A inquietude como legado

Saudade de futuro
MODERNISMO PORTUGUÊS
Organização de Antoneli M. B. Sinder e Daniel M. Laks

 

A INQUIETUDE COMO LEGADO: RASTROS DAS INDAGAÇÕES PESSOANAS E SIMBOLISTAS NA LITERATURA PORTUGUESA CONTEMPORÂNEA

Por Camila da Silva Alavarce & Gisele Pimentel Martins

 

Resumo: Este artigo pretende discutir como se edificou, na ficção contemporânea portuguesa, uma pungente inclinação filosófica, indagadora do mundo, do eu e um convite esteticamente elaborado para a reflexão. Essa tendência filosófica, que sinaliza invariavelmente o acolhimento da diferença e o diálogo permanente, é acolhida, na ficção contemporânea, por aqueles “sistemas de representação” que mantêm a ambiguidade, preservando a dúvida e um olhar desconfiado para os modos rígidos de se pensar o mundo. A questão que nos colocamos é justamente “de que modo” ou, ainda, fazendo uso de que operadores estéticos, a literatura portuguesa contemporânea tem dado conta dessas fortes reverberações herdadas de momentos artísticos anteriores, especialmente a partir do século XIX. Dialogando muito de perto com a Modernidade – especialmente no sentido da ruptura – a narrativa portuguesa contemporânea abre um espaço de acolhimento da contingência e dos discursos do indizível, especialmente ao prescindir de qualquer narrativa de centro, ou “narrativa mestra” (HUTCHEON, 1991). Nessa linha, será discutido como a ironia é, com certeza, um desses “sistemas de representação” que favorece uma tessitura narrativa sempre ancorada na relativização dos modos absolutos de apreensão, para isso, será feito um breve percurso sobre autores representativos desse modo de operar irônico, dissonante, ambíguo e desconfiado.

Abstract: This paper intends to discuss how a poignant philosophical inclination, inquiring about the world, the self and an aesthetically elaborated invitation to reflection, has been built in contemporary Portuguese fiction. This philosophical tendency, which invariably signals the welcoming of difference and permanent dialogue, is welcomed in contemporary fiction by those “systems of representation” that maintain ambiguity, preserving doubt and a suspicious look at rigid ways of thinking about the world. The question we ask ourselves is precisely “in what way” or, still, making use of what aesthetic operators, contemporary Portuguese literature has accounted for these strong reverberations inherited from previous artistic moments, especially from the nineteenth century on. By dialoguing very closely with Modernity – especially in the sense of rupture – the contemporary Portuguese narrative opens a space to welcome contingency and the discourses of the unspeakable, especially by dispensing with any center narrative, or “master narrative” (HUTCHEON, 1991). In this vein, we will discuss how irony is certainly one of these “systems of representation” that favors a narrative texture always anchored in the relativization of absolute modes of apprehension, for this, a brief journey will be made on representative authors of this ironic, dissonant, ambiguous and suspicious mode of operation.

Palavras-chave: Literatura portuguesa contemporânea – ironia – ruptura – Fernando Pessoa – Simbolismo.


A pergunta recorrente “Para que serve a literatura?” evidencia o utilitarismo de uma sociedade que, de maneira recorrente, se furta a escolher a reflexão como “modos operandi social”, incentivando formas de ver e de sentir que não se dobram sobre si mesmas e que não se curvam, enfim, sobre os seus próprios movimentos, no sentido de um auto-pensamento. A literatura, cuja prerrogativa mais importante é trazer a língua “fora do poder” (Barthes, 1980), resiste a esse imediatismo, por conta, especialmente, desse seu traçado fundador. Leyla Perrone-Moisés (2016), discutindo sobre a importância do ensino da literatura, salienta a possibilidade engendrada pelo discurso literário de iluminar – graças a esse traçado – caminhos outros de existir, propondo novas formas de ser e fazendo ver, pois, caminhos possíveis para toda ordem de ressignificações:

[…] a literatura de ficção, ao mesmo tempo que ilumina a realidade, mostra que outras realidades são possíveis, libertando o leitor de seu contexto estreito e desenvolvendo nele a capacidade de imaginar, que é uma necessidade humana e pode inspirar transformações históricas; porque a poesia capta níveis de percepção e de fruição da realidade que outros tipos de texto não alcançam. (2016, p. 81)

É notável, na ficção portuguesa, uma pungente inclinação filosófica, indagadora do mundo e do eu e, portanto, um convite esteticamente elaborado para a reflexão – sobretudo na contemporaneidade. Essa tendência filosófica, que sinaliza invariavelmente o acolhimento da diferença e o diálogo permanente, é acolhida, na ficção contemporânea, por aqueles “sistemas de representação” que mantêm a ambiguidade, preservando a dúvida e um olhar desconfiado para os modos rígidos de se pensar o mundo.

