CUNHA DE LEIRADELLA
Tributo
1
Se são precisas mil e nove contrações para afastar um pensamento e mil e doze encruzilhadas para esquecer uma mulher, quantas nuvens serão precisas para compor um silêncio, e quantos silêncios para fixar uma saudade?
2
3
É ótimo escrever em duas línguas. Além de ser um bilingue diligente, numa escrevo o que quero, e na outra o leitor lê o que quiser. Ou nem lê. Mas aí, ler ou não ler, já não será mais uma questão. Será só uma opção.
To be, or not to be, ainda é uma questão porque o compadre de Windsor não escreveu em duas línguas. Se escrevesse, ser, ou não ser, não seria uma questão. Seria só uma opção. Não precisaria tradução, e o traduttore, traditore, seria igual ao big crunch. Uma teoria ultrapassada. Mas como Deus não joga dados e os números só escassamente engravidam nos bissextos, esqueça-se a dúvida de Descartes e navegue-se no Infinito.
4
Com o telescópio espacial Hubble a escabichar a taxa de expansão do universo, que importância tem ser, ou não ser? Ou ler ou não ler? Contadas as estrelas de cada uma das galáxias e medida a profundidade do buraco negro dos sacos azuis dos colarinhos, as juntas de freguesia pagam as custas do processo, e estamos conversados.
Afinal, a ser já um absurdo a interpretação literal de uma lei, e aterrados os açudes das ex-veigas ribeirinhas, o futuro só poderá ser a praia sem areia dos offshores expandidos. E formatado o big bang, o big rip ainda precisará de traduttore? Ou será a vez do big freeze? Ou até do big bounce? Só que qualquer big que vier será o que a pós-modernidade e a pós-verdade sempre foram. Uma pré-carência irrevogável.
E de big em big, e excretados os discursos taxativos, só resta aos magísteres jogarem a macaca na nebulosidade das galáxias. Ou o tacobol no buraco negro de Cygnus X-1.
Desde que os diplomas estejam carimbados, os pós das dades serão somente um pormenor. Só que por menor que seja a barrigada há sempre que atentar para a cor azul do saco dos subornos.
Sed quis custodiet ipsos custodes? Mas quem guardará os guardiões? E para quê guardá-los, se a lei já não se pode interpretar literalmente, o azul do saco é sempre branqueado em colarinhos, e sempre foi assim que evoluiu a humanidade, montada no tobogã da maionese?
E não há mais o que discutir. Os pós das dades serão diretamente proporcionais à abertura dos sprinklers, e a expansão do universo, escabichada ao ioctómetro pelo Hubble, não só facilitará o descanso do leitor como beneficiará também o meu bilinguismo diligente.
Quando quiser calar-me, poderei fazê-lo em dois silêncios. E sem mais discursos taxativos e argumentos analógicos, o leitor poderá dormir na santa paz. Ou não dormir, e jogar até a macaca na casa de banho do vizinho.
5
Eduardo da Cunha Júnior morreu ontem. Foi encontrado no quarto de uma pensão das Termas do Gerês hoje de manhã.
Não deixou nenhuma carta, nenhuma despedida. Apenas em cima de uma cadeira, ao lado da cama, deixou meia garrafa de Macieira, três caixas vazias de Lorsedal 2,5 mg, um isqueiro Bic, um maço de cigarros Português Suave, um Cartão de Cidadão, trinta e cinco euros em notas, e uma caneta Lumocolor. E rabiscada na borda do lençol, a palavra Laurindinha.
6
Eduardo da Cunha Júnior morreu ontem.
Gostaria de começar a minha história com esta frase. Eduardo da Cunha Júnior morreu ontem. É uma frase precisa. Determinante. E além de precisa e determinante, absolutamente verdadeira. Todos os hojes, amanhã já serão ontens, e tudo que vive morrerá.
Só que eu não posso começar a minha história dizendo que o Eduardo da Cunha Júnior morreu ontem. Eduardo da Cunha Júnior sou eu.
7
Este copo, que está aqui à minha frente e que o Viana, o empregado de mesa do bar do Cine Arte Vila Nova, diz que está vazio, não está vazio. Está cheio. Há meses que venho ao Cine Arte Vila Nova tomar um fino, e todas as vezes o Viana diz a mesma coisa, ó senhor engenheiro, valha-me Deus, esse copo está vazio. O senhor engenheiro já bebeu a cerveja.
Nunca me importei que o Viana dissesse aquilo, e sempre pedi outro fino. Mas hoje o copo não está vazio. Está cheio. Ontem a Manuela terminou o nosso caso, e hoje… Só que o facto de a Manuela ter terminado o nosso caso ontem não é o problema. O problema é que hoje o copo que está aqui à minha frente está cheio.
Acendo um cigarro, dou uma passa, e olho para o Viana. Ele estende o braço, pronto para pegar o copo se eu fizer, hum, hum, ou acenar com a cabeça. Mas eu não faço, hum, hum, nem aceno com a cabeça. Dou outra passa, e digo, não, ó Viana. Este copo está cheio. O Viana olha-me e arregala os olhos, espantado. Para ele o copo está vazio. Eu bebi a cerveja toda, e o copo está vazio. Debruço-me sobre a mesa e sorrio-me, como sorri ontem quando a Manuela me disse, ou tu ficas aqui comigo de uma vez, ou eu vou tratar da minha vida, percebeste?
Sorrir é fácil. Eu não acreditava que a Manuela fosse capaz de me deixar. O difícil é fazer com que os outros entendam os sorrisos. O Viana encolhe o braço e olha-me, e eu aponto um carro estacionado à frente da porta, e digo-lhe, ó Viana, se este copo está vazio, por que é que os pneus daquele carro estão cheios, hã? O ar que enche aqueles pneus não é o mesmo que enche este copo, hein? O Viana olha o carro e arregala os olhos, parecendo assustar-se. Espantado, como se só naquele instante tivesse descoberto a verdade.
A Manuela também me olhou, e também pareceu assustar-se. Como se também só naquele instante tivesse descoberto a verdade. Tu não te importas, Eduardo? O Viana volta-se e olha-me, e os olhos ainda estão mais arregalados. Ele só esperava que eu fizesse, hum, hum, ou acenasse com a cabeça. A Manuela também só esperava que eu fizesse, hum, hum, ou acenasse com a cabeça. Mas eu não podia fazer, hum, hum, nem acenar com a cabeça.
Fazer, hum, hum, ou acenar com a cabeça é fácil. O difícil é acreditar que os outros dizem a verdade. O Viana continua a olhar-me, e os olhos piscam, como se ele não soubesse, ou não pudesse entender. A Manuela também me olhou, e piscou os olhos, como se também não soubesse, ou não pudesse entender.
Esmago o cigarro no cinzeiro, aponto o copo, e digo ao Viana, diga-me cá, ó Viana. Se é o mesmo ar que enche este copo, e enche os pneus daquele carro, por que é que aqueles pneus estão cheios e este copo está vazio, hã? Ou ambos estão cheios ou ambos estão vazios, ó Viana.
Os olhos do Viana param de piscar e fixam-se nos meus, à espera que eu diga alguma coisa. A Manuela também fixou os olhos nos meus, à espera que eu dissesse alguma coisa. Você não acha, ó Viana? O Viana não responde. Recosto-me na cadeira e olho-o. Hein, ó Viana? O Viana desvia os olhos e continua sem responder. Ó Viana, você há de concordar comigo. Se os pneus daquele carro estão cheios, por que é que você diz que este copo está vazio, hã? Você não tem um mínimo de bom senso, ó Viana.
A Manuela também disse que eu não tinha um mínimo de bom senso quando não lhe respondi. Acendo outro cigarro e dou uma passa, e coloco-o no cinzeiro e digo ao Viana, ó Viana, você sabe o que é que nos faz distinguir o que é verdadeiro do que é falso? O Viana não responde. Estende o braço, como se fosse pegar o copo, mas encolhe-o num gesto repentino. O que nos faz distinguir o que é verdadeiro do que é falso é o bom senso, ó Viana. O Viana olha-me e respira fundo, e só então parece perceber que eu estou ali sentado à frente dele.
A Manuela também me tinha olhado assim, como se só também naquele instante parecesse perceber que eu estava ali parado à frente dela. Ó Viana, quando alguém repete o que todos dizem, não usa o bom senso. Usa o senso comum, está a perceber? O Viana olha-me e abana a cabeça, como se não acreditasse. A Manuela também me olhou e também abanou a cabeça, como se também não acreditasse quando me dirigi à porta da saída.
Pego o copo e levanto-o. Ó Viana, se o senso comum diz que este copo está vazio, e o meu bom senso diz que ele está cheio de ar, você sabe o que é que aconteceu? Olho-o e sorrio-me. O meu bom senso diz-me que eu estou certo, está a perceber? Eu só estaria errado se o ar que enche este copo não fosse o mesmo ar que enche aqueles pneus, está a perceber, ó Viana?
