente à lembrança de Inês, era sempre, dentro do seu espírito, o momento da sua descida ao mundo dos mortos que ele cuidadosamente planeava e desdobrava. A princípio punha nisso só a pureza, a inocência, a euforia do seu primeiro pensamento, aquele que lhe surgira num clarão de luz à beira da tumba de Inês. Depois, à medida que o tempo foi passando e ele se foi afeiçoando às coisas da corte e da praxe, misturou nisso outros planos mais consentâneos com o mundo e o seu temperamento.

Antes de mais, pensou que não podia ir buscar Inês ao país escuro e ocidental dos mortos, sem primeiro limpar a terra da sombra dos seus matadores. Se trouxesse Inês de volta à luz do Sol, e a pusesse com isso na presença dos seus assassinos, ela horrorizar-se-ia ainda mais neste que no outro mundo.

Foi uma desculpa convincente para o seu perjúrio, que lhe permitiu começar a engendrar no segredo do seu pensamento, sem quaisquer escrúpulos, a prisão e o castigo dos ministros do pai. Mal soube que eles se haviam homiziado em Castela, deu-os por traidores e confiscou-lhes os bens e os títulos, que entregou aos fiéis do seu conselho. Apalavrou, depois, em segredo, a prisão dos fidalgos portugueses com o sobrinho de Castela, que lhe pedira, depois da morte do pai, que tratasse da transferência do corpo da formosíssima Maria, de Évora para a Capela dos Reis, em Sevilha. O pedido fora imediatamente satisfeito e o rei português tomou-o como pretexto do seu negócio. Entretanto, a vida do rei castelhano complicara-se muito. Haviam-se aberto hostilidades entre Castela e Aragão e uma parte da nobreza castelhana, desafecta aos Padilhas e disposta a reparar a afronta feita a Branca de Bourbon, bandeara-se com Aragão. Joana Manuel, irmã de Constança, mulher do conde de Trastâmara, fugiu para Aragão. Muitos nobres castelhanos, descontentes e revoltados, homiziaram-se em Portugal, juntando-se a outros que já por cá estavam desde o tempo de Afonso. Pedro serviu-se em segredo deles e obrigou-se a entregar ao sobrinho Pedro Nunes de Gusmão, Mem Rodrigues de Tenório, Fernão Godiel e Fernão Sanches Caldeirão contra Pero Coelho, Álvaro Gonçalves e Diogo Lopes Pacheco.

De seguida, para justificar o momento supremo da exumação, rebatendo à partida qualquer resistência da parte da abadessa de Santa Clara ou do bispo de Coimbra, pensou mandar construir em Alcobaça uma arca tumular como nunca se fizera no tempo de seus avós e de seus pais, para onde trasladaria o corpo de Inês num cortejo real, com todas as honras devidas a uma rainha morta.

Andou isto a mexer dentro dele durante meses e anos. Foi o seu pensamento secreto e obsessivo ao longo das horas do dia e da noite. Idealizou-o até à mais pequena particularidade. Viveu-o e reviveu-o dentro de si, com um fervor que não punha em mais nada. Foi apurando, pouco a pouco, os pormenores do lance, até encontrar todas as suas justificações e motivos. Multiplicou-o. Acrescentou-lhe parcelas. Pensou fazer uma arca gémea à de Inês, onde ele próprio seria depositado depois da sua morte e que ficaria aos pés da de Inês, tudo isto no grande mosteiro de Alcobaça. Aos pés da minha arca deve figurar uma inscrição dizendo, aqui espero o fim do mundo, pensava ele com trémula excitação. A arca era o leito onde  aguardaria o Juízo Final e a ressurreição dos mortos. Já se via, no momento do fim dos tempos, quando a trombeta dos anjos soasse, sacundido o pó dos dedos e levantando duma punhada dura a tampa do sepulcro, com o pensamento logo posto em Inês. Queria a sua arca na vizinhança da dela, para de imediato dar com os olhos nela. Mal a filhar com os olhos, corro a abraçá-la, pensava.

Que imensa loucura, ó céus, a tua, Pedro. Convivias com Deus como se ele fosse o teu prior e fazias do Evangelho o teu alvará de cabeceira. Esfregavas as mãos para te deitares num lençol de pedra e pensavas acordar logo no dia seguinte no fim do mundo, quando se desse o julgamento dos mortos. O teu amor consumia num ápice milhões e milhões de séculos, para chegar dum dia para o outro à eternidade do fim dos tempos. De qualquer modo, eras muito mais grandioso e verdadeiro no meio desse teu tresloucado sonho de infinito, que fez surgir da flor calcária da espuma atlântica o mais assombroso grito em pedra sobre a paixão dum homem por uma mulher, que nas ganas danadas e falsas do teu ódio contra os matadores de Inês.

Mas os túmulos eram uma consequência, não a razão do sonho de Pedro. O caroço continuava a ser o momento em que libertasse Inês da escuridão da terra, em que restituisse o seu corpo empoeirado à doida vida da Primavera terrena. Era esse o instante da revelação e do deslumbramento, o único que o deixava fora de si e que ele ansiava sobre todos os outros. Era ele que lhe dava forças para continuar. Era ele que o embriagava de alegria. Era ele que Pedro desejava cada vez mais próximo. A isso se agregava, como um apêndice estranho, e até contraditório, mas que crescia desmedidamente, a sede de vingança contra os matadores de Inês.

Era rei, viúvo, solitário. Deitava a figura possante e ágil de quem não havia chegado ainda aos 40 anos e se exercitara desde menino no ofício duro de montear perdizes e javalis. Não tinha rainha, não trazia nunca mulher ao pé de si, mas ainda assim desviava a cara dos olhares lúbricos que as mulheres solteiras do povo lhe deitavam, e recusava-se a atentar nos recados que lhe mandavam por escudeiros seus, quando ele passava pelos povoados e pelas cidades do interior. Vivia obstinado pela recordação de Inês; curtia a expectativa do que ainda com ela faltava cumprir, quando a livrasse do mundo dos mortos e acordasse diante dela no fim dos tempos; sentia, momento a momento, a sua presença adejar em torno de si. Andava sempre com o espírito ocupado nela, planeando sofregamente, até ao mais pequeno detalhe, a sua exumação e o cortejo da sua trasladação, quando não a sua desforra. Mesmo Teresa era para ele uma lembrança desbotada, que nunca mais mandara chamar para o seu leito. Tudo o que admitia na sua câmara era um ou outro escudeiro, quase imberbe, que o ajudava a despir, a vestir, a entrar e a sair do leito.

Assim como assim, o certo é que se vivesse nos tempos bárbaros e mediáticos de hoje, em que alguém apagou sinistramente da memória cultural da nossa civilização os nomes de Sócrates e Alcibíades, de Adriano e Antínoo, de Zeus e Ganimedes, este rei não se livraria de ser posto a ferros pelo horrendo crime de pedofilia. Como não, se, mesmo não levando isso para o lado da sodomia pura e dura, o seu fidedigno cronista, Fernão Lopes, diz, no capítulo oitavo da sua crónica, que a um desses mancebos, o escudeiro Afonso Madeira, amava Pedro mais do que se podia e devia dizer?

Brites morreu a 25 de Outubro de 1359. O rei chegara a Lisboa quatro dias antes, avisado por um correio do paço. O dia das exéquias foi marcado por chuvas torrenciais, que obrigaram os pagens do séquito a seguirem um itinerário de última hora. A água galgava velozmente as calçadas íngremes, que desciam para o rio. Dois dias depois, no varadim da Sé, diante dum sol velado e baixo, Pedro pensava declarar publicamente o seu casamento com Inês, dando-lhe o estatuto de infanta real, e apresentar diante da justiça os homens que haviam estado no paço de Santa Clara na fatídica manhã de 7 de Janeiro de 1355. Eram eles Pero Coelho, Álvaro Gonçalves e Diogo Lopes Pacheco, refugiados, depois da última dor de Afonso, em Castela. Mas para que a declaração do seu casamento e o julgamento dos antigos ministros do seu pai batessem certo, era preciso comprometer Alcobaça na feitura da arca tumular de Inês e na trasladação do seu corpo de Santa Clara para o mosteiro dos frades brancos. Por sua vez, a trasladação da rainha só existia em função da exumação do seu corpo, que era o coração da obsessão de Pedro e o milagre da sua esperança. Tudo girava para ele em torno da possibilidade de tornar a rever Inês, cara a cara, à luz do dia.