Essa propensão à ruptura, que observamos nas narrativas atuais, no âmbito da literatura portuguesa, certamente dialoga com o apelo romântico pelo descontínuo e pela mudança – apelo que, em termos literários, também foi bastante pronunciado nesse país, reverberando significativamente nos movimentos posteriores, como o Simbolismo e o Modernismo portugueses.

A modernidade é uma tradição polêmica que desaloja a tradição imperante, seja ela qual for; mas só a desaloja para, no instante seguinte, ceder o lugar a outra tradição, que, por sua vez, é mais uma manifestação momentânea da atualidade. A modernidade nunca é ela mesma: é sempre outra. O moderno não se caracteriza apenas pela novidade, mas pela heterogeneidade. (PAZ, 2013, p. 15)

A questão que nos colocamos é justamente “de que modo” ou, ainda, fazendo uso de que operadores estéticos, a literatura portuguesa contemporânea tem dado conta dessas fortes reverberações herdadas de momentos artísticos anteriores, especialmente a partir do século XIX. Outra reflexão importante diz respeito a “com vistas a quê” a narrativa contemporânea tem acolhido esses rastros de indagação e de crise? Quais são os efeitos de sentido, na ficção portuguesa contemporânea, do apelo filosófico e da tendência à dúvida?

Parece-nos que, dialogando muito de perto com a Modernidade – especialmente no sentido da ruptura – a narrativa portuguesa contemporânea acaba enveredando, no entanto, numa direção outra em relação a esses “efeitos”: abre um espaço de acolhimento da contingência e dos discursos do indizível, especialmente ao prescindir de qualquer narrativa de centro, ou “narrativa mestra” (HUTCHEON, 1991).

A ironia é, com certeza, um desses “sistemas de representação” que favorece uma tessitura narrativa sempre ancorada na relativização dos modos absolutos de apreensão – modos estes não resistentes ao anseio filosófico da narrativa contemporânea, cujos dizeres só conseguem vir à luz por meio de operadores estéticos ou “modos de funcionar” que garantam, esteticamente, um vir à luz da ordem da contingência e da dissonância.

Sobre a disposição do “modo” irônico de operar para a relativização, Martins (2019) observa que a “ironia transita na contingência, no dissonante, no imperfeito, naquilo que não habita um lugar único, fixa-se no relativo do pensamento subjetivo, confrontando, com isso, o absoluto e, uma vez nesse lugar, assume o aleatório, imprevisível.” (p. 96)

Nesta linha, cumpre lembrar aqui, de passagem, a afinidade entre a ironia e um modo de se apreender o mundo norteado pela diversidade e pelo contraste: o modo romântico. Não é sem razão que a ironia foi tão bem teorizada na segunda metade do século XIX pelos filósofos alemães – dada, especialmente, essa proximidade entre um olhar para o mundo que inaugura e prioriza as rupturas, o diferente e a mudança – o olhar dos românticos – e um “modo estético de funcionar” que assegura, na narrativa, essa tendência para a dissonância.

Está claro que essa inclinação para a dúvida pode delinear também outras literaturas. No entanto, em Portugal, a passagem de escritores específicos, como pretendemos discutir, resulta, na contemporaneidade, em uma literatura cujo traçado é fortemente marcado por temas que favorecem o exercício do diálogo – entre eles, a questão da impossibilidade e, ainda, o que estamos chamando aqui de certa “busca impossível” e temas correlacionados, como a subjetividade, a representação, a identidade e o jogo “verdade”, “mentira”, “ficção”, “realidade” – resultando em uma literatura sempre à espreita, invariavelmente inquieta e desconfiada. O tema da busca sinaliza, quase sempre, um futuro, “a busca do novo” (BRIDI, 2005, p. 77), e a consequência imediata dessa busca é a crise de identidade que, em Portugal, passa muito pelo conceito de nação portuguesa.

Porém, num sentido geral, o tema da busca e a sua dialética consequência – a crise – se estendem, na literatura portuguesa contemporânea, para muito além da questão, também importante, de se pensar a nação portuguesa. Logo, seja a reflexão existencialista em torno do eu e do outro, seja o repensar em torno da fé religiosa, seja, ainda, o pensamento que perscruta os próprios limites da ficção – a narrativa portuguesa contemporânea tem sinalizado, esteticamente, uma preocupação em representar indagações em torno de um “estar no mundo”. Uma literatura que – desassossegada – inquieta o leitor, na medida em que representa pensamentos criativos que não se curvam a nenhum discurso pronto, abrindo um espaço importante para a dúvida, para a crise e, claro, para movimentos de ruptura. Exemplo disso é absolutamente toda a criação literária de José Saramago:

[…] destaca-se a definitiva opção de Saramago pela discussão radical (no sentido etimológico do termo) dos valores humanos, negando-se a respeitar qualquer limitação de tema, de norma ou de prévia vinculação à nacionalidade, à época ou à ideologia. Nessa dimensão assenta sua capacidade de aventurar-se em todas as virtualidades do ficcional: tanto pode escrever sobre o século XVIII português como sobre uma alegoria do mundo contemporâneo, nunca se especializando ou se submetendo a rótulos fáceis. (BRIDI, 2005, p. 79, grifos nossos)

Uma literatura assim, tecida com os fios de uma dúvida, de uma crise, embalada por um motivo primordial que estamos chamando aqui de inquietude, requer uma lógica narrativa que acolha essa crise, que a “dê”, efetivamente, como crise, como tensão, como irresolução, enfim. Essa literatura convoca, pois, uma maneira de narrar – que supõe uma maneira de ver e de pensar – organizada, como dissemos, em torno do contraste e da tensão; ela requer um método estético que acolha e que, de fato, represente um pensamento que, a priori, descrê de qualquer “palavra final” ou “essência real” – um pensamento consciente da fragilidade e da contingência de absolutamente tudo o que existe. Essa lógica narrativa está ancorada, portanto, num modo de funcionar que privilegia as vias da poesia e da ironia.

Tanto em José Saramago, quanto em Helder Macedo, por exemplo, o leitor depara com uma literatura vertiginosa, sobretudo no sentido de deslocá-lo de um “saber” conhecido e legitimado a um “saber” não pensado ainda – pelo menos não daquele modo. E esse modo tem como prerrogativa deslocar sem eleger aqui ou ali, isto ou aquilo; trata-se de um deslocamento que atua no sentido de uma rigidez a uma flexibilização, elegendo, sim, um espaço entre isto e aquilo; iluminando um entrelugar – poético por excelência – e dando à luz o espaço da crise, da tensão, da inquietude, do relativo, do provisório. Pagliaro (1967) ressalta o diálogo entre a ironia e o poético:

A ironia participa ao mesmo tempo do caráter agonístico do enigma e do jogo poético. Quando o laço entre a expressão verbal e o processo de pensamento que queremos exprimir é tão sutil e diluído que o leitor ou o ouvinte não entendem se quem fala ou escreve o faz a sério ou a brincar, o jogo assume o caráter de enigma: sobre a urdidura das alusões e dos matizes cria-se uma sabedoria discreta que exige inteligência ágil e ouvido apurado. A própria ligeireza do jogo desinteressado desenvolve-se através de imagens e ressonâncias verbais, capazes de exprimir significados novos e polivalentes, exatamente como exigimos na expressão poética. (1967, p. 12)

Seguindo uma linha que se pretende cronológica, agora que já passamos rapidamente pelos românticos, buscaremos – a partir da importante contribuição dos Simbolistas, em Portugal, no final do século XIX – os vestígios dessa propensão às incertezas, na literatura portuguesa contemporânea. Depois, discutiremos a passagem arrebatadora de poetas como Fernando Pessoa pela história – não apenas literária – de Portugal: passagem esta que imprimiu, na literatura portuguesa, uma marca bastante singular, no sentindo em que estamos discutindo.

Assim, os indícios do que estamos chamando de “inquietude”, nessa ficção, encontram-se também semeados no final do século XIX, num projeto literário cuja principal prerrogativa é a falência da palavra enquanto possibilidade de mediação da “verdade”. Sabemos que esse final de século apresenta traços de um sentimento de dúvida ou de um ruir daquilo que era tido como “certo” ou “verdadeiro”, em praticamente todas as manifestações estético-culturais e, ainda, filosóficas – faço lembrar aqui Arthur Schopenhauer, o filósofo autor de O mundo como vontade e representação. Paira, sobre esse fim de século, – não apenas em Portugal – uma única certeza: a de que o real é essencialmente enigmático e, logo, inacessível a qualquer sistema de representação.

Muito importante lembrar que esse final de século XIX carrega todo o peso de uma centena de anos marcados pela intensa valorização da Ciência que, ao fim e ao cabo, se reconhece também deficitária em relação aos processos de apreensão do mundo e do homem. As correntes ideológicas veneradas nesse século são o Determinismo, o Evolucionismo e o Positivismo. Não é nossa intenção esmiuçar tais pensamentos, no entanto, para fortalecer o nosso argumento, lembramos, rapidamente, que, nesse século, nem mesmo a contingência humana esteve imune à tentativa de explicação científica, afinal de contas o pensamento determinista representa justamente o empreendimento presunçoso de nos definir, em absoluto, a partir do momento histórico em que nascemos, do ambiente em que fomos criados e, ainda, dos traços genéticos que herdamos. No Brasil, contamos com a ilustre presença de Machado de Assis a nos sugerir, incansavelmente, que a ciência jamais seria capaz de tanto. Basta nos lembrarmos do seu “Alienista” – para citar apenas um exemplo.

