CUNHA DE LEIRADELLA
Tributo
Viver é aprender a reaprender a cada dia que passa.
Ramon de La Yedda González Molina
1
Meu nome é Allencar. Tomaz de Allencar, neto de português, Tom pros mais íntimos. Esqueçam Eduardo. Eduardo da Cunha Júnior foi só meu nome de batismo.
2
Tou puto com Maria da Luz. Maria da Luz, assim. Mariluz. Mariluz odeia que lhe chamem Maria da Luz. Qual é, Tom? Me xinga não, tá? Donas Marias vendem é acarajé em Salvador, tá sabendo? Mariluz, e olhe lá, tá? Mariluz tá certa. Nome de batismo é uma merda. A gente tem mas não escolhe. Aí, fazer o quê? Chorar, se descabelando? Nada. Fazer que nem eu fiz, e Mariluz também fez. Escolher um que tenha it. Dê condição. Quem me batizou Eduardo da Cunha Júnior tomou praga até nos tornozelos. Tou puto. Putérrimo com Mariluz. Saímos ontem de Belo Horizonte, hoje é sábado, amanhã vamos embora, e tamos nesta merda desta praia como se fosse engarrafamento em porta de motel nota dez. Paradões, paradões, e resolvendo é nada. Já tá tudo deserto, escuridão pra todo lado, luz só na avenida, quilômetrões atrás de nós, Mariluz nem te ligo, e o palhaço aqui que se dane. Mas vou dar uma de jogado às traças não. Meu saco já tá que tá, e se estourar, já viu. Foder outro, viu, Mariluz? Tou puto, mas não é por ter vindo passar um fim de semana no Rio de Janeiro. Até que gosto de botecos fim de praia. Tou puto é porque Mariluz falou que tudo ia se resolver quando chegássemos, e se resolveu foi nada. Até agora falamos? Merda nenhuma. Até trepar a gente nem trepou, quanto mais. Sabe que mais, Mariluz? Foder outro, tá? Mas falei pra Mariluz? Falei nada. Chutei foi a areia, e fim. Puta que pariu a vida. Se viver já é merda, imagina remoer. Tou aqui porque quero, sei disso. Se não quisesse, ó, Mariluz, tchau e bênção, viu? Mas a merda é que se largar Mariluz, babau. Nunca vou ser o que mais quero. Um dramaturgo de verdade. Se me mandar agora, faço o quê? Vou pro hotel? O hotel que se dane. Hotel é que nem privada. A gente usa, puxa a descarga, a merda some, mas a bunda tá ali, pronta pra outra. Agora, saber que minha felicidade, ser o que sempre quis ser, um dramaturgo de verdade, depende de Mariluz, é que nem dar nó em pingo de água. Não tem nem como. Não fosse isso, e Mariluz ia ver. Me mandava e, ó, aeroporto na boa da melhor. Tou puto. Putérrimo. Mas se chutar tudo pra escanteio, faço o quê? Largo Mariluz? De jeito maneira. Sou um babaca, sei que sou, acho até que sempre fui, mas burro sou não. Sempre fodemos na boa da melhor, mas… Tá bom. Tá bom. Foder é palavrão. Precisa xingar não. Na boa educação, daquela de fulgor de congregado mariano, a gente vai pra cama e não fode, faz amor. Tudo bem. Mas alguém aí conhece alguém que vá pra cama, e não foda? Sem essa. Fazer amor. Fazer, a gente faz é discurso, ou necessidade. Tem hora que faz até caridade. Agora, amor, a gente sente, não faz na cama, qual é? Puta que pariu. Quando que Mariluz vai se levantar, a gente sai daqui, come um tira-gosto num engasga-gato aí, ou volta pro hotel e resolve tudo de uma vez? Olho Mariluz, sentada na areia, e… E nada. Me sento, e faço que nem ela. Olho a merda do marzão, e que se dane. Mariluz tá ali, dois metros à minha frente, os pés enterrados na areia, faz mais nem sei de quantas horas, e ainda não disse nem palavra. Nem vem cá, nem foder outro. Nada. Ontem, no hotel, deitou, virou costas, eu vi um filme na televisão, e foi só. Hoje de manhã, tomamos café, eu perguntei, e aí?, e quê que fez a vaca? Vira costas, sai do hotel, atravessa a avenida, e senta na areia. Fazer o quê? Virar poste nem te ligo, e me danar? Nunca, mas nunquinha da silva. Fui