Partiu quase de imediato para Alcobaça para dar início urgente ao plano. As relações do mosteiro com o rei eram excelentes. O infante criara-se na proximidade dos coutos dos frades. Chegara a vir em criança, ainda que sem sucesso, à escola monacal de Santa Maria de Alcobaça. Depois, já na entrada da adolescência, tornara-se hóspede frequente do abade, que o convidava todos os Outonos para a caça às perdizes. Com a violenta crise que sacode o mosteiro e o rei Afonso IV, Pedro, em conflito continuado com o pai, passa a ser o mais habilidoso trunfo dos frades contra o rei. O casamento de Inês e Pedro, se aconteceu, como tudo leva a crer que sim, foi no altar de Alcobaça que se realizou, e não em Bragança como Pedro estrategicamente afirmará um pouco mais tarde, na declaração de Cantanhede. Os filhos de Inês e Pedro foram baptizados pelos frades. E são eles que facilitam ao infante a tenência do levantamento armado contra o pai, depois dos sucessos de Santa Clara. Por isso, em 4 de setembro de1358, quer dizer, um ano antes da morte de Brites e um ano depois de reinar, quando já estudava ao pormenor o plano da exumação de Inês, Pedro mandou passar uma carta régia ao mosteiro, restituindo-lhe todos os coutos disputados e sonegados por Afonso IV em 1336. E preparava-se já, com o conhecimento dos frades, para lhes fazer uma poderosa doação, isentando-os do pagamento de dízima, portagem ou qualquer outro direito real nas alfândegas do reino, o que veio a acontecer por carta de 20 de Janeiro de 1364.

Em Alcobaça, o abade entusiasmou-se com o projecto dos dois mausoléus.

—Senhor, vossa tenção é sábia — disse ele, com bom ânimo. — É justo honrar seus ossos num monumento de pedra digno da vossa real condição. Há aí, na escola monacal, um mestre capaz de preparar a obra. Recordais a Natividade que o mosteiro enviou para a igreja matriz da Touguia? Ora o mesmo mestre da Natividade, tomará à sua conta o monumento de Inês e o vosso.

O mestre chamava-se João Mira. Era um homem simples, nascido nos terrenos pulverulentos da Gândara, na margem direita da foz do Mondego. Cresceu entre o tojo das lagoas e o peixe que os pais de lá traziam. As primeiras formas que modelou em barro foram cabeças de barbo e de enguia, que lhe sairam perfeitas. Mais tarde, descobriu a pedra de Cantanhede ou de Ançã e a sua leveza. Talhou assim, quase de enfiada, sem estudo nem projecto, peixes, insectos, pássaros, anões, que surpreenderam pela perfeição. Tinha 12 anos e os pais levaram-no para Cantanhede, onde os padres o acolheram. Encontrou na vila os primeiros oficiais, que lhe ensinaram a manusear os instrumentos e o fizeram experimentar todas as pedras. Aos quinze anos era reconhecido como mestre e santeiro. Mandaram-no então para as oficinas de Coimbra, ligadas aos estudos gerais de Santa Cruz, donde saíram os capitéis da estatuária tumular do princípio do século XIV, além do túmulo do rei Dinis, que está em Odivelas, e a estátua jacente de sua mulher, em Santa Clara. Daí foi para as oficinas de Alcobaça, onde conheceu Inês e Pedro, talhou a Natividade e recebeu, da boca do rei, o encargo de esculpir os monumentos funerários.

—Esculpe-me em pe…pedra calcá…cária o meu sonho de amor, jus…justiça e eternidade — pediu-lhe Pedro, num último fôlego de clareza, depois de lhe explanar longamente o seu desígnio.

Ele assim começou a fazer, enquanto o rei se afastava para Coimbra, ansioso por acertar os artigos da declaração do seu casamento com Inês. Esperava com a declaração prosseguir com o seu plano, apresentando de imediato à justiça os matadores da mulher, que estavam encarcerados em Castela, aguardando que ele os mandasse trocar pelos fidalgos castelhanos, que há muito estavam aprisionados nas masmorras do castelo de Coimbra. Depois, estaria livre para passar à exumação do corpo de Inês.

A 12 de Junho de 1360, menos dum ano depois da morte da mãe, Pedro, rodeado pelo seu chanceler, Vasco Martins de Sousa, pelo seu mordomo-mor, João Afonso Telo, conde de Barcelos, pelos seus privados, mestre Afonso das Leis e  João Esteves, e por muitos outros homens do seu conselho, pronuncia a célebre declaração de Cantanhede, em que, diante dum tabelião, tocando com as mãos nos Evangelhos, jurou haver casado na Igreja, quando infante, reinando seu pai em Lisboa, com Inês Pires de Castro e haver vivido com ela depois disso, e até à sua morte, em boa maridança. Três dias depois, em Coimbra, no paço da cidade, o mordomo-mor do rei, conde de Barcelos, lê, diante do conselho do rei e de outras testemunhas, a bula contendo a dispensa papal para o casamento de Pedro e Inês, devido ao parentesco em grau afastado que os unia. Após a leitura, o conde pediu ao tabelião que o assistia que confirmasse a condição de infantes reais que cabia aos três filhos de Inês e Pedro, também presentes na sala.

Dois dias depois, ainda no paço de Coimbra, mas recolhido nas sombras da sua câmara, Pedro acertou com o mordomo-mor mandar um correio para Burgos, pedindo ao rei de Castela a vinda para a fronteira portuguesa dos três assassinos de Inês, que seriam trocados contra os homiziados castelhanos. A troca seria feita, do lado português, na vila de Alfaiates.

—Vêm de seguida para Coimbra, senhor, os prisioneiros — interrogou João Afonso Telo.

Pedro hesitou. Pensara aguardar pelos oficiais e prisioneiros em Coimbra, que fora o lugar do assassínio de Inês, e seria o da sua exumação, mas a presença da corte na cidade, com os filhos,  obrigava-o a repensar esse plano, que era o primitivo. Não se sentia à vontade com a presença dos filhos e decidiu-se por uma alternativa de última hora.

—Não, Co…Coimbra não — replicou o rei. — É me…melhor se…seguirem pra San…Santarém. Lá os i…irei a…aguardar.

Deixou a corte em Coimbra e, fazendo-se acompanhar apenas de dois ou três privados mais chegados e de inteira confiança, dirigiu-se para a cidade do Tejo, que fora aquela em que o pai lhe insinuara pela primeira vez a morte da amante. Estávamos em finais de Junho e os dias corriam quentes e grandes.  Quando se aproximou de Santarém foi na esperança de ter notícias dos prisioneiros ou então encontrá-los já a ferros nas masmorras subterrâneas da alcáçova do castelo. Saboreava com agrado a surpresa. Levava os olhos abertos e inchados de sangue, as cordoveias salientes e latejantes, a boca entreaberta e sôfrega, o rosto pálido como cera. Acelerou o passo, na ânsia de ter notícias. Mas não, em Santarém nada se sabia dos prisioneiros. nem dos correios do rei que haviam seguido de Coimbra para Alfaiates.

Instalou-se então no paço real, onde é hoje o seminário e passou dois dias desesperados, sem dormir, de vigia, postado nas ameias do castelo, acompanhado apenas dos seus dois cães favoritos, fitando obsessivamente a região da Chamusca ou da Golegã, donde esperava a comitiva. O Sol apertava durante o dia e ele, suado e expectante, observava os valados da margem direita do Tejo, com as mãos em pala sobre os olhos e um capuz de linho deitado sobre a cabeça. À noite, sentia a pedra quente das ameias, que conservava o calor do Sol, e não despegava os olhos do fio do horizonte. Nunca avistou, no meio dos segadores em grupo que se dirigiam ou regressavam dos campos, o pendão real, nem o pelotão numeroso de homens que traria, no seu seio, os prisioneiros bem guardados.

Em todo esse tempo, enquanto esperava sozinho e inquieto nas ameias de Santarém, saboreou antecipadamente o modo como mataria os antigos ministros do pai. Primeiro, pensou degolá-los, após os interrogar. Achou, porém, a coisa insípida e rápida de mais. Depois, apunhalá-los de surpresa, para que eles sentissem no ventre e no peito as chagas que haviam rasgado a Inês. Ainda assim, não lhe pareceu castigo nem extraordinário nem suficientemente feroz para o crime de que os acusava. Por fim, excitado pelos pensamentos da morte e pela visão do corpo de Inês sem vida, pensou estalar-lhes as vértebras uma a uma, lancetar-lhes os peitos ou as espáduas, mantendo-os vivos, e arrancar-lhes o coração das entranhas, com eles ainda resfolegantes, a um pelo peito e a outro pelas costas. Por fim, nas horas do termo da noite, quando esfriasse, era queimá-los, para se aquecer e alegrar na escuridão da noite. Riu deliciado com a maravilha do seu plano.

Ao fim de dois dias, exausto e ludribiado, foi-se lentamente pela ruas estreitas da cidade, para o paço da cidade. Precisava de dar as suas ordens ao carrasco, para depois se desabotoar e encostar no leito, dormindo umas horas. Mandou vir o algoz à sua presença, notificou-o daquilo que desejava e deitou-se. Ficou a ver, por instantes, o calor ondular na janela. Adormeceu assim, de olhos magoados e um zumbido quente e baixo nos ouvidos. Acordou com duas pancadas fortes na porta dos seus aposentes. Sobressaltou-se. Reparou que era já o fim do dia. Uma luz fulva avermelhava o céu e as oliveiras fronteiras, que ficavam entre o paço e o mosteiro de São Francisco, onde Constança continuava a sonhar com os beijos de Inês e Pedro. Saltou da cama. Tornaram a bater, desta vez com impaciência, enquanto ele se arranjava.