Esse contexto, embora lembrado assim rapidamente, parece-me suficiente para sinalizar as razões de um sentimento decadente e pessimista no final do século XIX – um sentimento de dúvida em relação às possibilidades de apreensão do real por meio dos métodos científicos. Para Álvaro Cardoso Gomes:

O homem que, pela razão e pelo progresso espiritual, acreditava ter acesso aos segredos do universo, vê-se de repente destronado, abandonado num mundo regido por forças que lhe são inacessíveis, o que o leva à descrença e ao desalento.” (1994, p. 14)

Esse sentimento de dúvida marca a literatura portuguesa com um tom de pessimismo, de decadência e de solidão. Se, na esteira de Schopenhauer, tudo é representação e, se – nesse caminho – jamais alcançaremos a “verdade” ou a essência de absolutamente nada que existe, qual seria o sentido: ele existiria? Onde estaria ele? E o principal, talvez: para que buscá-lo? Esse final de século é, pois, marcado por intenso mal-estar; é nele que encontramos o artista decadente e excêntrico, apartado da vida, apartado da experiência. Obra emblemática nesse sentido é, certamente, O castelo de Axel, do francês Villiers de L’Isle-Adam, cujo herói – o conde – recusa a experiência, o existir:

[…] o conde Axël de Auërsperg, príncipe germânico e, ainda mais, chefe do ramo mais antigo, vivia sozinho, com servidores muito velhos, em um castelo em ruínas, perdido no meio na imensa Floresta Negra. […] Ele, que se priva de todas as alegrias de sua idade! Que usa seus melhores anos para velar, lá, na torre, e tantas noites! Sob as luminárias de estudo, curvado sobre velhos manuscritos […] (WILSON, Edmund, p. 56, 59)

Na literatura portuguesa, encontramos, nesse mesmo momento, escritores cuja obra é belíssima e bastante representativa da discussão que estamos tecendo, o que sinaliza o quão produtivo foi o Simbolismo em Portugal. Encontramos António Nobre e o seu livro de poemas intitulado ; Camilo Pessanha e a sua produção poética em Clepsidra e, ainda, o importante teatro de António Patrício. Entre os temas comuns a essa produção portuguesa estão aqueles que são, de certo modo, desdobramentos do tema do alheamento, da solidão e da dúvida em relação a uma verdade ou essência ou, ainda, de um mal-estar em relação às certezas cientificistas.

A sensação de transitoriedade de absolutamente tudo – que se relaciona à ideia de uma “essência” incapturável, perecível, enfim –, como sinaliza o nome Clepsidra, do livro de poemas de Camilo Pessanha, é um tema importante e recorrente nessa produção literária de fim de século. Outra tendência é certa legitimação do mistério, por meio da recusa à nomeação exaustiva de qualquer objeto; em vez disso, a sugestão:

Insinuar coisas, em vez de formulá-las ostensivamente, era, dessarte, um dos principais objetivos do Simbolismo. […] Toda percepção ou sensação que tenhamos, a cada momento de consciência, é diferente de todas as outras; por conseguinte, torna-se impossível comunicar nossas sensações, conforme as experimentamos efetivamente, por meio da linguagem convencional e universal da literatura comum. (WILSON, Edmund, p. 22)

Se, para os simbolistas, “toda percepção ou sensação que tenhamos, a cada momento de consciência, é diferente de todas as outras”, é necessária uma linguagem especial – mais poética, mais sugestiva, tantas vezes associada à música – que dê conta de se aproximar disso que é sempre tão fugidio.

Ao final do século XIX, passamos, portanto, de uma apreensão exata do mundo, guiada pelas correntes cientificistas – que correspondeu, em termos literários, ao Realismo – a uma apreensão do mundo e do existir como “acontecimentos” destituídos de sentido. Passamos de um olhar que acredita na possibilidade de descrição “do mundo tal como ele é” a um olhar desnorteado, que se sabe imerso na vertigem que é existir, e que, por conseguinte, aceita – não sem dor – o enigma e o intraduzível como prerrogativas de um estar no mundo.

Ao longo desse século, passamos, portanto, de uma leitura plana, clara e determinista (de um mundo sempre curvo, sinuoso e diverso), a uma leitura que prioriza um modo de assimilação do mundo mais condizente com a sua natureza, invariavelmente da ordem de um devir. Essas são marcas de um diálogo – já, em pleno final do século XIX – com aquelas reverberações estéticas que encontraremos nas narrativas da contemporaneidade, em Portugal.