é correndo atrás. Só que meio-dia bate, e Mariluz nada. Como um sanduiche e bebo uma coca, e Mariluz nem te ligo. A tarde passa, começa escurecendo, o pessoal começa se mandando, Mariluz pede um trem qualquer a um vendedor que ia passando, me aponta, eu pago, e ela nem bola. Agora a praia tá deserta, só as luzes de Niterói tremem que tremem do outro lado da baía, minha pele arde que arde, e Mariluz continua ali dando uma de breguete. Nem fode nem sai de cima. Mas vai cansar. Vai, e aí… E aí, nada. Eu quero é sair desta merda desta praia. Não aguento mais ficar olhando a titica destas ondas neste vai e vem sem ir nem vir, fazendo só de conta. Como é que pode? Será que Deus fez este marzão sem mais tamanho só pra isto? Pra até onda fazer de conta? Acredito não. Deus é besta não. Besta sou eu, ficando aqui que nem palheiro apagado em boca de capiau. Só azedando. Se eu fosse quem devia, pegava Mariluz na marra e mandava era ver. Qual é, Mariluz? Vambora, porra. Só que não sou quem devia, e é esta merda desta zorra. Mariluz, faz horas, ali sentada sem falar ou se mexer, e eu aqui atrás, boi de presépio. Sabe que mais? Quer saber mesmo? O que eu tenho é medo. Pavor que Mariluz me meta um pé na bunda. Só que se não bater pé, já viu. Me dano que nem minhoca querendo furar caixão de chumbo. Meus besteiróis dão dinheiro paca, grana pra dedéu, mas colhão… Melhor deixar pra lá. Se eu tivesse colhão, sabe o quê que fazia? Pegava Mariluz e, como é? Vambora que eu já tou que tou, viu? Quer ir não? Tudo bem. Fica aí. Tchau e bênção, neguinha. Mas, colhão, cadê? Mariluz me faz gente pra danar, felizão mesmo, e fim. Na hora que ela tira a roupa, me sinto quem quero ser. O bamba que pode fazer tudo que quiser. Tudão. Até escrever aqueles dramas que nunca escrevi, e sempre quis escrever. O pessoal saindo do teatro, e ficando a noite inteira remoendo. Não preciso nem olhar meu relógio, tantas são as horas que a merda destas ondas nem fodem nem saem de cima. Só vão e vêm, feito que nem pêndulo. Mas se Mariluz se mandar, eu vou atrás. Ah, vou. Se não for, minha dramaturgia de verdade, babau. Mariluz nunca quis fazer um besteirol meu. Mas porquê, Mariluz? Sou atriz de teatro não. Mariluz… Já falei, Tom. Sou atriz de teatro não. Tudo bem. Fica braba não. Que Mariluz fosse atriz de teatro, ou não, caguei. O que eu não queria era que ela me metesse um pé na bunda, e minha dramaturgia de verdade se danasse. Aí, já que teatro tava fora, quem sabe um filme fazia ela ficar? Um curta, trem assim? Problema de grana, nenhum. Eu tenho. Roteiro, igual. Eu escrevo. Diretor, chamo, e pago um. Falei mais nada, meti bronca, e um mês depois entreguei o roteiro pronto pra Mariluz na Casa dos Contos. Lê. Escrevi procê. Mariluz pegou no envelope, dobrou e botou na bolsa. Depois te falo. E se mandou. Fiquei pasmo. Como podia sair sem abrir o envelope? Mas se mandou, e eu bobo, caladão, só olhando meu cachimbo. Me telefonou de manhã. Quer passar o fim de semana no Rio? Cê leu? No Rio te falo. E bateu o telefone. Puto, puto assim, sem ter nem como, corri foi pra marcar as passagens. Sem Mariluz, minha felicidade, cadê? Chegamos ontem, e até agora Mariluz falou foi nada. Amanhã vamos embora, e eu aqui feito besta nesta merda desta praia. Faz horas que tamos aqui olhando esta porra deste mar sem mais tamanho, as ondas só cagando e andando pra quem olha, e nós… Não dá pra entender. Não dá pra entender, assim. Pra entender até que dá. Não dá é pra engolir. Agora é tarde pra mandar o táxi fazer meia-volta, e aeroporto de Confins que se dane. Se eu tivesse botado pra quebrar em Belo Horizonte, vou no Rio não, quer