A ficção de António Lobo Antunes

Saudade de futuro
MODERNISMO PORTUGUÊS
Organização de Antoneli M. B. Sinder e Daniel M. Laks

 

A FICÇÃO DE ANTÓNIO LOBO ANTUNES:  A PRESENÇA DE
ÂNGELO DE LIMA
 Por Alexandre Montaury Baptista Coutinho[*]

 

No ensaio “A geração de 70 e a geração de Orpheu” [1], escrito em 1965, a professora Cleonice Berardinelli, ao apontar comemorações simultâneas que marcam aquele ano – “o primeiro centenário da Questão Coimbrã e o meio centenário do aparecimento de Orpheu”–, propõe uma análise comparativa das duas gerações, ao mesmo tempo em que busca evidenciar “concordâncias e discordâncias”, destacando a equivalente relevância, no plano literário, das duas gerações e as suas “divergências no plano da ação social e política”. Ao introduzir a sua análise de Orpheu, a Professora chama a atenção para a recepção crítica da “nova literatura” proposta pela geração de Orpheu em 1915, que provoca “tremendo impacto” no campo cultural:

Gritam os jornais de Lisboa e do Porto chamando-lhe “Literatura de manicômio” e a seus poetas “doidos com juízo”. Não contribuiria pouco para tal julgamento o desejo de épater de que o próprio Pessoa se penitenciaria logo depois. […] Não tinha ainda arrefecido a sanha contra Orpheu 1 e já saía, em Junho, Orpheu 2. Para maior escândalo, inclui […] versos de um internado do Hospital de Miguel Bombarda, Ângelo de Lima. (Berardinelli, 2004, 60)

                    Ao evocar a figura de Ângelo de Lima, a Professora identifica-o como “poeta de gênio na fronteira entre a razão e a loucura”, para, em seguida, afirmar: “Breve foi a vida de Orpheu, mas longa a sua presença que até hoje se faz sentir. Presença e influência, é bom que se diga, no plano puramente estético”. (Berardinelli, 2004, 60). É precisamente esta “presença que até hoje se faz sentir” que põe em movimento as premissas norteadoras deste texto. Trata-se aqui, portanto, de propor um esforço analítico em direção a essas formas heterogêneas de permanência, ou de presença de Orpheu no contexto literário contemporâneo. Imediatamente, é necessário verificar que a noção de “hoje”, tal como aparece no ensaio da Professora, corresponde aos anos sessenta, à ocasião do “meio-centenário” de Orpheu. Também é necessário verificar que se, por um lado, em 1965, a Professora podia perceber os legados – estéticos, “é bom que se diga” – de Orpheu, por outro lado, àquela altura, não seria possível obviamente prever que quatorze anos depois desta formulação, em 1979, surgiria na cena literária portuguesa um escritor que viria, de certa forma, a confirmar a hipótese da “presença”, tal como observa Cleonice Berardinelli.

Proponho pensar uma ligação, um elo que permitisse uma articulação possível entre a geração de Orpheu e a ficção de António Lobo Antunes, para tentar demonstrar a percepção da Professora em 1965.

A busca por essa ligação levou quase imediatamente à figura de Ângelo de Lima, que no contexto da geração de Orpheu imprimiu em poemas e pinturas estados de consciência e turbulências interiores que não se limitavam ao poema ou à pintura; em diversos momentos, essas impressões são referidas na obra de Lobo Antunes. Neste texto, a ideia central é a de rascunhar um arco de derivações estéticas que, mais do que um processo de formação ou de influência, constituísse um conjunto heterogêneo de formas de presença, que se materializam como legado e como possibilidade de renovação dos horizontes artísticos.

A presença de Ângelo de Lima na obra de António Lobo Antunes se evidencia em momentos e de formas diversas. Não parece necessário reduzir esta presença a citações feitas ao longo da  obra do escritor, como a que aparece no título do livro de cartas escritas durante a guerra colonial em Angola[2], intitulado a partir de um excerto integralmente pinçado de uma carta dirigida pelo poeta Ângelo de Lima ao seu responsável médico, doutor Miguel Bombarda: D’este viver aqui neste papel descripto.