Relacionado a esse sentimento de vazio e de perda do sentido está, sem dúvida, o tema da morte, recorrente na literatura simbolista: a morte como fuga, como transitoriedade, ausência, alheamento e, ainda, como solidão. Esse tema marca a obra de Camilo Pessanha, como comentamos, já no título de uma de suas obras Clepsidra, que é uma espécie de relógio de água usado para medir o tempo por meio da velocidade de escoamento da água de um cone superior a um cone inferior.

O tema da morte se faz também presente no teatro de António Patrício, especialmente no texto “Pedro, o cru”. Nessa peça, encontramos Pedro, o rei de Portugal, e a história de todo o seu drama posterior à morte de Inês de Castro, a sua amada. A história nos traz o rei, insano, a perseguir e a matar os algozes de Inês, e não só: Pedro desenterra Inês, após mais de quinze anos de sua morte, e a coroa rainha. Abaixo, uma passagem do texto que relata a chegada do rei ao convento onde está o túmulo de Inês de Castro:

Erguei-vos, Madre. Não sou eu que vos venho perturbar. É a Saudade que me traz, é ela só. Estáveis em sossego… Mas ela veio: bateu-vos à porta, e entrou em lufada, um rei e uma corte. (Quase gritando) Madre! A minha saudade é uma hiena: vem desenterrar o meu amor… Onde está ele? (Dominando-se) Onde me espera a que será vossa rainha? (Tentando decifrar as lajes) Dizei-me: onde é que dorme o meu amor?… (PATRÍCIO, 1990, p. 98)

O que desejava Pedro? O que esse drama de António Patrício pretende representar? Que palavras dariam conta de nomear a saudade experimentada pelo rei – e, ainda, pelo leitor que, atônito – em contato com um texto tão sensível – se aproxima dessa ausência cujo contorno é insólito? Pedro busca vertiginosamente o impossível: Inês está morta, inacessível; ele vive uma espécie de “suspensão simbolista”, decadente e excêntrica. O enredo parece construir-se tendo como foco a representação deste equívoco: apartado do real, o rei encena o sonho impossível; ele dá vida ao sonho sonhado com Inês, desprezando, porém, a sua morte e a impossibilidade engendrada por ela.

A construção desse personagem ancora-se na ambiguidade e na tensão, porque Pedro não está “aqui”, nem “lá”; nem morto, com a amada, nem vivo, com os vivos; ele habita algum espaço entre o amor e o ódio, a beleza e o horror, a alegria e a dor, um espaço entre a vida e a morte. Desenterrar Inês, senti-la, tocá-la, beijá-la, cheirá-la é a representação desse insólito vivenciado por Pedro. E a sinestesia desse contato do rei com o cadáver de Inês representa poeticamente a busca insana de Pedro pela amada, a sua tentativa desvairada de evocar Inês e fazê-la permanecer pelos sentidos – numa experiência absurdamente simbolista.

Inês!… O teu Pedro veio erguer-te: a vida é outra. O destino já não tem a mesma rota… Como hei-de eu viver agora, oh minha Inês!?… A vida toda desfolhou-se aos teus pés como uma flor… (Debruçando-se mais sobre o cadáver) Cheiras a podre… Saboreio o teu cheiro como um corvo… Melhor do que o das rosas que me deste […] Ó meu amor! Ó minha Inês! (PATRÍCIO, 1990, p. 104)

O tema da busca impossível, da espera por aquele ou por aquilo que não vem, que não chega, nem chegará, por aquilo que é, enfim, da ordem do fugidio, do essencial e do indelével é também um tema representativo desse final de século português, que se faz presente, ainda, nas narrativas contemporâneas. O apego de Pedro ao que o cadáver de Inês representa, em “Pedro o cru” é exemplo disso. O mito de D. Sebastião também. Busca impossível que, desembocando invariavelmente no vazio, relaciona-se ao tema da morte e, se constitui, ainda, como um traçado tipicamente português:

Como portugueses esperamos do milagre, no sentido mais realista da palavra, aquilo que, razoavelmente, não podia ser obtido por força humana. A morte do padre Malagrida, um Vieira sem gênio nem sorte, pôs termo (ou interrompeu) esse ciclo de sebastianismo ativo que representou, ao mesmo tempo, o máximo de existência irrealista que nos foi dado viver; e o máximo de coincidência com o nosso ser profundo, pois esse sebastianismo representa a consciência delirada de uma fraqueza nacional, de uma carência, e essa carência é real. (LOURENÇO, 2016, p. 31)