falar, fala aqui, o trem tava assim não. Mas bati pé não, viajamos feito caramujos, caladões, caladões, e me danei. Agora, ó, tou aqui nesta merda desta praia, cagando de medo que Mariluz se vire e me diga, vou fazer seu filme não. E sabe que mais? Quero é botar um fim nesta merda de nós dois, viu? Merda maior do que tar aqui vendo Mariluz olhar esta porra deste mar, é só ela se mandar. Faz horas que tamos aqui, e Mariluz nem fode nem sai de cima. Tamos na Praia de Copacabana, frente da esquina da rua Duvivier com avenida Atlântica, e a diferença da merda desta areia pra porra do quarto do Lancaster, é apenas questão de lugar e de tamanho. Tenho cinquenta e dois anos, tou fodido, e não tenho mais pra onde me virar. Nunca pensei que pudesse ficar velho, mas fiquei. É uma merda a gente nascer sem ter pedido. Meu filho. Taí. Meu filho. Meu filho nasceu por acaso. Odileia esqueceu de tomar pílula, pintou tesão, trepamos, e fim. Odileia engravidou, e não quis fazer aborto. Até hoje, Paulinho ainda não me perguntou porquê que nasceu. Mas quem sabe vem o dia, Paulinho me pergunta, e eu vou falar o quê? Falo, meu filho, cê nasceu porque sua mãe e eu távamos com tesão, fomos pra cama, e trepamos até? Falo nada. Faço é que nem todo mundo faz. Viro congregado mariano, e dane-se. Ô, meu amor, cê nasceu porque papai do céu fez seu pai botar uma sementinha em sua mãe, e essa sementinha deu flor, viu? Mas suponhamos que eu dissesse, Paulinho, meu filho, cê só nasceu porque sua mãe esqueceu de tomar pílula, pintou tesão, a gente foi pra cama, e trepamos até. Será que ele ia aceitar, ou ia me mandar pra puta que pariu? Não tem nem como. Se Paulino me mandasse pra puta que pariu, tinha mais do que razão. Não foi ele que pediu que a gente ficasse com tesão, fosse pra cama, e trepasse até. O que me vale é que Paulinho nunca vai me perguntar. Vai é fazer que nem eu e Odileia fizemos, e o filho dele que se dane. E quando começar ficando velho que nem eu, também vai é falar pro filho dele. Ô, meu amor, cê nasceu porque papai do céu fez seu pai botar uma sementinha em sua mãe, e essa sementinha deu flor, viu? É foda a gente ficar velho. A gente toma merdas e merdas pra dormir, toma outras tantas pra aguentar o tranco da vida ao acordar, e o pior é que não aprende porra nenhuma envelhecendo. Quem diz que idade dá sabedoria, babau. Ainda não envelheceu. Sei que horas são não, e nem quero saber. O tempo que se dane. Se eu parasse os ponteiros do relógio e o tempo parasse junto, até que. Só que a merda do tempo não tá nem aí pros ponteiros do meu relógio, continua na dele, e eu que me dane. A vida da gente é uma merda. Um miserê disgramado. Mas não vou enterrar os pés na areia, que nem Mariluz fez. Pego é um punhado de areia, e deixo escorrer por entre os dedos. Nunca pensei que pudesse ficar velho. Digo a frase bem baixinho, como se estivesse rezando, enquanto a areia escorre entre meus dedos. O último grão cai, pego outro punhado, e faço o mesmo. Mas não adianta. Autopiedade é que nem diarreia. O sufoco é o mesmo, e consolo nenhum. Sei que ganho minha grana mentindo pra todo mundo. Mas será que só eu é que minto, ou alguém aí pensa que o pessoal vai ver meus besteiróis porquê, hem? Porque são geniais? Sem essa. Se o pessoal vai no teatro rir da minha filhadaputice, ou é pra aprender sacanagem, ou é pra ver se a sacanagem deles é ainda mais sacana do que a minha, não tem outra.. Anoiteceu já faz um tempão, e quem diz que Mariluz… Dou mais conta não. Mas algum trem tenho que fazer. Quem sabe tusso, e bem alto? Tossi até engasgar, e Mariluz nada. Nem te ligo. Pegou foi a bolsa, fez não sei o quê, e