Coloco o copo na mesa e olho o Viana. Ele parecia uma estátua, a olhar-me como se eu fosse, ou parecesse ser também uma estátua. A Manuela também me olhou assim quando abri a porta e saí da casa dela. Pego o cigarro e dou uma passa. Mas sabe duma coisa, ó Viana? Você tá certo. Pensar é fácil. O difícil é dizer o que pensamos. O Viana continua, imóvel, calado, só a olhar-me. A Manuela também ficou imóvel, calada, só a olhar-me quando e eu saí da casa dela.
Recosto-me na cadeira e aponto o copo. Ó Viana, por favor, traga-me outro fino. Mas antes ouça-me. Você sabia que discutir o senso é como discutir o sexo dos anjos? Todos falam nele, mas ninguém consegue praticá-lo. O Viana olha-me mais alguns instantes, e de repente esfrega as mãos e ri-se. Ó senhor engenheiro, o senhor engenheiro sabe por que é que este copo está vazio? Está vazio porque eu já o meti na sua conta. Pega o copo e afasta-se, e eu não sei o que dizer. Como também não soube quando a Manuela me disse, se assim queres, Eduardo, não me procures nunca mais.
8
Não. O Eduardo não morreu. Nem ontem, nem nunca. Eu conheço-o muito bem. O meu pai, quando eu lhe disse quem era o Eduardo, disse-me, afasta-te dele, António. Uma pessoa que questiona é muito mais perigosa do que uma pessoa que só tem opiniões. A pessoa que só tem opiniões, só quer ouvintes, mas a pessoa que questiona, essa, quer respostas.
O meu pai nunca quis conhecer o Eduardo, e eu nunca o levei à nossa casa. Mas sempre fui amigo dele, e que eu saiba sê-lo-emos para sempre. O Eduardo tem os seus sonhos, como eu também os tenho, e acho que todos têm. Sonhos, até a Cidália os tem, apesar de fazer questão de dizer que só acredita no que ela própria pode demonstrar.
Conheci o Eduardo ainda na escola, há quase trinta anos. Arredio, não aceitava fosse o que fosse sem comprovação, e muito menos o que a professora nos ensinava. Isto, se ela não conseguisse provar o que dizia.
Eu aceitava. O meu pai dizia-me que eu tinha que ser advogado, e eu aceitava, como também aceitava tudo o que a professora ensinava. O Eduardo não. O Eduardo questionava tudo que ela dizia.
Por que é que dois vezes dois têm que ser quatro? Dois vezes dois são quatro, porque assim foi dito, e é assim que tem de ser. Mas se foi dito, foi alguém que o disse. Claro que foi alguém que o disse. Então, se foi alguém que o disse, podia dizer de outra maneira. Não podia dizer de outra maneira, não senhor. Podia, sim senhora. A professora não diz que o Tiradentes foi um traidor, e também não diz que no Brasil ele é herói? A verdade não é o que se diz, menino. Mas se a verdade não é o que se diz, então por que é que dois vezes dois têm que ser quatro, se também foi alguém que o disse?
Naquele dia o Eduardo foi expulso da aula, mas ganhou um amigo. E somos amigos até hoje, apesar da Cidália nunca ter gostado dele. Eu sempre invejei o Eduardo. Dizia sempre o que sentia sem se importar com o que os outros pensavam dele. Eu sou advogado porque o meu pai sempre quis que eu fosse advogado. O Eduardo não. Apesar das imposições do pai, nunca se formou em Economia. Formou-se em Engenharia.
Por isso, eu o invejo e admiro, apesar da Cidália não gostar dele. Mas a Cidália também não gosta do José Manuel, e o José Manuel pouco fala com ela.
9
A Laurindinha nunca foi a minha namorada. Gostava de me beijar e de meter as mãos dentro das minhas calças, mas nunca foi a minha namorada. Eu também gostava que ela me beijasse e metesse as mãos dentro das minhas calças, mas troquei-a por um estojo de desenho, uma régua, um transferidor e um compasso, quando fiz catorze anos.
O meu pai queria-me economista. E gritava-me, és um lorpa, quando eu lhe dizia que não queria ser economista. Eu tinha doze anos, e a Laurindinha gostava de me beijar e de meter as mãos dentro das minhas calças, e eu queria é que ela me beijasse e metesse as mãos dentro das minhas calças. O meu padrinho era irmão da minha mãe e morava na nossa casa, e era o único que não teimava comigo, nem me chamava de lorpa. Era casado, mas a minha madrinha morava em Braga, e nunca nos visitava.
Dizia a minha mãe que a minha madrinha não prestava, e que tinha sido um milagre ela não ter acabado com a vida do meu tio. Não a conheci, mas pensei muito nela. Como é que uma pessoa podia acabar com a vida da outra, se a outra não quisesse? Muitas vezes perguntei isto à minha mãe, mas ela nunca me respondeu.
A minha mãe também não gostava da Laurindinha, e também dizia que ela não prestava. Eu nunca entendi a minha mãe. Como é que a Laurindinha podia não prestar, se gostava de me beijar e de meter as mãos dentro das minhas calças?
O meu tio não. Não me queria economista, e sempre teimou com o meu pai por causa disso. Era o único que me dizia que eu só devia ser o que quisesse, e não o que os outros queriam que eu fosse. Eu gostava muito dele. Muito mais do que gostava do meu pai. Foi ele que me deu o estojo de desenho, a régua, o transferidor e o compasso quando fiz catorze anos, só porque eu lhe dizia que queria ser engenheiro.
O meu pai não gostou da prenda do meu tio, e nunca me deixou desenhar dentro de casa. Disse-lhe que fugiria se ele me quebrasse o estojo, ou a régua, ou o transferidor ou o compasso, e ele bateu-me. Bateu-me tanto, que a minha mãe teve que pedir ajuda ao meu tio. O meu tio enfrentou a raiva do meu pai, e construiu-me um barraco no fundo do quintal, debaixo da nespereira, ao lado do poleiro das galinhas.
Eu não falava com o meu pai, a não ser bom-dia ou boa-noite. Mas não me importava. Não gostava dele, e tinha a certeza que ele também não gostava de mim, de tanto que me queria obrigar a ser economista.
O meu tio não. Rapaz, dizia-me ele, cada um deve fazer sempre aquilo que acha que é certo. Se eu não tivesse dado ouvidos aos outros, ainda hoje poderia ter a tua madrinha comigo. Mas não dei, e olha, hoje vivo como vivo. Só, e com saudades dela. Eu gostava muito do meu tio, mas foi por pouco tempo. Menos de um ano depois suicidou-se.
Tinha dezasseis anos quando o meu pai morreu, e a minha mãe concordou que eu fizesse Engenharia. Licenciei-me aos vinte e três, e o que foi ainda mais importante, com a certeza de vir a ser um bom engenheiro civil. Fiz a prova de admissão à Ordem, e fiz o estágio.
Só que o máximo que o meu diploma me conseguiu, foi assinar os projetos dum empreiteiro de Vila Nova de Pardais. Dos projetos que sonhara fazer, nem sombra. Não fosse o António conhecer o dono deste colégio, e nem a merda destas aulas o meu diploma me teria conseguido. Como eu nada consegui até hoje. A não ser saber que só nasci para morrer.
10
Mas de maneira nenhuma. O Eduardo não morreu ontem no Gerês, não senhor. Eu conheço-o melhor do que ninguém. A Cidália, que diz que ele é um pulha, disse-me logo que eu o conheci, Manuela, esse tipo não presta, é um fascista. Tu sabes como é que ele classifica as mulheres? Não? Pois olha, ele divide-as em dois grupos. O primeiro, as filhas da puta, que só andam com os outros, e o segundo, as boas, que só andam com ele. Não me quero gabar, mas na classificação desse pulha, eu sou a maior filha da puta, e com muita honra, estás a perceber?
Não. Não percebi. Não percebi, e aposto que a Cidália gostaria ser uma das boas, das que só andam com o Eduardo. Conheço essa bisca, e sei muito bem que ela foi, foi, e ainda é apaixonadíssima por ele, e que se rói toda porque ele nunca quis saber dela. Eu só não sei é como o António consegue aguentá-la, que eu quero é que ela passe por mim e me vire a cara, que virar-lhe a cara a ela eu já virei há muito tempo.
Conheci o Eduardo há cinco anos no Cine Arte Vila Nova na noite em que ia ver um filme que nunca tinha visto. Eu gosto muito de cinema, nunca perco um bom filme, mas nunca tinha visto um filme daquele diretor, o Vincente Minnelli. Que me lembre, nunca os filmes dele, e de outros como ele, passaram em Vila Nova de Pardais.