Ainda em relação aos simbolistas e à sua busca por um “primitivo” incapturável:

Tudo isto concorre para que se passe a defender a originalidade, uma originalidade que se dissemina verbalmente através de múltiplos efeitos de sentido ou de uma figuração inesgotável. Os simbolistas enveredaram por um caminho que os afasta de uma estética da representação e os aproxima de uma estética da figuração – isto é, da produção de figuras – que transforma o texto num suporte de imagens sempre prontas a libertarem-se. (GUIMARÃES, 1992, p. 21, grifos nossos)

Essa mesma busca pelo indelével, pelo que nos escapa, pelo fugidio, relaciona-se, pois, também, à busca por algo da ordem de um “primitivo”, de um “essencial”, que nos remete muito à temática do mistério, especialmente nos simbolistas, mas também nos modernistas, sobretudo em Fernando Pessoa. A ideia de um invisível não nomeado, primordial, desconhecido e particular – que figura em Pedro, o cru – se faz presente na poética pessoana, especialmente em seu heterônimo Alberto Caeiro:

Os seus olhos azuis, infantis [de Caeiro], segundo o retrato esboçado por Campos, demoravam-se extasiados em cada coisa, admirando o que a tornava diferente das outras e diferente dela própria noutro momento […]. Caeiro vive de impressões, sobretudo visuais, e goza em cada impressão o seu conteúdo original. A diferença para ele é o signo do existir. (COELHO, 1969, p.19-20)

Nele, o ensejo de conhecer é levado às últimas consequências – desejo este, vale lembrar, que se constitui como um mote para toda a poética pessoana, em sua busca clara pela “verdade”, que, se não pode ser alcançada de um modo unilateral – por meio de um único olhar, centralizador – então será perseguida pela relativização dos muitos olhares, a enxergarem uma mesma cena a partir de “lugares” distintos. Os vários eus, em Pessoa, dizem respeito a isto: conhecer, saber, buscar – o que dialoga com as indagações simbolistas, inclusive, de certo modo, como uma espécie de resposta à crise do final do século XIX.

Logo, em Alberto Caeiro, a busca por um conhecimento “puro”, “primitivo”, passa pelo sentir e não pelo pensar: o pensamento – atravessado pela palavra – já é carregado de sentidos fixos e, portanto, deve ser evitado. O ideal é só sentir, para se aproximar das “coisas”, do mundo, ouvindo e vendo essas mesmas coisas, sem pensar nelas: olhar como se fosse a primeira vez, essa é a regra a assinalar um olhar crítico que, a priori, procura se movimentar para além do universo daquilo que está dado, que é fixo – uma vez que, num diálogo profícuo com os românticos, “a diferença é o signo do existir.” Daí que, em Caeiro, a busca pelo primordial nas coisas ou, ainda, por uma “verdade” dessas coisas é levada às últimas consequências, na medida em que – via de regra, como sabemos, – o sentir e o pensar não são, em absoluto, acontecimentos estanques.

Obviamente, Pessoa sabia da impossibilidade de “só sentir”: basta nos lembramos de seu poema ortônimo sobre a figura da ceifeira, que “Ah, poder ser tu, sendo eu!/Ter a tua alegra inconsciência,”, e de outros que também tematizam a “dor de pensar”.

A discussão estética tecida por Fernando Pessoa traz problematizações fundamentais em torno da representação literária; problematizações carregadas de elementos que, no contemporâneo, serão de suma importância para o pensamento em torno do conceito de Pós-modernidade, por exemplo. Tal discussão é singular pela própria reflexão estética que engendra – e, muitas vezes, de maneira metalinguística, por meio de uma poesia inusitadamente dramática, marcada pelo estilhaçamento em vários eus-personagens que são também autores inventados por Pessoa.

Nesse jogo em torno da “invenção do autor” (GUIMARÃES, 1992, p. 73), Pessoa discute temas como o fingimento e a sinceridade, sublinhando, no fazer poético, a sua potência de criação. Esse movimento, ao mesmo tempo em que reitera a resistência romântica ao traçado clássico – quando eleva o ato criativo à potência de “legitimidade” –, antecipa uma reflexão que, posteriormente, dialogará com temas caros à contemporaneidade, como o tema da subjetividade e de seu “lugar” na narrativa pós anos 60 e 70 do século XX.

A subjetividade está por toda a parte: a contemporaneidade está certa disso e Fernando Pessoa também, afinal, o estilhaçamento em tantos heterônimos sinaliza a tentativa quase desesperada de escapar do caos da subjetividade, num anseio de superá-la, alcançando algum absoluto: “Não sei até onde vou eu e onde começa o mundo.”