jogou de volta na areia. Sabe que mais? Foda-se. Faz alguns anos, em um de meus aniversários, Odileia fez um bolo, chamou alguns amigos, todo mundo cantou parabéns, e bebeu vinho branco. Almadén. Não gosto de vinho branco, mas é o que bebo em meus aniversários. Pra Odileia vinho tinto é purgante. É que nem fumar. Somos opostos. Eu fumo cachimbo, e Odileia cigarros. Lembro disto nem sei porquê. Será por uma noite brochar, ficar no desespero, e Odileia dar uma de? Fica assim não, isso acontece, e eu, babaca, resolver dar uma de pecador me confesso, e contar um monte de verdades cabeludas? Uma brochada de merda, e tudo virar de ponta-cabeça? Odileia, eu preciso te contar um monte de trens. Pra quê? Isso acontece. Odileia, escuta. Eu preciso. Preciso mesmo, tá? Tudo bem. Se precisa, vai. Fala. Cê sabia que tudo em minha vida foi mentira? Nunca estudei na Sorbonne, e nunca saí do Brasil? Tudo que falei de Paris, da rive gauche, Sartre, Simone, Genet, esse povo todo, foi tudo lambança? Bafo, cascata pura? Li e vi foi em revistas, e no cinema? Mas eu precisava dar uma de, sabe como? Me enturmar, cê entende? Na Casa dos Contos todo mundo faz e acontece, caga até balão, e eu tinha que ser igual. Odileia não fez nada. Não riu, não saltou da cama, nem me chamou filho da puta. Eu chamava. Odileia não. Só me olhou. Me chega um cigarro. E eu, babacão, sabe qual que é meu problema, Odileia? Meu problema é que não sei escrever dramas de verdade. Trens sérios. De valor. Daqueles que o pessoal sai do teatro, e vai pra casa remoer. Meu problema é esse, cê entende? E Odileia nada. Só pegou no cigarro, acendeu, e puxou uma tragada. Odileia, eu minto de graça não. Eu minto por necessidade, cê entende? Odileia, cê… Falei mais de horas, e Odileia nada. Só riu. Fiquei pasmo. Aí, pisei fundo. E se eu te disser que também me masturbo? Cê ainda vai rir? Odileia me olhou, rindo ainda mais. Cê é bobo demais da conta. Cê pensa que eu não escuto cê gemer no banheiro, ou cê já esqueceu que se masturba no banheiro da suíte? Me retorci todo, mas ela não deu nem bola. Cê sabe como que eu descobri sua cascata? Puxou uma tragada, e apagou o cigarro. Cê lembra, vai ver nem lembra, mas eu lembro. Cê lembra do que cê disse no dia que a gente se conheceu? Odileia, cê conhece Juliette Gréco? Não? Ô Odileia, eu conheci. E sabe onde? Na boate Vogue, no Rio de Janeiro. Abanou a cabeça, e riu. Lembra disso não? Tenta lembrar, e vai ver. Só que, passadas semanas, ou meses, lembro mais não, na Casa dos Contos, cê diz, Juliette Gréco? Gente, conheci no Café de Flore, em Paris. Odileia… Cala a boca, e deixa eu continuar. Cê falou, e eu te escutei. Me chega outro cigarro. Puxou duas tragadas, e me olhou. Cê sabe que raro vou na Casa dos Contos, mas daquela vez foi tanto lero-lero, tanta lorota, tanto bafo, que aquele trem me encucou. Aí, comecei fossando jornais, revistas, o que desse, e vi que essa tal de Vogue virou cinza em 1955. Olhou o cigarro, e me olhou. Cê não sabia que essa tal de Vogue tinha virado cinza em agosto de 1955 não? Puxou outra tragada, e riu. Quantos anos cê tinha em 1955, hem? Se manca, sô. Em 1955 cê não tinha nem nascido, ou já esqueceu? Mas, mentir, todo mundo mente. O que eu não entendo é ter gente que mente só por mentir, sem ganhar nada, tá dando pra entender? Apagou o cigarro, virou costas, e não falou mais nada. Tudo bem. Puta, ficou não, senão continuava. Virei costas também, e fim. Só que eu não mentia só por mentir. Sem ganhar nada. Eu mentia pra ser igual a todo mundo. Depois de muito remoer, adormeci. Só que o resultado veio na hora do almoço, dia seguinte. Desde que conheço Odileia, Odileia