Cultura, em Vila Nova de Pardais? Cultura, em Vila Nova de Pardais, é igual a zero. Se eu conheço pessoas que dizem que quando querem cultura vão a Braga, cultura, em Vila Nova de Pardais, havia de ser igual a quê, hã? Por isso, espantei-me quando soube que Adeus às Ilusões ia ser apresentado no Cine Arte Vila Nova. Como nunca deixo para amanhã o que podia fazer ontem, logo que soube fui ao Cine Arte comprar o bilhete da única sessão daquele dia, às dez menos um quarto da noite.
Comprei o bilhete à tarde, e quando cheguei, às dez menos vinte, deparei-me com a maior confusão. A lotação esgotada num filme que ninguém tinha visto em Vila Nova de Pardais? Logo em Vila Nova de Pardais, onde até a Biblioteca Municipal fecha à hora do almoço, e não abre aos sábados de manhã, nem nos períodos escolares? Espantei-me, e de que maneira. A bilheteria já estava fechada, a sessão ia começar, eu apresso-me, mas alguém me empurra, e eu quase caio ao chão. Fiquei fula com a falta de respeito, que se há coisa que eu não admito é falta de respeito. Seja de quem for.
Só que nem tempo tive para reclamar do empurrão, pois quando me voltei o sujeito pediu-me imensas desculpas, e perguntou-me se eu me tinha magoado. Não era nem alto nem forte, mas tinha um olhar… Não, não me magoei, obrigada. Ainda bem, disse-me ele. E calou-se, só a olhar para mim, como se eu fosse uma fada ou a Nossa Senhora do Sameiro.
Sem saber o que fazer, só me lembrei de perguntar-lhe, também veio ver Adeus às Ilusões? Não. Não vim, disse-me ele. Eu queria muito ver o filme, ilusões quem as não tem, mas aquele olhar dele desarmou-me, e disse-lhe, eu também não. Vim só ver o que se passava. Ele não disse nada, ali parado, só a olhar para mim.
Passou-se um bom tempo até ele baixar os olhos, como se ele se sentisse culpado do empurrão que me dera. Bom, disse ele. Totalmente desarmada com a fixidez do olhar dele, perguntei-lhe, quer tomar um fino? Podemos, disse-me ele. Então vamos, disse-lhe eu antes que ele se arrependesse.
Fomos para a Pastelaria da Lindinha, a única aberta àquela hora, e ficamos lá até à hora de fechar. Mas ele quase não falou, e sempre que falava, não falava, perguntava. Por isso, eu falei sozinha, e disse-lhe tudo. Só não lhe disse que não tinha ido ao cinema por causa dele. O resto, disse-lhe tudo. Que era médica do Centro de Saúde, que tinha trinta e dois anos e era divorciada há quase quatro, e que era totalmente independente.
Quando eu lhe disse que era totalmente independente, foi a única vez que ele não perguntou nada, e disse que era muito difícil encontrar-se alguém totalmente independente, mas que era ótimo uma pessoa ser independente. Admirei-me de ele dizer uma pessoa, e não uma mulher, como eu estava habituada a ouvir dos meus colegas e dos meus conhecidos. E isso, confesso, ainda mais me aproximou.
Pedi mais dois finos, e ele pediu dois queques de cenoura, lembro-me dos queques de cenoura porque foi a primeira vez que os provei, e foi então que lhe contei das minhas três metas. Escrever um livro sobre medicina social, é importantíssimo, a medicina social em Portugal não existe, fundar um grupo de teatro, também é importantíssimo, chega de as telenovelas fazerem-nos de lorpas, e a coisa mais importante, fazer com que o voto distrital seja implantado em Portugal, ao invés do atual sistema das listas partidárias, à partida sempre interesseiras e corruptas. Eu sei que todos os governos são corruptos, mas ao menos com o voto distrital eu posso escolher quem eu quero que me roube.
Estava tão empolgada, mas tão empolgada, que parecia até que estava num comício. Mas eu sou assim, e quando me empolgo não ligo para ninguém, digo o que penso e o que não penso, e pronto. E continuei a falar, lixada com as mentiras e as roubalheiras dessa cambada do governo e das listas partidárias.
Ele não dizia nada, só a olhar para mim, e olhava-me tanto, mas tanto, que eu dei por ela. Só que quando dei por ela, percebi que ele não olhava para mim, comia era com os olhos o meu decote. Os meus seios são grandes e eu sei que eles balançam quando me empolgo, mas não me importo.
Muito pelo contrário, quando vejo que alguém os admira, fico satisfeitíssima, pois qual é a mulher que não gosta de ser admirada? Há por aí algumas que dizem que não gostam, mas eu sei que é mentira. Aliás, eu sei de uma que diz que até detesta. Mas a Cidália diz que detesta porque é mais lisa do que uma tábua, porque se não fosse, duvido que detestasse. O António que o diga, que sempre que passa por mim não tira os olhos do meu decote.
Quando ele percebeu que eu tinha parado de falar, pareceu-me até envergonhado, mas eu fiz de conta que nem dei por ela. Peguei o maço de tabaco e tirei um cigarro, pois com aquela empolgação toda até tinha esquecido de fumar.
Ao ver-me com o cigarro na mão, ele sorriu-se, acendeu-mo, acendeu também um para ele, e ficamos ali calados, a fumar e a olhar um para o outro como dois autênticos palermas. Tenho a certeza que nenhum de nós era palerma, aquilo era encantamento, pois se me sentia bem, ali calada, a fumar e a olhar para ele, não havia de ser encantamento?
Só que a minha curiosidade de saber quem ele era foi maior, e perguntei-lhe, e você, hein? Até agora você não disse nada e eu já lhe disse tudo. Olhei para ele, dei uma passa, olhei outra vez para ele, e ele ainda estava a olhar para mim, e disse-lhe, diga alguma coisa. Ele encolheu os ombros, e disse-me, o que é que você quer que eu diga? Sei lá, o seu nome, por exemplo. Ele abanou a cabeça, e riu-se. Eduardo. Eduardo de quê? Eduardo da Cunha Júnior. E a sua vida? O que é que você faz? Ele encolheu os ombros e disse-me, nada de importante.
Não sei se foi a maneira como ele disse aquilo, ou a fixidez do olhar dele, mas o facto é que me senti como se ele fosse um menino que precisasse de colo e tivesse medo de o pedir. Estendi a minha mão, peguei a mão dele, e disse-lhe, sabe que gostei de não ter ido ao cinema? Eu também, disse-me ele. Meteu a mão ao bolso, tirou um bilhete e mostrou-mo.
Rimo-nos, e eu perguntei-lhe, ainda a rir-me, não me diga que você não foi ver Adeus às Ilusões por minha causa? Ele acenou com a cabeça, e aquele aceno arrepiou-me de tal maneira, que peguei a bolsa, tirei o meu bilhete e mostrei-lho. Ele bateu palmas, não falamos mais nada, ele fez questão de pagar a conta, fomos para a minha casa, e foi bom, muito bom. Nunca dormi na casa dele, nunca soube a morada dele, mas nunca me importei. Para mim o importante não era dormir na casa dele ou saber a morada dele, era ter alguém que gostasse de estar comigo.
11
Na sexta-feira passada fui ao Cine Arte Vila Nova ver um filme que ainda não tinha visto. O Cinema Paraíso, de Giuseppe Tornatore. A sinopse fascinou-me. Um menino deslumbra-se com os poucos e censurados filmes que via no cinema da sua cidadezinha, e decide ser cineasta. E foi.
Parecia um argumento de telenovela, mas a firmeza daquela decisão tocou-me fundo. Quando era menino, eu também decidia a minha vida, apesar do meu pai dizer que eu era um lorpa por não querer ser economista. Mas eu não era lorpa. Tinha decidido ser engenheiro, e só queria ser o que tinha decidido.
Depois da morte do meu tio passei a viver cada vez mais no barraco que ele me tinha construído no fundo do quintal, debaixo da nespereira, ao lado do poleiro das galinhas. Deixava a Laurindinha balouçar sozinha, trancava-me lá dentro e ficava a olhar as paredes cheias de desenhos.
E quando os meus olhos se cansavam, os desenhos começavam a balançar, a balançar, e balançavam tanto, que eu tinha a certeza que poderia agarrá-los, se quisesse. Nunca o fiz, mas só a certeza que poderia fazê-lo já me deixava feliz. Os desenhos balançavam, balançavam, e descolavam-se das paredes. E sempre a balançar, aproximavam-se tanto, que eu falava com eles como se falasse comigo.
Contava-lhes todos os meus segredos, e eles não se riam nem me chamavam de lorpa. Pelo contrário, diziam que eu estava certo e que poderia ser o que quisesse, se quisesse.