Essa certeza, da qual Fernando Pessoa é herdeiro – de que tudo é representação – já prevê um repensar da própria literatura e de suas funções; certeza esta que encontra acolhimento, como estamos insistindo, na ficção portuguesa contemporânea.

Se Pessoa busca a “verdade” pela relativização de muitos olhares, Agustina Bessa-Luís, no romance “A Sibilia”, de 1953, o faz pela relativização do tempo, contestado em seu eixo diacrônico e hierárquico e unindo passado, presente e futuro em uma mesma cena.  Essa estratégia confronta a aparente rigidez de sua narrativa e faz ver as contingências a motivar as ações das personagens e, assim, relativiza a estrutura causa-consequência e problematiza a proposta determinista tão presente na literatura do final do século XIX.

Nessa estética, há um confronto da linha temporal linear e totalizante que tem como consequência a fragmentação da identidade das personagens que vão sendo descosturadas de um tempo e coladas em outro e novamente descoladas e recosturadas e, lado a lado consigo mesmas, assumem, em momentos históricos distintos, comportamentos contrastantes, explicitados pela aproximação desses momentos em uma mesma cena, a sugerirem as camadas inconciliáveis do caráter dos personagens.

Por outro lado, em O homem duplicado, de Saramago, encontramos uma estética, temática e formalmente, organizada por contraste, marcadamente irônica. No âmbito do enredo, temos um duplo idêntico – inclusive nas cicatrizes – constituído por um professor de História, Tertuliano Máximo Afonso, e um ator de cinema, António Claro – numa alegoria das relações entre história e ficção, verdade e mentira; tal alegoria é bastante representativa dessa discussão cara à literatura portuguesa contemporânea, a saber, as relações entre ficção e história. O modo como a narrativa é contada ou a sua lógica narrativa é irônica: o seu narrador nos desloca o tempo todo, ironicamente, entre os saberes aceitos e enrijecidos e as possibilidades de novos olhares, de novas leituras. O narrador diz e desdiz, afirma e nega, tece e destece discursos de toda ordem, inclusive, discursos relacionados à teoria literária. Logo, nesse romance, o leitor experimenta a sensação de vertigem causada pela ironia:

Habituados como estamos a mover-nos mentalmente entre dois pólos opostos, um dos quais afirma e outro nega – bonito/feio; bom/mal; verdadeiro/falso; justo/injusto –, quando se trata de fixar conceitos intermédios, vemo-nos em embaraçosa dificuldade. (PAGLIARO, 1967, p. 5)

Pelas vias da ironia romântica, Hélder Macedo tece um jogo, em Vícios e virtudes, cujo principal objetivo é encenar os bastidores de uma enunciação, sugerindo – pelo modo de narrar e, ainda, pelo enredo – que a identidade de um personagem e, inclusive, de um país, não passa de uma construção ficcional, invariavelmente da ordem do possível, do não acabado, do fugidio. Absolutamente deslocado, o leitor se sente sem lugar, exposto a uma representação estética do vazio; vazio no sentido de uma ausência de respostas fixas ou confiáveis; vazio porque cheio: mergulhado em tantas leituras possíveis, o leitor nada tem de efetivo – tem tudo e não tem nada seguro. A inquietude instaura-se a partir da experimentação de uma lógica narrativa que, operando ironicamente, inviabiliza qualquer possibilidade de concentração em torno de uma verdade.

Na obra Bolor, Augusto Abelaira tece uma narrativa que se move, também, pelas vias de um constante repensar. Como nos explica Leonardo Grossi Alvarenga,

Das muitas características marcantes da extensa obra de Augusto Abelaira, talvez a que mais se destaque seja a presença de uma incansável reflexão, desenvolvida pelos narradores de seus romances, expressa como uma tentativa de perscrutar todas as possibilidades da existência humana. (2009, p. 136)

O estudioso refere-se à produção literária de Abelaira, no entanto, o que ele afirma parece-me valer para parte bastante significativa dessa produção literária portuguesa, situada cronologicamente na contemporaneidade. Em Bolor, nos encontramos com a impossibilidade de se representar a instabilidade e a fragilidade inerentes ao existir – a instabilidade dos relacionamentos amorosos, especialmente. Trata-se de um romance tecido a partir de perguntas que abrem mão de respostas tranquilas, valorizando, acima de tudo, a possibilidade filosófica da procura por tais respostas. Ironia: a impossibilidade de verdade alimenta a busca vertiginosa pela verdade.