—Senhor, abri — implorou-lhe a voz do mordomo-mor.

Acabou se de arranjar e foi abrir. Era João Afonso Telo que lhe trazia notícias dos prisioneiros. Estavam a chegar e haviam já passado a barbacã do castelo. Eram dois, Pero Coelho e Álvaro Gonçalves.

—A…apenas do…dois? E o ou…outro?

O outro, Diogo Lopes Pacheco, escapara por uma nica para Aragão, onde fora engrossar o partido nobiliárquico do conde de Trastâmara contra o rei de Castela e daí, bem sustentado, esperava passar a França, viera informar um adiantado do pelotão real. Pedro rugiu com fúria, fechando as mãos, arreganhando os dentes, contraindo severamente os músculos do abdómen, batendo o pé. Estimava Diogo Lopes desde os tempos que se conhecia. Fora ele que lhe dera o primeiro cavalo, o primeiro perdigueiro e a primeira espada; ele o levara pela primeira vez  às perdizes e depois aos javalis, mas ainda assim, naquele momento, nada disso importava. Uma única coisa lhe cegava o espírito: limpar a Terra dos matadores de Inês, para que ela cá pudesse voltar novamente em sossego e sem horrores.

Entalou um chicote curto entre a correia do cinto e o abdómen e saiu à praça para receber os homens, antes mesmo deles entrarem no paço. Pediu água, fruta e pão, que não quebrava o jejum havia muitas horas e mandou pôr ali mesmo, no centro da praça, diante do paço, uma mesa e um escabelo, onde se pudesse sentar e cear. Começou a comer e a beber com aparente tranquilidade. Por dentro, estava tenso e contraído, como lhe acontecia estar quando acometia, num sítio desconhecido, entre sombras e lamas, o javali gordo de dentes.

A noite demorava a chegar; viam-se ainda vermelhidões atravessadas no céu e uma transparência anil no azul mais carregado. As andorinhas espavoridas e ruidosas começavam a recolher aos botaréus e aos cocurutos do paço, mas algumas riscavam ainda em rectas velozes e sonoras a amplidão da praça. Ouviram-se então os passos estrepitosos e apressados da companhia real a avançarem nas ruas esteitas da cidade e a aproximarem-se do paço. Pedro levantou-se e nisto, do canto sul da praça, começaram a surgir os soldados e depois, no meio deles, magros e andrajosos, barbas e cabelos por tratar, os dois prisioneiros irreconhecíveis.

Os soldados quando viram o rei assim parado, em pé, no meio da praça, estacaram com os dois homens no meio. Pedro aproximou-se e deu ordens para que os soldados abrissem alas. Queria passar e encontrar-se cara a cara com os dois homens.

O paço de Santarém estava quase deserto, com a corte toda para Coimbra, mas os poucos que o ocupavam haviam-se abeirado das varandas e janelas. Era já raro ouvir-se a estridência destemida das andorinhas ou sentir-se-lhes o voo veloz. As primeiras estrelas coavam-se por cima, pálidas, brancas, descoloridas, estrelas de Verão, sem a resina fria e perfumada das constelações de Inverno. Pedro ficou enfim diante dos dois matadores de Inês. Viu-os de mãos agrilhoadas atrás das costas e fez um sinal para que os libertassem. Todo o seu nervosismo anterior desapareceu. Diante daqueles rostos conhecidos, e durante tanto tempo sonhados, sentiu-se satisfeito e saboreou o momento da sua vitória, esquecendo a fuga de Diogo Lopes. Podes descansar Inês, que estes dois não te irão empecer à frente quando, nos meus braços, abrires os olhos à luz do dia, pensou ele risonhamente.

Depois, lembrando-se da gelada madrugada em que dera com o corpo morto de Inês nas lajes frias do átrio de Santa Clara, teve um rosnido de cólera e cresceu desmedido para os infelizes que estavam no meio da praça, ladeados por duas filas de soldados, mexendo os pulsos doridos por tantas horas de imobilidade.

—Os ou…ou…tr…os? — pergunta ele, num rosnido fechado e quase imperceptível, dirigindo-se-lhes.

Pero Coelho e Álvaro Gonçalves olham-se reciprocamente, sem peceberem a que se refere o rei. Calam-se ainda mais, de rostos apertados e inquietos.

—Os ou…outros, os que a ma…ma…mataram, quem são e…eles? — insiste Pedro.

Os dois homens percebem agora o que o rei quer. Quer nomes. Olham-se de novo e tacitamente acordam, sem trocarem palavra, que a resposta cabe a Álvaro Gonçalves, antigo meirinho-mor do reino.

—Senhor, a ordem de executar Inês de Castro foi sentença decidida por el-rei Dom Afonso, nosso senhor e vosso pai, que Deus há. Nós cumprimos as suas ordens e obedecemos a sua vontade, que era a vontade do rei, por amor ao reino.

Pedro é sacudido por uma convulsão de fúria e aproxima de surpresa o seu rosto nervoso, onde os lábios tremem e os dentes rangem, do rosto do antigo meirinho-mor.

—O a…a…mor do rr…reino e…era le…le…van…vantar ar…armas con…contra u…uma do…dona i…i…ino…fen…fensiva — pergunta ele, irado e fora de si.

Sofre, muito perto, o cheiro repugnante a urina e a suor de Álvaro Gonçalves, que recua, fulminado por aquele sobressalto, e acaba por cair desamparado no chão. Não se tem já nas pernas, intimidado pela presença dos soldados, pela ausência da corte, pela falta de rostos conhecidos e amigos, pela escuridão espessa da noite que definitamente os envolveu, pela fúria que prevê incontrolada do rei, pela fraqueza em que está desde há muitas horas.

Pedro ri, inclinando a cabeça para trás e metendo as mãos no cinto. Deixa Álvaro Gonçalves caído no lajedo da praça, incapaz de se levantar, e avança para Pero Coelho, que aguenta firme no seu lugar. Sente-lhe o mesmo cheiro nauseabundo.

—E tu, pe…pe…rro, que di…dizes — interroga-o Pedro com um ar facínora.

Pero Coelho olha-o desafiadoramente. Não tem os mesmos temores do antigo meirinho. Fica calado, por um fio de respeito ao rei. Pedro saca então do cinto o cabo do chicote, que estala de imediato, muito próximo do rosto do homem. Este não se mexe. Aguenta impassível o estalo seco do azorrague ao lado da sua face, mas percebe que tem de dizer alguma coisa. Não quer perder a compustura.

—Senhor, Álvaro Gonçalves tem razão. A decisão foi tomada por el-rei, por amor ao reino e para o salvar da desordem futura. Nós, como vassalos, cumprimos o que o rei ordenava. Também a nós, senhor, nos pesou a sua decisão, que o vimos tomar em desespero.

Pedro tem um trejeito de fúria e tristeza, lembrando o corpo abandonado de Inês no átrio de Santa Clara e pensando como teria sido simples evitar aquela tragédia.

—O rr…rr…rei — balbucia ele, perdendo-se no labirinto das suas mágoas e hipóteses.

—Sim, el-rei vosso pai, generoso e bravo… Vosso pai, a quem vós jurastes perdoar tudo o que se soldasse à morte de Inês de Castro.

Pedro desta vez rosna e faz estalar o chicote nos lábios de Pero Coelho, que se abrem a sangrar. Alguém num dos varadins do paço solta um grito agudo de medo ou espanto. Não me venhas falar de perdão, tu que, sendo nobre e cavaleiro, não soubeste perdoar uma donzela inocente, pensa iradamente Pedro.

—Perjuro. Carniceiro de vassalos fiéis ao seu rei — insulta-o Pero Coelho, cuspindo-lhe na cara o sangue ensalivado que tira dos lábios.

Pedro recua, leva com surpresa a mão ao rosto e limpa-se. Pero Coelho cospe então para o chão uma pasta ensanguentada, em sinal de desprezo e volta a insultá-lo.

—Traidor sem honra e  sem palavra.

Pedro ri com as ousadias de Pero Coelho. Acena para uma das janelas do paço. Está lá um homem forte e atarracado, que fita atentamente o que se passa na praça, pronto a intervir ao mais pequeno sinal. É o carrasco da alcáçova de Santarém. A figura desaparece e passado um pouco desce as escadas exteriores do paço, de capuz e luvas pretas, lado a lado com três moços, que lhe trazem os intrumentos do ofício. Sabe o que lhe compete fazer. É seu, desde há muitos anos, o triste ofício de estalar ossos, esticar tendões, separar pescoços. Pede aos soldados que voltem a agrilhoar os dois homens, desta vez mãos e pés. Pedro bate palmas e aparece um moço-de-câmara.

—Vi…viandas e vi…nho, que te…tenho fo…fome — ordena Pedro.

Depois, à medida que se começam a ouvir, debaixo da escuridão da noite, vértebras a estalarem como rebentos secos, Pedro volta a bater ruidosamente palmas. Aparece lesto outro moço-de-câmara.