Conversávamos horas e horas, e a cada dia que passava mais certeza eu tinha que poderia ser o que quisesse. Foram os anos mais felizes da minha vida. Eu sabia o que queria, e os outros não contavam. Nem sequer a Laurindinha. Não tinha esquecido o gozo que me davam as mãos dela dentro das minhas calças, mas o importante agora era decidir o meu futuro. Ser o engenheiro que sempre quis ser.
Só que se aos dezasseis anos tinha a certeza que aos vinte seria tudo que tinha decidido, aos vinte e quatro verifiquei que estava só, e sem os outros nada poderia conseguir. Estava formado e credenciado, mas estava preso numa ilha. E o que era ainda pior, cercado de realidades para mim desconhecidas.
Diante delas, todas as minhas certezas aluíram, e de tudo apenas restou uma verdade. Um homem nunca é nada ele sozinho. Nem livre, nem verdadeiro. A liberdade e a verdade quem determina são os outros.
Às vezes, nas horas de mais silêncio ou de mais medo, ainda penso nos meus sonhos. Mas não tenho mais a quem contá-los. O meu barraco caiu de podre, e troquei a Laurindinha por nada.
12
Antes da Manuela houve outras Manuelas. A Maria Amélia foi a primeira e durou as férias de um verão. Parecia como eu, mas não era igual a mim. Gostava de cinema e de livros, mas só falava em vida a dois. Ó Eduardo, deixa-me que te diga. Assim como tu és, tu precisas é de alguém que te norteie, homem de Deus. Ó Maria Amélia… É o que te digo. Ela dizia, todos os dias ela me dizia, mas eu não escutava. Não queria escutar. E não escutei.
Depois da Maria Amélia houve a Maria Antónia. Encontrei-a em Braga, num filme de Tarantino, e saímos do cinema de mãos dadas. Não gostei de Django Libertado. Nem sequer era mais do mesmo Tarantino, mas acabamos a noite com dois finos, e eu dormi na casa dela. Durou uma semana. Eduardo, quando te apetecer, e se eu estiver para aí virada, encontramo-nos. Se te convier assim, ótimo. Se não te convier… Não conveio, e separamo-nos. Nunca mais a vi.
Depois da Maria Antónia veio a Nena e veio a Cinha, e veio a Zezé e a Alexandra. A Nena e a Cinha em dois meses, e a Zezé e a Alexandra em meio ano. Mas nenhuma delas gostava de cinema nem de livros, e eu também não gostava de dançar.
13
O pulha do Eduardo da Cunha Júnior? Mas é claro que não morreu. Um filho da puta como ele, nem se o matarem é capaz de morrer. Eu conheço-o bem. Tão bem, que nunca precisei que me dissessem como ele era para que eu soubesse quem ele é. Um idiota que diz, todo o homem tem o direito de ter razão, é mais do que perigoso. É pernicioso. Ninguém tem o direito de ter razão a menos que essa razão lhe seja dada.
Por isso, esse indivíduo é um elemento pernicioso. Além de nada fazer em prol da coletividade, ainda se arroga o direito de julgar. E o que é muito pior, pensa sempre que está certo. Mas a culpa não é só dele. A culpa é de quem lhe presta atenção. Se o António tomasse uma atitude, por mim há muito tempo esse pulha estaria fora da nossa vida.
O que esse fascista diz, nem o pintor de paredes se atreveria a dizer. Só que o pintor de paredes, apesar de louco e genocida, era real, e esse indivíduo não passa de um personagem de si mesmo.
Conheci esse pulha num sarau literário da Sociedade Pardalense de Cultura. Eu e o António, a querer distrair-nos, e ele, um professorzeco de merda, um fascista dos antigos, a fingir-se paladino da liberdade. Como se um indivíduo que não tem objetivos pudesse ter opiniões. Mas o António sempre se deixou hipnotizar por ele, e nunca me deu ouvidos. Que se desse, há muito esse pulha nem sequer se atreveria a olhar para a minha cara.
O que diz aquela pobre coitada, que eu fui apaixonada por esse mau-caráter não tem a menor propriedade. E mesmo que tivesse, o que é que essa coia tem a ver com a minha vida, hã? Que se meta na dela, e já faz muito. Aliás, se essa descarada não fosse quem é, uma despeitada, uma ressentida, há muito dormiriam ambos na mesma cama, que gostar de seios grandes, como ela diz que o pulha gosta, não abona o caráter de ninguém. Muito pelo contrário, fazer dos seios um fetiche só demonstra a falta de moral do fascista. Mas é bem feito. Se essa infeliz não sabe ver o que tem debaixo do nariz merece, e muito, ser enganada.
A mim, o filho da puta nunca enganou. Nem ele, nem aquela cambada de palermas que eu vi a escutá-lo na Pastelaria da Lindinha. Como se a Pastelaria da Lindinha fosse o Estúdio 22 de Braga, e ele fosse lá anunciar a chegada da Era de Capricórnio. Isto no exato momento em que os imperialistas norte-americanos impõem sansões assassinas à democracia do estado livre da Venezuela.
Ser, ou não ser, papagueava o idiota com aquele ar professoral que sempre faz questão de mostrar, não é a questão. A questão é poder ser. Porque por mais que cada um de nós queira, nós só fazemos o que os outros nos deixam fazer. Um homem nunca é nada ele sozinho. Nem livre, nem verdadeiro. A liberdade e a verdade quem determina são os outros. Por isso, a minha única liberdade se restringe ao suicídio.
Só faltava o filho da puta dizer ao fim de cada frase, magister dixit, para todos se ajoelharem e se benzerem.
Sempre que eu acreditei que alguma coisa ia mudar, continuava o idiota, nada conseguia ser mudado. Quem mandava continuou a mandar, e quem obedecia continuou a obedecer. Quem está na mó de cima nunca quer ficar na mó de baixo. Só fica na mó de baixo se o obrigarem a isso. Se as bases se inverterem. Na Idade Contemporânea houve dois momentos em que as bases se inverteram. Em 1789, na França, e em 1917, na Rússia. Mas as mós continuaram, só mudaram os moleiros. Quem ficou na mó de cima, continuou a moer, e quem ficou na mó de baixo, continuou a ser moído
Aqui em Portugal, quem era moído pela Monarquia continuou a ser moído pela República, e continua a ser moído por esta plutocracia, neste poder sem pudor onde o dinheiro compra tudo.
Filho da puta. Até hoje, eu não consigo perceber como é que o António, o melhor e o mais conceituado advogado de Vila Nova de Pardais, ainda pode ter consideração por um pulha como este. E o pior não é só isso. O pior é que o António ainda se lixa comigo quando eu lhe digo a verdade.
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Na semana passada aceitei uma imposição que, agora tenho a certeza, devia ter recusado. E o resultado foi péssimo. A Manuela telefonou-me para o colégio segunda-feira de manhã, e disse que me queria ver naquela noite. Achei estranho. Como sempre, tínhamos passado a tarde de domingo no Motel Vila Nova, e nada me pareceu diferente. A Manuela, como sempre, só parou de reclamar quando se despiu e se deitou, e eu me encaixei nas pernas dela. Mas na segunda-feira insistiu tanto, que eu acabei por concordar em ir à casa dela.
Quando cheguei, ela já me esperava, impaciente. Eduardo, eu chamei-te aqui hoje pra nós decidirmos. Ou tu ficas aqui comigo de uma vez, ou eu vou tratar da minha vida, percebeste? Não respondi, e ela olhou-me, espantada. Tu não te importas, Eduardo? Continuei calado, e ela abanou a cabeça. Tu não tens um mínimo de bom senso. Calou-se, e olhou-me fixamente. Se assim queres, Eduardo, nunca mais me procures, ouviste? Acendi um cigarro, e esperei que ela se despisse e se deitasse. Tinha a certeza que logo que me encaixasse nas pernas dela as reclamações acabariam. Mas ela não se despiu nem se deitou.
A Manuela sempre reclamou, mas sempre continuamos. Há cinco anos que a Manuela reclamava e eu escutava, e sempre continuávamos. As noites dela, era o que ela dizia, ocupadas com a pesquisa do livro de medicina social ou com o grupo amador de teatro, ou com o voto distrital, e as minhas também ocupadas com os filmes e com os livros.
A Manuela sempre reclamou, mas sempre se despiu e se deitou, e eu sempre a escutei sabendo que as reclamações acabariam logo que me encaixasse nas pernas dela. Mas na segunda-feira passada a Manuela não se despiu nem se deitou. Eduardo, ou tu dormes aqui hoje e amanhã trazes as tuas coisas, ou eu vou dormir à tua casa e levo as minhas. Escolhe. Abriu a porta, e olhou-me. Decide. Ou tu ficas aqui, ou me levas contigo. Ou então podes ir. Agora.