Curioso perceber que um pensamento criativo organizado assim, por contraste, por tensão, não deixa nada em seu lugar – pelo menos não em um lugar mais óbvio, mais esperado. Absolutamente tudo se movimenta, tudo se relativiza na narrativa que se tece pela ironia, e certamente seja este um efeito de sentido num nível maior, como se tudo fosse afetado por essa lógica, como num “efeito cascata”. Nesse sentido, recordo-me, ainda, do conto “Uma simples flor nos teus cabelos claros”, de José Cardoso Pires, conto que integra a coletânea intitulada Jogos de azar (2011).

Numa primeira leitura do conto, tendemos a fazer uma análise maniqueísta dos acontecimentos narrados – e, de fato, encontramos propostas de leitura desse conto que vão nesse sentido. Logo, de um lado, um casal da vida “real”, num relacionamento já desgastado pela rotina; de outro, o casal da história lida pelo personagem Quim, vivenciando um momento aparentemente perfeito. No entanto, as dicotomias são relativizadas graças a construção estética tecida pelo poético e, sobretudo, pelo irônico: opondo, aparentemente, a história que lemos e a história lida por Quim e marcando graficamente essa alternância entre os enredos, paradoxalmente, vão se iluminando também pequenos pontos de confluência entre as narrativas.

Finalizo, citando ainda os romances Aparição (1983), de Vergílio Ferreira, e Comissão das lágrimas (2013), de António Lobo Antunes, que ilustram também pensamentos criativos mais acolhedores do diverso e, portanto, mais solidários em relação às diferenças. Seus autores dialogam com os outros escritores e poetas de que me recordei aqui, justamente em relação à tessitura de projetos literários que, entre o absoluto dos discursos rígidos, escolhem a representação do entrelugar, relativizando esses discursos e acolhendo generosamente modos diversos de ver e de sentir.

Fico por aqui, concluindo, então, que os rastros da contemporaneidade, na literatura portuguesa, vêm de longa data, desde o Romantismo, embora eu tenha priorizado mais o final do século XIX. Em Portugal, tais marcas da contemporaneidade se relacionam fortemente, como discuti, aos temas da busca, da identidade, da crise, da tensão e, ainda, a um movimento de constante indagação diante da existência – indagação esta que visa, acima de tudo, ao próprio movimento filosófico da indagação.

Sim, espera-se por uma resposta, no entanto, quando se tem a consciência do caráter provisório de absolutamente tudo, essa resposta não vem sem ressalvas e, nesse sentido, não encerra a questão. Logo, talvez seja justamente o grande tema dessa literatura a problemática da espera, de uma espera ad infinitum: espera que lança perguntas, sabendo, no entanto, da provisoriedade das respostas e – legitimando a fragilidade das tantas leituras possíveis – lança novas indagações e novas possíveis respostas infinitamente, porque essa literatura crê no poder de redescrição, de reinvenção e de releitura, sobretudo por meio da ironia. (RORTY, 2007, p. 122).

 

Referências bibliográficas

BESSA-LUÍS, Agustina. A Sibila. Campinas: Pontes Editora: 2000.

BRIDI, Marlise Vaz. Modernidade e Pós-modernidade na ficção portuguesa contemporânea. Todas as Letras G, ano 7, n.7, Edição especial, 2005.

COELHO, Jacinto do Prado. Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa. Edital Verbo, 1969.

GOMES, Álvaro Cardoso. A Estética Simbolista: textos doutrinários comentados. São Paulo: Atlas, 1994.

GUIMARÃES, Fernando. Simbolismo, modernismo e vanguardas. Porto: Lello & Irmão Editores, 1992.

HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Trad. Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1991.

LOURENÇO, Eduardo. O labirinto da saudade. Rio de Janeiro: Tinta-da-China Brasil, 2016.

MACEDO, Hélder. Vícios e virtudes. Editora Record: Rio de Janeiro, 2002.

MARTINS, Gisele Pimentel. Tensões irônicas da representação da África de Emmanuel Bondzéki Dongala. Tese de Doutorado defendida em 24 jun. de 2019 na Universidade Federal de Uberlândia, MG junto ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários do Instituto de Letras e Linguística.

PATRÍCIO, António. O fim: Pedro, o cru. Assírio & Alvim, CRL. Lisboa, 1990.

PAGLIARO, Antonino. A vida do sinal. Fundação Calouste Gulbenkian. Lisboa, 1967.

PERRONE-MOISÉS. Flores da escrivaninha. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

RORTY, Richard. Contingência, ironia e solidariedade. Trad. Vera Ribeiro. São Paulo-SP: Martins Fontes, 2007.

SARAMAGO, José. O homem duplicado. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

WILSON, Edmund. O Castelo de Axel: Estudo sobre a literatura imaginativa de 1870 a 1930. São Paulo: Cultrix, s/d, tradução de José Paulo Paes.

 


Revista Triplov . Saudade de Futuro . Setembro de 2023

ÍNDICE