Ângelo de Lima passou vários anos internado nos hospitais de Conde de Ferreira, no Porto, e Rilhafoles, em Lisboa, onde foi observado pelo doutor Miguel Bombarda e onde viria a morrer, em 1921. A sua poesia completa foi reunida em 1971, graças ao trabalho de recolha de Fernando Guimarães[3]. Além de ter sido poeta apreciado pelo jovem médico António Lobo Antunes, sua obra também logo despertou o interesse pelo caso clínico vivido pelo poeta. Em 1974, antes mesmo de sua estreia como ficcionista, que se verificará cinco anos mais tarde, António Lobo Antunes apresentou, em coautoria com Inês Silva Dias, o caso clínico do poeta Ângelo de Lima à Sociedade Portuguesa de Neurologia e Psiquiatria, com o título “Loucura e criação artística: Ângelo de Lima, poeta de Orpheu[4], distinguido com o prêmio Sandoz de Psiquiatria. Segundo Isabel Maria Pinto do Souto e Melo, autora da dissertação de Mestrado O Anfigurismo na Poesia de Ângelo de Lima, “o processo clinico de Ângelo de Lima desapareceu do Hospital Miguel Bombarda, à semelhança do que aconteceu no Hospital do Conde Ferreira”. Nota-se que se, em 1974, António Lobo Antunes e Inês Silva Dias tiveram acesso aos documentos relativos a suas internações; em 2003, o nome do poeta-interno já “nem sequer figurava nos ficheiros do arquivo” (Melo, 2003, p.19). Em crônica publicada em Dezembro de 2015 na revista portuguesa Visão, o escritor António Lobo Antunes lembra de haver encontrado os registros do caso nos arquivos do hospital: “Ainda lá encontrei a sua história clínica, escrita pelo punho do director, bastantes poemas e estudos para a bandeira nacional que não foram aceites”[5].

Seria interessante poder abrir um diálogo com “Le pouvoir psyquiatrique”, curso ministrado por Foucault no Collége de France entre os anos de 1973 e 1974, publicado em 2003, ou com a sua A história da loucura na época clássica, para demonstrar que, em linhas gerais, no início do século XX, os sanatórios funcionavam a partir de premissas semelhantes às dos presídios. Visam, no mínimo, a exclusão de indivíduos considerados inadequados ao convívio social, supondo um processo de cura que é semelhante a uma normalização de condutas e de valores morais. Esta dimensão permite perceber o que Foucault identifica, em sentido mais geral, como uma persistência de modelos antigos de poder absoluto ou soberano, pré-capitalista, a se converter em um poder biopolítico, que, no contexto liberal, permite ao Estado e a suas instituições decidir a quem é concedido o direito de viver. Artaud, em Rodez; Ângelo de Lima, em Rilhafoles, normalizados através de procedimentos médicos, medicamentos específicos e exclusão. Em lugar de desenvolver uma leitura mais detalhada desses encarceramentos, gostaria de pensar a poesia de Ângelo de Lima como presença estética no contexto do século XX português:

Tenho sido manejado como um puro manequim. Os seus meios de manejo têm sido — a mim aqui ao seu dispor abandonado por toda uma sociedade, a começar por aqueles que mais estrito dever tinham de tal não fazer — os seus meios de acção são, já a tortura, já a sugestão, já o veneno. A tortura consiste em maus tratos aqui, sequestros, insultos, intrigas por aí, etc. A sugestão consiste em alusões nas conversas, recadinhos como que involuntariamente enviados, etc.

[…] Por meio d’estes venenos são-me senhores do cérebro (que legam, manejam, sobreexcitam, centro por centro, fazendo-me assim, rir, chorar, estar triste, falar, estar calado) — são[-]me senhores do cérebro, atacando-me já o modo de função de cada órgão […] (Lima, 1991, p.119)

             Em Junho de 1915, Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, diretores do número 2 da revista Orpheu, decidem publicar “Poemas Inéditos” de Ângelo de Lima, que abrem este número da Revista Trimestral de Literatura, para épater o burguês lisboeta. Foram publicados “Cantico Semi-Rami”, “Neitha-Kri”, “Ninive” e “Edd-Ora Addio – Mia Soave”, este último “dedicado aos meus amigos de Orppheu”.