Ah… e ce…ce…cebola e vi…vi…nagre pra o co…co…e…lho — diz Pedro mordazmente, enquanto pensa, no meio dos gritos de dor dos homens, estes não te irão empecer não, Inês, e o outro já fugiu para longe e nunca mais por cá volta a aparecer.

E estes também fugiam e nunca mais te apareciam, digo-te eu, Pedro, se tu os deixasses. Poupava-se bem na tua lenda este acto de crueldade fria e desumana. A carnificina de Santarém foi uma cena escusada, que nada acrescentou ao teu papel proustiano de taumaturgo do tempo perdido, que é o único que em ti interessa. Bem podias ter deixado cair este artigo sangrento do teu plano, que só ganharias com isso. Andaste dias agoniado com o cheiro a sangue e a carne humana queimada e em nada mais pudeste pensar. Aguentaste-te, enquanto o carrasco limpava os dois presos a teu modo. Gritaste e insultaste o pobre do homem, porque ele te pareceu inábil para o que querias. Comeste e bebeste todo o tempo, embriagaste-te com vinho de Alpiarça, mas depois não foste capaz de lavar a nuvem de sangue que se te colou aos olhos. Para te desanojares foste até à casinha do Paço, donde nunca afinal devias ter saído. Era lá que estava o crisol do teu amor e da tua lembrança. Fernão Lopes diz, no relato da tua vida, que perdeste fatia larga da tua boa fama de rei e homem público com o perjúrio ao teu pai. Eu digo-te que manchaste estúpida e inutilmente a tua alma de lírico e amante.

Depois dos sucessos de Santarém, Pedro foi então à Atouguia para se livrar do nojo em que andou com a morte bárbara de Álvaro Gonçalves e Pero Coelho. O despenseiro do paço da Atouguia lá continuava religiosamente a ir todas as semanas, para que a casa não desbotasse o ar. Nas pedras grandes, nos terrenos moles da pequena várzea, ao pé dos amieiros, nos areais brancos da costa, lavou Pedro os olhos com o azul do céu e do mar. A névoa sangrenta ganhou tonalidades esmaecidas e doces. Fez-se uma malha violácea e esparsa. Era o princípio do Outono e os seus pensamentos começavam a soltar-se de si como as folhas das árvores. Voltou a poder pensar em Inês, sem ouvir os roncos bestiais de Pero Coelho a libertar a alma. Tornou a olhar gente, sem ver diante dos seus os olhos arregalados de terror de Álvaro Gonçalves. Passou a beber água ou vinho, sem de imediato lhe vir ao paladar  o gosto enjoativo e mole do coração cru de Pero Coelho, onde por duas vezes cravara brutalmente os dentes.

Amadureceu então dentro de si o plano da exumação de Inês. Reviveu tudo aquilo em que já pensara e acrescentou-lhe novos pormenores. Cavaria ele próprio, por suas mãos, o coval de Inês. Ficaria sozinho, no meio das sombras e das arcarias ogivais de Santa Clara, como tantas vezes acontecera quando visitara a sua tumba. Uma única diferença entre o passado e o futuro próximo. É que desta vez não se conformaria em acariciar a terra que encarcerava Inês, iria descer, descer até encontrar o turvo país da morte. Lá procuraria, no meio dos espectros vagabundos, com pressa e cuidado, a amante. Quando a descobrisse, pegaria nela nos braços e transportá-la-ia de regresso ao país dos vivos, onde a sentaria no seu regaço, à espera que abrisse os olhos.

Lá fora haviam de piar as corujas do mosteiro ou arrastarem-se as asas dos morcegos que ele seria, embalando aquele corpo nos braços, o mais ledo homem do mundo. Para ajudar Inês a despertar, ele próprio lhe lavaria as mãos e os lábios e os olhos dos farrapos de noite que ainda lhes viessem colados. Vestir-lhe-ia o vestido de brocado azul, com guarnições em relevo, de fio de oiro, que fora o vestido que usara na boda de Constança, em Lisboa, e calçar-lhe-ia os chapins de sola que lhe encontrara caídos ao lado do corpo no átrio de Santa Clara, no dia da sua morte. Por fim, colocar-lhe-ia no dedo o anel de oiro fino que ela um dia lhe dera em Alenquer e debaixo dos cabelos, no rebordo delicado das orelhas, os brincos de prata, que usava no dia em que pela primeira vez lhe dirigira a palavra, em Alenquer, e que lhe haviam sido dados por Inês no momento em que lhe entregara o vestido que usava no casamento de Constança, isso no tempo da sua partida para o exílio de Albuquerque. Pedro conservara tudo isso com um fetichismo sagrado na casinha do Paço e não se cansava agora de remirar esse toucador feminino da sua nova boda.

Soube, por essa altura, que a arca de Inês em Alcobaça chegava ao fim e estava quase pronta para ser instalada na igreja do mosteiro, de modo a receber Inês. Partiu de imediato para o mosteiro, insofrido de ver o monumento e sentiu-se justificado quando deu de caras com a estátua jacente de Inês coroada, o baldaquino protegendo-lhe a cabeça coroada, os motivos do Juízo Final, ornando o topo do túmulo,

—No Ju…Juízo Fi…Final está o meu so…sonho de jus…justiça; na co…coroa de Inês o meu so…sonho de amor — exclamou ele. — Fal…falta a…agora ta…talhar, em ou…outro mo…monu…numento, o meu so…sonho de e…eterni…nidade.

Quis tomar nos braços o mestre que orientara a obra.

—Vós lhe des…destes vi…vida e vós a co…coro…astes an…antes de mim — adiantou-lhe Pedro, enquanto o puxava a si, sentindo-lhe o corpo delgado e o rosto tímido próximo do seu.

Ainda pensou partir de imediato para Santa Clara, para tratar da exumação e da trasladação. Mas a escuridão do céu, a podridão da terra, o tempo chuvoso não o entusiasmaram. Queria que Inês voltasse a estar entre os homens numa estação azul e de Sol, em que a natureza se mostrasse amena e perfeita. Não suportava pensar que Inês abrisse os olhos para ver a tristeza dum céu chuvoso e os ouvidos para ouvir a revolta dum trovão rasgando os ares. Queria que ela, quando chegasse de novo à Terra, fosse esperada pelo perfume das flores e o canto terno dos pássaros.

Adiou pois para a Primavera próxima o momento da exumação e entregou-se ao sonho daquilo que se aproximava com o deleite e a ingenuidade duma criança. Durante o Inverno reuniu a corte no paço real de Coimbra; preparou os filhos de Inês para o acontecimento, sobretudo João que ficara com o espectro da mãe atravessado nos olhos e era agora um rapaz desenvolto de 13 anos, com os primeiros pêlos na cara; notificou o bispo de Coimbra da trasladação do corpo de Inês, que foi autorizada; lembrou-se de pedir a Teresa que viesse a Coimbra fazer uma última vénia a sua ama; enviou correios aos povoados que ficavam entre Coimbra e Alcobaça, ao longo de perto de 20 léguas, para lhes dar notícia que na Primavera, no final de Abril, por lá passaria o cortejo real a caminho de Alcobaça; pediu, por intermédio desses seus arautos, que o povo acorresse de círio aceso na mão à passagem da grande procissão.

Abril, por fim, chegou. Os primeiros dias vieram carregados de chuva, os campos do Mondego voltaram a alagar e os caminhos ficaram intransitáveis. Depois, as chuvas foram-se espaçando até que despareceram de todo e em seu lugar raiou um Sol luminoso, que tudo foi enxugando. Um dia, já a caminho do fim do mês, quando os jardins se enchiam de flores e o céu amanhecia azul e enxuto, cortado pela linguagem misteriosa dos pássaros, Pedro enviou um escudeiro ao mosteiro.

—Irmã porteira abri, que trago um recado de el-rei para a abadessa — exclamou o escudeiro, enquanto batia.

De dentro demoraram a responder. Por fim, abriu-se um postigo na porta e apareceu uma cara forte e inquiridora.

—Depressa, abri, abri, que trago ordens de el-rei — insistiu o escudeiro.

Abriram e o escudeiro ofegante e impaciente entrou na portaria do mosteiro e pediu para ser posto na presença da madre superior. Ausentou-se a irmã porteira e regressou passado pouco tempo acompanhada pela abadessa.

—El-rei há-de vir esta noite, logo depois do toque de vésperas, para aquilo que sabeis — disse o escudeiro.

—De noite, depois de vésperas — perguntou espantada a abadessa.

—Sim, porque amanhã, depois da hora de prima, reunirá a corte no átrio do paço do mosteiro e daí partirão para Alcobaça, sem nunca pararem no caminho mais do que um momento, para comerem e beberem — respondeu o escudeiro.

Ao entardecer, as monjas ouviram na cerca o tropel dum cavalo. A madre aproximou-se da janela e viu um alazão negro, montado por um homem vestido de negro, o cabelo apanhado numa boina da mesma cor. Era el-rei, que vinha, apressado e rude, desenterrar Inês. Deu ordens para que as monjas se recolhessem de imediato às suas celas, mesmo sem rezarem o ofício da noite e recebeu ela sozinha o rei, que se apresentou envolvido numa capa preta, com grosso boldrié, traçado a tiracolo.

