MANOEL TAVARES RODRIGUES-LEAL
Tributo
Org.: Luís de Barreiros Tavares
ELSA RODRIGUES DOS SANTOS
A noção da inocência
Do seu primeiro livro, A Duração da Eternidade, eu dizia: “Numa escrita indócil, viril, entre o cunho clássico pela virtude da cultura, da qualidade e da sabedoria e da marca do modernismo na criatividade de uma nova gramática, Motta Cardôzo[1] oculta as cicatrizes e os dias felizes, na convicção da posteridade da palavra poética”. E terminava: “Assim o acreditamos, pela publicação deste seu primeiro livro de poesia, belo nas suas metáforas e representações, que desejamos não ser um acto isolado e efémero, mas retomando em outros Outonos suaves e marcantes, enriquecendo as belas letras portuguesas”.
E de facto não apenas um único livro que ele escreveu, mas já vamos no terceiro.
Com A Noção da Inocência[2] confirmamos a qualidade da escrita poética, projectada não só neste terceiro livro, como num outro muito próximo de nos chegar às mãos.
E se no primeiro livro o Poeta se confrontava com o ofício da escrita, como um acto de alegria e de dor, e ainda como o binómio eternidade/efemeridade, neste segundo livro, o sujeito poético remonta à idade da inocência, à beleza quase perfeita dos corpos e à descoberta do amor.
v
a infância ainda ecoa. ainda eclode.
tão íntima. tão lúcida.
atravessa os dias. como uma seta.
que inflige ternura.
X
a exuberância. crucial do desejo. ocorre. essa desmesura.
essa distância dos corpos. e das colinas. e sua errância. efémera.
irrestrita. mas triste. como descrevê-las. velas e loucura.
e toda a adolescência. magoada. que não deslumbra.
mas ainda navega. navio esvelto. que não foge do fogo.
nem exorbita da penumbra.
A idade da inocência cumpre-se como um tempo de expectativa, de curiosidade, como um fruto ainda verde, mas promissor de um outro tempo em que Eros e Apolo se unem, insinuando uma maturidade sensual.
XI
acordo para o verão. um verão. vulnerável.
inaudível.
que cai. como uma benção. ou um anátema.
acordo para o teu corpo. que é um corcel. ágil e alegre.
moreno. como a rosa da tarde. que declina. e se rasga. cruel.
e que. de um prazer íngreme. se alague.
O sujeito poético transporta, porém, o germe da dúvida, da perenidade do amor, da dor que o fim implica e di-lo nos versos:
XIV
[…]
ah ter eu a leveza de haste.
de uma primavera remota. por que tu te enfeitiçaste.
a noção. incólume. do meu íntimo desastre.
Confrontam-se agora dois tempos: presente/passado transfigurados em realidade/memória, em que nos dias longínquos da juventude os corpos eram belos, o amor, emoção e prazer. No presente, a vida flui para um destino irremediável, rio sem regresso.
XVII
jamais. teu corpo florirá. como outrora
floriu. jamais jorrará a seiva ardente.
que jorrava. nos dias auspiciosos e felizes
agora teu corpo cumpre o seu destino. inexorável
[…] e inocente. que é a morte. perene. obscena. irrespirável.
Visão pessimista e dolorosa só colmatada pela recordação da mãe, da casa, porto seguro, sem enganos e sem traições, ultrapassando a efemeridade da vida e o “olvido vil da morte”.
XIX
a infância perfaz-se. em ti. ó
mãe mansa.
ó casa. ilesa.
onde vivi. e o ouro do gesto floria.
sem engano.
sem a dubiez das
noites.
e o gesto floria. exacto.
e nunca mais se extinguiria.
ó mãe. mansa e imensa.
cujo rosto jamais se apartará de mim. e que eu ainda vislumbro.
rosto incólume. que eu sempre invocarei.
contra o olvido vil da morte.
Reiterando por outras palavras o que disse anteriormente, a poesia de Motta Cardôzo é trabalhada no ouro da palavra, numa escrita adulta e de qualidade, em que o erotismo do gesto se configura em imagens de uma elevada beleza e finura como só um poeta maduro e realizado o pode fazer. Por isso, é urgente que a sua poesia seja enquadrada na nossa melhor literatura.
[1] Manoel Tavares Rodrigues-Leal assina este livro com o pseudónimo “Manoel Ferreyra da Motta Cardôzo”.
[2] Registo vídeo de Luís de Barreiros Tavares com Elsa dos Santos lendo este texto (de 2/4/2011): https://www.youtube.com/watch?v=lHd1hipvPyI&t=54s
Elsa Rodrigues dos Santos (1939 – 2012) licenciada em Filologia Românica e com o Mestrado em Literaturas Brasileira e Africanas de Língua Portuguesa pela Faculdade de Letras de Lisboa. Autora, com D’Silvas Filho, de Grandes Dúvidas da Língua Portuguesa. Ex-Presidente da Sociedade da Língua Portuguesa. Foi agraciada pelo Estado de Cabo Verde com a Ordem do Vulcão, pela sua dedicação à cultura cabo-verdiana.’
in Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/autores/elsa-rodrigues-dos-santos/16/pagina/1 [consultado em 28-06-2020]
MANOEL TAVARES RODRIGUES-LEAL