15
O filme Cinema Paraíso estreou no dia 10 de julho, mas eu só fui ao Cine Arte Vila Nova no dia 14. Levei aqueles cinco dias a pensar o que teria passado aquele miúdo para cumprir o que tinha prometido. Cumprir uma decisão não é fácil. É tão difícil que para mim foi impossível.
Foram cinco dias de merda. Por mais eu que forçasse não pensar, não conseguia esquecer a determinação daquele miúdo. Até a ler ou a corrigir as provas dos alunos não deixava de pensar. E não era por curiosidade. Era por medo. Ao pensar naquela determinação era em mim que pensava. No que tinha sido, e no que era. E não gostava do que pensava.
Por isso, todas as vezes que decidia ir ao Cine Vila Nova, recuava. E justificava o meu recuo com os argumentos mais fúteis. Ou via filmes no computador, que em outra situação jamais veria, ou lia livros, que em outra situação também jamais teria lido.
Foram cinco dias medonhos. Fodidos. Mas enquanto estivesse a ver filmes ou a ler livros fechado em casa, ao menos não estaria no Cine Arte Vila Nova. Um raciocínio perfeitamente lógico e condizente com os factos. Se o filme ia ficar em cartaz até domingo, por que é que eu teria que vê-lo antes?
O argumento era correto. Só que não era verdadeiro, e eu sabia. O que me afastava do Cine Arte Vila Nova não era o fator tempo. Era o fator medo. Eu tinha medo de confrontar a firmeza da determinação daquele miúdo com a minha covardia.
16
Quem é que disse que o Eduardo, o Cunha Júnior, morreu ontem, hã? Para ele ter morrido ontem, só se o mataram, caralho. Mas se o mataram o António já saberia e já me teria avisado. Ou então a Rosa, que o conhece há muito mais tempo do que eu, e pode confirmar o que digo. O Eduardo morreu ontem? Morreu, a puta que os pariu.
Que ele sempre foi um tipo estranho, isso é verdade. Mas daí a ter morrido, isso eu não acredito nem por um caralho. Quem pensa como aquele gajo pensa, só podia morrer se Deus adormecesse. E que eu saiba Deus não dorme, porque se dormisse, hoje eu seria economista.
Muito quis ser economista, puta que o pariu. Suei como um burro para conseguir entrar na faculdade, mas entrei. Só que graças a Deus livrei-me da obrigação de continuar a suar. Graças a Deus e à Rosa, que o Eduardo praticamente meteu na minha cama.
Conheci-o quando andava no secundário. Naquela altura eu ainda acreditava que o governo era governo para resolver os problemas de Portugal, e não para empregar os parentes e encher os bolsos dos amigos.
Eu era um raio dum palerma que não bebia, não fumava, nem andava com mulheres, e o meu pai acreditava que eu podia ser alguém se me formasse. E a merda é que eu também acreditava. E acreditava tanto, mas tanto, que marrei matemática noites e noites até de madrugada. O que o Eduardo se riu quando eu lhe disse que ia fazer Economia. Mas eu não me importava que ele se risse. Só me fodia quando a porra da mulher do António, a Cidália, se metia a dar opinião.
Eu sempre acreditei nos motivos. Para mim, tudo que acontece com as pessoas, acontece por um motivo. Se não fosse ter conhecido a Rosa, hoje eu ainda seria um lorpa chapado. Um caralho de um patego que queria ser economista, e acreditava que o governo era governo para resolver os problemas de Portugal, o caralho que o foda.
Por isso, posso dizer que aprendi muito com o Eduardo. Isto, apesar de no começo, quando ele me dizia que a única coisa de valor que o ser humano possuía era a sua liberdade, eu achar que ele era ainda mais lorpa do que eu. Liberdade? Que liberdade, pá, se eu tenho toda a liberdade que quero, ou tu já te esqueceste que eu só quero ser economista, hã?
Mas o Eduardo ria-se. Zé Manel, dizia-me ele, tu sabes que ninguém pode destruir um ser humano, não sabes? Não? Pois então ouve. Um ser humano pode ser vencido, pode até ser morto, mas ninguém pode destruí-lo. Ninguém pode destruir um ser humano, Zé Manel. E eu quero lá saber, pá? Tu não queres saber? Pois fica a saber que tu mesmo te destruirás a ti próprio se abjurares a tua liberdade. E lá vens tu. Qual liberdade, qual carapuça, pá? Eu tenho toda a liberdade que quero, pá. Eu quero e vou ser economista, porra. Tu passas a vida a falar de liberdade, mas fica a saber que o importante não é o que o que uma pessoa diz, o importante é o que uma pessoa deve dizer. Se assim não fosse, tudo seria permitido, pá. Mas tudo é permitido, ó Zé. Se eu abjurar a minha liberdade, os outros podem fazer o que quiserem. Tudo fica permitido, Zé.
Eu apelava, tinha que apelar, se não apelasse, fodia-me. Não, pá. Sem um bom motivo ninguém faz nada. Repara. Até para se matar alguém, tem que haver um motivo. Zé Manel… Não adianta, pá. Sem um bom motivo ninguém faz nada, pá. O Eduardo lixava-se, mandava-me foder, e acabava a discussão.
É verdade que eu levava uma vida da porra. Frequentava o primeiro ano, e era de casa para a faculdade e da faculdade para casa. E à noite meter os cornos nos livros, e marrar até de madrugada. Mas chegaram as férias, os meus pais foram para a Póvoa de Varzim, e o Eduardo convidou-me para ir com ele a um tal Venha a Nós. Mas não me venhas de fato. Se vieres de fato, eu viro-te a rara, ouviste? Ó pá, e tu pensas que eu não sei o que é uma t-shirt, ou quê, hã?
Eu nunca tinha entrado nesse tal Venha a Nós, e entrei meio a pau. Meio fodido. À partida não gostei. Muito fumo, barulho demais, o caralho. Mas o Eduardo chamou uma tal Rosa Mamuda para sentar-se à nossa mesa, um par de mamas e umas coxas do caralho, e fodeu-se. Apanhei um pifão do caralho, vomitei em cima da mesa, e se não fosse a Rosa me ter levado com ela, foda-se, não sei o que é que teria acontecido.
Mas valeu a pena, se valeu. Acordei na cama dela sem saber onde estava, nem quem ela era, mas que se fodesse. Passei as férias todas no quarto dela, e quando os meus pais chegaram da praia, não quis saber. Mandei a Economia à puta que a pariu, e um mês depois era empregado de mesa na Pastelaria da Lindinha. O meu pai deixou de falar comigo, a minha mãe só falava comigo às escondidas, mas que se fodesse. Ao menos eu era eu.
E sempre que o Eduardo se lixava quando eu lhe falava dos motivos, eu mostrava-lhe as mamas da Rosa. Estás a ver, pá? Se eu não tivesse arranjado estes motivos ainda hoje marraria a merda da matemática e usaria aquele fato de betinho.
E era verdade. Quando uma pessoa arranja um bom motivo faz o caralho. O Eduardo é que nunca arranjou um bom motivo, porque no dia em que o arranjar, foda-se, ninguém tem mão naquele gajo.
17
A decisão da Manuela foi definitiva. Conhecia-a há cinco anos, e nunca pensei que ela fosse capaz de tomar uma decisão como aquela. Mas tomou. A Manuela reclamava, reclamava, mas todas as reclamações acabavam logo que se despia e se deitava, e eu me encaixava nas pernas dela. Por isso, me espantou ela dizer, decide. Ou tu ficas aqui, ou me levas contigo. Ou então podes ir. Agora.
E foi aquele agora que me tramou. Que me obrigou a perceber que a decisão dela era definitiva. Terminante. E isso marcou-me. Coagiu-me. Não pelo facto de nos separarmos, mas por eu ter que tomar também uma decisão.
A Manuela sempre repetia as mesmas reclamações, com as mesmas palavras e com a mesma intensidade, e eu sempre tive a certeza de que ela só falava por falar. A Manuela gostava de falar. Fazer de conta que tudo aconteceria se ela dissesse que ia acontecer. Mas nunca a vi fazer nada do que dizia que faria. Escrever um livro sobre medicina social, fundar um grupo de teatro, e trabalhar para que o voto distrital fosse implantado em Portugal.
A Manuela nunca tinha feito nada, e eu sabia, e a ela também sabia que eu sabia. Mas só naquela segunda-feira ela me disse, decide. Ou tu ficas aqui, ou me levas contigo. Ou então podes ir. Agora.
Por isso, eu fui obrigado a perceber que a decisão era definitiva. Terminante. E o que me coagiu não foi o facto de ela me impor uma opção. Ou eu ficava, ou a levava comigo. O que me coagiu foi aquele agora. Por causa dele eu também tinha que decidir. Se a Manuela se tinha libertado eu também teria que libertar-me. Decidir-me. O agora dela obrigava-me a fazer também o meu agora.