—Senhor, não trazeis coveiro convosco — surpreendeu-se novamente a abadessa.

—Não, ma…madre, ho…oje sou eu o co…coveiro — replicou risonhamente o rei.

Não queria que Inês visse outras mãos e outros olhos, além dos seus. Além disso, para ele, Inês estava apenas a dormir num leito de terra um sono mais longo que os outros, nada mais. O ofício dos que morriam para sempre não cabia ali.

A abadessa, timorata e acanhada, levou-o ao campo-santo do mosteiro e lá o deixou, com dois brandões de cera acesos, depois dele lhe pedir sossego e solidão. A noite, entretanto, caíra de todo. Pedro desfez-se do manto, que ficou tombado no chão, e tirou pá e picareta do boldrié, mas antes mesmo de forçar a laje, deitou-se em cima daquele pavimento frio e sinistro, como tantas e tantas vezes fizera ao longo dos últimos anos. Só que desta vez, a saudade era tanta e tão grande, que não cabia naquela apertada superfície de pedra fria. Deixou-se ficar, assim caído, todo de negro, no meio das lajes, à luz amarelenta e oleosa das tochas, sentindo o coração palpitar contra os mortos, como que medindo e preparando forças para a luta que a saudade iria travar contra a morte. Por cima dele, nas largas aberturas ogivais das paredes, as corujas começavam a despertar e a bater as asas. Através da escuridão duma noite sem lua, viam-se, transparentes e imóveis, os seus olhos brilharem, interrogando filosoficamente do alto do aposento o espectáculo estranho daquele homem vestido de negro deitado em cima dos mortos.

Pedro levanta-se, pega na picareta e força então, sem pressas, limpando bem as ranhura a toda a volta, a laje rectangular do coval de Inês; quer evitar, a todo o custo, quebrá-la. Por fim, depois de muitos esforços, a laje cede ao esforço continuado e Pedro fá-la deslizar, com a força do corpo, para o lado, com um som pesado.

—Par…pardeos, aqui estou e aqui hei de estar — exclamou Pedro inebriado, enquanto enxugava o suor da testa e do pescoço com a ponta escura da camisa.

Está finalmente diante da terra que cobre o ataúde de Inês. Aspira-lhe primeiro o cheiro. É um perfume azotado, que lhe lembra as emanações quentes e vaporosas dum estábulo manso. Depois, toca-lhe. É uma terra leve, macia, amolecida pelas combustões interiores que a lavram e enriquecem. Apesar, de subterrânea, sem nesga de Sol, uma vegetação esbranquiçada e leitosa, própria dos sítios humidos e sombrios, cobre-a. Aranhiços, arrastando nas patas teias poeirentas, fogem apavorados da luz dos círios, procurando refúgio sob a escuridão das frias lajes. É então este o caminho que conduz ao país dos mortos, pensa destemidamente Pedro consigo, soltando uma gargalhada tétrica, que assusta as corujas que piam e batem asas para longe.

Começa então a meter as mãos à terra, que tira às braçadas. Prefere deixar de lado, por precaução, a pá. Por nada deste mundo, tocaria com o duro ferro da pá no corpo delicado de Inês. É um trabalho árduo, que lhe demora algum tempo. Pedaços de terra húmida agarram-se-lhe às vestes negras e aos fios suados da barba. Finalmente, já dentro da cova, com os dedos esfolados, toca na madeira do ataúde. Volta ao pavimento de pedra e cai de joelhos no chão, mãos postas, a rezar, lábios a tremer.

—I…Inês, I…Inês, es…estás aí? Ou…ouves-me — pergunta Pedro, sussurrando baixo, para dentro do coval aberto.

Depois, entra de novo na cova e, com todo o cuidado, limpa a terra em torno da madeira roída do caixão de Inês, até lhe pôr à mostra a tampa. Contempla aquela madeira carunchosa e deslavada. Por fim, encosta-lhe religiosamente o ouvido.

—Já te oi…oiço, m…meu a…amor — murmura enlevadamente Pedro. — Vou…vou-te rou…roubar a essa es…escuridão.

Continua o seu trabalho de limpeza minuciosa, até pôr à mostra, limpa de terra, a caixa de madeira, onde Inês repousa. Lá no cimo, nos arcos ogivais, as corujas, que regressaram, contemplam curiosas o cofre misterioso que foi extraído à terra. Passa os seus braços fortes pela base da caixa, ergue-a cuidadosamente, roda o corpo e vai pousá-la suavemente nas lajes de pedra do pavimento. Sai então do coval aberto e, a tremer, destapa o ataúde.

Lá dentro, sorrindo, de olhos vazios, pálido, limpo quase de carne, de cabelos ainda fulvos, envolvido numa luz espectral, como se estivesse a dormir, o rosto ressequido de Inês. Tem as mãos postas no colo, sobre o peito. Pedro cai imediatamente de joelhos nas lajes e balbucia uma oração desencontrada. Por cima, as corujas piam longamente, como se estivessem a comentar entre si o caso ou a acompanhar a oração de Pedro.

Pedro fica assim uma porção de tempo. Finalmente, põe-se a falar baixinho ao ouvido de Inês.

—A…acorda, a…acorda, a…mor — diz-lhe ele, com muita insistência e carinho. — São ho…horas de nos le…levantar…tarmos e se…seguirmos vi…viagem.

Depois, deixa de se perceber a sua fala. São apenas suspiros ou soluços risonhos de amor. É a manifestação sonora da alegria da sua alma, nada mais; a revelação da alegria de quem ao fim de sete longos anos reencontra extasiadamente o que perdeu. No meio do seu arrebatamento, ouve-se no mosteiro o toque frio de matinas, acompanhado pelo longo piar das corujas. Pedro passa então os braços por baixo do corpo de Inês e soergue-o no ar, com a face lavada de lágrimas e risos. Deseja sentá-la no altar do céu. Lá em cima, esvoaça um morcego cego, que foge espavorido com a luz irradiante dos cabelos de Inês.

É assim, de Inês erguida nos braços, triunfalmente arrancada à morte e à escuridão da terra, que tu, Pedro, és grande, magnânimo, justo. Que é a tua justiça pública ao pé desse sublime gesto com que ofereceste Inês aos céus? Mostraste com ele o valor da saudade infinita que havia no teu coração, a grandeza do teu sofrimento saudoso, o alcance da tua memória, o poder esperançado da tua lembrança. Foi nesse momento que tu descobriste a última essência da mulher, a mais escura e a mais brilhante, aquela que já não pertence aos quatro elementos da Terra e que só tu e a tua saudade viram. A saudade que em ti havia, cavava tão fundo no esquecimento, e com tanta sede, que desenterrou Inês. Assim, de Inês nos braços, sem o azorrague na cintura, simples e generoso, com o luto no coração e a luz da tua saudade nos olhos, és comparável a Orfeu e a Dionisos, a Tristão ou a Dante, a Prometeu ou a Jesus e a tua vida bem merece ser contada como a lenda dum semi-deus.

Pedro volta a pousar o corpo de Inês no seu leito esburacado de madeira. Dirige-se ao boldrié de couro e tira do seu interior um embrulho de roupas. É o toucador da sua noiva. Estão lá os brincos de prata, o vestido de brocado azul, os chapins de sola, o anel de oiro fervido e ainda uma fina coroa de oiro, um manto real de veludo azul, um bastão de prata. Pedro liberta o corpo de Inês das suas roupas desfeitas e sem cor e contempla o seu corpo descarnado e magro, onde os ossos se desenham finos e longos. É um flor com pétalas tropicais e quentes, esses cabelos fulvos de oiro, mas que viveu demasiado tempo encarcerada nos gelados subterrâneos da noite, tornando-se, por isso, uma criptogâmica anémica e calcificada, de marfim e osso.

Paramenta essa flor de cálcio com as suas vestes de rainha, prende-lhe os brincos e toma nos braços esse vulto para o levar para o átrio do paço do mosteiro, onde a corte o virá ver quando nascer o Sol. Batem nesse instante os primeiros toques da hora de laudes. Não tarda aqui a raiar a alba, pensa Pedro consigo.

Sai apressado para o exterior com Inês aninhada nos braços e recebe na cara, de frente, a rajada do ar frio daquela noite funda e sem lua. Pedro embrulhado na sua capa de feltro, parou momentaneamente e Inês, nos seus braços, pareceu encolher-se, protegendo-se do frio, com a corola dos cabelos fulvos encostada carinhosamente ao ombro forte do amante. Quem assim os visse, pensaria que vinham os dois duma noite secreta de amor e folia.

