A duração da eternidade, de Manoel T. Rodrigues-Leal

MANUEL TAVARES RODRIGUES-LEAL
Tributo
Org.: Luís de Barreiros Tavares


ELSA RODRIGUES DOS SANTOS
A duração da eternidade

 

Elle est retrouvée.
Quoi ? – L’Eternité.
C’est la mer allée
Avec le soleil.
Rimbaud

Estamos aqui hoje para falar um pouco da poesia de um grande amigo que muito prezo, o Manoel Tavares Rodrigues-Leal, que se assina nos seus três primeiros livros como “Manoel Ferreyra da Motta Cardôzo”.

Três epígrafes, duas de Rimbaud e uma de Ricardo Reis abrem o livro sob o signo da descrença da vida e da existência de liberdade.

“Merde à Dieu”, diz Rimbaud, “Porque só na ilusão da liberdade, a liberdade existe…” acentua Ricardo Reis numa das suas Odes. Assim, logo à partida as epígrafes apontam-nos para uma poesia com um certo cepticismo e mágoa.

O primeiro poema é uma reflexão sobre o ofício da escrita e o autor fala-nos de “loucura”, de “uma frustre maré interior”, “o inexorável rigor” e “depois a remota eternidade de um corpo”.

Jogando com o conteúdo de “literatura”, que é ofício eterno, mas também “leitura e ócio”, o poeta termina ironicamente rimando com a palavra “literadura”, porque a escrita, se é algo de eterno, implica também sofrimento.

No poema II, o poeta, na sequência do primeiro, afirma: “e não dura o dom”. Confronta-se, então, o sentido de eternidade com o de efemeridade, isto é, eternidade, na qual o poeta acredita, e efemeridade que constata. E aí reside a dor do sujeito poético, entre o prazer fugidio das palavras e o projecto de escrita para a eternidade que se confundem com o vazio dos dias entre “a vã cobiça de um corpo”, “prazer efémero”, o desejo de amor e “a morte suprema” desse mesmo amor, dessa mesma vida.

Fica apenas a ilusão de que a sua escrita permanecerá eternamente: “luar de letras consentidas” […] “assim as guardo. cioso. até à circulação da eternidade. suponho eu.”

No poema III, o “eu” surge em forma de Outono que “vem todos os anos. outonos suaves. como a mãe gostava. eternos e não duram muito.”

“Outono”, não apenas como símbolo do declinar das estações e da existência, mas como algo de doce, de sensual, de recordação de um amor que “morreu há muito e é eterno e outono talvez.” Eterno porque volta sempre, ainda que passageiro.

Institui-se com persistência o binómio eternidade/efemeridade na escrita e sobretudo no amor porque “até a eternidade morre vilmente” (V).

“cristo morreu como se fosse eterno/ como se fosse manso rio de um continente desconhecido” (VI).

Eros e Tanatos se degladiam entre o ser e o estar, entre a essência e a vivência.

Erotismo e vida, erotismo e morte (“oh vã comédia da vida”) fundem-se na alma do poeta através da arte das palavras.

Numa escrita indócil, viril, entre o cunho clássico pela virtude da cultura, da qualidade e da sabedoria e a marca do modernismo na criatividade de uma nova gramática, Motta Cardôzo oculta as cicatrizes e os dias felizes, na convicção da posteridade da palavra poética.

Assim o acreditamos, pela publicação deste seu primeiro livro de poesia, belo nas suas metáforas e representações, que desejamos não ser um acto isolado e efémero, mas retornando em outros Outonos suaves e marcantes, enriquecendo as belas letras portuguesas.


Nota – Este texto foi lido por Elsa Rodrigues dos Santos (1939-2012) numa emissão radiofónica do programa “Fantástica Aventura” da RDP Internacional, coordenado por Teresa Morgado. Registo de  vídeo, abaixo, de Luís de Barreiros Tavares com Elsa dos Santos lendo este texto (registado em 2/4/2011). Ver nota 1: https://www.youtube.com/watch?v=TGwG5lgMuCk&t=6s . Poderá também ser visto no filme documentário aqui divulgado: “Recordo o vítreo retrato de Rimbaud”. Esteve publicado no site de recensões da Sociedade da Língua Portuguesa (SLP), agora extinto. A Doutora Elsa dos Santos foi professora do Ensino Secundário, no Instituto de Ciências Educativas e na Universidade Lusófona. Dedicou-se ao estudo da literatura portuguesa e das literaturas africanas de língua portuguesa. Foi Presidente da Sociedade da Língua Portuguesa (SLP).


Elsa Rodrigues dos Santos (1939 – 2012) licenciada em Filologia Românica e com o Mestrado em Literaturas Brasileira e Africanas de Língua Portuguesa pela Faculdade de Letras de Lisboa. Autora, com D’Silvas Filho, de Grandes Dúvidas da Língua Portuguesa. Ex-Presidente da Sociedade da Língua Portuguesa. Foi agraciada pelo Estado de Cabo Verde com a Ordem do Vulcão, pela sua dedicação à cultura cabo-verdiana.’

in Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/autores/elsa-rodrigues-dos-santos/16/pagina/1 [consultado em 28-06-2020]


MANOEL TAVARES RODRIGUES-LEAL

Série gótica .  Verão de 2020