MARIA AZENHA
Foto: M CÉU COSTA
TRIBUTO
À fresca sombra da árvore da vida
Por RISOLETA PINTO PEDRO
O Senhor Deus plantou um jardim no Éden, no Oriente […]
Além disso, colocou a árvore da vida no meio do jardim,
e também a árvore do conhecimento do bem e do mal.
Génesis
Ao contrário do Génesis, que não nos diz de que qualidade era a árvore da vida, neste caso sabemos que é uma romãzeira, aqui transformada em romã por um processo de estilo. O estilo é a alma da poesia. Na poesia, o estilo é símbolo.
São 51 poemas, ou 51 bagos de romã. Ou 51 romãs? Ou cinquenta e uma romãzeiras? Ou cinquenta e um jardins? Talvez cinquenta e um Édenes com suas cinquenta e uma sombras. Porque para cada árvore da vida existe uma árvore do conhecimento do bem e do mal. Para que possa ser reconhecida a vida. Estes poemas dispõem-se a ser lidos como quisermos ou como soubermos. Como pudermos. Saboreei os bagos como bafos, alguns como desabafos. Todos, como palavras para falar do impossível, como a chama que há no som, ou o sangue que há no sol, o orvalho que há no peito. Falam da natureza profunda ou alquímica das coisas. Do perfume ou essência do mundo.
Curtos, incisivos, cirúrgicos, experiências de lampejo que são e que proporcionam. Para quem se atrever a olhar a luz que não se limita a iluminar, mas incendeia.
Falam de sol, mas também da via que até ele conduz: o luar, os sonhos e a noite, o caminho mais direto para a luz.
Este livro abriu-me horizontes e mostrou-me outros mundos. Num deles, apercebi-me da nunca antes pensada semelhança musical entre as palavras língua e alaúde. Mais uma vez confirmo o que o meu coração sempre soube: que para além de todas as discussões científicas e as tendências que vão estando alternadamente na moda, quem olha a linguagem a partir de dentro, como uma criança ou um poeta, sabe que ela não é aleatória. Língua e lábios são alaúdes. Não duvido. Deus não joga aos dados, mais uma vez se prova.
Portanto, estes poemas podem também ser lidos como um pequeno tratado poético sobre a natureza das coisas e da linguagem. Ou um livro particular de estudo: “Estudo segredos”. E não será o mesmo?
Por outro lado, ocorreu-me que se eu tivesse de pintar ou de alguma forma representar estes poemas, fá-lo-ia com baixos-relevos de rendas, ouro e prata, incrustados de pequenos sinais de natureza, como bagos de romã, rebentos de ervas, salpicos de espuma da milionésima onda da praia ou gotas de orvalho. Seria obra de um instante. Porque há uma beleza que brilha assim.
Mas regressemos ao que diz. Observamos que mesmo no amor, isto é, no mundo, o grande palco de aprendizagem do amor, esta poesia aceita a guerra, não procura obsessivamente a luz. Sabe que é essa uma forma divina de aprender a encontrá-la.
Os versos têm olhos. Os olhos possuem uma visão profunda, como um raio x, vêem e dão a ver para lá do que do poema se vê; ouvem e dão a ouvir para lá de todos os sons; pressentem e fazem pressentir para lá dos sentidos.
Como toda a boa poesia amorosa é mística. Como toda a boa poesia mística é amorosa.
E geométrica. O círculo é a forma e o perímetro são os sonhos. Quanto aos planos de Deus, esses são desenhados a traços de rostos.
É da transfiguração, ao modo de Alice, com planetas que fulminam, e flores que nascem nos cabelos, que esta poesia se sustenta. Para exemplificar a beleza oculta do mundo, não encontro melhor imagem do que um “cântaro de sol que no deserto derrama linho e mel” ou uma boca onde “as aves fazem ninho”.
Mas talvez este livro tenha sido escrito para alertar o mundo para o maior dos cuidados, para o único necessário cuidado: “Sinto o perigo de passarmos perto das crianças, / De semearmos destroços de gelo no seu peito.”
Somos as crianças. Sempre fomos. Enchendo de gelo os nossos próprios peitos. Que o fogo da beleza, através daquilo a que poderíamos chamar a consciência poética, possa derreter este gelo antigo e substituí-lo por romãs doces, maduras e tenras.
Que assim seja.
Cheguei à última página. Regresso ao início. Mas agora, só eu e os bagos da romã. Digo, os jardins e suas sombras.