sempre tomou vinho branco, e eu tinto, e na mesa só tinha era uma garrafa de branco. Almadén. E pros dois. Pros dois, e Odileia me olhando, à tal da maneira impecável, que nem sempre falava Seu Manuel Joaquim, um português de Rio Espera, meu padrinho de crisma, fissurado na criação de abelhas tubi. Daquelas sem ferrão, sempre me dizendo que lá na terra dele, uma tal de Vila Nova de Pardais, só tinha era abelhas com ferrão. Umas tais de melíferas. Aí, não deu outra. Tive que ir de vinho branco mesmo, e sem poder reclamar. Se reclamasse, fim. Odileia me esculachava. Conheço Odileia. Conheci Mariluz como conheci a maior parte das mulheres com quem trepei. Estreei mais um besteirol, Rola na Muvuca, e na saída do teatro alguém puxou meu braço. Oi, me disseram que cê era o autor. Dava pra bater um papo, ou cê já tem compromisso? Se tem, deixa, fica pra outra hora. Aqueles seios grandes, saltando do decote, e aquele, oi, me disseram que cê era o autor, mataram a pau. Tenho compromisso não, uai. Tá de carro? Tenho carro não, mas tava a fim de tomar chope. Onde? No Bar do João. Moro do lado. Fica onde? Tomé de Souza, quase esquina de Getúlio Vargas com Paraíba. Conhecia o tal de Bar do João não, mas gostei. Chope bem gelado, e o barulhão das conversas bombando dentro. Sentamos em uma mesa da calçada, e Mariluz pediu três chopes. Olhei de banda. Três chopes? Uai, vem mais alguém? Vem não. Eu é que sempre tomo dois. Joia. Ela riu. Falar nisso, me chamo Mariluz. Cê, já sei seu nome. Allencar, né não? Dei uma de. Meu autor preferido. Mariluz se debruçou na mesa, e os seios saltaram do decote. Beleza. Gostou da peça? Pra falar verdade, só queria era saber de onde cê tira tanto esculacho, tanta firulice. Me conta, vai. Cê lê, alguém te conta, ou cê inventa? Com aqueles seios ali, minha nossa. Nem escutei. Fissurei. E só dei conta quando Mariluz deu uma palmada na mesa, e riu. Ô. Moscou, é? Pigarreei. Desculpe. Eu… Mariluz se recostou na cadeira, me olhou, e riu. Cê, hem? Pegou o copo, e bebeu um gole. Eu tava perguntando de onde cê tira tanto esculacho, tanta firulice. Cê lê, alguém te conta, ou cê inventa? Peguei meu copo, e bebi também um gole. Se eu leio, alguém me conta, ou eu invento? É. Uai, leio, alguém me conta, trens assim. Mariluz bebeu outro gole, e riu. Autor é assim, é? Copia aqui, escuta ali, e vai levando? É. Quer dizer, eu sou. O que interessa é que a grana pinte. Ao menos, cê não mente. Mas gostei de sua peça sim. E pra caramba, viu? Ri paca. Levantei meu copo. Pra São Genésio, meu padroeiro preferido. Ela riu. Cê é gozado. Gozado, porquê, uai? Pra quem escreve, cê tem nada de metido a besta não. Aqueles seios me fissurando, minha nossa. Peguei minha esferográfica, e comecei escrevendo no guardanapo, 987… Mas parei, Mariluz rindo. Precisa não, já tenho. Pega o meu. Anotei, Mariluz bebeu mais um gole, e mandou ver. Me leva em casa? Apontei o segundo chope. Vai tomar não? Não. Hoje é meu dia. Vou fazer exceção. Chamei o garçom, paguei, e levei Mariluz em casa. Era verdade. Morava do lado mesmo. Dias depois telefonou. Tá a fim hoje? Onde? Casa dos Contos? Como cê adivinhou? Já vi ocê lá. Joia. Que horas? Dez tá bom? Joia. Sentamos na varanda. Outra vez três chopes? Mariluz riu. Hoje tem exceção não. Vamonessa. Seios grandes, frases curtas, já viu. Maravilha. Só que Mariluz falou que não era atriz de teatro. Aí, quem sabe, cinema? Quem sabe escrevendo um roteiro pra ela, Mariluz tirava aquele sutiã? Um trem pra valer, daqueles bem dramáticos, tipo Gata em teto de zinco quente, ou Quem tem medo de Virgínia Woolf? Só que empaquei. Argumento nos trinques, cascos