18
A alegria do sorriso do Totó deslumbrou-me. Não era de espantar que aquele miúdo se tivesse apaixonado pelo cinema e cumprisse o que tinha prometido. Ser um cineasta. Não sei porquê, mas aquele sorriso lembrou-me a Laurindinha. A Laurindinha também sabia sorrir assim, só que o meu sonho, naquela altura, não era ter a alegria do sorriso da Laurindinha. Era ser o que eu quisesse.
Comprei o bilhete, voltei ao bar, sentei-me, acendi um cigarro, chamei o Viana e pedi-lhe um fino. Num dos cartazes do filme, o Totó continuava a sorrir-se e a olhar-me. Desviei os olhos. Aquele sorriso e aquele olhar feliz incomodavam-me. A Manuela também sorria e também me olhava, mas eu nunca conseguia responder ao sorriso e ao olhar dela.
A Manuela, a Maria Amélia, a Maria Antónia, até a Nena e a Cinha, e a Zezé e a Alexandra, todas sorriram e me olharam, mas eu nunca consegui responder aos sorrisos e aos olhares delas.
Dei uma passa e olhei as mesas vazias, e uma sensação de frio fez-me estremecer. Mas não era frio o que sentia, eu sabia. Quando saísse do cinema poderia sentar-me outra vez naquela mesa, ou ir para casa. Ou até ir para o Venha a Nós. Só que em qualquer uma das hipóteses eu estaria só. Só, comigo mesmo.
O erro não fora da Manuela, como não tinha sido da Maria Amélia, nem da Maria Antónia. Nem sequer da Nena e da Cinha, ou da Zezé e da Alexandra. O erro era meu. Tinha trocado a Laurindinha por nada, e nunca conseguira destrocá-la.
19
Um homem nunca é nada ele sozinho. Nem livre, nem verdadeiro. Só que se julga cada vez mais sábio e mais inteligente. E muito mais verdadeiro. O Hipócrates e o Galeno não curavam constipações, e o Aristóteles também só conhecia um metal líquido à luz do sol. Mas se o Protágoras desconhecia que o universo se expandia e tinha buracos negros, sabia que o homem era a medida de todas as coisas. O que ele conhecia de si mesmo era proporcional ao seu mundo exterior.
Na contrapartida, hoje nós caminhamos pelo Cosmos e medimos todas as distâncias, e transformamos o nosso mundo numa aldeia. Só que nada mais conhecemos de nós do que o Protágoras conhecia de si mesmo. O nosso mundo exterior alargou-se, mas nós continuamos como éramos. Mesquinhos e invejosos, e também não curamos constipações. Apenas sabemos que o mercúrio não é o único metal líquido à luz do sol, e fazemos tudo com maior velocidade.
Só que também destruímos tudo o que fazemos na proporção direta da velocidade dos nossos cálculos. O que milhões de homens fizeram durante milénios com clavas, espadas e arcabuzes, hoje apenas um faz com uma bomba. E em segundos.
Fissuramos o átomo e geramos seres humanos em provetas, e os clones humanoides já estão na calha de produção. Mas a nós mesmos nada de positivo acrescentamos. Quanto mais nos aproximamos do Infinito, mais o Infinito se distancia. Mais relativos nos tornamos. Apesar de toda a nossa pompa e circunstância, apenas conseguimos estar presentes. Como estão presentes as pedras dos caminhos que pisamos.
Só que essas pedras existem desde o começo do tempo e continuarão até ao fim do tempo, e nós desaparecemos a cada geração. Cada vez mais sós e com mais medo, e muito mais angustiados. Porque a cada dia que passa mais somos obrigados a justificar o que somos. Seja a despirmo-nos nas redes sociais, ou até a querer entrar no Guinness por tocar concertina trezentas horas seguidas. Na era do yoctossegundo o meu próximo não existe. Não há tempo para encontrá-lo.
Afirmam-me que o telescópio espacial Hubble esquadrinha os quasares a mais de 13 biliões de anos-luz. Certo. Mas eu, que nunca pensei esquadrinhar um quasar, pergunto-me: o que me poderá acontecer se o Hubble só esquadrinhar os quasares a 12 biliões, 129 milhões, 472 mil, 743 anos-luz, 2 meses, 25 dias, 3 horas, 2 minutos e 1 segundo? A minha angústia irá diminuir, ou a minha vida continuará a ser o que tem sido?
20
Afirmam-me que eu sou a mais perfeita criação da Natureza. Não sou. Eu sou apenas a mais iludida criação da Natureza. Na verdade, eu só tenho uma certeza. Que um dia morrerei. Na minha cama ou na cama de alguém, ou a assistir um filme no Cine Arte Vila Nova ou a ler um livro num sítio qualquer. Com ou sem big bangs, big freezes, big bounces, buracos negros, yoctossegundos, ou biliões de anos-luz.
O resto, diga eu o que disser, ou afirmem os outros o que queiram afirmar, nada do que somos mudará. Todos continuarão a ser como são, e eu continuarei sozinho nesta mesa. Só à espera que o Totó me mostre como se pode ser feliz.
Nem vi quando o Viana trouxe o fino. Quando olhei, o copo já estava à minha frente. Bebi um gole, dei uma passa, e levantei os olhos até à fotografia do Totó. Mas nem cheguei a vê-la. Parada à minha frente, era a Laurindinha que sorria e olhava para mim.
21
Encontrei o António por acaso, anteontem à noite. Não queria ir para casa e dizia que não tinha para onde ir. Vila Nova de Pardais é uma vila com pouco mais de 3.000 habitantes, perdida nos contrafortes da serra do Gerês. Só que é o maior sítio do mundo quando uma pessoa não tem para onde ir. Ou não quer ir para onde pode.
O António parou à minha frente, encolhido dentro do casaco. Vou-me casar, pá. Tinha um ar infeliz, e olhava-me como se eu pudesse ajudá-lo. Mas eu não podia ajudá-lo. A Cidália já tinha decidido, e ele só queria justificar-se. Tu é que sabes, pá. Ele baixou a cabeça e deu uma passa profunda. É uma merda, pá. Jogou o cigarro ao chão, e pisou-o com a sola do sapato. Eu sei que é uma merda, mas se não casarmos agora… Calou-se, e olhou-me. Os tempos mudaram, pá. Tu sabes que os tempos mudaram. Acendi um cigarro, e dei uma passa. Tu é que sabes, pá. Ele balançou a cabeça, devagar. É. Eu é que sei. Dei outra passa. Queres que vá contigo? Ele não respondeu. Vê lá, pá. Se quiseres… Não. Deixa. A merda é sempre a mesma.
Afastou-se e dobrou a esquina, e eu fui para o Venha a Nós. Também não queria ir para casa. Tinha trocado a Laurindinha por nada, e nunca conseguira destrocá-la.
22
A Rosa Mamuda olha Eduardo deitado na cama, nu. Tinha-o encontrado no Venha a Nós, sozinho, bêbado, já passava das duas horas da madrugada. És tu, Rosa? A Rosa levantou-o da cadeira. Venha comigo, venha. Venha, que eu levo-o.
Levou-o para o quarto dela, na Rua de Cima, despiu-o e deitou-o na cama sem apagar a luz. A Rosa sabe que o Eduardo não gosta de dormir no escuro. Despe-se também, deita-se de lado, voltada para ele, a cabeça apoiada num braço e o outro estendido sobre o corpo. A Rosa sabe que o Eduardo gosta de olhar os seios dela naquela posição. Um por cima do outro, caídos no lençol.
Coitadinho do Sr. Eduardo. Tenho tanta pena dele, da vida que ele leva. Essas tais contrações não podem agarrar encruzilhadas, e as mulheres também não podem ser não sei o quê. Ó Minha Nossa Senhora do Sameiro fazei-lhe um milagre, fazei, ó Minha Nossa Senhora do Sameiro.
O Eduardo dorme sem se mexer, e a Rosa adormece também. Já quase ao amanhecer o Eduardo acordou, quis levantar-se, e a cabeça estalejou. Merda. Deita-se, e fica a olhar o corpo da Rosa.
Já era de manhã quando a Rosa se recostou na cama e olhou para ele. O Eduardo acendeu um cigarro, deu uma passa profunda e deixou o fumo sair devagar pelo nariz e pela boca. A Rosa olhou-o durante algum tempo, e por fim decidiu-se. O senhor não me leve a mal, mas eu vou-lhe dizer uma coisa, Sr. Eduardo. O Eduardo está a olhar o fumo do cigarro a desfazer-se no ar, e não olha para a Rosa. Diz. Aquilo que o senhor anda a dizer, aquela coisa dessas tais contrações andarem nas encruzilhadas e as mulheres serem não sei o quê, o senhor não pode dizer isso, Sr. Eduardo. Não é verdade.