Para Jorge de Sena[6], Ângelo de Lima foi um dos poetas que melhor fizeram a transição do simbolismo para os movimentos de vanguarda. Se o primeiro modernismo português foi marcado por alguma sensibilidade finissecular de matriz simbolista, a poesia de Ângelo de Lima pode ser considerada uma das vias de acesso a estratégias poéticas que chegam a reemergir na produção surrealista a partir de 1949, e que voltam a aparecer em objetivações literárias tão diversas quanto as de Herberto Helder, António Lobo Antunes, Gonçalo M. Tavares, entre outros. Não se pretende defender a ideia de influência como processo de transmissão de uma técnica ou de uma sensibilidade; antes, importa reconhecer a presença de conquistas estéticas modernistas – entre elas as que podem ser atribuídas a Ângelo de Lima – que se materializam como fonte permanente numa apressada diacronia dos séculos XX e XXI.

Graças à pesquisa de Isabel Maria Pinto do Souto e Melo, cuja dissertação foi acima referida, foi possível acessar alguns comentários publicados em jornal, como o texto “Artistas de Rilhafoles”, publicado em Lisboa, no dia 28 de Junho de 1915, que merece destaque:

Dividiram-se as opiniões sobre os moços […] affirmando-se ora que são loucos, varridinhos de todo, ora que apenas querem divertir-se á nossa custa e vender a avariada mercadoria […] soffrem quasi todos da cabeça[7].

            O “tremendo impacto” identificado por Cleonice Berardinelli fica demonstrado. Aqueles textos, cuja “originalidade consiste em semear de maiúsculas os versos que compõe e que denotam um profundo agravamento de inspiração”, parecem reforçar deboches e ataques, e incomodam. A figura de Ângelo de Lima, claramente referida pelo uso do substantivo Rilhafoles no título do comentário citado, torna-se, em 1915, uma metonímia da geração. Ocorre que “a poesia de Ângelo de Lima – como lembra Fernando Guimarães – mesmo quando parece ser presa fácil da doença mental a que o seu autor sucumbiu, põe-nos, afinal, um problema de legibilidade que não é essencialmente diferente do que diz respeito a qualquer texto literário”[8]. Os desvios da linguagem, o emprego de vocábulos inusitados, os sinais de uma escrita automática aproximam-no simultaneamente de correntes simbolistas, modernistas e surrealistas. Entretanto, a sua poética não nasce de um exercício de interdição do sistema perceptivo da consciência como via de acesso a níveis mais subterrâneos de real; nem para libertar as murmurações do inconsciente na linguagem transtornada. A intransitividade de sua poesia e a desarticulação de imagens permitem supor que a dicção poética de Ângelo de Lima não resulta propriamente de um método criativo. A sua poesia apresenta discursos delirantes e não a experiência de uma mão consciente que tenta emular ou provocar o inconsciente como linguagem.  A beleza convulsiva e o teor delirante dos seus versos, além de estarem em sintonia com uma tonalidade simbolista, e de se alinhar com a vanguarda modernista, antecipa o surrealismo, que, de fato, só se organizará como movimento cultural em Portugal no final dos anos 40, mais precisamente em 1949, sob a marca de uma defasagem cronológica, em relação ao surrealismo francês, demarcado a partir de 1924 a partir do manifesto de André Breton:

– Além fui – a Ninive da Piedade,

A cidade do Luto singular

E a sepultura da Semi-Ranil…

– E hoje…’stá por Ali, Vaga, a Saudade…

– E anda no Céu Supremo a Eterna Estar…

– E… Passa, às vezes, a Serpente… – Ali…
(Lima, 1991, p.111)

            Os poemas de Ângelo de Lima carregam uma atmosfera simbolista, com maiúsculas grandiloquentes a propor analogias com estratégias poéticas do simbolismo e do modernismo. Impregnam-se de referências ao além, à memória e ao delírio de “sonhos vagos”. O surrealismo português não aparece apenas em 1949, quando se objetiva uma autoconsciência de grupo. A questão que parece interessante é que, antes da organização do movimento e, portanto, numa etapa da espontaneidade, alguns objetos artísticos já revelavam traços de uma sensibilidade surrealista. “Os poemas surdos” (1934), de Edmundo Bittencourt; “Apenas uma narrativa” (1942), de António Pedro, entre outros textos, carregam traços surrealistas que são anteriores à constituição do movimento cultural de 1949, que talvez não tenha sido muito mais do a delimitação de uma espontaneidade anterior; isto é, o movimento aproximou de uma mesma chave englobante algumas iniciativas que eram anteriores, uma vez que a linguagem surrealista é maior do que a constituição de grupos culturais. Tampouco parece que o surrealismo se tenha extinto no início dos anos 1950. Como grupo, talvez; como estratégia poética, não.