afiados, tudo certo, mas roteiro, cadê? Os diálogos não saíam nem amarrados. Na tela, na tela, assim, na cuca pintava era Mariluz nua, já na cama, me chamando. Não aguentando mais, telefonei. Mariluz? E aí? Tou que tou. Mais pra mais, ou mais pra menos? Péssimo. É um trem que tou escrevendo procê. Escrevendo um trem pra mim? Empaquei. Deu um bloqueio daqueles. Me diz. Escrevendo um trem pra mim porquê? Porque eu quero, uai. Vai ver, o bloqueio é por isso mesmo. Como por isso mesmo? Por ser pra mim, uai. É por isso não. Então porquê que é? Sei não. Sabe sim. Sei não, Mariluz. Cê sabe sim. Vai, me conta. É porque… Puta merda. Falar, até que podia. Só que dizer, ó, não sai nada porque eu só vejo ocê nua, já na cama, me chamando, era dose demais da conta. E Mariluz insistindo. Vai, me conta. É que… Quê que é isso, sô? Vergonha, uai? Dane-se. Quer saber mesmo? Claro que eu quero. Nunca teve um escritor escrevendo um trem pra mim. Vai, me conta. Sabe o quê que é? É que… Fala logo, vai. É que eu só vejo ocê nua, deitada na cama, me chamando. Fiquei até besta, Mariluz rindo até mais não. É só isso? Jura? Fácil, fácil. Me pega às nove no João. Mariluz entrou no carro mal encostei no meio-fio. Sabe o Trevo de Sabará? Pega a Contorno, e eu te digo. Onze e meia, fim. Tudo resolvido. Mariluz na porta do banheiro, se enxugando na toalha, e rindo. Viu como foi fácil? Odileia sempre foi muito mais gente do que eu. Se alguém me dissesse que tinha passado a vida me mentindo, inventando merdas, porra-louquices, eu mandava era pra puta que pariu. Odileia não. Odileia só ria. Qual é? Dá é pra rir, uai. Se uma hora era Sartre e Simone de Beauvoir no Les Deux Magots, Françoise Sagan e não sei quem no Flore, Jean Genet na Brasserie Lip, e outra hora era Françoise Sagan e Jean Genet no Les Deux Magots, Sartre e Simone de Beauvoir no Flore, e não sei quem mais não sei onde, um trem que nem Deus dava conta, cê queria o quê, hem? Que eu chorasse? Minha cara caía no chão, bobo de fazer dó. Aí, Odileia passava a mão em minha cabeça, fazendo cafuné. Fica assim não. Vale a pena não. Mentir, todo mundo mente, cê sabe disso. Vem. A diferença, com Mariluz, é que Mariluz não precisava nem passar a mão em minha cabeça. Mostrava os seios, e fim. Mas não era só por isso que eu gostava de tar com ela. Eu gostava era pela certeza que ela me dava de eu poder largar meus besteiróis, e ser feliz, escrevendo meus dramas de verdade. Mariluz continua olhando esta merda deste mar, e eu sei que só tou aqui por ser babaca. Um merda, um palhaço que… Foda-se. Sou palhaço não, viu? Só que sou palhaço sim. Mariluz tá ali a dois metros, e eu aqui cagando de medo que ela se mande, e me meta um pé na bunda. No fundo, no fundo mesmo, eu sou um babaca que passa a vida querendo ser feliz, escrevendo meus dramas de verdade, e não faz é o que deve. Vejo Mariluz se levantando, e entrando na água. Pra quê que Mariluz faz isto, puta merda? Mariluz devia era se virar, dizer, vem cá, ou chegar junto, e pegar na minha mão. Vambora, vamos falar agora. Pra quê que Mariluz tá ali bancando Deus, ou nem sei o quê? Uma onda mais forte joga água até junto de meus pés, e devagar volta pro mar naquele eterno vai e vem só faz de conta. Tou puto, mas quer saber? Tudo que é eterno me apavora. Me lembra morte. E morte, já viu. É pra sempre. Não sei se Tennessee Williams e Edward Albee sabiam dançar. Parece bobeira, mas é não. Pra quem escreveu Gata em teto de zinco quente e Quem tem medo de Virgínia Woolf?, saber dançar, vai ver, era o de menos. Mas pra mim, dançarino pé de chumbo, e só escrevendo besteiróis, saber dançar era que nem subir no céu. Se