MARIA AZENHA
Foto: M CÉU COSTA
TRIBUTO
PARA AQUELE QUE ESTÁ SENTADO NO SILÊNCIO
Vi-o chegar com a boca cheia de rosas
Vi as suas cicatrizes numa roseira de sol
E todos os dias escreve nas paredes da casa
Palavras afluentes
Com relâmpagos na voz
O amor é um lugar tremendo
Para aonde
Todos se voltam
E cada um chega mais só
EU AMO A MINHA AMADA NO MEU TRENÓ DE GELO
Esperando
Movo-me dentro do gelo.
E o canto da minha amada
É a minha mão esquerda.
Esqueço o seu rosto coberto de sangue
E bebo até ao fundo
O licor dos seus cabelos.
Com eles transmuto o vento
Em grinaldas d’águas
Em cavalos de estrelas
E a abóbada celeste é a minha casa.
Eu amo a minha amada no meu trenó de gelo.
Flutuo nela por algas verdes
Amarrada aos seus cabelos.
Todos os mortos vêm pela manhã vê-la.
Todos os mortos vêm-na ver
À superfície
Das
Águas
Porque eu sou a minha amada
E ela é a minha amada.
E subimos os degraus
Muito
Len-
ta-
men-
te
Debaixo
Da solidão das águas.
A minha amada é uma montanha de estrelas.
Eu sou a minha amada.
E ela é a minha amada.
A solidão da minha amada é uma canção de Deus.
Por vezes digo
Para lá da montanha das águas:
Eu amo a minha amada no meu trenó de gelo.
ATÉ ONDE A NOITE SE DESDOBRA
Visitei o meu Amado numa noite
De estrelas
Bem formosas. Ele é tão jovem.
Seus olhos secretos
São como lanças relâmpagos
Que a minha voz não alcança.
E oferece-me como dote a água
Do paraíso,
O quarto crescente,
E uma Rosa.
In: Maria Azenha, A mamã por cima dos telhados e o meu amor.
Editora Urutau, 2019, São Paulo BR, Galiza ESP e Portugal.
O jardim de Lorca
Cavalos à entrada de Granada.
Escondem-se os caminhos das roseiras
que vão dar a Alfacar.
Minha madre chora junto a Lorca
com uma mão decepada.
Aqui só nascerão oliveiras.
Taquicardia
O Papá escreve à Mamã em documento encriptado.
Sobre a guerra? Sobre o mundo?
Ou sobre a poesia de Cristo?
(as notícias mais lidas são acerca de futebol)
O Amor terá password?
Como será estar morto durante duzentos anos
Como será estar morto durante duzentos anos?
O que diria Sócrates?
A vida não tem sentido, quem o disse foi Tolstói.
E Freud? Outro cismático!
Eu, que fiz análise durante vinte anos,
tornei-me um humano ainda mais pessimista.
A vida é cheia de solidão infelicidade e caveiras dos outros.
Ultimamente têm-me passado coisas estranhas pela cabeça.
Talvez um dia encontre um amor com dentes de ouro
e cheio de banhas para amortecer os desgostos.
Ora bolas, afinal para que é que servem os espelhos?
Vou passar um fim de semana a ver filmes de Manoel de
Oliveira.
Sou o que se chama um militante holístico.
Dizem que há um “olho” que nos está sempre a ver
Por acaso vivi durante onze anos com um oftalmologista
e nunca me receitou óculos. Os que disponho atualmente
são para recitar livros sobre a vida-em-morto.
Tenho muitos medos.
Ando obcecado pelo tema dos esgotos.
Deve ser por isso que gosto de Esopo
que me ensinou um processo fabuloso para exterminar o medo.
— Há uma substância química no nosso corpo que faz com que
não sejamos galinhas. E outra, que nos faz irritar uns com os
outros. —
O tema da morte é mesmo um tema assombroso.
O preço do gás continua a subir.
“Todas as tentativas de suicídio são um fiasco.
Vivo abrindo as janelas e fechando o gás”.
Não sei como os mortos conseguem viver.
Mas acho que devem ser pessoas fantásticas.
Maria Azenha, Xeque-Mate,
Editora Urutau, 2018,São Paulo BR e Galiza ESP