Resta examinar algumas formas de permanência desta poética da linguagem transtornada. Na crônica “Crônica com proposta de cura no fim”, publicada em dezembro de 2015, António Lobo Antunes ao lamentar o fim do Hospital Miguel Bombarda, onde trabalharam o seu tio-avô, o seu pai e o próprio escritor, regressa à figura de Ângelo de Lima para reconstituir, de certa forma, a atmosfera do hospital psiquiátrico:

Antigo convento transformado em hospício pelo Duque de Saldanha, depois de uma histórica visita de D. Pedro V ao Hospital de Todos os Santos, agora Hospital de São José, onde o rei se indignou com as condições de vida dos então designados doentes morais, a apodrecerem, acorrentados, na palha da cave. Miguel Bombarda transformou-o numa casa para a época modelar, revolucionou os costumes e o tratamento de doenças ainda hoje misteriosas, foi assassinado no seu gabinete por um doente, a pedir

– Não o matem que é um pobre louco

provocou o suicídio do Almirante Reis, comandante militar da Revolução Republicana, da qual Bombarda era o chefe civil, quase aniquilando o golpe de Estado que meia dúzia de homens de grande valor teimaram em levar por diante. Bombarda deixou uma obra importantíssima, quer do ponto de vista médico, quer do ponto de vista social, mudou hábitos e costumes, escreveu bastante, tratou o Poeta Ângelo de Lima, de que Orpheu publicou um dos melhores sonetos da nossa língua, o célebre

Pára-me de repente o pensamento

e, a pedido de Bombarda, escreveu uma autobiografia notável[9].

            É interessante verificar as recorrentes alusões ao poeta na obra de António Lobo Antunes. Mais do que isto. Se, no contexto da primeira guerra mundial, a loucura de Ângelo de Lima serviu aos jornais e revistas como emblema de uma geração para quem se recomendava o hospício, agora, na escrita de António Lobo Antunes, o poeta de Rilhafoles é elevado a autor de “um dos melhores sonetos da nossa língua”[10] enquanto os dirigentes máximos do país são diagnosticados ou tratados como psicóticos a serem curados pelo mesmo sistema normalizador:

Dias depois do 25 de Abril eu estava de serviço na Urgência, em plena febre revolucionária, era de noite, havia um silêncio relativo porque, não sei porquê, faltavam os bêbedos e os sujeitos com overdose do costume e começo a ouvir uma voz em berros enormes

– Viva a União Nacional!

– Viva o professor Marcelo Caetano!

– Viva a polícia política!

e outros gritos no género, do outro lado da porta, que se iam aproximando com frases deste tipo, numa barulheira feroz. Pensei

– Se calhar houve uma contra-revolução

pensei

– Se calhar o 25 de Abril acabou

e estava a moer estes pensamentos negros quando a porta se abriu, e o sujeito dos Vivas entrou. Vinha de camisola de forças, entre dois sujeitos de bata, clamando sem descanso. Com o auxílio de umas injeções foi aceitando devagarinho a democracia. Não há como umas ampolas para tratar ditaduras. Qual o motivo de não se haverem lembrado há mais tempo? O que se teria poupado em guerras, tiros, mortos a dar com um pau, coisas horríveis? E o que há por aí de banqueiros, primeiros ministros, ministros, administradores de empresas, etc., a necessitarem de uma picadelazinha, que nem sequer dói muito e os tornaria normais? De que é que estão à espera para fazer de Portugal um país com pessoas de carácter, quando um enfermeiro e uma seringa chegam? [11]

            O que se quer marcar aqui não é apenas a permanência de Ângelo de Lima como alusão recorrente na escrita de António Lobo Antunes. Deste ponto de vista, já parece nítida a transvaloração de seu legado: de “varridinho de todo” em 1915, a “poeta de gênio na fronteira entre a razão e a loucura”, em 1965, até chegar a “autor de um dos mais célebres sonetos da língua portuguesa”, a imagem do poeta parece funcionar como objeto de uma metamorfose no campo cultural; afinal, como afirma Lobo Antunes, parece que “o que há por aí de banqueiros, primeiros ministros, ministros, administradores de empresas, etc., a necessitarem de uma picadelazinha , que nem sequer dói muito e os tornaria normais?”. Pretende-se ainda evidenciar a centralidade que a experiência clínica no Hospital Miguel Bombarda adquire na obra do escritor contemporâneo, fazendo com que, tantas vezes, seus personagens tenham sido construídos a partir de uma linguagem psicótica no plano de discursos muitas vezes delirantes. Em sua ficção, nota-se a formação de um certo fascínio pelo universo da loucura, que inicia na infância. No romance Conhecimento do Inferno (1980), um dos romances possivelmente mais autobiográficos do escritor, um psiquiatra se desloca de carro do Algarve à praia das Maçãs e, através de flashbacks sucessivos, recorda as suas vivências na guerra colonial de Angola, ao mesmo tempo em que redimensiona a sua experiência clínica no Hospital Miguel Bombarda, onde exerce a psiquiatria. As imagens, narradas em terceira pessoa, se fundem e revelam imagens oníricas que se alternam a reflexões acerca de “homens distorcidos” e de “falas lunares”:

e veio-lhe à ideia o homem entornado num carrinho de bebé a ler revistas de Mecânica Quântica na mata de Monsanto, alheio à surpresa e ao espanto das pessoas, um sujeito composto, de paletó e óculos, a ler revistas de Mecânica Quântica na mata de Monsanto dentro de um carrinho de bebé enferrujado, e de como, ao observar a sua estranha naturalidade e a estupefacção, entre o riso e o alarme dos outros, decidira ser psiquiatra para entender (pensava) a esquisita forma de viver dos adultos (…). Foi nessa altura (pensou) que resolveu ser psiquiatra a fim de morar entre homens distorcidos como os que nos visitam nos sonhos, e compreender as suas falas lunares e os comovidos ou rancorosos aquários dos seus cérebros, em que andam, moribundos, os peixes do pavor.  (Lobo Antunes,  1980, p. 13-14)

            A imagem, que parece a descrição de uma tela surrealista, emerge da memória da infância do personagem; carrega uma narrativa que põe em confronto “um sujeito composto, de paletó e óculos”, “alheio à surpresa e ao espanto das pessoas” com o fato de estar “a ler revistas de Mecânica Quântica na mata de Monsanto dentro de um carrinho de bebê enferrujado”. A “estranha naturalidade” do indivíduo diante da “estupefacção, entre o riso e o alarme dos outros” é o elemento decisivo que faz com que o personagem tenha decidido “ser psiquiatra”, segundo o narrador, “para entender (pensava) a esquisita forma de viver dos adultos”, “a fim de morar entre homens distorcidos como os que nos visitam nos sonhos […] e os comovidos ou rancorosos aquários dos seus cérebros, em que andam, moribundos, os peixes do pavor”. É a escolha que se impõe entre a percepção dos adultos “normais” e a linguagem poética da psicose. Afinal, é a partir das memórias da infância, que o personagem se revê como criança, no tempo em que era capaz de ler aquelas imagens sem os filtros que são impostos no universo dos adultos.

Em sua recente “Crônica com proposta de cura no fim”, António Lobo Antunes parece remeter ao momento decisivo de sua escolha pela psiquiatria, ao lembrar do momento em que, na sua infância, o seu pai, também psiquiatra do Hospital Miguel Bombarda, recebia em casa, para o jantar, figuras proeminentes do campo artístico português que eram, além de convidados ilustres, pacientes do seu pai. Destaca-se a referência ao pintor Marcelino Vespeira, importante artista do surrealismo português e ao pintor José Escada, referência na arte abstrata portuguesa. Importa destacar que, na crônica, o escritor mais uma vez regressa, como no romance citado, ao fascínio que despertava “o mundo do ilimitado e do futuro, […], a que eu desejava pertencer, a que, na minha orgulhosa patetice de criança, pertencia já”:

(o meu pai:

– O mestre Egas inventou a leucotomia por não saber anatomia)

a neurocirurgia portuguesa nasceu ali, através desse meu tio, que Egas Moniz mandara aprender acho que na Escócia, inventou a arteriografia

(o meu pai, que foi o seu último discípulo

– Mas tinha génio)

e lembro-me de ainda o ter visto, de mãos deformadíssimas pela gota, com um capachinho horrível, como me recordo do meu pai ter autopsiado o notável artista plástico Stuart Carvalhais, periodicamente internado no Bombarda em consequência do seu alcoolismo crónico. Aguentava-se durante uns tempos bebendo só água

(pedia aos amigos que o tratassem por Stuart Carvalhelhos)

e não demorava muito tempo em regressar às bujécas e a novo internamento. Não me esqueço do meu pai contar à mesa enquanto jantávamos, que o tinha autopsiado naquele dia como não me esqueço da sua emoção: um artista, caramba. Aliás o mestre Egas insistia com os discípulos

