FERNANDO CHAGAS DUARTE
Fernando Chagas Duarte (n.1964, Lisboa). Geógrafo, poeta, fotógrafo amador, português, viajante do mundo e das particularidades. Participou na génese de algumas associações e experiências colectivas sobre património cultural e imaterial. A sua vida profissional tem sido quase inteiramente dedicada ao sector das pescas. Mantém fortes preocupações sobre o futuro do País, da sua identidade e património comum. Tem participação em mais de uma dezena de colectâneas poéticas (Portugal, Espanha, Bélgica, Brasil e Chile).
Livros publicados
…quase cem poemas de amor e outros fragmentos (Chiado Ed., 2014); A hora das coisas (Pastelaria Studios, 1ª edição 2016); (2ª edição, 2017); As palavras que faltam (Pastelaria Studios, 2018); Oblíquos (euedito, 2018); O voo da flor enquanto rosa (no prelo, 2019)
acumula
silêncios interditos,
roçando o céu
essa maneira
súbita
de dizer
invisíveis.
a terra move-se
com a memória,
eis a casa velha
espiga
em surdina
o tempo ateu
do fogo
pelas planícies.
convoca
os pássaros
para desenhar
sorrisos
na voz esquiva
do poeta.
um pequeno
rebanho
passa pelo lirismo
da tarde,
os gestos
brancos
que são
os de uma nave
sem destino.
a eternidade
esquece-se de ser.
a história funesta de um certo amanuense
havia um simples amanuense, talvez tivesse ambições próprias
ou o êxtase apaixonado de um bibliotecário dominical.
era amanuense, escriturário minoritário. tinha coisas sãs na boca
que são
as palavras
que enfim irá escrevinhar. Reparem, não era um guarda-livros
ou poeta [o poeta não suja nenhum chão], nem escritor
esvaziado de todos os parêntesis.
não era ainda funcionário maior, um amanuense comum
no célebre universo intangível
das cobiças.
possuía meio mundo a descer-lhe pela alma. encerrou-se
numa ilha deserta.
era um entroncado eremita entre livros perdidos
[que não eram seus], entre letras e tantos números estranhos
que acarinhava gentilmente entre cada tempestade.
haviam ali cores tangenciais, sons húmidos de insensatez,
pássaros tropicalíssimos e fulcrais, lugares de gente desordenada
onde tudo se extinguia antes do fim.
o amanuense
deambulava sérios sonambulismos de escritor, todavia nunca
acrescentava uma palavra, repouso, sarcófago, rosto, azémola
infecção, limpidez mendicante, enxurrada
grotesco.
marinheiro [ou pelágico], mansarda útil
insalubre, obnóxio [ou obediente], enfado mortal, submundo
reformatório
desaparecimento.
um nome a nenhum livro já escrito. era um amanuense austero,
sabia e escrevia bem as palavras dos outros, dos outros.
naquele corpo generoso havia uma genealogia sem nome:
ganhava asas e naturezas de criança tardia, esquecimentos
silêncios maternais
e outras pregações inúteis.
a ilha era totalmente desconhecida, tal como ficou o nome
do guarda-livros.
não, não era guarda-livros, já havíamos dito:
o simples amanuense, escriturário menor
que por ali haveria de se fazer ao mar
[sem saber propriamente nadar]
e morrer empoleirado nas vagas. tudo aconteceu antes
de acabar de ler o último livro que estava à sua guarda.
não irei maçar-vos mais, ouviu-se dizer ao vento.
obstáculos dentro de um enclave
quem urdiu o fim último
ao mar
dificilmente
será pior destroço
que aquele náufrago
desistido
inalterável choque físico
da
liquidez,
grotesco e insalubre.
humilde.
a solidão do velho e novo marinheiro
discordância. nas ondas guardadas do mar
não reconheço grandes sombras em abrigo
o que é uma condição de irrequieta aflição.
não sendo naturalmente eu homem de muitas
aflições, um mundo demasiado humano é tudo
quanto espero após a chuva deixar de cair.
já habitar a obscuridade da noite parece ser
uma dádiva do repúdio.
naquele ponto não sabia mais o que pensar,
era o momento da vida onde já não gostava
do cabelo que tinha, tão pouco cabelo tinha.
ao olhar para trás, um pé em cada oceano
consentia-lhe fracas diferenças,
ágeis ondas guardadas
na destra penumbra das águas. equilíbrios.
torna-se necessário
em algum momento olhar humanamente
e sentir ainda a chuva escorrer ao longo da face,
olhar e sentir estremecimentos de onda nova
no uivar simples do mar. havia enfim nada mais,
o derradeiro cristalino de uma coragem
a queimar a idade do mundo. consonância.
descobria em mim o que tão pouco por ti havia feito.
por uma espuma intencional a preceder madrugadas,
como continuar a escrever, se o tudo que já foi escrito não é sequer
que confissão será essa, chamas-lhe arte?
disparada na errada direcção do nada antes de ser alguma coisa
desconheço-me,
ignoro que peso é esse que se devasta dentro do peito, uma amálgama infinita que se alivia e não se sabe ao certo como dizer. alguma coisa é.
qual a razão? sei lá!
talvez seja uma violenta conquista da paz, expulsa do âmago feliz das coisas
ao extrair virgindades […abençoada seja a ignorância]
às preciosas jóias de uma escuridão insignificante. assim se esmorecem as luzes que restam. sobejam palavras. puxo-as, delicadas, sorvidas uma por uma.
escrevo-as todas, uma vez conseguidas expurgá-las ao peito.
ofícios
evitai a quietude dos abismos,
a mítica mudez da náusea.
um mundo
com a cabeça para baixo,
na essência plena
dos girassóis.
evitai todas as outras palavras
[igualmente essenciais]
encerradas
sob uma ávida boca
do Tempo.
evitai-as todas!
porque,
[ficai sabendo] não haverá
por todo o mundo
palavras demasiadas,
quando o impossível será a certeza
de querer saber quais.
reaprendei unicamente o que for
desnecessário:
renascer devagar,
eis a tarefa ingrata
pedida ao silêncio entardecido
dos poetas.
REVISTA TRIPLOV . SÉRIE GÓTICA . PRIMAVERA 2019