Senta-a no escabelo do átrio do paço, esse mesmo em que Afonso IV se sentou quando a deu a matar aos seus conselheiros, acomoda-a entre almofadas, encosta o banco à parede para não arruinar o conjunto, retoca-lhe os cabelos e o ceptro. Observa depois, de joelhos, como se estivesse num acto de vassalagem, a rainha morta, a rainha morta sentada no seu trono, fitando com os olhos vazios o infinito. De repente, na luz carnal e sanguínea que a madrugada começa a destingir, ele tem a impressão que a vê mexer os lábios, sorrindo-lhe agradecida e terna, dizendo-lhe palavras de amor e paixão. Trémulo, excitado, exausto, Pedro estende-lhe a mão, balbucia o seu nome e adormece-lhe aos pés. Depois disso que dizer? Nada. Mais vale deixar Pedro dormir aos pés do seu milagre.

Com o toque de prima, começaram a ouvir-se murmúrios baixos de vozes nos jardins do mosteiro. Era a corte que chegava do paço da cidade e se reunia para o encontro que o rei lhe havia marcado. Estavam lá os filhos de Inês e Pedro, acompanhados de Teresa; o infante Fernando, filho de Constança e Pedro; o vasto conselho do rei; os escudeiros da corte; os mancebos de família; os oficiais de justiça; os representantes da nobreza do país e do clero, desde as ordens religiosas aos bispados. Era uma procissão de centenas de pessoas, todas de círio aceso na mão. O mordomo-mor do rei, João Afonso Telo, não dando notícia do rei nem da abadessa, decidiu subir ao paço, antes mesmo de bater à portaria, para ver o que se passava. Quando empurrou a porta e entrou no átrio, levou as mãos à boca e susteve um grito de espanto e terror. Diante dele estava o rei por terra, embrulhado na sua capa escura, aconchegado aos pés duma Inês Pires de Castro ressuscitada, descarnada e ressequida, mas de formas intactas, coroada por uma coroa fina de oiro, envolvida pelo manto real da casa de Borgonha, de ceptro de prata no regaço.

João Afonso ficou varado e não conseguiu sequer dar um passo. Caiu ali mesmo, de joelhos nas lajes, e começou atabalhoadamente, em surdina, de círio aceso na mão, uma oração. Pouco a pouco, a corte foi entrando e ajoelhando trespassada de terror e respeito por aquela cena macabra e sobrenatural, que excedia tudo o que podiam esperar. Baixavam a cabeça, ajoelhavam-se e começavam a orar em murmúrio, de círio aceso na mão. Por fim, Pedro apercebeu-se do burburinho em seu redor e levantou-se num esticão. Fitou longamente a assembleia que se reunira à sua volta, onde reconheceu os filhos a tremer de espanto. Depois virou-se para Inês e sentou-se ao seu lado.

—Meus se…senhores, Por…Por…tugal voltou a ter ra…rainha — proclamou ele vivamente, voltando o rosto para Inês. — Bei…beijai, como vos é de…devido, a mão e a pon…ponta do man…manto real da vo…vossa se…senhora.

Ondulou pela assistência um murmúrio de pasmo e horror. Ninguém se mexeu. Durante largo espaço de tempo não se ouviu qualquer movimento ou palavra na sala. Então, do fundo da assembleia, Teresa, embrulhada numa mantilha preta, rosto sombreado pelo capuz que lhe caía pelos olhos, levantou-se e atravessou silenciosamente a sala. Era como um alcíone voando sobre o mar de todas aquelas cabeças baixas. Ajoelhou-se dignamente diante da sua senhora, recolheu-se um momento aos seus pés, tocou-lhe no chão com os lábios a ponta do manto, tomou-lhe a mão direita entre a sua e beijou-lhe, a chorar de comoção, a ponta esburgada dos dedos. De seguida, antes de se retirar para o fundo da sala, foi buscar João, o filho mais velho de Inês, tomou-lhe a mão, avançou com ele pela sala, parou diante de Inês e Pedro e ali esperou, com João ao lado, as ordens dos seus dois senhores.

—Meu fi…filho, a tua mãe re…ressusci…citou. Dá-lhe as boas-vin…vindas — convidou paternalmente Pedro.

João, trémulo, cor de azeitona, os olhos arregalados de assombro e agonia, inclinou-se então para a mãe e deu-lhe ao de leve um beijo nos ossos descarnados da face. Correu na assembleia um rumor baixo de admiração e assentimento.

—Ve…vede se…senhores, Por…Por…Portugal voltou a ter ra…ra…inha — voltou a proclamar benevolentemente Pedro. — Prei… preiteai a vo…vossa se…senhora.

Então, galvanizada pelo exemplo de Teresa e de João, a assembleia começou a levantar-se, a organizar-se em fila, a desfilar lentamente diante dos escabelos onde se sentava o casal real. Cada um se ajoelhava diante de Inês, círio aceso na mão esquerda, encostava os lábios à ponta de veludo do manto real, tomava-lhe a mão, beijava-lhe a ponta dos dedos. Depois, recolhidos e solenes, como se tivessem acabado de comungar na Eucaristia o pão e o vinho consagrados, saíam para os jardins do paço, tomando atordoadamente o pulso da realidade, tentando perceber que ainda não se haviam desterrado desta vida e que tudo aquilo não eram as imagens descontínuas do seu sonho vivido num qualquer além Terra.

Pedro apareceu então no meio dos jardins, onde se concentrava a multidão da corte. Estava lívido e tétrico; parecia, debaixo daquele Sol primaveril, uma nódoa escura, manchando nocturnamente o dia. Também ele era depois do passeio infernal daquela noite uma flor de osso e de marfim.

—Se…senhores, a ra…rainha está cuidosa de vol…voltar a ver o seu país — proclamou gravemente o rei.

Deu-se início ao cortejo fúnebre em direcção a Alcobaça, ao longo de perto de 20 léguas. Pedro trocou as suas vestes negras e sujas de terra por indumentária branca e lavada. Inês, coroada com o emblema da sua soberania, envolvida no seu manto real, de ceptro real no regaço, foi instalada nuns varais altos de madeira, encostada numa liteira descoberta, e protegida lateralmente por almofadões. Era a lua nova a brilhar à luz do Sol, quer dizer, era o derradeiro aspecto da mulher revelado pelo desejo órfico de Pedro. Puseram-se lentamente em movimento.

Na frente, depois dos arautos a cavalo, tocando a espaços trombas de prata, segue o rei e ao seu lado as andas do carro de Inês, transportado por dois cavalos brancos, vestidos de veludo. Depois, atrás, vêm os infantes a cavalo, Teresa com Brites, os bispos, o mordomo-mor, os homens do conselho do rei, os oficiais de justiça que sempre o acompanham, a corte, a clerezia, os moços-de-câmara, todos eles de círio aceso na mão, murmurando em surdina orações temerosas. À medida que deixam Coimbra para trás, encontram pelos caminhos multidões de camponeses andrajosos, de ar inocente e risonho, com círios acesos nas mãos. Então o rei acelera o passo do seu cavalo branco e dá ordens aos arautos da primeira fila. Eles param, tocam as charamelas e depois anunciam a uma só voz:

—Portugal voltou a ter rainha. Portugal voltou a ter rainha. Portugal voltou a ter rainha.

Os camponeses ajoelham-se, atiram flores ao rei e à liteira da rainha e associam-se ao cortejo a pé, com cânticos instintivos de alegria. Todo o caminho a procissão vai engrossando com os afluentes de populares que vêm aos caminhos, de círio na mão e flores no regaço, esperar a passagem do casal real. De quando em quando, os arautos do rei suspendem o movimento dos cavalos, tocam as suas trombetas, anunciam a passagem do séquito e o regresso da rainha ao país dos vivos. O povo benze-se, tão crente no facto extraordinário das folhas e das flores regressarem aos ramos despidos das árvores e dos arbustos como no milagre da ressurreição da rainha. Param algumas horas, já noite cerrada, para comerem, beberem e descansarem em Pombal, à vista de Leiria, e de madrugada recomeçam lentamente a marcha em direcção a Alcobaça, onde eram esperados por volta do meio-dia. De quando em quando, o rei olha, risonho, todo de branco, o manto real de Inês, a sua coroa fina, os seus cabelos de oiro maduro, a dignidade da sua posição, e ouve atrás de si os cânticos do povo, as orações dos clérigos e deixa-se comover.

Quando chegam a Alcobaça, na tarde do dia seguinte, a 25 de Abril de 1361, são um oceano de gente, ondulando ao Sol do fim da tarde. Os sinos põem-se a tocar a finados, quando o rei, acompanhado pela liteira da rainha, transportada pelos frades, começam a subir as escadas da igreja abacial. Lá dentro, rodeado por seis brandões acesos, a meio da nave central, por baixo das abóbadas ogivais da coberta, vê-se o largo estrado de madeira, onde a liteira de Inês, com o seu corpo exposto, irá repousar enquanto durar o ofício fúnebre. Depois, quando a noite se encher de estrelas, e os círios dos homens se virem na Terra brilhar aos milhares, ele mesmo levantará com os seus braços o corpo de Inês do catafalco, atravessará com ele a nave da igreja e o ajeitará suavemente no leito do seu monumento de pedra, no transepto da igreja ou na galilé. De seguida, fechará, sobre ele, até ao fim dos tempos, a tampa de pedra. Então, quando o último eco desse som arrastado se apagar no interior da igreja, ele pedirá aos seus escudeiros que armem tendas no terreiro, tragam pães cozidos, espetos de assar, viandas, tinas cheias de vinho, alumiem fogos e fartem de comida e bebida noite fora todo aquele povo que ali veio aquecer com o seu sangue e a sua voz a festa de Inês.