O Eduardo recosta-se na cama, olha para a Rosa, e sorri-se. E tu sabes o que é a verdade, Rosa? A Rosa encolhe os ombros, e ri-se. Ah, Seu Eduardo, a verdade é o que uma pessoa tem. O resto… A Rosa cala-se e o Eduardo também não diz mais nada. Dá outra passa profunda, e fecha os olhos. Rosa, Rosa, se a verdade é o que uma pessoa tem, por que é que a mentira não é o que uma pessoa não tem?
23
A Laurindinha sorriu-se e olhou para mim, e o Viana e o Hubble abraçaram-se e dançaram ao som do big bang, a cantar o big freeze. O som escorre pelas paredes e cai sobre mim, e esquadrinha as bandas desenhadas debaixo da cadeira.
O Viana fez o quatro e toca castanholas, e eu peço-lhe que traga uma cerveja Laurindinha. Mas o suor do big rip azedou o big bounce, e o Universo não se expandiu, e afogou-se. A Laurindinha sorria-se e olhava para mim, e o big bang abençoou-me e vomitou no meu pescoço.
Uma lua pinchou no chão e escondeu-se no banheiro, e o pum da tampa da sanita explodiu dentro do meu copo. A mesa trepou pelas paredes, e os quasares montaram o Hubble e cavalgaram os 13 biliões de anos-luz. A Laurindinha sorria-se e olhava para mim, e a Eva chamou o Adão e deu-lhe um Ferrari Maranello para construir uma Arca de Noé em Hollywood.
O Salvatore pediu um prego no prato e um guardanapo dos antigos, e o Alfredo despiu a Manuela e encaixou-se nas pernas dela. A Elena desfez a barba e bigode, e deitou-se em cima do Totó. Adeus, Eduardo. Agora eu vou andar a minha vida e viver sem sutiã.
A Laurindinha sorria-se e olhava para mim, e o Protágoras ensinou a bilheteira a medir buracos negros no ecrã do telemóvel. Os 13 biliões de anos-luz engoliram as entradas e cagaram nas saídas, e o Aristóteles não acreditou na medição e foi-se embora, a esquecer o silogeu e a compor um silogismo.
A Laurindinha sorria-se e olhava para mim, mas não foi o Hipócrates que bebeu a minha sede, nem foi o Galeno que engoliu o meu espirro. Foi a lógica. Se um silogeu não é um big bang, um silogismo também não é um big freeze. Nem um big bounce. Nem o padre Adelfio é um emigrado na Suíça a dançar o tiroliro no chão do solidó.
A Laurindinha continuava a sorrir-se e a olhar para mim, e eu era o Totó, e tinha cumprido a minha decisão. Que se fodessem os prémios do filme, e o caralho. Parada à minha frente, a Laurindinha ainda se sorria e olhava para mim.
24
Ai minha Nossa Senhora do Sameiro, quem disse que o Sr. Eduardo morreu ontem? Não morreu, que eu sei que não morreu. Como iria ele morrer, se aqui há dias me perguntou se eu sabia o que era a verdade, e eu disse-lho? O Sr. Eduardo não morreu, não senhor. Se calhar perdeu-se por aí, foi o que foi.
25
Se eu estivesse lá fora agora, não teria nada que fazer. Não sei, mas talvez até quisesse voltar outra vez cá para dentro. Só que se eu estivesse lá fora agora, ao menos estaria lá fora. Não estaria aqui dentro, sentado numa cadeira que não é minha, e debruçado numa mesa que também não é minha. E cercado de olhos que também não são meus e não param de me olhar.
Se eu estivesse lá fora agora, ao menos já teria saído daqui, e poderia fazer o que quisesse. Poderia meter as mãos nos bolsos, ou até assobiar. Aqui dentro também posso fazer o que quiser. Mas é diferente. Não estou lá fora, e aqui dentro todos me olham. Fixamente, sem sequer pestanejarem. Como se só eu fosse diferente.
Mas eu não sou diferente. A única diferença é que eu gostaria de estar lá fora agora, e eles não. Porque se gostassem, já teriam saído daqui há muito tempo. Ou, ao menos já teriam arranjado um bom motivo. O José Manuel sempre acreditou nos motivos, mas nunca acreditou em mim. Nem quando eu lhe dizia que a única coisa de valor que o ser humano possuía era a sua liberdade. Olha, pá, se calhar, é. Mas enquanto tu não arranjares um motivo, tu serás sempre um infeliz, pá. O José Manuel acreditava mais nos motivos do que em mim. Mas talvez eu já tenha um motivo. Só que detesto que me olhem, e por isso vou sair daqui. Vou-me embora. Tenho a certeza que nenhum deles me seguirá, e lá fora ninguém me olhará.
E se escutar algum ruído, será apenas um ruído. Eu tenho que escutar sempre algum ruído. Ou os meus passos a estalarem nos passeios, ou o silêncio a estalar nos ângulos das esquinas. Ou a merda da minha certeza de morrer a estalar-me na cabeça.
Vou-me embora. Agora. Quando voltar, se voltar, eles já esqueceram a minha cara e eu já serei igual a eles. Eu sei que todos vão pensar que vou levar uma mulher. Mas não vou. Se levar uma mulher terei que ir com ela, e eu não quero ninguém atrás de mim. Só quero fazer o que quiser.
26
O José Manuel vive agora com a Rosa na Rua de Cima. A Rosa já não faz mais a vida no Venha a Nós, e o José Manuel também já não trabalha na Pastelaria da Lindinha. Faz biscates com seguros, e aprendeu a fumar. E diz que é feliz. Estás a ver, pá? Antigamente eu nem sequer sabia fumar isto. Deve ser feliz. Mas mesmo que não seja, eu invejo-o. O José Manuel decidiu-se, e eu… A minha felicidade é sempre relativa ao grau de intensidade das minhas convicções.
À puta que pariu as minhas convicções.
27
Às vezes, eu quero comparar-me a um calhau. Só que não adianta querer. Nem a merda de um calhau eu posso ser.
E não posso, porque além de existir, eu também sou, e é necessário que a minha presença se justifique. Ou a despir-me nas redes sociais, ou a querer entrar no Guinness por tocar concertina trezentas horas seguidas.
Presentes, só presentes, estão as coisas. E elas não precisam justificar-se. A sua própria eternidade as justifica. Além de comporem o espaço, ainda permanecem no tempo. E eu não. Por isso, eu sou o que sou. Um mero prisioneiro do volume.
Eu só existo em função do que me cerca. Se o chão que sustém o peso do meu corpo não existisse eu também não existiria. Se eu não fosse um simples prisioneiro do volume, eu viveria no tempo. Seria eterno. Se eu não vivesse em função das coisas, seriam elas que precisariam de mim, e não eu delas.
De tudo que existe só elas ficarão. Eu sou o que é, o que pensa, mas também sou o que passa. Por isso, eu gostaria de ser como tu, Zé Manel. De acreditar. De crer com firmeza fosse no que fosse. Mas nunca consegui. E tem sido esta a maior contradição do meu estar-no-mundo. Eu sou o que é, o que pensa, só que também sou o que sabe que nasceu para morrer. E é por isso, Zé Manel, que eu não gosto do que sou, e tenho medo do que penso.
28
Numa hora como esta, diante deste Macieira e sem ninguém que me olhasse, talvez eu fosse capaz de me suicidar. Numa hora assim, se ninguém me olhasse, tenho a certeza que até a mim a minha morte passaria despercebida. Mas eles não param de me olhar, e eu não posso deixar de os ver.
De os ver, e de esquecer que me olham. Se ninguém me olhasse, seria fácil. Bastaria beber o resto do Macieira, fechar os olhos, e não pensar. Nem precisaria de tapar os ouvidos. A escuridão das minhas pálpebras seria a dimensão do meu silêncio. Mas eles continuam a olhar-me, e não me dão alternativa. Até de me suicidar eu tenho medo.
29
O António casou hoje com a Cidália. O José Manuel não foi ao casamento, mas eu fui. Não sei porquê, mas fui. O António abraçou-me. É, pá, os tempos mudaram. Tu sabes que os tempos mudaram, Eduardo. Não respondi. Os tempos mudaram. Só que se não tivessem mudado, sempre mudariam.
30
Por que é que tu és assim, hein, Eduardo? Ou chegas sempre antes, e espantas toda a gente, ou parece que nunca queres chegar, e tudo te é indiferente. Por que é que tu és assim, Eduardo? Será que nunca pensaste que podes ser feliz, ou será que tens medo que os outros te conheçam? Hein, Eduardo?