– Não se cobra dinheiro a artistas

frase escrupulosamente cumprida e graças à qual fui conhecendo alguns, porque o meu pai os levava para casa a fim de jantarem connosco, quando os via no consultório. Apareceu, por exemplo, com o pintor José Escada, apareceu, por exemplo, com o pintor Vespeira e eu esmagado de admiração e pasmo por aquelas criaturas que tinham acesso directo ao mundo do ilimitado e do futuro, como escreveu Apollinaire, a que eu desejava pertencer, a que, na minha orgulhosa patetice de criança, pertencia já. Eles iam-se embora e eu a tocar, reverentemente, os talheres de que se haviam servido. O meu pai falava também de um pintor e gravador francês, pelo qual parecia ter grande respeito, lá internado não sei com que diagnóstico. Ao referir-se a ele o meu pai dizia sempre Monsieur Anatole

(nunca lhe escutei o apelido)

e recordo-me de nos dizer que, ao perguntar a Monsieur Anatole se tinha filhos, recebeu como resposta

– Non monsieur, je ne fabrique pas des cadavres

frase que o deve ter impressionado imenso porque o escutei repeti-la ao longo dos anos, pensativo, a moê-la. Volta e meia, num silêncio qualquer, lá vinha ela

– Non monsieur, je ne fabrique pas des cadavres

            Assim, nas derivas estéticas de Orpheu e do surrealismo, registra-se, na escrita de Lobo Antunes, a permanência de uma sensibilidade surrealista que, anterior ao movimento surrealista, se evidencia na exploração do universo imagético da psicose e no interesse, de muito cedo até hoje, pela figura de Ângelo de Lima, emblema e prova cabal da presença da loucura no horizonte estético da geração de Orpheu. Neste sentido, pode-se confirmar a presença de uma poética do delírio nas expressões literárias contemporâneas, para-além das alusões ao poeta. Mas, não é apenas o fascínio pelas linguagens da loucura que faz mover a escrita do autor. A crítica ao regime psiquiátrico da normalização também é uma marca relevante de sua ficção. Em Conhecimento do inferno (1980), diz o narrador:

O inferno, pensou, são os tratados de Psiquiatria, o inferno é a invenção da loucura pelos médicos, o inferno é a estupidez de comprimidos, esta incapacidade de amar, esta ausência de esperança, esta pulseira japonesa de esconjurar o reumatismo com uma cápsula à noite, uma ampola bebível ao pequeno almoço e a incompreensão de fora para dentro da amargura e do delírio, e se não vou para dentista na mecha fico um maluco tão sórdido e tão sem graça como eles. (Lobo Antunes, 1980, p. 52)

Sem a possibilidade de exteriorizar algo de forma inteira, o narrador e os personagens propõem rascunhos constantemente provisórios da circunstância vivida. Com isto, a engrenagem narrativa parece privilegiar imagens que são evocadas de maneira a evidenciar os desvios do seu pensamento para convertê-los em operadores de sentido:

O hospital, pensou a Margarida, modificou o mundo: expulsou as pessoas risonhas, cúmplices, amáveis, protetoras, de outrora, e substituiu-as por uma cidade azeda, opaca, inimiga, uma cidade que não era a sua, que não conhecia, que de toda a parte a escorraçava não sabia para onde por não existir sitio para ir. Sentia-se emparedada (…) no interior de si mesma como numa cela minúscula, custava-lhe respirar, uma espécie de desconforto, de aflição, de picada, de dor, apertava-lhe o peito, as veias do pescoço, os miolos da testa.  (Lobo Antunes, 1980, p. 232).

            Fica, assim, demonstrada a hipótese da presença, levantada em 1965 por Cleonice Berardinelli. Orpheu é muito mais do que um tópico incontornável da historiografia literária do século XX português; é uma linha de forças fortes que, a partir de objetivações artísticas diversas, reemerge como potência estética. Como, há cinquenta anos afirmou a Professora, uma “presença que até hoje se faz sentir”.

 

Referências bibliográficas

BERARDINELLI, Cleonice. “A geração de 70 e a geração de Orpheu”. In: Berardinelli, Cleonice. Fernando Pessoa: outra vez te revejo.  Rio de Janeiro: Lacerda Editores e Cátedra Jorge de Sena, 2004.