Agora, a corte começa a encher a igreja de círios acesos e lá fora ouve-se o murmúrio alegre do povo a chegar. Então, na luz avermelhada do poente, que atravessa a partir da rosácea todo o interior do templo, Pedro, fitando a gravidade com que Inês, no meio da multidão, usa a coroa de rainha, deixa-se por uma última vez comover até à raiz da alma. És a mais bela e misteriosa rainha que Portugal ainda teve e terá e o teu regresso é muito mais perfeito do que aquele que sonhei para ti, pensa ele consigo, enquanto os olhos se lhe enchem de lágrimas e o coração de felicidade, como se estivesse no dia da sua boda.

Deves ter razão, Pedro, comento eu sete séculos depois. Inês, a rainha morta, é hoje a única rainha viva de toda a História de Portugal e a cena da sua coroação a única que ainda merece ser contada. Foi tão perfeita, que bem podia ter dispensado a da vingança, que foi apenas um passo atrás na tua luta pela sobrevivência espiritual de Inês.

E eu, pelo meu lado, bem podia ter deixado cair as minhas indignadas exclamações anteriores contra a criação de Deus. É que o absurdo da morte, sobretudo da morte de inocentes, como Leonor ou Inês, deixa de ser um absurdo, um disparate ou uma imperfeição  do Criador, quando se dá de caras com o espectáculo do seu ressurgimento. Eu disse que a morte de Inês foi uma tragédia maior que a de Eva, mas esqueci-me do papel heróico de Pedro na sua ressurreição. A memória saudosa de Pedro, que o levou a honrar os ossos de Inês, na expressão crua de Fernão Lopes, rectifica o erro da Criação, que é a morte, e força uma confiança nova diante da vida. Em vez da revolta contra o absurdo do destino ou da resignação impotente diante da sua violência cega e destrutiva, tenho, com a saudade de Pedro, a satisfação do segredo da inteligência da vida, sobrevivendo à força bruta da morte. Só morre o que esquece, não é assim, Pedro?


EPÍLOGO


A exumação, a coroação e a trasladação de Inês foram os momentos supremos da vida e do reinado de Pedro. Depois deles,  paga a pena referir as Cortes de Elvas, que se realizaram dois meses depois da trasladação de Santa Clara para Alcobaça e que significam o desejo de confraternização deste rei, que respeitou, e obrigou nobreza e clero a respeitar, as regalias concelhias e as liberdades municipais. É o princípio moral e político do Beneplácito Régio, que, abrindo os caboucos duma igreja portuguesa, facilitou, em conjunto com outras medidas, a iniciativa agrícola e comercial dos concelhos e o fortalecimento duma classe média empreendedora, com vigoroso sentido de iniciativa e autonomia.

Assim como assim, Pedro, no Verão de 1361 era um homem de 41 anos, que tinha em cima dos ombros as duras lides duma descida ao reino das sombras. Estava tão cansado como Ulisses ou Eneias depois dos  trabalhos das suas viagens. Tinha um rosto sombrio e fechado, próprio de quem vira cara a cara a morte, sem se assustar. Era um rosto de trevas, mas sem a amargura dos infelizes. Sofrera muito, mas fora capaz de cicatrizar com o seu esforço as feridas, refazendo a história do que lhe acontecera e destruindo a infelicidade que a Fortuna previamente lhe fixara. Fora um insubmisso espiritual, que se rebelara contra os limites do destino humano e o recapitulara a seu modo. Sentia que a missão da sua vida estava cumprida e que pouco tempo mais lhe restaria para viver.

Quem como ele fora ao reino das almas mortas e de lá conseguira roubar a sua alma predilecta, sem de imediato sofrer a pena capital com que os deuses premiavam esses casos, não podia agora pedir fosse o que fosse. Estava satisfeito, mas cansado. Uma única noite no país subterrâneo dos mortos, equivalera a muitos anos no país dos vivos. Ademais, sentia que o destino estava tão pronto, depois da sua ousadia, a tomá-lo de ponta, como Zeus embirrara outrora com Prometeu. Este dera aos homens o fogo, enquanto que ele lhes dera a luz. Aquele mostrara-lhes a paixão do amor na vida, ele que a condição humana não estava superiormente gizada, nem mesmo na morte, e que, pelo sentimento da saudade, era possível a ressurreição dos mortos.

Duas coisas, depois das Cortes de Elvas, ainda o preocupavam. Primeiro, inquietava-o o seu monumento funerário. Não queria deixar esta vida, sem o ver acabado e instalado aos pés do de Inês. Foi a Alcobaça várias vezes ainda ao longo do ano de 1361, mas o monumento só ficou pronto no final do ano seguinte. Na história de São Bartolomeu, que é narrada e pormenorizada no seu túmulo, viu Pedro a sua aspiração de eternidade. São Bartolomeu, o homem que revive depois de lhe cortarem a cabeça, resume o ensinamento de Pedro. Tal como o santo pega na sua cabeça depois de ser degolado e se dirige assim descabeçado até junto do seu assassino, também Pedro pôs a caminhar Inês depois de morta. A mulher de carne ressuscitava luminosa; em vez de podridão, nódoas esfaceladas, ossos cariados, uma palavra alada e branca, de esperança e eternidade, elevava-se sobre os malefícios do tempo.

—A…té ao fim do mundo — disse Pedro quando viu a sua arca instalada aos pés da de Inês, na galilé da igreja, pronto a recebê-lo.

A segunda preocupação era encontrar um destino para o filho que tinha de Teresa e que desde os três anos vivia afastado de Lisboa, sob a tutela de Nuno Freire de Andrade, mestre da Ordem de Cristo. Nos afazeres trabalhosos do seu ofício de taumaturgo, nem sequer tivera tempo de estar com ele. No Verão de 1363, vagou de surpresa, com a morte inesperada de Martim de Avelar, o mestrado de Avis. Pensou prover a vaga com o seu último filho, que tinha então sete anos. Chamou-o ao paço da Chamusca, viu-o, ao que parece pela primeira e única vez, tomou a decisão de o armar cavaleiro com a espadagada e de o enviar de imediato para o Alto Alentejo ocupar o cargo deixado vago pela morte de Martim de Avelar.

Foi assim que o único filho bastardo de Pedro se tornou no festejado mestre de Avis. Quanto à mãe, Teresa, perde-se-lhe o rasto. O alcíone da cena da coroação de Santa Clara, que acompanhara diariamente Brites, a mãe de Pedro, depois da agonia de Afonso, e fora por ela generosamente dotada à sua morte, bateu as asas da sua melancolia para um país imaginário e distante. Fechada no negro bioco da sua sombra, é ela a avó de todos os sonhos portugueses de luto, distância e solidão. Não há verdadeiro apartamento entre Teresa e Pedro, porque nunca houve união. O que houve, e continuou a haver, além do desfrute momentâneo dum e doutro, foi intimidade na ausência, essa intimidade feita de sombras e silêncios, que vinha de Alenquer ou de Albuquerque, e continuou pelos tempos fora até aos dias de hoje.

Depois de feito o monumento de Alcobaça e de orientado o seu bastardo, tudo o que restava a Pedro era cantar e dançar como um Orfeu feliz junto do seu povo, até que a morte o viesse buscar e lhe selasse para sempre, até ao fim dos tempos, com um beijo, os lábios secos. A Morte, a dona dos paços subterrâneos de Santa Clara, andava apaixonadíssima por ele, e isso desde o instante em que o vira, de melena suja e olhos luminosos, todo vestido de negro, com uma coruja no alto da cabeça, a escavar nos seus domínios. Ansiava por tê-lo nos braços, para lhe beijar insofridamente a boca, tanto mais que sabia que os seus beijos frios não tinham sobre ele mais que um efeito passageiro. O príncipe negro, o rei saudade, o Ulisses moderno que descera ao reino das almas mortas e de lá voltara intacto e sem nódoa, destroçava, com o poder da  saudade que sentia por Inês, os beijos da Morte. E esta, ciumenta e mimada, desejosa de o roubar a Inês, mais apaixonada e chorosa andava por ele.

Mas a morte para Pedro não existia. Morrer era tão-só dormir. Não pensava, por isso, na morte, mas no que faria quando dela acordasse. Era um doido, mas um doido lúcido e heróico, que tinha um sonho para vencer a morte e o sofrimento. Acreditava teimosamente que não havia impossíveis e que, no fim do mundo, os mortos iriam acordar para o Juízo Final. Inês sairia então da multidão para lhe dar a mão e receber os seus beijos ardentes. Ela, a rainha morta, de novo ressuscitada; ele, o rei saudade, eterno e fantástico, atravessando vigilante e acordado, como uma sombra eterna ou um princípio vital sempre activo, as idades humanas e as eras cósmicas. Era o sonho dum doido, mas um sonho magnífico, cheio de luz e transparência, que enlouquecia de vida e electrizava de esperança a própria Morte.