Odileia, e todo mundo que eu conheço, Mariluz, sei não, mas Odileia, e todo mundo que eu conheço, sabe dançar, porquê que só eu vivo encostado nas paredes, feito murro de arrimo, segurando minha humilhação? Logo que a gente se conheceu Odileia me convidou pra ir em um baile. E eu fui? Fui nada. Em vez de confessar, Odileia, sei dançar não, nunca aprendi, banquei foi o intelectual. Daqueles bem casca-grossa, esquerdão faz de conta. Ô Odileia, mas logo hoje? Posso não. Tenho que aprontar um texto pra amanhã. E me mandei. Só que agora, com cinquenta e dois anos, e a cuca já batendo pino, já viu. Se danou tudo, e tem mais volta não. Dane-se. Mariluz continua ali feito que nem poste, e eu que me dane. Bem feito. Quem manda sair de Belo Horizonte sem saber porquê, nem pra quê? Tamos nesta merda desta praia desde que saímos do hotel, e nada. Não dissemos nem palavra. Nem vem cá, nem foder outro. Nada. Foda-se. Chega. Pra mim, chega. Olho Mariluz, parada feito poste, e meu saco estoura. Pego firme, e boto minhas mãos nos ombros dela. Qual é, Mariluz? A obrigo a se voltar, e mando ver. Porra, Mariluz, assim dá não. A gente tá aqui faz horas, cê não para de olhar esta merda deste mar, não diz, se manda, nem vai à merda, nada. Assim dá não. Ou cê me… Mariluz me olha. Espantei com o olhar dela. Sereno, tranquilo, como se minha raiva fosse amenidade. Tom… Porra, Mariluz. Tom, me diz. Pra quê eu ia te dizer, vai à merda, se… Se, o quê? Qual é, Mariluz? Sem essa, tá? Escuta, Tom. Pra quê eu ia te dizer, vai à merda, se… Para com isso, Mariluz. Tom, fica assim não. Fico assim não? Como é que cê quer que eu fique? Me diz. Pulando feito palhaço, é? De palhaço cê já me vem fazendo, ó… Eu te quero muito, sabia? Foder outro, Mariluz. Mariluz mete a mão na bolsa, e tira um envelope. Te quero muito sim. Só que eu sou que nem ocê não. Quê que é isso, Mariluz? Que merda… Ser que nem ocê me dá medo. Ser que nem eu te dá medo? Medo de quê? Que merda é essa, Mariluz? Quero pirar não. Pirar? Qual é, Mariluz? Pirar sim. Ter essa fissura que cê tem. Fissura que eu tenho? E que fissura é que eu tenho, Mariluz? Tom… Mariluz, porra. Quero fazer comigo o que cê tá fazendo com ocê não. E quê que eu tou fazendo comigo, Mariluz? Me diz, porra. Quero forçar minha barra não. Forçar sua barra? Que merda é essa, Mariluz? Mariluz tira minhas mãos dos ombros dela. Tom, escuta. Porra, Mariluz. Tom, cê passa sua vida forçando sua barra, e eu não quero pirar que nem ocê. Pirar que nem eu? Qual é, Mariluz? É isso mesmo. Cê passa sua vida querendo escrever dramas que cê sabe que nunca vai escrever, e eu não quero pirar que nem ocê. Mariluz bota o envelope na minha mão, e sai correndo. Feito besta, seguro o envelope. Quê que é isto, Mariluz? Mariluz. Ô Mariluz. Corro atrás, e Mariluz não para, nem se volta. Só grita. Lê. Paro, olhando o envelope, Mariluz sumindo no asfalto da avenida. Saí da praia, entrei no primeiro boteco que pintou, e abri o envelope. Só não caí duro porque minha raiva não deixou. Dentro, um papel com um poema.
EU
Eu ainda vou escrever,
quando, não sei,
mas ainda vou escrever o meu poema.
Quero que ele diga aos outros aquilo que eu sou na verdade,
não o que eles querem ou pensam que eu seja.
E tudo lhes dirá o meu poema.
Aquele poema que,
um dia,
eu ainda vou escrever.
Quando,
não sei,
mas sei que vou escrever.
3
Rasguei o papel, rasguei o envelope, joguei no chão, pisei em cima, cuspi, e pedi uma garrafa de vinho branco. Almadén. O garçom riu. Vinho? Tem não.
Cunha de Leiradella
E-mail – leiradella@sapo.pt
revista triplov
INDICE / SÉRIE VIRIDAE / 01 / CUNHA DE LEIRADELLA
Portugal / junho 2021