JOSÉ EMÍLIO-NELSON
José Emílio-Nelson é escritor e editor do CEJMS. Nasceu em Espinho, 1948. Licenciado em Economia pela Faculdade de Economia da Universidade do Porto. Publicou poemas e ensaios em revistas literárias portuguesas e estrangeiras. Prepara a reunião da sua colaboração crítica em jornais e revistas literárias e ensaios sob o título: MAIS DO QUE LER.
Comunicação às Raias Poéticas de 2024. Vila Nova de Famalicão.
O silêncio é o que tememos.
Há um Resgate na Voz —
Mas Silêncio é Infinidade.
Não tem sequer uma Face.
[Tradução de Jorge de Sena de Emily Dickinson.]
A palavra silêncio abre uma caixa de Pandora (mas não só de desgraças) na multiplicação de designações com que se manifesta, e, paradoxalmente, pelo dizer que assume e imprime.
Mais do que relacionar silêncio e literatura, permitam-me a pretensão, de referir o silêncio como o ruído na literatura que, inevitavelmente, rói o silêncio.
A Literatura é um multiplicador assombros e sombras de silêncios. Silêncio é a palavra que mais dá ênfase ao estrondo do mundo pelo que dele interroga e revela, pela reflexão turbulenta que provoca, pelo que faz rebelar. Assim sendo, lemos na palavra o silêncio, numa expressão de Jean Starobinski [in L’ Invention de la liberté]. ROBERTO JUARROZ— UNDÉCIMA POESÍA VERTICAL:
Também o silêncio /Deslumbra mais que la palavra.
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Assumindo que há uma linguagem de comunicação no silêncio, arrisco afirmar que se falamos de silêncio na literatura, dita silenciada, discorreremos sobre a literatura em tempo de censura, metaforizada para o encobrimento e, assim, transmitir a sua denúncia subrepticiamente.
Se falarmos de silêncio como fazendo parte de regras religiosas, falamos de mudez, de disciplina que impõe a obediência a valores e normas. Um silêncio sacro em que se pretende a meditação, a submissão em nome de alcance ao Divino.
Se falamos de silêncio em contexto de actuação de contestação política ou de caracter militar, recusa em falar para o inimigo nos interrogatórios, falamos de uma atitude que conduz a violenta repressão, à tortura, quase sempre terminando com o assassínio.
Se falamos de silêncio da paisagem, falamos num raro sossego, lembrados do bucolismo.
Se falamos de silêncio na vida quotidiana, em situações diversas de ordem familiar (de convívio, de indiferença, de conflito), se falamos de silêncio por timidez, por receio, por conivência (em encobrimentos, por exemplo: fraudes e roubos), falamos de silêncio numa perspectiva antropológica e sociológica.
Se falamos do silêncio no palco, na canção, em que o actor interpreta e re-interpreta, falamos de estética quer dizer, de jogo da linguagem.
Mas o que aqui nos traz é falar de silêncio como voz literária de que nos fala Maurice Blanchot, [in LE LIVRE A VENIR]: o silêncio da escrita.
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O conceito do que de silêncio não é claro.
As literaturas mostram uma construção da plurissignificação do silêncio, da multitude do que através dele se percepciona.
Na literatura, como na generalidade das artes, manifestam-se afinidades pelo uso de silêncio, entendido como pausa que suspende e que valoriza a comunicação com marca, mancha, uma mímica, um esgar, um espanto que configura o pensamento. Porque a Arte, que o abriga convoca-o no monocronismo que constrói silêncios (a página negra de Sterne, o quadro negro de Fludd e de Malévich no rasto de Kosuth, do século XVII, os ‘álbuns monocromos’ de Klein). Demasiado silêncio? Ressignificam a noção mais comum do que se entende por silêncio: apagamento, ausência, falha, falta.
Contudo, percebemos o vazio intuitivo que se cola ao silêncio e o entendemos como extensão, complemento, entoação do inexpressivo, do irrepresentável: O SILÊNCIO que se contradiz, o SILÊNCIO DESDITO.
A Literatura prossegue de alto a baixo por os degraus, com legendas ao silêncio. Os silêncios fazem parte da fabulação literária, a dilaceram, a glorificam. Manifesta-se pelo que não se diz (o silêncio é de oiro!), ou pelo que a situação criada obriga a omitir num destilar de recursos retóricos: Pausas, hiatos, elipses, pontuação…, como que tecem a pele dos silêncios.
Enfim, dão corpo ao som do silêncio que, de alguma
forma, linguagem.
O silêncio não se lhe opõe, não se diferencia dela, articula-se, converge, rasura, implanta-se como uma
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outra letra no alfabeto, é uma palavra (MOT) mas é PAROLE (acto de falar).
O silêncio age sobre a compreensão da linguagem comum para que haja mais do que se escreve no intervalo de silêncios, em que este emudece e dá lugar às palavras únicas da Literatura, quando não sobreponível à verborreia, à tagarelice, ao ruído de palavras gastas pela banalidade, ensurdecedoras por palavrosas, inexpressíveis. A ausência das expressões da fala, espaçamentos no corpo do texto, as reticências, e outra vária pontuação; espaço branco numa pintura; pausa (silêncio) na anotação (musical) numa partitura.
Não há silêncio na alusão ao silêncio. E, nessa restrição, aparentemente contraditória, de desdizer, dá-se ênfase à meditação (que se exprime, por exemplo, pela palavra silenciada, a que já referi, no âmbito da clausura monástica, conventual (silêncio como componente do sagrado) e, noutro contexto, nos regimens ditatoriais (que impõem censura e sentenciam medidas de isolamento de presos políticos).
Materialidade do silêncio que se interpreta, atribuindo significados: como se sublinhassem a emoção, como se contivessem impulsos pós-lúdicos, a espera ansiosa, o ignorar como
desprezo, modos de expressão que propiciam a criação do que não é convencionalmente formulado sem a palavra, o que estimula o pensamento para fulgurações
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surpreendentes, rasgos luminosos.
Essa desocultação do silêncio faz com que haja uma panóplia de silêncios que se manifesta singularmente como cesura do discurso, numa espécie de pantomina que recria o silêncio preenchendo lacunas:
Tensão, inflexão das palavras, gestos faciais de solidão, desconfiança, expectativa, enigma.
Concluo com uma verdade lapalissada: A Literatura, a poesia, ascende ao indizível, não raras vezes descende ao inefável, à impossibilidade de dizer.
(No meu livro recente: ANTÃO OU A PRÓTESE DE NAZARENO, tal como noutros livros ao longo dos 45 anos de edição tipográfica que este ano assinalo, entrelacei o conceito da fragmentação, do lacunoso como silêncio desdito, numeração de silêncios como fala não neutra, e, então assim falo.)
Revista Triplov
Setembro de 2024