Os últimos dias não demoraram a chegar. Quando os pressentiu vir, por meados do ano de 1366, lembrou-se de coisas insignificantes, mas que lhe pareceram eternas, como o riso inteligente dum negro de carapinha alva. Vieram-lhe à memória os calafates, as pedras polidas do paço da Serra, as embarcações do porto, os alcatrazes soltos, os bancos de areia na costa, os três fios do seu destino que um dia uma pomba lhe trouxera ao jardim do Paço da Atouguia, as suas lágrimas de menino no meio da escuridão da vila. Os fios lá estavam no pequeno cofre de castanheiro, que fora de sua avó, na casinha do Paço, onde raramente voltara depois da exumação, mas que continuava a ser tratada como se ele e Inês a habitassem. As lágrimas, essas, estavam lá, na sua infância, tão viva e tão presente no seu pensamento. Chorou com elas, não de sofrimento, mas desta vez com a alegria de as lembrar assim na distância.

Bailaram-lhe ainda na lembrança as primeiras saídas na companhia de Diogo Lopes Pacheco. O nome do antigo perceptor não lhe despertava agora qualquer ira. Pedro sentia-se um homem pacificado, que vingara, com o seu sonho de ressurreição, a morte de Inês. A vida dera-lhe uma saudade ainda mais vasta do que o seu amor e a sua tristeza, uma saudade mais poderosa até que a morte universal dos entes. De nada ou de ninguém, quem tal achara, se queixava. Era um homem feliz. Tomou para si perdoar ao antigo aio, que andava por terras de França, e restituir-lhe todos os bens. Chamou um tabelião, para que a sua vontade se escrevesse e logo se cumprisse. Feliz de ti, Pedro, que cobraste tarde, mas cobraste, que a vingança nada mais era que um retrocesso na tua luta olímpica pela sobrevivência luminosa de Inês.

Quando já se entregava, no meio da sua soledade desgarrada, a agourar a morte, chegaram-lhe notícias do sobrinho castelhano, filho de sua irmã, a formosíssima e desenganada Maria. Andava à procura de se acoutar em Portugal, ele e as três filhas que tivera de Maria Padilha. Assassinara, entretanto, em Junho de 1361, Branca de Bourbon, o que embaraçara muito a sua situação interna e externa. Perdera depois, no mês seguinte, por inesperado acidente, Maria Padilha e enfrentara novas rebeliões, acabando destronado pelo Trastâmara, que contara com o apoio dos mercenários das Companhias Brancas de Beltran Du Guesclin. Nos finais da Primavera de 1366, bateu à porta do tio e pediu-lhe para entrar, oprimido pela pressão dos partidários do meio-irmão. Pedro autorizou-o a passar a fronteira, mas não o quis receber. Achava-o inconstante e sem sentido de missão. Não quis que ele perturbasse, com os seus problemas e a agitação nervosa e despropositada do seu espírito, o sonho de eternidade da sua saudade. Enviou-lhe um correio com a indicação de embarcar com as filhas para a Galiza e de lá, havendo disso precisão, passarem a Bordéus ou Londres.

Pedro morreu pouco tempo depois, a 18 de Fevreiro de 1367, em Estremoz, num quarto do belveder da cidade, o mesmo onde morrera a sua avó Isabel, que fora para ele na infância a única mão terna e carinhosa. Morreu  de madrugada, a olhar o infinito da planície, de boca encostada ao fim da noite e do mundo, que o Alentejo é a última região do mundo antigo e a primeira do mundo do espírito. O que está para além do Tejo, já não é terra ou chão, mas um campo de estrelas, a voz da terra a chamar ansiosamente pelo céu.

Morreu sem alardes, sozinho, a sonhar teimosamente com a hora em que acordasse do sono da sua morte. Quem, como ele, exumou Inês da escuridão fria da terra e a sentou, coroada e bela, num trono à luz do Sol, bem podia crer piamente na ressurreição final dos mortos. Eis o que tu eras, Pedro, um esperançoso e um crente na vida eterna. Inês era uma grande alma, um corpo perfeitíssimo, um rosto tocado pelo terror da beleza divina, uma chama apolínea e clara, mas fostes tu, Pedro, que a criaste para o futuro quando a viste com os sais de prata do teu olhar obscuro e tosco de sonhador. Sem a força ancestral do teu olhar e do teu desejo, Inês não seria nada. É, por isso, que a morte de Inês é insignificante em toda esta fábula; o que nela vale é o teu sonho doido de saudade e vida eterna. A vossa lenda, Inês e Pedro, não é uma tragédia nem uma desgraça funesta, mas uma narrativa exemplar de libertação.

Depois de morrer, Pedro foi trasladado para o monumento de Alcobaça, onde ainda hoje está aos pés de Inês, de olhos semi-abertos, vigilante e desperto, à espera de acordar ao lado dela. Disse o povo, quando ouviu o último reflexo de som da tampa a fechar-se-lhe no túmulo, que nunca houvera em Portugal dez anos como aqueles em que reinara el-rei Dom Pedro. E dizia ainda o povo que rei assim não devia ter nascido ou não houvera de morrer. Tinha razão o povo. Homem assim, se nascesse, era para não morrer.

Lá longe, nos Pirinéus, o príncipe de Gales, ao serviço do destronado rei de Castela, preparava-se para chegar às margens do Ebro e dar combate ao exército do Trastâmara. Ia o Inverno de 1367 a caminho do fim. É um golpe ruidoso e sangrento, que se vai prolongar ainda por alguns meses, até Pedro de Castela ser assassinado pelo seu meio-irmão, Henrique, em Montiel, Albacete, na entrada da Primavera de 1369. Nada disso interessa já o leitor desta fábula. São os últimos estertores do seu cenário, nada mais. É tempo de começar a dobrar o pano de fundo em que esta estória teve lugar e arrumar de vez as suas personagens secundárias, a vasta pernada dos parentes de Inês e Pedro. No palco nu de madeira, na cena vazia da Terra, devem apenas ficar, para o último acto deste drama, as duas personagens principais, a rainha morta e o rei saudade.

É a noite eterna de Alcobaça, recamada de estrelas acesas, com os túmulos de pedra a vogar no espaço galáctico, como dois invólucros astrais, enquanto cá fora se sucedem os anos, os séculos, os milénios, na esperança de que um dia possa raiar a madrugada do fim do mundo e a trombeta do arcanjo anuncie o final dos tempos. Só então terá lugar o último acto desta estória, tal como Pedro a sonhou. É um capítulo eternamente em aberto, duma estória sem fim, que começou com dois tegumentos vegetais, dois embriões ovulares, e termina com dois corpos congelados, em órbita, em cápsulas de pedra, à espera de acordarem na última galáxia do tempo e do espaço. Nesse dia, quando já não houver humanidade para recordar o caso de Inês e Pedro, os astros hão-de contar com pasmo, uns aos outros, a fábula do seu amor. A estória de Inês e Pedro tem uma porta que se abre para a noite cósmica, original, profunda, que contém as almas universais antes da diferenciação, e uma outra que dá passagem para a noite una, final, em que tudo se perpetuará pelo vazio da saudade.

Eu que faço parte dos anos, dos séculos e dos milénios que se consomem em pó aos pés do sonho de Pedro, tudo o que posso, é imaginar a derradeira cena desta estória. Num cenário fantástico, numa paisagem irreal de Cruzeiro Seixas, no espaço extraterrestre da nave de Alcobaça, Inês sairá do seu túmulo de pedra ou da sua cápsula astral  e Pedro fará o mesmo. Ele, o rei saudade, que nunca fechou por completo os olhos, confiante em ver luzir, para além das idades humanas e dos ciclos cósmicos, a luz irreal da última manhã do tempo, anunciará, gajeiro do infinito, com gritos de vitória, o reencontro. Ela, a rainha morta, que dormiu sossegada depois de ter adormecido segunda vez nos braços fortes de Pedro, acordará a bocejar do seu sono eterno com os gritos do amante e sorrirá de preguiça e surpresa. E tudo isso acontecerá na beatitude da luz, quando tudo for apenas saudade e todas as diferenças forem esquecidas, nenhuma coisa se encontrar no seu próprio lugar, tudo se perder ou ganhar na treva de Deus e desaparecer no Seu lugar vazio, onde nunca existiu Criador e criação, diversidade e realidade passada, presente ou futura.

Disse eu, no começo desta narração, que ia pedir emprestados ao céu os dois grandes amantes, para que eles pudessem reviver diante de nós o drama sobrenatural da sua paixão. Enganei-me e disso peço desculpa ao leitor. Eles, sete séculos depois da sua existência, ainda estão em cima da Terra, aguardando a consumação do seu drama, e sou eu que me devo retirar, de voz cansada e boca fria, pronto a desfazer-me em pó. Eles, os amantes, continuam vivos, na sua vigília eterna.


Revista Triplov

Tributo a António Cândido Franco – Índice

Portugal – Maio de 2023