GUIMARÃES, Fernando. Poesias Completas de Ângelo de Lima. Lisboa: Assírio e Alvim, 1991

LOBO ANTUNES, António. D’este viver aqui neste papel descripto: cartas da guerra. Lisboa: Dom Quixote, 2005.

——. “Crônica com proposta de cura no fim”, publicada em 17 de dezembro de 2015 na revista Visão. Disponível em http://visao.sapo.pt/opiniao/2015-12-17-Cronica-com-proposta-de-cura-no-fim. Acesso em 23 de março de 2016

PINTO DO SOUTO E MELO, Isabel Maria. Dissertação de Mestrado O Anfigurismo na Poesia de Ângelo de Lima, apresentada em 2003 à Universidade do Porto, sob a orientação do professor Luís Adriano Carlos. Disponível em http://dited.bn.pt/31634/2620/3203.pdf. Acesso em 12 de agosto de 2015.

SENA, Jorge de. “Post-fácio – 1963”. In: Poesia II. Lisboa: edições 70, 1988.

 

Notas

[*] Professor do Programa de Pós-Graduação em Literatura, Cultura e Contemporaneidade, do Departamento de Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Pesquisador do CNPq (PQ-2).

[1] Berardinelli, Cleonice. “A geração de 70 e a geração de Orpheu”. In: Berardinelli, Cleonice. Fernando Pessoa: outra vez te revejo.  Rio de Janeiro: Lacerda Editores e Cátedra Jorge de Sena, 2004. p. 50-70.

[2] Lobo, Antunes, António. D’este viver aqui neste papel descripto: cartas da guerra. Lisboa: Dom Quixote, 2005.

[3] Guimarães, Fernando. Poesias Completas de Ângelo de Lima. Lisboa: Assírio e Alvim, 1991.

[4] Cf. Isabel Maria Pinto do Souto e Melo,  na dissertação de Mestrado O Anfigurismo na Poesia de Ângelo de Lima, apresentada em 2003 à Universidade do Porto, sob a orientação do professor Luís Adriano Carlos. Disponível em http://dited.bn.pt/31634/2620/3203.pdf. Acesso em 12 de agosto de 2015.

[5] Lobo Antunes, António. “Crônica com proposta de cura no fim”, publicada em dezembro de 2015 na revista Visão. Disponível em http://visao.sapo.pt/opiniao/2015-12-17-Cronica-com-proposta-de-cura-no-fim. Acesso em 23 de março de 2016.

[6] Sena, Jorge de. “Post-fácio – 1963”. In: Poesia II. Lisboa: edições 70, 1988, p. 159.

[7] [S/A], “Artistas de Rilhafolles”, A Capital, Lisboa, 28 de Junho de 1915, p. 1. apud Isabel Maria Pinto do Souto e Melo,  na dissertação de Mestrado O Anfigurismo na Poesia de Ângelo de Lima, apresentada em 2003 à Universidade do Porto, sob a orientação do professor Luís Adriano Carlos. Disponível em http://dited.bn.pt/31634/2620/3203.pdf. Acesso em 12 de agosto de 2015.

[8] Guimarães, Fernando. Introdução a Poesias Completas de Ângelo de Lima. Lisboa: Assírio e Alvim, 1991, p. 15.

[9] Lobo Antunes, António. “Crônica com proposta de cura no fim”, publicada em dezembro de 2015 na revista Visão. Disponível em http://visao.sapo.pt/opiniao/2015-12-17-Cronica-com-proposta-de-cura-no-fim. Acesso em 23 de março de 2016.

[10] Pára-me de repente o pensamento / Como que de repente refreado / Na doida correria em que levado / Ia em busca da paz do esquecimento. //Pára surpreso, escrutador, atento, / Como pára um cavalo alucinado / Ante um abismo súbito rasgado, / Pára e fica, e demora-se um momento.// Pára e fica, na doida correria. / Pára à beira do abismo, e se demora. / E mergulha na noite escura e fria / Um olhar de aço, que essa noite explora. / Mas a espora da dor seu flanco estria,/ E ele galga e prossegue sob a espora… (Ângelo de Lima)

[11] Lobo Antunes, António. “Crônica com proposta de cura no fim”, publicada em dezembro de 2015 na revista Visão. Disponível em http://visao.sapo.pt/opiniao/2015-12-17-Cronica-com-proposta-de-cura-no-fim. Acesso em 23 de março de 2016.


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