31
Chamei um empregado de mesa e pedi uma mulher como quem pede um bagaço de terceira. Sem sequer olhar a garrafa. Tinha as mãos espalmadas na mesa, e o ferro estava mais quente do que as polpas dos meus dedos. E os meus olhos também já não viam. Só olhavam.
Estava exausto, cansado de escutar aquele relógio velho, sempre pendurado na parede e a bater sempre as mesmas horas, e eu a sentir o tempo passar por mim como uma rajada de vento numa manhã de inverno. A zunir nos meus ouvidos.
A Manuela estava certa. Eu nunca soube chegar no tempo certo. Ou me antecipava e nada conseguia, ou me atrasava e também nada conseguia. A Manuela sempre esteve certa. O meu tempo nunca acertou com o tempo. De nada, ou de ninguém.
32
Sexta-feira, dezasseis de novembro. Fiz hoje trinta e cinco anos e encontrei o meu motivo.
33
A mulher despiu-se. Devagar, e sem sorrir. Como se já me conhecesse há muito, ou já estivesse cansada de tanto despir e vestir aquela roupa. Abri a janela, e olhei a rua. Ninguém andava no passeio, e as lâmpadas pareciam pirilampos. Mas não me importei. Às quatro horas da madrugada todas as ruas são iguais. As lâmpadas parecem sempre pirilampos, e o silêncio estala sempre nos ângulos das esquinas.
A mulher chamou-me. Voltei-me. Estava deitada e olhava-me, e o corpo era branco e parecia frio como o ferro das mesas do Venha a Nós. E eu não queria aquele ferro colado à polpa dos meus dedos. Encostei-me à janela, e acendi um cigarro. A mulher abriu as pernas e sorriu-se, e o sombreado dos pentelhos pareceu-me um tufo de musgo seco.
E se aquele musgo se colasse à minha pele, e eu tivesse de andar com ele, mesmo quando adormecesse ou voltasse ao Cine Arte Vila Nova? A mulher estendeu os braços, e acariciou o tufo de musgo seco. Atirei o cigarro ao passeio, e fechei a janela. Tirei a carteira do bolso, e peguei uma nota de cinquenta euros.
A mulher saltou da cama, e vestiu-se. Calada. Ao menos não era como a Manuela, que só parava de falar quando eu me encaixava nas pernas dela. Estendi-lhe a nota, e ela espantou-se. Mas pegou-a, e guardou-a no sutiã.
No Venha a Nós ninguém nos olhou quando entramos. Mas eu já não tinha frio. E quando me sentei, e olhei aquele relógio velho, ainda pendurado na parede e a bater sempre as mesmas horas, também já não tive medo. Agora o tempo já não zunia nos meus ouvidos ao passar por mim como uma rajada de vento numa manhã de inverno. Zunindo nos meus ouvidos. Sentei-me, pedi dois Macieiras, e a mulher sentou-se também. Tinha os olhos encovados e a boca esborratada de batom, mas ao menos não falava.
Só há duas maneiras de ser feliz. Ou conseguimos ser o que os outros dizem que somos, ou conseguimos acreditar no que dizemos. Se mil e nove contrações afastassem um pensamento, mil e doze nuvens compusessem um silêncio, uma saudade fixaria uma mulher. E então, sim, eu seria livre e verdadeiro. Olhei a mulher, sentada à minha frente. Já encontrei o motivo. Ela olhou-me, bebeu o Macieira, disse-me, obrigadinho, levantou-se e foi-se embora.
34
Agora estou aqui. A montanha recorta o horizonte à minha volta e as sombras escorrem pelos vales. Flocos de nevoeiro flutuam entre as árvores, e salpicam de branco o verde da folhagem. Perdida na distância, a água da Barragem de Caniçada parece dormir no silêncio da montanha.
Lambidas pelo vento, as giestas ondulam nas encostas, e as estrelas somem no horizonte, esmaecidas pelo dia. Os pardais esvoaçam e chilreiam, e nos vales começam os ruídos. O nevoeiro dilui-se, batido pela luz, e uma águia plana nas alturas.
Já é dia. Vila Nova de Pardais ficou lá, esquecida no ontem, e agora só a quietude me rodeia. Dentro em pouco o sol vai dourar todas as quebradas, e será um novo dia. O meu.
Só que, mesmo que mil e nove contrações pudessem afastar um pensamento, e mil e doze encruzilhadas compusessem uma nuvem, uma saudade nunca poderia fixar uma mulher. Não há maneira de ser feliz.
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Mas já não tenho medo. Agora, já não tenho medo. Estou neste quarto, deitado na cama, e apaguei todas as luzes. E sinto-me bem, aqui deitado sem nada poder ver à minha volta. Só a escuridão e o silêncio me rodeiam, e parece até que o meu corpo não tem peso, e pode até flutuar. Se eu quiser flutuar.
Não sei que horas são, nem há quanto tempo estou aqui, e também não quero saber. Sejam que horas forem, agora não importa. Pela primeira vez na minha vida não tenho medo do escuro. Ninguém está comigo, mas neste momento eu também não preciso de ninguém. Nem de nada. Agora, tudo o que é meu está comigo. Agora, a Laurindinha está comigo.
Vejo-a subir ao muro, pular para o meu quintal, e correr ao meu encontro. Ri-se, abraça-me e beija-me, e aperta-me com força contra ela. Eu fecho os olhos, e a cama parece estremecer. Agora, Laurindinha está comigo, e o meu corpo flutua, implodido.
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A Laurindinha era assim. Todas as tardes brincava no quintal, as tranças louras a balançarem e a baterem-lhe na cintura, e o vestido sempre acima dos joelhos. Os galhos da nespereira passavam por cima do muro, e do outro lado uma tábua pendurada num ramo da cerejeira servia de balouço. A Laurindinha varria o terreiro e jogava a macaca, e eu jogava o berlinde à porta do meu barraco, só à espera que ela subisse no balouço.
Logo que ela subia, eu trepava na nespereira, e escondia-me entre a folhagem. E olhava. A Laurindinha ria-se, abria as pernas, e balouçava-se com mais força. Enfunado pelo vento, o vestido arregaçava-se e mostrava as coxas nuas e a cueca, repuxada pela tábua.
E eu olhava. A Laurindinha não se importava que eu olhasse, ria-se, abria mais as pernas, e balouçava-se ainda com mais força. A Laurindinha era assim. Sabia que eu a via, e gostava que eu a visse. E eu gostava de a ver.
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Eu queria ser imortal. Em re1ação aos outros, não seria mais um homem, eu sei. Seria apenas mais uma coisa a compor o espaço e a permanecer no tempo. Só que não precisaria justificar-me. Ou a despir-me nas redes sociais, ou a querer entrar no Guinness por tocar concertina trezentas horas seguidas. Se eu fosse imortal, a minha única finalidade seria existir. Não também ser, e saber que só nasci para morrer.
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Troquei a Laurindinha por nada. Não jogo mais o berlinde no quintal, e o meu barraco foi-se. Há muito caiu de podre. Do outro lado do muro também ninguém joga a macaca, nem se ri, e abre as pernas no balouço. Mas também ninguém quer que eu aceite que dois vezes dois são quatro, só porque assim foi dito, e é assim que tem de ser, nem exige que eu acredite que o que os outros disseram é verdade. Agora, só a minha verdade tem valor.
Mas é uma vitória perdida. Pense eu o que pensar, ou faça o que fizer, não posso viajar no tempo. O máximo que ele me permite é andar junto. Acompanhá-lo. Só que mesmo podendo acompanhá-lo, a viagem é sempre solitária. Para o tempo não há fim, e para mim não há retorno.
O instante que passa já passou, e não há como fazê-lo retornar. Recordá-lo não é vivê-lo. É só trocá-lo por outro. Que também já passou. Troquei a Laurindinha por nada, e nunca consegui destrocá-la.
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Só que agora o que importa é o silêncio. A imensidão e o silêncio.
Agora, nada do que foi vai continuar. O movimento parou e tudo está como se nunca tivesse sido. Não há mais necessidade de decisões, nem de motivos. Nem de justificações, ou de certezas.
Agora, o que importa é o silêncio. A imensidão e o silêncio. Os meus passos já não estalam nos passeios, nem o silêncio estala nos ângulos das esquinas. Nem a certeza de morrer me estala na cabeça. Tudo é como se ainda estivéssemos, eu no meu, e tu no teu quintal, Laurindinha.
Agora, eu sei que o homem não foi criado em função de. Foi causa. Agora, não há mais ninguém a exigir que eu acredite que o que os outros disseram é verdade. Agora, eu sou a verdade. A Laurindinha está comigo.
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É ótimo escrever em duas línguas. Ao menos posso calar-me em dois silêncios.
revista triplov
INDICE / SÉRIE VIRIDAE / 01 / CUNHA DE LEIRADELLA
Portugal / junho 2021